1 MASARYKOVA UNIVERZITA FILOZOFICKÁ FAKULTA Ústav románských jazyků a literatur Habilitační práce BRNO 2020 SILVIE ŠPÁNKOVÁ 2 MASARYKOVA UNIVERZITA Filozofická fakulta Ústav románských jazyků a literatur No rasto de Cesário Verde: Lisboa na ficção portuguesa dos anos 30 do século XX In the wake of Cesário Verde: Lisbon in the Portuguese fiction of the 1930s Ve stopách Cesária Verda: Lisabon v portugalské próze třicátých let 20. století Silvie Špánková Tese de Habilitação Habilitation Thesis Habilitační práce Brno 2020 3 DECLARAÇÃO Declaro, para os devidos efeitos, que a presente tese de habilitação é original e resultado da minha investigação, e que a escrevi de forma autónoma, recorrendo apenas a fontes indicadas na lista de referências bibliográficas, seguindo o Acordo Ortográfico de 1990, válido para a variedade europeia do Português. Em Brno, 5 de novembro de 2020 Mgr. Silvie Špánková, Ph.D. DECLARATION I hereby declare that this Habilitation This is the result of my own work and that I wrote it independently, using only duly listed and properly cited sources and reference, according to the Portuguese Language Ortography Agreement of 1990, valid for the European Portuguese. In Brno, 5th November, 2020 Mgr. Silvie Špánková, Ph.D. PROHLÁŠENÍ Prohlašuji, že předkládaný habilitační spis je původní, je výsledkem vlastního výzkumu, a že jsem ho vypracovala samostatně s využitím písemných zdrojů, které jsou uvedeny v seznamu použité literatury. Práce je psána podle Dohody o pravidlech pravopisu z roku 1990 platných pro evropskou portugalštinu. Brno, 5. listopadu 2020 Mgr. Silvie Špánková, Ph.D. 4 AGRADECIMENTOS Ao Professor Doutor António Manuel Ferreira, da Universidade de Aveiro, minha primeira fonte de inspiração e sabedoria, agradeço pelo apoio, amizade e pelas palavras estimulantes com as quais me tem honrado, sempre cordial, simpático e generoso. Ao Professor Dr. Martim de Gouveia e Sousa, cujo apoio foi decisivo numa certa fase da escrita para poder acabar o trabalho, agradeço também pela simpatia, empatia e palavra poética & sábia que me tem iluminado as profundidades do dizer literário. À Professora Doutora Šárka Grauová, à Professora Doutora Lola Xavier Geraldes, à Professora Doutora Serafina Martins e ao Professor Doutor Ernesto Rodrigues, que me têm mostrado muitos encantos da literatura portuguesa, agradeço também pela cordialidade e pela amizade de longa data. Aos meus caros interlocutores que tive a honra de conhecer, apreciar o seu trabalho e fruir de conversas estimulantes. Em primeiro lugar, agradeço, pela inspiração e pela simpatia, à Professora Doutora Maria João Simões, à Professora Doutora Micaela Ramon, à Professora Doutora Luci Ruas Pereira, ao Professor Doutor Marcelo Pacheco Soares, à Professora Doutora Teresa Martins Marques, à Professora Doutora Annabela Rita, à Professora Doutora Margarida Braga Neves, ao Professor Doutor Petar Petrov, à Professora Doutora Ana Mafalda Leite e a todos os amigos que tive o prazer de encontrar no meu caminho rumo às letras portuguesas. À minha colega e amiga Maria de Fátima Baptista Néry Plch, professora da Universidade Masaryk, sem cujo apoio, incentivo e ajuda este trabalho nunca seria escrito, agradeço pela amizade e por muitas palavras cordiais que jamais esquecerei. E, last but not least, agradeço pela revisão muito atenta do manuscrito. À minha colega e amiga, Professora Doutora Iva Svobodová, pelo apoio profissional e pessoal. A todas as pessoas queridas que pensam em mim. 5 Amigo Cesário, disse o psiquiatra com ternura, vi a semana passada qualquer coisa que te traria à boca alexandrinos de alegria: procurava eu sítio onde jantar e passando rente ao teu busto iluminado na berma de relva estefânica em que o puseram, dei com uma velha de preto sentada no degrau da estátua com uma alcofa aos pés, e compreendi então a diferença que vai de ti ao Eça e que é a mesma que separa o abraço a uma virgem de pedra da vizinhança de uma criatura viva, arrancada à solidez de carne dos teus versos. António Lobo Antunes: Memória de elefante E, bom, é tempo de voltar a casa: fechar a loja, ver telejornal (loja dos versos), sendo que me apraz a vida campestre, tão desigual, onde, Cesário, te encontre, ao menos, com loira rebolada sobre o feno. Ernesto Rodrigues: “Cesárica" (E num silêncio que toda a gente ouvia Só a mosca deu sinal de si Dizendo com graça e ironia Ó Cesário Verde como eu queria Que estivesses aqui!) Alexandre OʼNeill: “Inventário” O luar encharcava a noite, entrava em cascata pelas janelas, vinha ter connosco à cama. As luzes eram raras e mortiças, de gás incandescente. Pairava no ar um resto de Cesário. José Rodrigues Miguéis: “Saudades para Dona Genciana” 6 Índice RESUMO (PT) ABSTRACT (EN) ABSTRAKT (CZ) INTRODUÇÃO 1. CIDADE E LITERATURA 1.1. Alguns métodos de análise e interpretação do espaço literário 1.2. O espaço urbano 1.3. As bases da geocrítica de B. Westphal 1.4. Cidade e modernidade 1.4.1. O espaço mecanizado e alienado 1.4.2. Hibridismos: diluição de contornos 1.4.3. Formas: organismo, diagrama, labirinto, palimpsesto 1.4.4. Flânerie: um modo de habitar as ruas 1.4.5. A Torre de Babel: caleidoscópio urbano 2. LISBOA NOS ANOS 30 DO SÉCULO XX 2.1. Lisboa, menina e moça: breve nota sobre a olisipografia 2.2. A Lisboa da modernidade literária 3. DEAMBULANDO PELA CIDADE DE SOMBRAS 3.1. A noite/morte lisboeta 3.2. A cidade transfigurada: “A tragédia de D. Ramón”, de Branquinho da Fonseca 3.2.1. A cidade-inferno: no rasto de Cesário 3.2.2. A cidade-circo: alucinações brandonianas 3.2.3. Cidade – saudade – sujeito: fragmentação do ser e do espaço 3.2.4. A cidade fonsequiana: um mundo sombrio 4. PESADELOS URBANOS: EGOTISMO, ALIENAÇÃO E CRIMES PERVERSOS 4.1. Degeneração, nevrose, miséria 7 4.2. Dentro do abismo da escuridão: Páscoa feliz, de José Rodrigues Miguéis 4.2.1. Espetros da rotina urbana 4.2.2. Multidão urbana, pânico e terror 4.2.3. Rumo ao inconsciente urbano 4.2.4. A cidade migueisiana: pelas ruas de pesadelos 5. A CIDADE MALDITA 5.1. A cidade sedutora, a cidade de sedução 5.1.1. Seduções modernas 5.2. Os espetros do passado regressam à cidade 5.3. Viver na Babilónia: Mónica e Maria Benigna, de Aquilino Ribeiro 5.3.1. O imaginário cataclísmico 5.3.2. Fuga para os jardins do Éden 5.3.3. A cidade aquiliniana: um mundo remitificado 6. A CIDADE DA SOLIDÃO FEMININA 6.1. A “enterrada viva”: condição feminina na urbe moderna 6.2. A observadora do mundo urbano: Solidão, de Irene Lisboa 6.2.1. A room of oneʼs own 6.2.2. A janela: espaço de fronteira 6.2.3. A flâneuse lisboeta 6.2.4. A cidade ireniana: pelas ruas da solidão 7. O CAIS DE LISBOA: A GEOCRÍTICA DE UM LUGAR MITIFICADO 7.1. O mito de Ulisses: um dos fundamentos do imaginário coletivo 7.2. As fronteiras: colonial vs. pós-colonial 7.3. Regressos 7.4. Onde a terra se acaba e o mar começa 7.5. Descida ao subterrâneo: da catábase à reconstrução identitária 7.6. Um tópos átopos? CONCLUSÃO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (OBRAS CITADAS) ANEXO 8 RESUMO A presente tese de habilitação tem por objetivo analisar e interpretar o imaginário lisboeta nas obras narrativas publicadas na década de 30 do século XX. Do ponto de vista teórico, a tese baseia-se na geocrítica de Bertrand Westphal, sendo também consideradas outras teorias e suas aplicações, como a topologia (Aínsa, Pons, Hodrová, Hrbata etc.), mitocrítica (Cordeiro Gomes, Hodrová etc.), psicogeografia (Coverley etc.) e teorias antropológicas, fenomenológicas e sociológicas (Benjamin, Williams, Sansot, Simmel, Derdowska etc.). O corpus de base é constituído pelos contos de Zonas (1931-32) e Caminhos magnéticos (1938) de Branquinho da Fonseca (1905-1974), romances Maria Benigna (1933) e Mónica (1939) de Aquilino Ribeiro (1885-1963), novela Páscoa feliz (1932) de José Rodrigues Miguéis (1901-1980) e prosa fragmentada em forma de um diário íntimo, Solidão (1939) de Irene Lisboa (1892-1958). A estes títulos juntam-se alguns outros, de diversos autores, que oferecem uma melhor contextualização histórico-literária a nível sincrónico da pesquisa. A seleção dos títulos não foi arbitrária. Todas as narrativas escolhidas, com exceção da novela de Rodrigues Miguéis, não foram ainda submetidas a este tipo de pesquisa. Contudo, mesmo no caso de Rodrigues Miguéis, a tese concentra-se em traços que não têm sido tratados por outras análises. A escolha do período também não foi arbitrária. O ponto de partida corresponde a dois impulsos. O primeiro diz respeito ao princípio geocrítico assente na combinação da pesquisa sincrónica e diacrónica. A prioridade da vertente sincrónica é fundamental nos casos em que o lugar examinado pertence aos lugares frequentemente abordados na literatura e nas artes. A vertente diacrónica é recomendada no caso de se tratar de lugares específicos que não despertam grande interesse literário e académico, ou ainda pode ser aplicada como um recurso adicional para realização de uma pesquisa sincrónica. Lisboa é uma cidade com uma longa história no tratamento literário, sendo considerada uma cidade mito Na impossibilidade de elaborar uma pesquisa geocrítica numa abordagem tão ampla, dá-se aqui prioridade à vertente sincrónica, que oferece uma diversidade de perspetivas na análise das obras dos vários autores da mesma época. Só deste modo foi possível atingir o desejado objetivo: oferecer um rico e multifacetado retrato de um lugar num período delimitado. A vertente diacrónica é importante como contexto literário, bem como princípio estruturante da última parte da tese, focada no micro-espaço do Cais de Lisboa. O segundo impulso relacionase com a relevância do período examinado para a história e cultura portuguesa: trata-se de uma época marcada por uma crise económica e pelo estabelecimento de um regime ditatorial em Portugal. Trabalha-se aqui com a hipótese de que este contexto sócio-político teria determinado a dimensão axiológica das obras literárias. Os textos analisados apresentam certos traços da literatura modernista, sobretudo a introspecção psicológica, fragmentação, nexos intertextuais e alienação do discurso. No que se refere ao tópico examinado, os textos estudados desenvolvem vários arquétipos e topoi tradicionalmente ligados ao mito da cidade moderna: 1. Alienação urbana causada pela crescente mecanização, 2. Formas simbólicas da cidade como organismo, labirinto, diagrama ou palimpsesto, 3. Criação do espaço híbrido devido ao desaparecimento das fronteiras entre a cidade e a periferia, 4. A figura peripatética e a importância da flânerie na cidade, 5. O símbolo da Torre de Babel que representa o desejo da ordem e progresso, logo convertido em caos. Estas imagens arquetípicas são examinadas com base nos princípios geocríticos, formulados por Bertrand Westphal: multifocalização, polisensorialidade, visão estratigráfica e intertextualidade. O princípio da multifocalização foi, de acordo com a teoria geocrítica, o primeiro passo na organização do corpus e da estrutura da tese. A sua aplicação consiste na seleção dos títulos dos autores, bem como na decisão de mostrar um outro ponto de vista para além do literário. Para atingir este objetivo, a tese contém um capítulo sobre a olisipografia, referindo- 9 se a textos puramente informativos, descritivos, sem ambição literária. A multifocalização é também aplicada a nível empírico (autoral) e narratológico-temático (narrador e personagem). Enquanto José Rodrigues Miguéis e Irene Lisboa estão intensamente ligados a Lisboa (lugar de nascimento de Rodrigues Miguéis e espaço vital de Irene Lisboa), Aquilino Ribeiro e Branquinho da Fonseca, ambos da Beira Alta, viveram em Lisboa durante um período mais ou menos longo. Precisamente na obra destes autores pode ser constatada a tendência para uma avaliação pejorativa da cidade e do seu estilo de vida. Todas as narrativas do corpus básico correspondem a um ponto de vista endógeno, verificando-se só um pequeno desvio em dois casos. O primeiro diz respeito aos romances de Aquilino Ribeiro, nos quais se verifica a focalização alógena dos protagonistas masculinos, provenientes da Beira Alta, cujo amor pelo campo e pela serra os torna críticos no que se refere à vida na cidade. O segundo caso deteta-se no conto “A tragédia de D. Ramón” de Branquinho da Fonseca, que exprime o ponto de vista alógeno de um estrangeiro radicado em Lisboa, mas proveniente de Buenos Aires. Este olhar alógeno insinua a problemática que se tornará uma das mais dolorosas na literatura portuguesa do século XX, com muitas implicações ainda na contemporaneidade, que é a questão da migração (abordada como tema de emigração, regresso de emigrantes, “retorno” de ex-colonos de países africanos etc.), cuja atualidade é igualmente verificada no último capítulo do trabalho, em que é analisado o micro-espaço do Cais lisboeta, lugar de partida e chegada, cruzamento de viagens tanto reais, como imaginárias e simbólicas. Apesar de o princípio de polisensorialidade ser mais difícil de ser detetado na literatura, uma vez que todas as sensações passam necessariamente pela linguagem estética e, dentro deste plano, se plasmam essencialmente a nível visual, podemos observar, nos textos analisados, várias constelações sinestésicas. A ligação inovadora das sensações visual, auditiva e táctil em “A tragédia de D. Ramón” de Branquinho da Fonseca exprime ansiedade, a desorientação numa cidade noturna e labiríntica, transformada num monstro devorador. Na novela de Rodrigues Miguéis, por outro lado, a ligação da sensação visual e auditiva sugere uma obsessão interior, projetada sobre a cidade em visões paranóicas e psiquedélicas. Neste contexto, pode ser ainda observada uma curiosa desconstrução do estereótipo que atribui, à cidade de Lisboa, a cor primordialmente branca. Na narrativa de Rodrigues Miguéis verificase a importância da cor amarela, que é a cor simbólica da extravagância e loucura. No conto de Branquinho da Fonseca, por sua vez, predominam os tons sombrios e escuros da cidade como imagem de um inferno interior. O critério da visão estratigráfica relaciona-se com a dimensão diacrónica da literatura e da cidade. O estrato de suporte é sobreposto por vários outros estratos que participam na construção de um eixo transtemporal, permitindo passar, em forma espiral, de um período para outro, sem delimitações restritivas. Na literatura, este princípio corresponde ao processo intertextual. Em relação a estes princípios estratigráfico e intertextual, verificou-se também que a ficção lisboeta dos anos 30 tem um denominador comum que funciona como um paradigma do discurso urbano na moderna literatura portuguesa. Trata-se da poesia de Cesário Verde (1855-1886), cuja presença tutelar funciona como âncora de todos os tópicos abordados: 1. deambulação pela cidade noturna e/ou sombria, 2. pesadelos, crimes e misérias, 3. seduções e desastres numa cidade “babilónica”, 4. clausura e solidão feminina. Estes temas, analisados a nível sincrónico da pesquisa, estão também na base do imaginário urbano atemporal e universal, como pode ser verificado a nível diacrónico. Este contexto literário consiste em alusões e curtas passagens analítico-interpretativas de alguns autores lisboetas de grande relevo (Fialho de Almeida, Fernando Pessoa, António Lobo Antunes etc.). Ficou demonstrado, não só, como a poética de Cesário Verde penetra explícita ou implicitamente na ficção da década de 30 do século XX, mas também, por outro lado, como a adoção do legado cesariano mantém viva a sua presença nas letras portuguesas, não se limitando a sua repercussão ao período estudado, mas continuando até à contemporaneidade, como uma forma de homenagem ao autor. 10 A última parte da tese, dedicada ao tópico do Cais lisboeta, de forte implicação simbólica, consiste no levantamento geocrítico de obras ilustrativas sobre a problemática em questão, centrando-se em vários níveis de representação para demonstrar os processos de subversão de discursos de poder em vias de desterritorialização. Se em Cesário, Pessoa, Branquinho da Fonseca e José Rodrigues Miguéis, o Cais ainda se mostra como o espaço sonhado, lugar de evasão que possibilita a viagem para um destino melhor, na segunda metade do século XX, o Cais revela-se como um lugar de passagem, de partida dolorosa ou, inversamente, de regresso sofrido, de desilusão. O conjunto das análises apresentadas compõem um mosaico do retrato literário de Lisboa num período-charneira do ponto de vista político-social e estético. Ficou demonstrado que, embora o mosaico seja composto de várias partes muito diferentes entre si, a imagem total desse mesmo mosaico é homogénea do ponto de vista axiológico. Em contraste com os textos de caráter informativo, que acentuam traços benignos da cidade, a imagem de Lisboa nos textos literários apresenta-se como ambígua. A cidade tradicionalmente “branca” começa a adquirir tonalidades sombrias, em reação implícita e talvez também inconsciente a todas as atrocidades que iriam acometer o país até à sua libertação em 1974. As análises demonstram que a cidade, nas narrativas do dado período, se apresenta como uma ameaça, cujas causas devem ser procuradas 1. no desenraizamento devido à migração, 2. na crescente alienação e neurotização do “homem simples” devido à sua vida monótona, repleta de frustrações 3. na implantação do regime autoritário, 4. na solidão das mulheres que ousam transgredir as convenções de uma sociedade fechada, rígida e patriarcal. A única exceção é constituída pelo romance Maria Benigna de Aquilino Ribeiro, em que a protagonista feminina impõe à cidade traços de um locus amoenus devido à sua paixão e enlevamento emocional. As imagens arquetípicas da cidade, encontradas e analisadas nos textos literários da época examinada, podem estimular novas leituras e pesquisas do tópico urbano, em especial as referentes ao período da segunda metade do século XX e à contemporaneidade. Palavras-chave: geocrítica, imaginário urbano, Ficção portuguesa da década de 30 do século XX, modernidade, Lisboa na literatura, história literária 11 ABSTRACT The present thesis aims to analyse the urban imagery in Portuguese fiction published in the 1930s. As for the theoretical background, the thesis is based on Bertrand Westphal's geocriticism and also considers other theories and their applications, especially topology (Aínsa, Pons, Hodrová, Hrbata, etc.), myth criticism (Cordeiro Gomes, Hodrová etc.), psychogeography (Coverley etc.), anthropological and sociological theories (Benjamin, Williams, Sansot, Simmel, Derdowska etc.). The basic corpus consists of short-stories taken from Zonas (1931-32) and Caminhos magnéticos (1938) by Branquinho da Fonseca (1905-1974), novels Maria Benigna (1933) and Mónica (1939) by Aquilino Ribeiro (1885-1963), a novella Páscoa feliz (1932) by José Rodrigues Miguéis (1901-1980) and the fragmented prose in the form of a diary, Solidão (1939) by Irene Lisboa (1892-1958). This selection is complemented by some other titles, written by different authors, which provide a literary context for the synchronic level of the research. The selection of titles is not arbitrary. None of the chosen fictional texts, except for the short story of Rodrigues Miguéis, has ever been analysed in this way. In Rodrigues Miguéis, the thesis focuses on features that have not been worked out by the previous analyses.The choice of the period is not arbitrary either. Two important impulses can be considered as the starting point of the present thesis. The first is the geocritical principle which combines synchronic and diachronic approaches. The priority of the synchronic approach is significant in cases in which the examined place belongs to places frequently treated in literature and arts. The diachronic approach is recommended in the case of a specific place which lies on the margin of the literary and academic interest or as a supplement to synchronic research. Lisbon is a city with a long history of literary treatment and is now considered a city-myth. However, it is impossible to conduct geocritical research from such a broad historical perspective. For this reason, the priority is given to the synchronic approach, which offers a diversity of perspectives analysing texts by different writers in the same period. This is the only means which allows us to achieve a wished result: to provide a multi-perspective portrait of a place in the delimited period. The diachronic approach is relevant in that it enables the construction of a literary context. It is also the leading principle of analysis in the last part of the thesis, which focuses on the micro-space of the Lisbon Quay. The second impulse stems from the importance that the studied period has had for Portuguese history and culture. The 1930s are a period of the economic crisis and the establishment of the authoritative regime of the Estado Novo. I work with the hypothesis that this social and political background determines the axiological dimension of literary work. The analysed texts are based on some features of the modernist literature, especially on the psychological introspection, fragmentation, intertextuality, and alienated discourse. With respect to the examined topic, the studied texts respond to the archetypes and topoi traditionally linked to the myth of modern city: 1. Urban alienation caused by advanced mechanisation; 2. Symbolic forms of the city as an organism, labyrinth, diagram and palimpsest; 3. Creation of the hybrid space due to the disappearing frontiers between city and periphery; 4. The figure of flâneur and the importance of strolling in the city; 5. The symbol of the Tower of Babel representing the desire for order and progress, which converts to chaos. These archetypal images are analysed using the basic principles of geocriticism, formulated by Bertrand Westphal: multifocalization, polysensoriality, stratigraphic vision and intertextuality. The thesis is structurally based on the principle of multifocalization, embedded in geocriticism. To apply this principle means to select titles by different authors and to show another point of view besides the literary one. To achieve this goal, the thesis contains a chapter about "olisipography" (writing about Lisbon), which concerns informative, descriptive texts 12 without literary ambition. The multifocalization is also applied at the empirical (authoral) and narratological-thematic level (narrator and protagonist). While José Rodrigues Miguéis and Irene Lisboa are closely linked to Lisbon, which is the place of birth of the former and the place of life of the latter, Aquilino Ribeiro and Branquinho da Fonseca were both from the region of Beira Alta and lived in Lisbon only during a certain period of their lives. The works of these writers show a stronger tendency to a pejorative valuation of the city and its lifestyle. All the titles of the basic corpus correspond to an endogenous point of view, with only two exceptions. The first one occurs in the novels Mónica and Maria Benigna by Aquilino Ribeiro, in which we can observe an allogeneous focalisation of a male protagonist who comes from Beira Alta and whose love for country life and mountains makes him critical of the city. The second one is the short story "A tragédia de D. Ramón" by Branquinho da Fonseca, in which a shift in perspective of the protagonist shows an allogeneous focalisation of a stranger who lives in Lisbon but comes from Buenos Aires. This allogeneous focalisation stresses the importance of migration (emigration, the return of the emigrants, the return of those who lived in the former African colonies) as one of the most painful problems in the Portuguese society and literature, with numerous implications for the contemporary culture. This problem is analysed in more detail in the last chapter of the thesis, in which the micro-space of the Lisbon Quay, the place of departure and return, the crossroad of the real and imaginary/symbolical journeys, is viewed from the geocritical perspective. The principle of polysensoriality is hard to observe in literature, since all the sensations are captured by the literary language and, in this sense, are essentially visual. However, some rich synesthetic constellations of senses were detected in the examined texts. In “A tragédia de D. Ramón” by Branquinho da Fonseca, the innovative intertwining of the visual, auditive and tactile sensations express anxiety, a feeling of being lost in the labyrinthine night city which has transformed itself into an engulfing monster. In the short story by Rodrigues Miguéis, on the other hand, the intertwining of the visual and auditive sensations suggests an interior obsession projected onto the city in paranoid and psychedelic visions. In this area, we can also observe an interesting deconstruction of the stereotype of Lisbon as a "white" city. In the text of Rodrigues Miguéis, the importance of the yellow colour is highlighted, as this is a symbolic colour of extravagance and madness. In the text of Branquinho da Fonseca, on the contrary, the dark tones of the city as an image of interior hell prevail. The stratigraphic vision is based on the diachronic dimension of the literature and of the city. The support stratum is overlayered by other strata which form the transtemporal axis. On this axis, the passage from one period to another, in the spiral form, without chronological restrictions, is made possible. In literature, this principle corresponds to intertextuality. In this context, it was also shown that the Lisbon fiction of the 1930s refers to topics present in the poetry of Cesário Verde (1855-1886), which can be considered a paradigmatic urban discourse in the modern Portuguese literature. The tutelar presence of the poet serves actually as a base of all the topics treated in the thesis: 1. A passage through the night/shadow city; 2. Nightmares, crime and misery; 3. Seductions and disasters in the "Babylonian" city; 4. Domestic "imprisonment" and loneliness of women. These topics, based on the poetry of Cesário Verde and analysed in the fiction of the 1930s on the synchronic level of the research, form also an atemporal and universal urban imagery pattern, as is possible to show via the diachronic approach. This literary context is delineated by references and short readings by significant Lisbon writers such as Fialho de Almeida, Fernando Pessoa or António Lobo Antunes. It was shown that the poetics of Cesário Verde enters explicitly or implicitly into the fiction of the 1930s. On the other hand, the appropriation of the 'cesarean' poetics maintains his presence alive in the Portuguese literature so that Cesário Verde can be considered as a modern author, with ongoing repercussions not only on the studied period but on present-day writing as well. 13 The last part, which is dedicated to the richly symbolic topic of the Lisbon Quay, consists in geocritical survey of the most illustrative literary works dealing with this place. Through various levels of representation, these titles point to the subversion of the power discourse and the subsequent process of deterritorialisation. On the one hand, the texts by Cesário Verde, Fernando Pessoa, Branquinho da Fonseca and José Rodrigues Miguéis show the Quay as a dreamed-of place, as a spot of evasion which allows a journey to a better destination. On the other hand, the Quay reveals itself as a crossing place of painful departure and anxious return. All the analyses in the present thesis compose a mosaic literary portrait of Lisbon in the 1930s, which was a period of transition, in which a new political-social structure of the Estado Novo was established and in which the second wave of modernism was adopted. It was shown that, despite the different elements of this mosaic, the whole picture is, from the axiological point of view, relatively homogeneous. In contrast to the informative texts which stress the benign features of the city, the image of Lisbon in literary texts is ambiguous. The traditionally 'white' city is converted into a dark city. The only exception is the novel Maria Benigna by Aquilino Ribeiro, in which the discourse of the heroine treats Lisbon as locus amoenus because of her passion and love. In this way, her name Benigna is projected onto places and situations in which she happened to be a protagonist. The archetypal images of the city, found and analysed in the literary texts of the examined period, should encourage further research into the literary city, especially in the 2nd half of the 20th century and in the first decades of the 21st century. Keywords: geocriticism, urban imagery, Portuguese fiction of the 1930s, modernity, Lisbon in literature, literary history 14 ABSTRAKT Předmětem předkládaného spisu habilitačního spisu je analýza a interpretace městského, konkrétně lisabonského prostoru v portugalské próze vydané ve třicátých letech dvacátého století. Hlavním teoretickým nástrojem je geokritika Bertranda Westphala, přihlíží se však k dalším teoriím a jejich aplikacím, zejména k topologii (Aínsa, Pons, Hodrová, Hrbata aj.), mytokritice (Cordeiro Gomes, Hodrová aj.), psychogeografii (Coverley aj.), antropologickým, fenomenologickým a sociologickým teoriím (Benjamin, Williams, Sansot, Simmel, Derdowska aj.). Cílem práce bylo prozkoumat, jak je městský prostor zobrazen v díle studovaných autorů a zda lze z těchto zobrazení vyvodit obecnější závěry o přístupu k urbánní tematice ve zvoleném období. Základní korpus sestává z povídkových sbírek Zonas (Pásma, 1931-32) a Caminhos magnéticos (Magnetické silokřivky, 1938) Branquinha da Fonseky (1905-1974), románů Maria Benigna (1933) e Mónica (1939) Aquilina Ribeira (1885-1963), novely Páscoa feliz (Veselé Velikonoce, 1932) Josého Rodriguese Miguéise (1901-1980) a fragmentární prózy v deníkové formě Solidão (Samota, 1939) Irene Lisboové (1892-1958). Kromě těchto děl se v práci rovněž přihlíží k dalším titulům, které byly vydány ve třicátých letech dvacátého století a které tak umožňují nahlédnout portugalskou tvorbu daného období v širších a hlubších souvislostech. Výběr autorů a děl není arbitrární. U všech autorů s výjimkou Josého Rodriguese Miguéise nebyla dosud urbánní tematika považována za hlavní cíl literárněvědného bádání. I v případě Rodriguese Miguéise se však tato práce zaměřuje na aspekty, které nespočívaly ve středu zájmu o danou problematiku. Rovněž volba období třicátých let 20. století není arbitrárním počinem. Vychází se zde ze dvou důležitých impulzů. Prvním je aplikace kritéria Westphalovy geokritiky kombinovat synchronní a diachronní výzkum. Primárně synchronní výzkum je významný v případě, že zkoumaný prostor naleží k četně zpracovaným místům v literatuře a umění. Diachronní přístup je doporučen v případě dílčích konkrétních míst nebo prostorů, které se nenacházejí v ohnisku zájmu umělecké činnosti či odborné reflexe, a také jako doplnění a obohacení synchronního výzkumu. Lisabon má za sebou již dlouhou tradici literárních zpracování. Jedná se o město, které můžeme po vzoru Zdeňka Hrbaty nazvat „městem mýtu“. Usilovat o geokritický průzkum takového města v celé šíři a bohatosti je nemožné. Z toho důvodu tato práce upřednostňuje synchronní přístup, který poskytuje vícevrstevný pohled na konkrétní prostor v úzce vymezeném období. Diachronní přístup zde slouží k nastínění literárního kontextu a jako hlavní metodologický princip v poslední části práce zaměřené na geokritický průzkum „mikroprostoru“ lisabonského přístavu. Druhým impulzem je význam zvoleného období pro portugalské dějiny a literaturu. Třicátá léta 20. století jsou obdobím hospodářské krize a nástupu autoritativního režimu v Portugalsku. Pracuje se zde s hypotézou, že právě toto ukotvení ve společensko-politickém kontextu může být určujícím podnětem rozvíjeným v axiologické rovině díla. Zkoumaná literární díla vesměs vykazují rysy typické pro modernistickou prózu. Jedná se o žánr psychologické introspektivní prózy, která se z hlediska diskursu vyznačuje kromě jiného fragmentárností, četnými intertextovými spoji a dílčími znaky vnitřní ambigvity a nesourodosti. Z hlediska zkoumané problematiky také zde studované prózy rozvíjejí archetypy a topoi tradičně vztažené k mýtu moderního (velko)města: 1. odlidštění městského prostoru vlivem postupné mechanizace, 2. symbolické formy města jako organismu, labyrintu, diagramu a palimpsestu, 3. proměny města a vznik hybridních prostorů při postupném mizení hranice mezi městským prostorem a okolím, 4. peripatetickou figuru a význam chůze městem, 5. symbol Babylonské věže představující touhu po řádu a pokroku, který se převrací v chaos. Tyto archetypální obrazy jsou v práci ukotveny na základě geokritických úvah Bertranda 15 Westphala, které poskytly základní orientační body literárního výzkumu: pluralitní hledisko, počitkové reakce a stratigrafický pohled s intertextovostí. Pluralitní hledisko je v souladu s geokritickou teorií základem koncepce a struktury celé práce. Jeho aplikace přitom nespočívá pouze ve volbě literárních děl různých autorů, nýbrž také ve snaze nabídnout další hledisko kromě literárního. Součástí práce je proto kapitola pojednávající o „olisipografii“ (psaní o Lisabonu) daného období. Jedná se o texty informativní, popisné povahy, které nemají umělecké ambice a nejsou považovány za literární díla. Pluralitní hledisko se dále uplatňuje v rovině empirické (autorská instance) a naratologicko-tematické (vypravěč a postavy). Zatímco José Rodrigues Miguéis a Irene Lisboová jsou autory spjatými bytostně s Lisabonem (rodiště Rodriguese Miguéise a životní prostor Irene Lisboové), Aquilino Ribeiro a Branquinho da Fonseca, oba původem z kraje Beira Alta, pobývali v Lisabonu v určitém období svého života. Právě v dílech těchto dvou autorů lze také sledovat silnější tendenci k pejorativnímu hodnocení městského prostoru a jeho životního stylu. V rovině postav se jako výraznější posun jeví perspektiva cizince v povídce „A tragédia de D. Ramón“, muže žijícího v Lisabonu, avšak původem z Buenos Aires. Princip smyslových počitků je v literatuře méně zřetelný než v jiných formách umění, protože základním smyslem je zde samozřejmě zrak. Přesto lze v literárních dílech sledovat, jak se různé smyslové počitky rozvíjejí do synestetických konstelací. Právě tento způsob zobrazení lze sledovat i ve ztvárnění městského prostoru ve zkoumaných prozaických dílech. Inovativní propojení vizuálních, sluchových a hmatových počitků v povídce Branquinha da Fonseky zobrazuje pocit úzkosti hrdiny, jeho bloudění v labyrintu nočního města, které se proměňuje v jakousi vše pohlcující příšeru. V novele Rodriguese Miguéise zase provázání vizuálních a sluchových počitků sugeruje vnitřní obsesi, která se promítá do okolí v paranoidních a psychedelických vizích. V této oblasti lze také sledovat zajímavou dekonstrukci stereotypního pohledu na Lisabon jako na „bílé“ město. Místo tradiční bílé barvy se v novele Rodriguese Miguéise symbolicky zvýznamňuje žlutá barva evokující výstřednost a šílenství, zatímco v povídkách Branquinha da Fonseky převládají temné tóny. Kritérium stratigrafického pohledu souvisí s diachronním rozměrem literatury a města, jejich vrstvením. Na podkladovou vrstvu (stratum) se vrší další vrstvy, které vytvářejí časovou spirálu umožňující přechod z jedné vrstvy do jiné bez časového omezení. V literatuře tento princip odpovídá intertextovým spojům. V rámci této stratigrafické a intertextové roviny se zde dokládá, že všechny zkoumané prózy z třicátých let 20. století mají společného jmenovatele, jímž je poezie nejvýraznějšího lisabonského básníka 19. století, Cesária Verda (1855-1886). Verdova poezie stojí v základu všech zde traktovaných témat, od nichž se také odvíjí strukturace práce a rozvržení do jednotlivých kapitol: 1. chůze nočním/temným městem, 2. noční můry, odcizení a perverzní zločiny, 3. svody a pohromy v lisabonské „Babylonii“, 4. prostor uzavření a osamění žen. Tato témata rovněž představují konstanty v diachronním přístupu ke zkoumané problematice. Příslušný literární kontext je v práci nastíněn v podobě odkazů a kratších analyticko-interpretačních pasáží o díle významných autorů spjatých s lisabonským prostorem, jako je Fialho de Almeida, Fernando Pessoa či António Lobo Antunes. Poslední kapitola se zabývá geokritickým průzkumem „mikro-prostoru“ lisabonského přístavu jako křižovatky skutečných, vysněných, mytických i symbolických cest. Vytyčením reprezentativních děl pojednávajících o daném místě bylo možné poukázat na různé podoby zobrazení a zejména na subversivní polohy diskurzu směřující k deteritorializaci. Zatímco v díle Cesária Verda, Fernanda Pessoy, Branquinha da Fonseky či Josého Rodriguese Miguéise přístav ještě představuje prostor vysněných cest, ve druhé polovině dvacátého století se proměňuje v prostor tranzitní, místo bolestných loučení a zároveň i trpkého návratu a deziluze. 16 Soubor analýz a interpretací zkoumaných literárních děl představuje mozaikový portrét Lisabonu v období, které je politickým mezníkem v portugalských dějinách a estetickým mezníkem v portugalské kultuře a literatuře. Navzdory různorodým částem dané mozaiky je však výsledný portrét města do značné míry homogenní z hlediska axiologie. V kontrastu k textům informativní povahy, jež zdůrazňují příjemné rysy lisabonského prostoru, je totiž literární pohled na město, a tím i na společensko-politickou situaci v zemi, nejednoznačný. Tradiční „bílé“ město se tak v próze třicátých let 20. století proměňuje v město temné. Analýzy dokládají, že město v prózách daného období působí jako hrozba. Příčiny této situace je nutné hledat v rovině osobnostní (pocit odcizení a neuróza „obyčejného člověka“ v reakci na frustraci a regulovaný, monotónní život) i společenské (vykořeněnost vlivem migrace; marginalizace žen překračujících konvence rigidní, patriarchální společnosti; nástup autoritativního režimu). Jedinou výjimku představuje román Maria Benigna Aquilina Ribeira, v němž promluva titulní hrdinky přisuzuje Lisabonu tradiční rysy líbezného místa, jež je výrazem jejího citového rozpoložení a milostného vzplanutí. Archetypální obrazy městského prostoru, nalezené a analyzované v literárních dílech zkoumaného období, mohou posloužit k dalšímu výzkumu urbánní tematiky, zejména v literatuře druhé poloviny 20. století a v současné (nejen) portugalské tvorbě. Klíčová slova: geokritika, městská obraznost, portugalská próza vydaná ve třicátých letech 20. století, modernita, Lisabon v literatuře, literární historie 17 Introdução A primeira pergunta, lógica, que pode surgir em relação ao presente trabalho, talvez não se relacione com o foco temático, mas com a escolha do período estudado. Com efeito, os estudos das representações urbanas constituem um campo fértil que, apesar do crescente número de trabalhos que lhe são dedicados, oferece sempre muitos ângulos a pensar e a analisar. O período, contudo, pode provocar certas perplexidades. Comecemos, portanto, partindo de uma reflexão muito geral para em seguida explicar a escolha dos autores. A justificação pode cingir-se logo ao facto de a década de 30 do século XX, que aqui me interessa, não ser tão afastada da nossa contemporaneidade como possa parecer à primeira vista. Recentemente, Jonathan Freedland (2017) referiu-se a este fenómeno no jornal inglês The Guardian, declarando que são precisamente os anos 30 do século XX os mais próximos de nós, de problemas com os quais lida a nossa sociedade de todos os pós- conhecidos, desorientada, à procura de suportes para se repensar à luz do vivido e à luz do porvir imaginado. A década de 30 do século passado é, com efeito, uma década com problemas idênticos aos que hoje enfrentamos. Entre estes, a migração, xenofobia, homofobia e outras fobias dirigidas contra o outro, nacionalismo, racismo, violência absurda ou depressão económica (hoje em dia não só devido ao surto da pandemia de coronavírus) são os problemas que encontramos também nos difíceis anos 30 de novecentos. O surgimento de ideologias extremistas, bem como o autoritarismo apoiado pelo fanatismo de certos setores da população, é só uma das consequências previsíveis dos fenómenos indicados. Em Portugal, para nos cingirmos à área cultural que nos interessa, a década de 30 é fundamental na história do país, uma vez que se trata de uma época marcada pela crise económica e pelo estabelecimento do regime ditatorial. A minha primeira hipótese assenta portanto neste relacionamento implícito entre a situação social e a cultura/escrita, ou seja, entre o social e a imagem da cidade pensada/escrita em dada época. Por outras palavras, atendendo aos problemas a nível político-social, em que a mão (in)visível do omnipresente salazarismo dita as regras, surge a suposição de a imagem da cidade adquirir tonalidades mais sombrias. O primeiro passo consiste, nestas circunstâncias, em mapear as representações de uma cidade – a capital portuguesa – que surgem na literatura nesta mesma época, sob o peso de um concreto condicionamento político-social. Outra justificação do objetivo deste trabalho prende-se à escolha dos autores que escreveram sobre Lisboa na época estudada. Em primeira estância, trata-se de autores a cuja obra me tenho vindo a dedicar sistematicamente há muito tempo: Branquinho da Fonseca 18 (1905-1974), Aquilino Ribeiro (1885-1963), José Rodrigues Miguéis (1901-1980) e Irene Lisboa (1892-1958). O facto de coincidirem na escrita sobre Lisboa facilitou a identificação do corpus básico de obras analisadas: contos de Zonas (1931-32) e Caminhos magnéticos (1938) de Branquinho da Fonseca, romances Maria Benigna (1933) e Mónica (1939) de Aquilino Ribeiro, a novela Páscoa feliz (1932) de José Rodrigues Miguéis e o diário fictício Solidão (1939) de Irene Lisboa. A estes títulos juntam-se alguns outros, de diversos autores, que fornecem uma melhor contextualização histórico-literária a nível sincrónico da pesquisa. Por outro lado, as imagens adquiridas à base deste processo analítico-interpretativo servem também a contextualização da escrita lisboeta a nível diacrónico, através do século XX, numa corrente de elos constituídos por algumas obras representativas. O que os autores aqui escolhidos e trabalhados têm em comum é o facto de se tratar de escritores conceituados, “canonizados”, e apesar disso um tanto marginalizados pelo leitor em geral e círculos académicos. Branquinho da Fonseca, embora já de certa repercussão no meio especializado, está longe de poder ser considerado um autor lido e relido, mesmo no meio universitário. O facto de não ter sido arrumado no baú de autores bons, mas irrelevantes para os trabalhos académicos, deve-se em muito ao professor António Manuel Ferreira, da Universidade de Aveiro, que como primeiro estudou sistematicamente a obra de Branquinho da Fonseca, escrevendo a tese de doutoramento sobre a sua contística e preparando para edição a obra completa do autor. Aquilino Ribeiro é um caso muito mais acutilante: trata-se de um escritor de primeira linha na literatura portuguesa de sempre, autor de uma prosa polícroma, bebida no melhor da tradição literária portuguesa, enriquecida por vários substratos de prosa religiosa e filosófica. Admiravelmente produtivo, de uma capacidade em todos os sentidos invulgar no domínio da língua, efabulador incansável da vida portuguesa tanto rural, como urbana, mereceria uma atenção ainda maior do que a dedicação que lhe tem sido prestada sobretudo nas últimas décadas. Muito foi recuperado, em prol da fortuna crítica deste autor, por várias revistas focadas no estudo do autor (Cadernos aquilinianos, a funcionar desde 1992, e a Revista literária aquilino, fundada em 2009), bem como o Centro de Estudos Aquilino Ribeiro (Viseu, dirigido atualmente por António Manuel Ferreira) que promove várias sessões académicas e de homenagem ao escritor da Beira Alta. Aos estudiosos sistemáticos da sua obra pertencem, entre outros, os professores José Carlos Seabra Pereira e Serafina Martins, autores de monografias dedicadas, respetivamente, à problemática de vitalismo e amor/erotismo na obra aquiliniana. Apesar de um crescente interesse pela obra de Aquilino Ribeiro em Portugal e no estrangeiro, 19 a riqueza e versatilidade da sua obra convidam a uma exploração ainda mais rigorosa e influente, dirigida também no sentido de animar o seu legado literário junto da juventude. Algo semelhante passa-se com José Rodrigues Miguéis, autor conhecido e estimado mas ainda não suficientemente abordado pela pesquisa académica e pelo público leitor. Nestes termos, o autor não caiu no esquecimento sobretudo graças à empenhada dedicação de alguns estudiosos de renome, como a Professora Teresa Martins Marques, da Universidade de Lisboa, e Onésimo Teotónio Almeida, da Brown University de Rhode Island, onde se encontra o espólio do escritor (exilado nos Estados Unidos em 1935). O último caso relaciona-se com a escritora Irene Lisboa. Muito tem sido feito em honra da sua obra por Paula Morão, professora da Universidade de Lisboa. Apesar disso, muito ainda poderá ser feito na pesquisa desta autora, uma das mais originais da primeira metade do século XX. Na verdade, um certo desinteresse pela autora constitui já um leitmotiv desde a época em que a autora viveu. O desabafo “porquê ninguém lê Irene Lisboa” ouve-se no título da crónica de José Cardoso Pires, publicada no Diário Popular em 1966, repercutindo o próprio desabafar da autora quando se encontrava com o escritor José Gomes Ferreira, seu amigo. A crer no autor de Poeta militante, Irene reagia às conversas sobre os escritores adorados pelo público com as palavras: “E a mim? Porque não me lêem?” (Ferreira, 1978 In Lisboa, 1991, p 30).1 Na verdade, a obra de Irene Lisboa deve ser recordada e estudada como uma grande conquista literária da década de 30 do século XX que, nas palavras de José Gomes Ferreira, “levou a poesia até às últimas consequências do desconcerto formal, dessacralizando-a, esvaziando-a de todos os rituais, sem contudo a banalizar nem tomar ares de revolucionária indómita” (Ferreira, 1991, p. 19). Com este procedimento, e ainda com a banição de todos os lugares comuns convencionais burgueses, opina Gomes Ferreira, Irene Lisboa arrasou toda a poesia de autoria feminina precedente (cf. Ferreira, 1991, p. 18). José Gomes Ferreira sustenta mesmo, no seu 1 Também Carlos de Oliveira, na crónica “À espera de leitores” (O aprendiz de feiticeiro, 1971) pergunta “Porquê não se lê Irene Lisboa?”, aduzindo que “[h]á vinte e tantos anos a explicação seria fácil (...) [m]as hoje, ultrapassando o desfazamento inevitável a que estão sujeitos os inovadores, por que razão continua Irene Lisboa a não ser lida? (...)” (Oliveira, 1995, pp. 169-170). Hoje em dia, Vítor Viçoso explica, a este respeito, que “[a] pouca aceitação da sua obra pelo público coetâneo, devido certamente ao seu hiperbolizado intimismo e ao fragmentarismo, leva a concluir que tal postura estética seria dificilmente digerível por uma parte da crítica e por leitores pouco sensíveis a essa mais-valia intimista do feminino (um mundo condenado à solidão), em contraste com os paradigmas dominantes, em função dos quais a mulher era avaliada sobretudo pelo conservadorismo do seu papel social.” (Viçoso, 2011, p. 249). Não obstante, a autora continua a ser pouco trabalhada, quase silenciada. Sara Marina Barbosa, que se dedicou à poesia da autora, reflete resumidante sobre este assunto, referindo também uns desabafos (de Óscar Lopes, José Régio) que lamentam a pouca atenção que é prestada à autora. Apesar de tudo, Irene Lisboa foi apreciada por uns poucos, grandes autores, como Raul de Carvalho (p. ex. no poema “Tautologias”, com a dedicatória “A Irene Lisboa”) ou Eugénio de Andrade (quando se refere à revista Presença, afirma que “os dois poetas mais originais desse período, Vitorino Nemésio e Irene Lisboa, não são presencistas”, Andrade, 1995, p. 158). 20 ensaio de 1978, que Irene Lisboa é “a maior escritora de todos os tempos portugueses” (Ferreira, 1991, p. 17) e insere a poesia de Irene Lisboa no contexto poético da “famosa” e “luminosa” década de 30, iniciada simbolicamente pelo suicídio de Florbela Espanca, que viu surgir várias obras de interesse, entre as quais o trabalho literário de Irene Lisboa ganha um lugar de relevo (Ferreira, 1991, p. 21).2 Os autores trabalhados pertenceram, portanto, a uma época e a uma geração, comungando do mesmo ethos epocal, da mesma insubordinação perante o poder. Sendo todos opositores ao regime autoritário, cada um deles mostrou uma ética de dignidade, defesa da liberdade e de valores que constituíram um credo autoral/pessoal. Várias circunstâncias adversas forçaram José Rodrigues Miguéis a exilar-se nos EUA. Mário Neves regista as palavras de José Gomes Ferreira, também grande amigo de Rodrigues Miguéis, antes da partida do escritor desiludido, tal como elas ficaram guardadas em A memória das palavras – ou o gosto de falar de mim: “Ainda trago na pele o desconforto lívido com que, naquela manhãzinha da Brasileira ao Rossio de há vinte e tantos anos, ouvi o José Rodrigues Miguéis anunciar-me a próxima partida para a América do Norte. Olhei-o com a sensação da pátria ficar mais pequena” (Neves, 1990, p. 69). Rodrigues Miguéis que não estava em bons termos com a censura e regime, aliciado ainda pelas perspetivas entusiastas da sua mulher, partiu com a bagagem emocional para sempre guardada no seu coração: a sua cidade natal, Rua da Saudade onde nasceu e que se projetou na sua obra como uma outra saudade. Nos fins da década de 30, segundo consta, o estado do seu espírito manisfestava marcas profundas da saudade que sentia em relação ao seu país. Conta o seu biógrafo Mário Neves que as cartas enviadas para Lisboa começaram a preocupar gravemente os seus amigos. Por isso, em 1938, a sua também amiga Irene Lisboa publicou, na Seara Nova, uma mensagem ao amigo, um curto poema em forma de carta a dizer: Saudade, tem-na? Esqueça-a. E não volte. (citado conforme Neves, 1990, p. 100) Como a situação em Portugal nos tardios anos 30 piorava, Irene Lisboa, lúcida, preveniu o amigo a não regressar. Rodrigues Miguéis, assim, embora nunca reconciliado, continuou a viver e a trabalhar nos EUA. Prosseguiu escrevendo sobre Lisboa e a vida portuguesa, matando 2 Entre tais obras figuram, por exemplo, Voyelle promise (1935) e O bicho harmonioso (1938) de Vitorino Nemésio, As encruzilhadas de Deus (1936) de José Régio, Poemas do tempo incerto (1934) e Sempre e sem fim (1936) de Adolfo Casais Monteiro, Desaparecido (1935) de Carlos Queiroz etc. 21 saudades em figuras de alter-ego regressadas aos lugares de origem ou mal adaptadas ao meio americano. Assim, mesmo que esteja presente, na sua prosa, o cenário estrangeiro, sobretudo Nova Iorque mas também, por exemplo, a Baltimore de Poe e António Nobre, o espaço português sobrepõe-se pelo elemento humano, nas histórias de vários exilados lançados em águas turvas de novas experiências na outra margem do Atlântico. É lá, no estrangeiro, que escreve várias páginas do melhor da prosa lisboeta, como Saudades para Dona Genciana (1956) ou A escola do paraíso (1960). A respeito do primeiro título, Mário Neves aduz tratarse de “uma das peças de maior agrado da sua produção ficcionista” em que o autor “partia dos primeiros tempos da República para descrever o ambiente da Avenida Almirante Reis em que viveu a sua mocidade e desenhar algumas figuras da burguesia da época” (Neves, 1990, p. 124). Teresa Martins Marques frisa que a novela apresenta “um emblemático microcosmo do imaginário da Lisboa migueisiana”, um “espaço-causa” opressor que provoca o desejo de evasão, um “espaço-cenário” da vida da pequena burguesia, um “espaço-memória”de um tempo privado e coletivo e um “espaço-regresso” à Avenida, à procura do tempo perdido (Marques, 1997, p. 170). O segundo título referido é ainda mais pessoal. Recuperando o tempo da infância, o autor recria o cenário da própria Rua da Saudade, imagem de origem revestida de força mitificadora. Como afirma Teresa Martins Marques: O horizonte da Rua da Saudade possui a fluidez de todos os horizontes acrescida ainda da componente mítica do lugar de observação – a rua do nome predestinado a mostrar que a toponímia da cidade não é arbitrária, mas sim uma atribuição de sentido, ou uma constatação de um sentido preexistente. (Marques, 1997, p. 113) De facto, a saudade como um “tempo-memória-flutuante” (Marques, 1997, p. 113) constitui a pedra de base no imaginário urbano de Rodrigues Miguéis, sendo a sua importância em A escola do paraíso sublinhada pelo motivo do cais, visto a partir da janela da mansarda da Rua da Saudade: “Os paquetes atracam logo em baixo, ao cais, e a rua deve talvez o nome à saudade que para sempre ficou flutuando no sítio: a saudade dos que ficam, e a dos que partem e querem prender-se à terra, de braços, olhos e almas alongadas.” (Miguéis, 1981, p. 22). A dialética de sentimentos contrários, desse desejo de partir, querendo-se ficar, também anima muita da prosa lisboeta, não só de Rodrigues Miguéis. Por isso, um breve vislumbre sobre esta problemática complexíssima fará parte das análises desenvolvidas no presente trabalho. O caso de Aquilino Ribeiro é, em certos aspetos, semelhante, e noutros aspetos bem divergente. A semelhança deve-se ao facto de o autor beirão ter passado também pela experiência do exílio. A diferença consiste nas coordenadas temporais e espaciais: trata-se só 22 de um exílio muito temporário e só parisiense. Com efeito, Aquilino Ribeiro exilou-se três vezes em Paris, devido ao seu oposicionismo seja à moribunda monarquia constitucional, pela atividade dentro do movimento republicano, seja ao regime militar de 1926 e à ditadura de 1928.3 Duas vezes foi detido, duas vezes evadiu-se da prisão. Neste caso, portanto, os três exílios podem ser vistos como uma experiência que, embora alimentada e fustigada por diferentes vivências dramáticas a nível pessoal e amoroso (devido a dois casamentos, o primeiro com a alemã Grete Tiedemann, o segundo com Jerónima Dantas Machado, filha de Bernardino Machado, ex-presidente da Primeira República Portuguesa exilado), foi vivida por Aquilino Ribeiro no estrangeiro. Em 1929, numa carta dirigida a Brito Camacho, o escritor diz: “Cá estou outra vez em Paris, na mesma avenida, no mesmo hotel e quarto em que estive há um ano. Encontrei tudo na mesma e até, ao ver-me no espelho pregado na parede, me figurei inalterável, como tudo se passara ontem”.4 Era de prever a inspiração parisiense na escrita de Aquilino Ribeiro. Curiosamente, tal não se deu. Exceto o romance O homem que matou o diabo (1930) que inclui também alguns cenários castelhanos (conhecidos durante a passagem da meseta rumo à França) e um par de contos e novelas de Jardim das tormentas (1913) e Filhas de Babilónia (1920), Aquilino permanece fiel ao espaço português. O seu inconformismo levou-o a resistir ao poder, várias vezes opondo-se-lhe abertamente (como por exemplo no caso do romance Quando os lobos uivam, de 1958, apreendido pela censura). Do mesmo modo, Branquinho da Fonseca, beirão como Aquilino, nunca cedeu aos conformismos com o regime, mantendo sempre a sua integridade pessoal e ética. O seu temperamento não o incitou a ações políticas, no entanto, a sua postura invulgarmente ética refletiu-se nas atividades das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, assumidas nos fins do anos 50, às quais se dedicou com todo o entusiasmo e entrega pessoal, deixando a escrita de lado. A sua prosa, especialmente a dos anos 40, em que se incluem as famosas narrativas de O Barão (1942) e Rio turvo (1945), assenta numa multiplicidade de significados e num simbolismo em que a crítica do regime autoritário também é legível. Mais que alusões ou referências explícitas de teor político, a obra de Branquinho da Fonseca distingue-se por uma fina arte de sugestão com que reage a certos indícios da vida pública e 3 A este respeito, Serafina Martins esclarece: “A intervenção política de Aquilino Ribeiro nasce em simultâneo com a sua vida de escritor. (...) Falar da sua vida pública implica necessariamente falar da sua participação na causa republicana no período que antecede a revolução de 1910, dos períodos de exílio, dos vários actos de dissidência contra a ditadura do Estado Novo (participação em acções revoltosas, apoio do Movimento Democrático Unitário, apoio da candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República).” (Martins, 2011, pp. 126-127). 4 Tirado na exposição Aquilino, anos 20: entre o exílio e as geografias de Lisboa. Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa, 16 de maio de 2019. 23 privada. Por isso, tanto na sua poesia, como na sua prosa, o autor de Mortágua expõe várias situações de confinamento ou mesmo clausura involuntária. Embora tais fenómenos se encontrem em algumas narrativas de coordenadas espaciais provincianas (alguns contos de Caminhos magnéticos, O Barão, Rio turvo), não é de desrespeitar a sua ocorrência na poesia, publicada na revista Presença em 1928/29, que manifesta vários estados de melancolia, sentida na cidade, dentro de casa, especialmente se há chuva lá fora. Assim, por exemplo, o sujeito poético diz no texto “A paisagem da janela”: “Da janela olho a paisagem como quem não tem mais nada. Fechei as vidraças para não ouvir o rumor da cidade. (...). Esta paisagem não tem nenhum dia igual. Mais ou menos sol, mais ou menos noite, nuvens, dias de chuva, ou céu aberto: a claridade que cega. Tem ainda a vida da primavera, o verão o morrer do outono... a morte do inverno.” (Fonseca, 2010a, p. 119). Ou, no texto “Desolação”: Domingo. Chove. As lojas fechadas, as ruas desertas. O céu cinzento... tudo cinza... Que dia! Encosto a cabeça aos vidros em que bate a chuva e sinto-me afundar...” (Fonseca, 2010a, p. 124). O efeito desta atividade poética consistia sobretudo na desestabilização da moral instituída pelo regime no poder. Finalmente, Irene Lisboa, poetisa, escritora e pedagoga. A autora, nascida no Casal da Murzinheira, concelho de Arruda, desconcentrou o sistema vigente pelo simples facto de existir pensando e escrevendo. Mulher solitária que conhecia o seu valor, mas recusava subjugar-se aos padrões da sociedade tradicional. Não se casou, não teve filhos, trabalhou inteletualmente, era criativa. Por esta livre criação literária, contudo, foi afastada do ensino por uma reforma compulsiva, ainda que enquanto professora tivesse publicado sob pseudónimos. Diz a este respeito José Gomes Ferreira que “no salazarismo existiam várias medidas para a perseguição”, e isto “[d]esde a do simples facto de uma pessoa existir, à obra pedagógica” (Ferreira, 1978 In Lisboa, 1991, p. 20). Era de prever que a obra de Irene Lisboa, que não se ajustava a um lirismo esperado que uma mulher cultivasse e que preferia certas figuras do povo, bem como assuntos quotidianos considerados vulgares, iria encontrar pouca adesão da parte do público. O maior escândalo relacionou-se, todavia, com os assuntos de teor íntimo que Irene Lisboa trabalhava com uma naturalidade e abertura incomum, sem qualquer preconceito. Foi por isso que a autora optou, no início, pelo pseudónimo masculino, mas foi também por isso que, ao ser a verdade descoberta, “logo correu de boca em boca a notícia de que esse tal João Falco não passava de uma mulher e não hesitaram em acusá-la de desafiadora de todas as ordens estabelecidas: sociais, políticas, literárias, além de outras poucas vergonhas indizíveis” (Ferreira, 1978 In Lisboa, 1991, p. 25). É neste sentido que consiste a sua desconstrução de vários esquemas da época que eram supostos a orientar a moral do povo, especialmente feminino. 24 Tendo em conta todos os aspetos acima mencionados que justificam a escolha dos autores aqui trabalhados, é evidente tanto a sua importância nas conjunturas estético-sociais da época estudada, como a necessidade de regressar à sua obra com uma atenção que, dada a complexidade e riqueza da obra desses autores, nunca poderá ficar completamente saturada. O elo de ligação que neste trabalho consiste no tema urbano, pode revelar ainda outras afinidades, mas também divergências nos autores em apreço. É preciso notar, nesta circunstância, que os estudos urbanos pertencem a um campo de pesquisa relativamente recente na história literária portuguesa e que, por isso, qualquer análise dedicada ao presente tema me parece suficientemente justificada quanto à sua importância e utilidade. Não há, na teoria literária portuguesa, muitos exemplos de reflexão teórica sobre o espaço na literatura. Embora dois dos maiores teóricos portugueses, Vítor Manuel de Aguiar e Silva (2006)5 e Carlos Reis (2002)6 , assentem as suas posições dentro de moldes hermenêuticonarratológicos, a atenção crítico-teórica presta-se hoje em dia ao que se poderia denominar de pesquisa topológica, no contexto checo desenvolvida pelos especialistas de renome, como é Zdeněk Hrbata e Daniela Hodrová. Em trabalhos dedicados à obra de autores concretos que me interessam no presente trabalho, as atitudes de estudo do espaço variam, embora prevaleça uma tendência à classificação abstrata e sistematizada. Concretamente, Nazaré de Matos (2010), ao estudar o espaço nos contos canónicos de Aquilino Ribeiro, parte de classificação próxima do esquema de Carlos Reis (espaço físico, social e psicológico), mas modifica, plausivelmente, o item do espaço psicológico em favor do espaço encantatório (de atmosferas culturais e fantasistas). Teresa Martins Marques (1997), ao debruçar-se sobre o espaço de Lisboa na obra de José Rodrigues Miguéis, aplica a sua própria classificação dividida em espaço-causa, espaço-cenário, espaço-memória e espaço-regresso. Por fim, uma das análises mais abrangentes e mais próximas das correntes contemporâneas de topologia (topofilia e topofobia) é a que é oferecida por António Manuel Ferreira (2004) no estudo da obra de Branquinho da Fonseca. Neste trabalho, o professor e pesquisador aveirense analisa e interpreta espaços distópicos e eufóricos, relacionados com os microespaços de rua, casa, quarto, prisão, floresta, rio, gruta ou mina, tendo sempre em conta tanto o contexto e topologia simbólica, como a diegese e, sobretudo, comportamento e afetos das personagens. A abordagem emocional destes espaços, por conseguinte, serve ao autor para o seu enquadramento dentro de linhas de análise 5 Refiro-me sobretudo à Teoria da literatura (8.ª ed. 2006). Embora Aguiar e Silva enquadre o espaço literário dentro da categoria da descrição, menciona alguns conceitos fundamentais, tais como cronótopo e topo-análise (no sentido bachelardiano como “lʼétude psychologique systématique des sites de notre vie intime”, Bachelard, 1957, p. 27 apud Silva, 2006, p. 742). 6 Refiro-me sobretudo ao Dicionário de narratologia (7.ª ed. 2002), feito com Ana Cristina M. Lopes. 25 que se dividem em estratégias de ancoração realista, fatores de liricização da narrativa e mecanismos de distorção grotesca. Noutro sentido são ainda conduzidos vários trabalhos sobre o espaço rural em Aquilino Ribeiro, abordado de diversas perspetivas, desde a análise de regionalismo e etnografia nos romances e contos situados na Beira Alta, até aos roteiros de viagens.7 Para “consagrar” a importância do espaço na obra aquiliniana pode servir, para além da tese de Nazaré de Matos, o artigo de David Mourão-Ferreira intitulado “Aquilino-EspaçoGente” (1992), em que o renomado professor, ensaísta, poeta e escritor desenvolve a sua ideia da “continentalidade” em Aquilino Ribeiro, lançada já em 1988, sugerindo que o tratamento do Espaço sempre constituiu “a primeiríssima das prioridades” do escritor beirão (MourãoFerreira, 1992, p. 42).8 Também Serafina Martins, especialista em Aquilino Ribeiro, chamou a atenção para o facto de a categoria do espaço pertencer aos tópicos preferidos na abordagem da obra do Mestre de Soutosa, sublinhando porém, ao mesmo tempo, que “a dimensão dessa obra (...) e o espírito proteiforme de Aquilino deixaram ao dispor um leque de pontos de vista vasto o bastante para manter os assuntos em aberto” (Martins, 1999, p. 61). Qualquer nova abordagem, portanto, não significa redundância, mas a contínua procura de caminhos que podem sempre contribuir com mais um novo ponto de vista para a compreensão da obra que dificilmente poderá ser um dia completamente explorada. 7 Existem vários roteiros aquilinianos, como se diz no artigo de Fernando de Gouveia e Sousa (2013), p. ex. Henrique Almeida: Terras do Demo – Roteiro aquiliniano, SPRC/CEAR, 1997, Viseu, Alberto Correia: Viajar com… Aquilino Ribeiro, Caixotim, 2003, Alberto Correia e António Augusto Fernandes: Nos passos de Viterbo com Aquilino ao lado, CEAR, 2004, Vários: Percurso aquiliniano, ESEN, 2008, Martim de Gouveia e Sousa: Um roteiro para Aquilino, Casa Álvaro de Campos – Tavira e SPRC, 2011. Merece a atenção especial mais um roteiro de Martim de Gouveia e Sousa, com o título Deambulação aquiliniana & derivações (SPRC, 2012, com a capa de Francisca de Gouveia e Sousa), sobre o tópico peripatético em Aquilino Ribeiro, em que o autor percorre os espaços diletos na obra aquiliniana, em especial Viseu, Soutosa e Lapa. Sobre este roteiro Fernando de Gouveia e Sousa afirma o seguinte: “Este roteiro-ensaio é de cariz verdadeiramente inovador, não só pela inserção de um espaço de notas que proporciona a todo aquele que demanda as Terras do Demo registar o que viu, ouviu e sentiu..., mas também pela polifonia de textos e informações que o torna num objecto imprescindível para o viajante acidental e para o estudioso da obra de Aquilino. Realço as extensíssimas e valiosíssimas notas de rodapé. É talvez a mais completa e exaustiva bibliografia activa aquiliniana até hoje publicada” (Sousa, 2013, p. 73). Quanto ao regionalismo e etnografismo, convém salientar, entre outros, o artigo “La Beira que Terras do Demo nous a léguée” de Françoise Massa (publicado em Cadernos Aquilinianos, nº 8, 1999) ou “A etnografia em Aquilino Ribeiro” de José Manuel Sobral (Revista Antropológicas nº 6, 2002). O espaço rural em Aquilino Ribeiro inspirou até os estudos ambientais, como mostra por exemplo o artigo “Paisagem-Literatura-Paisagem” de Ana Isabel Queiroz (publicado em Cadernos Aquilinianos, nº 17, 2006). 8 As sugestões de David Mourão-Ferreira continuam a ser muito aliciantes. Há, de facto, vários topoi (“jardim”, “bosque”, “estrada”, “aldeia” etc.) que se inserem na sua ideia da “continentalidade” e que poderiam ser ainda plausivelmente desenvolvidos nas análises estritamente dedicadas à obra de Aquilino Ribeiro, ou abordadas numa perspetiva comparatista. Interesse especial cabe ao tópico da “casa” que é, conforme o ensaísta, de importância fundamental quase em todas as obras narrativas do autor. No que respeita a este tópico, convém salientar a pesquisa da lusitanista checa Karolina Válová (2018) que se concentrou, no âmbito da sua tese de doutoramento, na análise da casa em três obras de ficção portuguesa da segunda metade do século XX, concretamente em Uma abelha na chuva de Carlos de Oliveira, Para sempre de Vergílio Ferreira e O jardim sem limites de Lídia Jorge, inserindo o tópico estudado no contexto diacrónico da literatura portuguesa. A conclusão a que a autora chega fornece uma nova chave de leitura assente na distinção entre casa-família, casa-projeto e casaninho. É dentro deste esquema que poderia ser abordado também o tópico da casa em Aquilino Ribeiro. 26 É nesta categoria literária do espaço que se inserem os estudos urbanos. Costuma dizerse, como já foi apontado por Claudio Cruz (1994), que a moderna literatura urbana surgiu precisamente no século XIX, com Balzac e Dickens que retrataram, nos seus romances, as cidades de Paris e Londres, respetivamente. Em Portugal, a situação é obviamente muito parecida, destacando-se autores oitocentistas como Eça de Queirós e Fialho de Almeida na escrita da prosa urbana por excelência. Apesar da máxima importância destes prosadores, é contudo na poesia que um salto mais corajoso foi empreendido na literatura portuguesa, graças ao poeta que, segundo Manuel Gusmão, “inventou para a poesia em português a mais elaborada configuração do tópos literário da cidade moderna, mercantil e industrial” (2009, p. 199). Tratase, evidentemente, de Cesário Verde (1855-1886), cuja poesia constituirá o ponto de partida para todas as análises aqui desenvolvidas. Como Cesário Verde e todos os nossos autores escreveram sobre a capital portuguesa, é também notório que o foco de interesse não poderia ser outro. Além disso, a cidade de Lisboa, que pertence entre os mitos literários, merece uma atenção redobrada. Com esta afirmação não quero declarar que não seria possível trabalhar na mesma extensão outra qualquer cidade portuguesa, porque isso seria viável e aliciante sem dúvida, mas pretendo insinuar que o estatuto de que Lisboa goza na literatura portuguesa é, apesar de tudo, muito especial, não só pelo facto de receber a atenção dos maiores escritores e poetas portugueses de sempre, mas também por ser trabalhada nos discursos olisiponenses e por ser frequentemente referida nas literaturas estrangeiras. Todos conhecem, a priori, romances como Die nacht von Lissabon (1962) de Remarque, El invierno de Lisboa (1987) de Antonio Muñoz Molina ou Train de nuit pour Lisbonne (2004) de Pascal Mercier. Por outro lado, poucos conhecem, por exemplo, a coletânea poética Coïmbra (2005) do autor belga Warner Lambersy... Além disso, como diz Eduardo Lourenço, “[n]ão existe na Europa – salvo Praga – uma cidade mais naturalmente onírica do que Lisboa” (Lourenço, 1999, p. 59). E fiquemo-nos por esta constatação, sem comentários adicionais. Como o meu objetivo principal era estudar o espaço lisboeta na ficção portuguesa dos anos 30, a escolha de um método adequado não foi difícil. Trabalhando com a hipótese de existirem certas afinidades nas imagens urbanas da época abordada, afinidades essas que defluem, para além do contexto sócio-político, geracional e estético, de um mesmo subsolo cultural, de um imaginário urbano que, apesar de aberto num leque de vários e diversos temas, motivos e tópicos, reflete a mesma mentalidade/identidade coletiva. Estes pressupostos convidam a uma pesquisa geocrítica. Com efeito, Bernhard Westphal, o fundador da geocrítica literária, defende que se trata de um método para analisar diversas manifestações de um dado espaço concreto em sua variedade, riqueza e multiplicidade de discursos. É óbvio que o estudo 27 geocrítico acusa pontos de contato com outros métodos que se concentram no espaço, tais como, por exemplo, a imagologia e geopoética. A imagologia, no entanto, privilegiando um acesso egocêntrico, aborda um espaço “de viagem” (viatic space), muitas vezes exótico e baseado em estereótipos, evitando a questão de relacionamento entre o espaço escrito e o referente (Westphal, 2015, p. 112). A geopoética, por outro lado, é uma disciplina pouco teorizada, em princípio concentrada no estudo do imaginário espacial de um determinado autor, ou, como é proposto por Fernando Aínsa (2006), em formas espaciais mais abstratas, percebidas como topoi (p. ex. o jardim, a selva, o rio etc.).9 No entanto, a concentração num espaço concreto e definido (Lisboa) não inviabiliza a consideração dos conceitos geopoéticos, visto tratar-se de uma cidade, tópico tradicional com várias idiossincrasias e caraterísticas especiais. A geocrítica, sem se desviar da área literária, coloca no centro da sua atenção o próprio espaço, concreto, que deveria ser investigado sob vários pontos de vista, e não só a partir de uma perspetiva estabelecida, por exemplo, de um determinado autor. Invoque-se um exemplo com que Westphal defende o seu método: So, for example, rather than focusing its attention on Lawrence Durrell, the British author writing stories whose action is set in a place called Alexandria (in The Alexandria Quartet), the geocritic endeavors to explore Alexandria, a place under whose aegis are gathered a series of narratives, like Durrellʼs and, among many others, those of French traveler Constantin Volney, who accompanied Napoleon during the Egyptian campaign, or those of the Greek poet Constantine Cavafy, the Greek novelist Stratis Tsirkas, or Edwar al-Kharrat, a Coptic Christian writer from Alexandria. Thus the spatial referent is the basis for the analysis, not the author and his or her work. In a word, one moves from the writer to the place, not the other way around, using complex chronology and diverse points of view. (Westphal, 2011, pp. 112-113) Para que este tipo de pesquisa não se afunde num caos sem qualquer sistematização, Westphal aconselha concentrar-se num período escolhido a ser analisado detalhadamente. Nesta linha sincrónica, contudo, a sensibilidade para com o nível diacrónico, a memória coletiva da cidade, deveria estar também sempre presente. Assim, juntando a esta memória coletiva (geológica, histórica, literária, textual etc.) a memória individual (descida às camadas do próprio passado esquecido), bem como a experiência, vivência e emoção subjetivizada, ganhase um instrumento eficaz para apreender o espaço na sua complexidade intrínseca. Aos vetores principais que orientam a pesquisa geocrítica pertence a multifocalização, a polisensorialidade e a visão estratigráfica, aos quais se junta, por natureza deste tipo de investigação, a intertextualidade e a interdisciplinaridade. São principalmente estes vetores que contribuem, 9 Outros pesquisadores (p. ex. Hodrová) preferem o termo de topologia. 28 em grande medida, para a atratividade deste método em relação a atitudes mais tradicionais que visavam analisar e interpretar a obra de um autor sem prestar a devida atenção tanto ao contexto socio-cultural, como aos nexos existentes entre autores da mesma época ou de épocas anteriores. Simultaneamente, porém, este método convida a uma maior profundidade de análise ao privilegiar como critério dominante as coordenadas espacio-temporais. Assim, em contraste com trabalhos que partem de um corpus de autores/obras centradas no tema urbano sem especificar o lugar concreto (uma determinada cidade e não outra), como foi feito, por exemplo, por Joanna Derdowska no seu trabalho sobre a temática urbana na literatura checa contemporânea, bem como em contraste com trabalhos como o de Daniela Hodrová que aborda um lugar concreto (Praga) sob uma perspetiva mitocrítica, espraiando-se “rizomaticamente” por várias épocas, autores e obras ao percorrer os mitemas de que se nutre o imaginário praguense, o presente método garante uma maior coesão, sistematização e pormenorização dos dados analisados. Ao mesmo tempo, fornece a oportunidade de interpretar as obras literárias com base no seu envolvimento contextual, seja referencial (no que diz respeito ao espaço lisboeta real), seja socio-cultural ou estético. Tratando-se, porém, de um trabalho feito no âmbito da história literária, é óbvio que não convém regir-se exclusivamente pelo método geocrítico que, em certos passos da interpretação das obras, poderia resultar num simplismo ou reducionismo. Pretende-se aqui, portanto, abordar o tema de Lisboa nas obras escolhidas de acordo com o método geocrítico, para garantir uma maior riqueza e variedade de imagens do urbano, mas ao mesmo tempo, não se desiste de atribuir às obras o valor estético merecido, mediante uma interpretação cuidadosa e respeitante das suas especificidades literárias. A estrutura do presente trabalho corresponde aos objetivos acima expostos. Após uma breve revisão da problemática do espaço na literatura serão recapitulados vários tipos de acesso ao estudo do urbano, prestando-se especial atenção ao método geocrítico. Respeitando a base geocrítica, seguir-se-á a devida contextualização epocal, uma breve exposição tanto da problemática da cidade moderna (e modernista) em geral, como da matéria olisipográfica e literária do início do século XX, sem as quais nenhuma obra posterior, dedicada ao imaginário lisboeta, poderia ser plenamente compreendida. A ficção dos anos 30, escrita por Branquinho da Fonseca, José Rodrigues Miguéis, Aquilino Ribeiro e Irene Lisboa será inserida em determinadas linhas do imaginário urbano que radicam na poesia de Cesário Verde e que também continuam a ser desenvolvidas na literatura portuguesa no decorrer de todo o século XX. Deste modo, serão observados, em conjunto, os princípios da geocrítica westphaliana: a multifocalização é garantida pela diversidade de autores (quatro de base e vários outros como exemplos ilustrativos), a polisensorialidade privilegiará análise/interpretação da perspetivação 29 subjetiva do urbano, de uma grande escala de sensações que a cidade desperta nos sujeitos das obras literárias, a visão estratigráfica será observada, ao longo de todo o trabalho, tanto na intertextualidade com a poesia de Cesário Verde, como nas diversas relações e paralelos literários que aprofundam as análises e inserem as obras estudadas numa continuidade do legado cultural. As análises serão fechadas por um capítulo dedicado a um elemento espacial de maior força mitificadora em Lisboa que é o Cais. Abrangendo tanto as obras estudadas, como outros títulos que correspondem aos apontados vetores de imaginário, este estudo, exemplarmente geocrítico, pretenderá mostrar também a vitalidade de certas imagens simbólicas que percorrem a literatura portuguesa desde a década de 30 do século passado até à contemporaneidade. 30 1.Cidade e literatura 1.1. Alguns métodos de análise e interpretação do espaço literário É sobretudo a partir da 2ª metade do século XX que se começa a falar com maior frequência sobre o espaço, cada vez mais problematizado, tendo em conta as posições históricas, nas quais era considerado, ao contrário da categoria do tempo, um modelo estável. Em princípio, o privilégio de que o tempo gozava devia em muito ao que Gotthold Ephraim Lessing afirmou em 1766, sustentando que a literatura era, por sua natureza, um fenómeno temporal, enquanto outras artes como a pintura ou escultura tinham um caráter espacial. A este respeito Bertrand Westphal aduz que como era o tempo que continha o progresso, o espaço tornou-se num “contentor vazio” ao serviço do tempo (2015, p. 9). No entanto, a partir de oitocentos, tem-se verificado que o espaço é tão importante como o tempo. Esta “equivalência” entre o tempo e o espaço foi influenciada pelas novas teorias publicadas no início do século XX (sobretudo a teoria de relatividade de Einstein que subverteu muitas certezas até essa altura inabaláveis, ou a teoria de espaço-tempo de Henri Poincaré e Hermann Minkowski). A seguir, outras ideias apontaram para a importância do espaço: teoria de ponto e linha de Georges Poulet (Studies in Human Time), desenvolvida a seguir, e numa outra direção, pelos especialistas em lógica (lógica do tempo) e pelos estudiosos de literatura, como era por exemplo M. M. Bachtin que aplicou esta ideia na sua concepção do dialogismo (múltiplas linhas cruzam-se umas com as outras, interagindo). Significativa foi também a teoria da entropia que, por sua vez, inspirou o pointilismo. No entanto, o espaço começou a ganhar plenamente o seu terreno quando o geógrafo Edward Soja proclamou o “spatial turn” e quando Deleuze afirmou que “becoming is geographical” (apud Westphal, 2015, p. 24). Este “spacial turn” que se apresentou primeiro em áreas da sociologia, antropologia, etnografia e cartografia, penetrou também na literatura, passando a acentuar os modos de representação e configuração do espaço, bem como as experiências afetivas com ele relacionadas. Westphal recorda que um dos primeiros que proclamaram a supremacia do espaço sobre o tempo foi Karl Haushofer, criador da geopolítica, no período entre as duas grandes guerras (Westphal, 2015, p. 24). No que diz respeito à literatura, a importância do espaço pode ser verificada num texto de referência de Joseph Frank (Spatial Form in Modern Literature, 1948), em que o autor polemiza com a concepção de Lessing, estudando as relações do tempo 31 e espaço na literatura moderna e argumentando que é esta segunda categoria, a do espaço, que é dominante (cf. Derdowska, 2011, p. 35). Frisa que o leitor de obras de Eliot, Proust ou Joyce é forçado a percecionar o texto com base no espaço de um “tempo suspenso” e que este modelo de narração moderno vai ao encontro do “mundo mítico atemporal”, em que predomina o espaço (cf. Derdowska, 2011, p. 35). Além disso, também M. M. Bakhtine se empenhou numa entreligação do tempo e espaço mais efetiva e simbiótica, criando para esse fim o conceito de cronótopo, o qual lhe possibilitou também conceber uma tipologia dos géneros literários. Embora se trate de uma concepção muito pertinente para a genologia e teoria literária em geral, não se presta à análise de textos modernos visto ser demasiado vasta, sem possibilidades de fornecer instrumentos de análise.10 Podemos no entanto concordar com Joanna Derdowska de que a maior mudança talvez tenha vindo com a filosofia pós-estruturalista, em que se observa um grande interesse pelo espaço no uso de novos conceitos derivados da perspetiva espacial, tais como posição (Derrida), campo (Bourdieu), heterotopia (Foucault)11 ou desterritorialização (Deleuze, Guattari)12 (cf. Derdowska, 2011, p. 34). A partir daí, a importância da categoria do espaço continua a crescer também nas áreas de cultural studies, gender studies, pós-colonialismo e noutras correntes de teoria literária, inclusive apareceram vários termos ligados com o espaço (isotopia, centro, fronteira, periferia, migração etc.), bem como géneros orientados para o espaço (romance gótico, eco-narrativa, science fiction, ficção de prisão, ficção utópica e distópica etc.) (cf. Derdowska, 2011, p. 37). O espaço é uma construção cultural e social que tem vários aspetos e funções na literatura. O teórico checo Zdeněk Hrbata divide-o em quatro categorias fundamentais: 1. espaço topográfico (descrição mimética), 2. espaço nos livros de viagens ( serve como meio de narrar), 3. espaço simbólico ou ideológico, 4. figuras de espaço (círculos, quadros, posições como 10 Isto não significa que não haja autores que sempre têm privilegiado a categoria do tempo (p. ex. Joseph Brodsky em Flight from Byzantium). A este propósito, Westphal também cita a opinião de Marc Brosseau: “It is true, literary criticism has long privileged the question of time to the detriment of an inquiry into space… Even if we know look at space in the novel, some remain faithful to the teachings of Kantian philosophy, and accord precedence to time over space as an a priori category of sensibility” (1996, p. 79 apud Westphal, 2015, p. 23). 11 O conceito de heterotopia (desenvolvida no tratado De outros espaços) corresponde a um dos maiores impulsos no estudo do espaço, graças ao qual o espaço se tornou ambíguo e, por isso, aberto a interpretações. Conforme Foucault, a heterotopia a) corresponde a um espaço dentro ou fora da sociedade onde as regras e convenções sociais podem ser permanente ou temporariamente suspensas, b) pode tratar-se também de um espaço de crise ou isolamento, ou de justaposição dos espaços incompatíveis entre si num sítio real, c) o seu quotidiano pode corresponder a uma ilusão, a um reflexo deformado da sociedade, ou pode atingir contornos de uma experiência surreal, na qual as emoções ou ideias irracionais dominam (cf. Foucault, 2003). 12 O conceito é também aplicado por B. Westphal na teoria geocrítica: (...) These discharges of chaotic function to evacuate all stable identity from territory. Within a dialectic that escapes the grand narratives of legitimation (the ideologies identified by Lyotard in The Postmodern Condition), territory ceases to be univocal. The lines of flight begin a deterritorialization. And territory, driven by this deterritorialization force, is subject to a provisional reterritorialization that itself leads to a further deterritorialization, and so on.” (Westphal, 2015, p. 52). 32 acima, abaixo etc.) (2005, p. 317). Também o narratólogo polaco Janusz Sławiński tentou organizar a área de estudo do espaço, afirmando que vários aspetos do espaço são objeto de 1. poética sistemática (relativa à organização do plano temático-composicional), 2. poética histórica, 3. análise de campos semânticos relacionados com o espaço, 4. reflexões sobre os modelos culturais na modelação do espaço representado (por exemplo, as hierarquias profano/sagrado), 5. análises de tópicos arquetípicos (Centro, Casa, Labirinto etc.) (Sławiński, 2002, pp. 118-119). Semelhantemente, Hrbata resume as suas observações sobre o espaço ao sublinhar que o espaço deve ser apreendido à base do seu significado temático. Neste sentido, distingue três tipos de análise de espaço na literatura: 1. topografia mimética (o grau de mimese entre a obra literária e a realidade), 2. toposemia funcional (a investigação sémiotica do lugar como relação entre lugares, personagens e ações, bem como a caraterização social e/ou simbólica dos lugares), 3. representação simbólica do espaço (representação do espaço no texto, o seu significado simbólico, mítico ou de ideário) (2005, p. 326). De um modo parecido, embora não coincidente, também o narratólogo português Carlos Reis (2012) traça um esquema básico de abordagem do espaço, sobretudo urbano, em que as funções miméticas do espaço podem ser estudadas como 1. roteiro, que se fixa nos aspetos materiais de um ponto de vista descritivo, 2. relação biografista entre o escritor e a sua obra, que deteta os sítios em que o autor viveu para explicar a ficção, 3. paisagem urbana e humana, que toma em consideração os procedimentos de figuração, filtros de perspetivação, dispositivos de enunciação narrativa e outros recursos narratológicos e temáticos. Sem pensar nos dois primeiros itens, considerados adicionais para um trabalho literário, mostra-se que o espaço é, de facto, apreendido sobretudo nos seus aspetos narratológicos e temáticos. Por isso, no seu magnum opus de narratologia, Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes opinam que as abordagens do espaço gravitam fundamentalmente em torno de uma distinção resumida em três pontos como o espaço físico, social e psicológico. Saltando o item do espaço físico (de “teor eventualmente estático”) que para Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes não apresenta nenhumas dificuldades nem ambiguidades, define-se o espaço social como configurado sobretudo em função “da presença de tipos e figurantes” nos “ambientes que ilustrem, quase sempre num contexto periodológico de intenção crítica, vícios e deformações da sociedade” (2002, p. 136) e o espaço psicológico como esse que se constitui “em função da necessidade de evidenciar atmosferas densas e perturbantes, projectadas sobre o comportamento, também ele normalmente conturbado, das personagens”, (2002, p. 136). À diferença de Hrbata e Sławiński, porém, não se dá aqui muita atenção às qualidades do espaço simbólico e arquetípico, variantes 33 que particularmente me interessam em qualquer ensaio sobre o espaço e que também serão acentuadas no presente trabalho. Um dos processos básicos, através dos quais o espaço é revelado e simultaneamente relevado na obra literária, consiste na descrição que, conforme Hrbata, pode ser compreendida como um conjunto metonímico homogéneo, submetido a uma determinada perspetiva, ou seja, técnica de representação (2005, p. 322). Para os fins da descrição, pode ser aplicado o ponto de vista tradicional, regido pela geometria e planimetria (à direita, à esquerda etc.) (cf. Hrbata, 2005, p. 322). A descrição do espaço assente na geometria euclidiana é a mais comum e a mais conhecida. O leitor descodifica-a implicitamente. Trata-se da técnica que se realiza por meio de afastamento e aproximação, na perspetiva vertical ou na perspetiva lateral, consistindo a sua importância sobretudo no facto de ser acentuado o pormenor como algo que sustenta o significado (Hrbata, 2005, p. 322). Hrbata também define os processos de descrição canonizados na prosa realista como 1. procedimento a partir do exterior para o interior, a partir do mais afastado para o mais próximo (movimento a partir da macroperspetiva até à microperspetiva), coadjuvado pelo movimento horizontal ou vertical e pela enumeração de pormenores até a um pormenor final (um quarto, por exemplo), 2. perspetiva panorâmica que combina o olhar horizontal com o olhar lateral, sendo frequente a figura de mise en abyme (a mesma coisa diminui, espelha-se reciprocamente etc.), 3. descrição da paisagem, na qual a perspetiva acentua a profundidade e extensão do espaço (2005, pp. 323-324). Estes processos de descrição que orientam a trajetória do olhar, utilizados com preferência na prosa realista do século XIX, continuam a ser aplicados também na prosa dos séculos XX e XXI, embora apareçam também, como alega o teórico checo, geometrias não-euclidianas, a prosa sem descrições, ou então a prosa assente numa única grande descrição que usa e simultaneamente põe em dúvida todas as geometrias tradicionais (2005, p. 325). Com base na narratologia e semiótica, aparecem também propostas de abordagem do espaço assentes na linguagem e perspetiva narrativa. Nazaré Matos (2010) recorda que Jean Weisgerber, na obra L’espace romanesque, avalia o espaço romanesco como um espaço verbal que compreende todos os conceitos espaciais que a linguagem é capaz de exprimir: “Dʼabord par le narrateur en tant que personne physique, fictive ou non, et à travers la langue quʼil utilize; ensuite, par les (autres) personnages quʼil campe; en dernier lieu, par le lecteur qui introduit à son tour un point de vue éminemment partial.” (Weisgerber, 1978, p. 13 apud Matos, 2010, pp. 29-30). No contexto checo, convém mencionar o trabalho de Alice Jedličková (A experiência do espaço: paralelos narrativos e visuais, 2010) que se baseia na abordagem do espaço na literatura checa a partir da perspetiva narrativa, sem negligenciar os aspetos de ordem 34 pragmática, sobretudo a relação que com o texto literário estabelece o recipiente. Neste trabalho, a autora analisa seis contos de escritores checos, à base dos quais estabelece vários tipos de perspetiva no tratamento do espaço (relação entre a figura e movimento, espaço como fonte da alienação existencial, o espaço delimitado pelo corpo, expressão da simultaneidade e concentração do tempo, o espaço vivido como sistema de signos, perspetiva limitada como expressão da inacessibilidade do mundo). É evidente que tanto Alice Jedličková, como outros pesquisadores contemporâneos, não podem basear as suas análises somente nos postulados narratológicos. É preciso observar também a dimensão filosófica, em especial a corrente de fenomenologia. Em Phénoménologie de la perception (1945), Maurice Merleau-Ponty esclarece que a perceção do espaço está relacionada com o modo como percebemos o próprio corpo (cf. Čapek, 2012). E, para além da perceção do corpo, a representação do real depende do poder de imaginação. A imaginação e corporeidade são filtros na perceção do espaço (cf. Čapek, 2012). É neste sentido que se utiliza o conceito do espaço vivido, expressão de várias relações entre a existência humana e o mundo, vinculada ao pensamento de Maurice Merleau-Ponty e outros fenomenólogos, que vem ao encontro do espace vécu de Gaston Bachelard. Trata-se, na esteira de pensamento de Berkeley, Husserl e Kant, de uma tentativa de síncrese do espaço como exterioridade (ambiente etc.) e do espaço como interioridade (o espaço subjetivo) (cf. Aínsa, 2006, pp. 20-21), podendo ser este espaço percebido também, segundo Fernando Aínsa, como um espaço de experiência psíquica: “La imagen del espacio se filtra y se distorsiona a través de mecanismos que transforman toda percepción exterior en experiencia psíquica y hacen, de todo espacio, un espacio experimental” (Aínsa, 2006, p. 21). A esta experiência psíquica, portanto, vincula-se a experiência do corpo, uma vez que o espaço vivido, tal como foi pensado por Bachelard, inclui um sujeito que reage ao espaço de um modo corporal porque o sente através de condições existenciais, humores e atmosferas (cf. Berensmeyer, Löffler, 2018, p. 167). O termo espace vécu foi adotado por Henri Lefebvre (1991) no seu livro The production of space, publicado pela primeira vez em 1974, onde o autor promove a distinção entre o espaço percecionado (espace perçu), apreendido (conçu) e vivido (vécu), em que o primeiro corresponde à prática concreta de espaço, o segundo é o espaço de planeadores urbanos, cartógrafos etc., e terceiro é experienciado por meio de imagens e símbolos. A fenomenologia, bem como a geocrítica, interessam-se obviamente por este terceiro tipo. Neste contexto, convém também refletir um pouco sobre teorias hermenêuticas do espaço literário. Uma proposta de abordagem hermenêutica, esclarecida por Jan Tlustý, inspira-se no método interpretativo assente na teoria da mimese de Ricoeur (Temps et Récit). A narrativa 35 conforme Aristóteles compreende uma sequência de ações, por meio das quais é construída a fábula (mythos). A mimese verifica-se a três níveis: na fábula (imitação criativa das ações), na configuração concreta das ações e na pragmática (receção durante o ato de leitura, aceitação do mundo ficcional). À base deste esquema, Tlustý propõe a leitura hermenêutica do espaço assente no esquema triádico da pré-compreensão do autor e leitor, processo de configuração de espaço na obra e experiência estética relacionada com a perceção do espaço na obra. Em seguida, o autor alega que a análise da pré-compreensão pode fornecer instrumentos analíticos para abordar o espaço na obra literária. Isto porque a categoria da pré-compreensão é composta de três níveis: 1. o espaço vivido, sentido (conforme Ricoeur), analisado pela fenomenologia e ciências cognitivas, 2. conceitualização racional (a linguagem da geometria, física clássica, euclidiana, um contínuo homogéneo independente do homem, em que os lugares não têm nenhuma qualidade e as relações espaciais são descritas metricamente; a localização e lugar são captados por vetores), 3. o espaço concebido como produto social e cultural (conforme Lefebvre), a compreensão do espaço adquirida pela ancoração numa cultura; o espaço é compreendido por meio da interiorização de paradigmas sociais, de certos meios de agir e de enciclopédias (Tlustý, 2012, pp. 55-56).13 Pode ser útil explicar um pouco mais detalhadamente o primeiro ponto que não costuma ser muito desenvolvido nas concepções estritamente narratológicas ou semióticas. Trata-se, de facto, de um assunto que entra em correlação com a fenomenologia e seus postulados de corpo(reidade). A corporeidade faz com que o mundo seja sempre apreendido de uma certa perspetiva. De mesmo modo, também o agir tem um papel muito importante para a adquirição do significado do espaço. Como exemplo, Tlustý invoca o conceito do lar, argumentando que sentir o espaço como lar ou falta de lar pertence às básicas modalidades, dentro das quais o mundo se abre à nossa frente. Neste contexto, recorda também as concepções do lar de Jan Patočka, filósofo checo de inspiração fenomenóloga, para o qual o lar representa um centro multidimensional, caraterizado pela intimidade (Tlustý, 2012, p. 57). Sentimo-nos em casa lá onde conhecemos os objetos que nos rodeiam e onde nos sentimos em segurança. O contraponto ao lar corresponde a um lugar distante, onde se vive a sensação de um mundo incompreensível ou inseguro. Em Patočka, porém, o lar não representa um lugar concreto mas um vasto complexo de relações sociais. 13 No que diz respeito ao último item, Tlustý menciona as posições de Umberto Eco e Lubomír Doležel, com a sua importância de enciclopédias para a interpretação do espaço. Tlustý, porém, acrescenta que a própria experiência do leitor com os lugares sobre os quais lê é também importante, uma vez que o próprio leitor atualiza os mapas mentais. 36 O significado do lar pode ser também relacionado com o genius loci, tal como este termo foi pensado e desenvolvido pelo arquiteto norueguês Christian Norberg-Schulz, com base na filosofia de Martin Heidegger e do conceito de wohnung (a partir do verso “Dichterisch wohnet der Mensch”)14 . Norberg-Schulz, com efeito, afirma que o nosso mundo quotidiano se compõe de fenómenos concretos. Ao espaço concreto chama-se lugar. O lugar, por conseguinte, pode ser definido como uma totalidade criada por coisas concretas que determinam o seu caráter.15 O lugar, portanto, tem um caráter, também chamado atmosfera. Todos os lugares têm um caráter que está relacionado com o tempo, uma vez que o caráter muda de acordo com a estação do ano, horas do dia, condições meteorológicas, ou seja, com os fatores que determinam, em especial, as condições da luminosidade. Além disso, o caráter é determinado pelo constituição do lugar. Podemos então de acordo com Norberg-Schulz perguntar, qual é a terra que pisamos, qual é o céu acima das nossas cabeças, quais são as fronteiras que delimitam o lugar (NorbergSchulz, 2010, p. 14). Mas apesar de o lugar poder mudar no decorrer do tempo, ele mantém sempre o seu genius loci. O homem precisa de se orientar no espaço e precisa também de se identificar com o ambiente em que vive. Tem-se prestado grande atenção ao problema da orientação, como demonstra Kevin Lynch em The Image of the City (1960), argumentando que as imagens da cidade são influenciadas pela capacidade de se orientar nela e pela sua legibilidade (a orientação e legibilidade proporcionam a criação de uma imagem mental da cidade, claramente estruturada e reconhecível).16 Sentir-se perdido contraria o sentimento de segurança, pelo qual se carateriza o wohnung heideggeriano. Norberg-Schulz interessa-se mais pela questão da identificação com o lugar, porque um homem pode orientar-se num espaço sem se identificar com ele, pode passar por ele sem se sentir em casa, sendo também possível o contrário, ou seja, podemos sentir-nos em casa num lugar em que não nos orientamos bem. Em princípio, porém, convém serem desenvolvidas ambas as funções psicológicas. A sociedade moderna, segundo Norberg-Schulz, concentra a sua atenção quase exclusivamente na função prática de orientação, enquanto a identificação é deixada ao acaso (Norberg-Schulz, 2010, p. 20). O verdadeiro wohnung é, assim, substituído pela alienação. Neste sentido, a questão de 14 A famosa palestra de Martin Heidegger, pronunciada a 6 de outubro de 1951 em Bühlerhöhe e a seguir redigida em Vorträge und Aufsätze (1954). Nesta palestra, Heidegger parte dos versos de Hölderlin “Voll Verdienst, doch dichterisch, wohnet Der Mensch auf dieser Erde”, analisando depois outros versos do mesmo poema à procura do seu significado profundo. 15 Embora seja intuitivo, convém recordar que o lugar é expresso pelos substantivos (ilha, floresta, praça, baía, rua etc.), o espaço como um sistema de relações é expresso pelas preposições (acima, abaixo, dentro, fora etc.) e o caráter é expresso pelos adjetivos (Norberg-Schulz, 2010, p. 18). Todas as observações aqui referidas provêm do seu livro Genius loci, em que o autor define este conceito, prosseguindo depois com a reflexão acerca de genius loci de Praga, Roma e Chartum. 16 Lynch divide entre as concepções abstratas de paths, edges, districts, nodes e landmarks, estudando como estes elementos influenciam a imagem, orientação e legibilidade da cidade. 37 genius loci é especialmente importante no caso do espaço urbano que é, sem dúvida, o espaço bem mais alienante do que o campo. Discutindo as questões de alienação no espaço urbano,17 de aura de um lugar específico ou, em geral, da imagem da cidade, é inevitável referir mais um campo de pesquisa que é particularmente frutuoso nas reflexões contemporâneas sobre o espaço, a imagologia. Como este ramo de investigação é, em Portugal, desenvolvido com sucesso por Maria João Simões que também publicou e editou vários trabalhos sobre esta matéria, torna-se desnecessário repetir o que foi tão bem formulado pela professora conimbricence, ficando aqui somente uma apresentação resumida e propositadamente lacunar.18 Como Maria João Simões justamente informa, a imagologia literária, cuja história remonta ao século XIX, pode ser entendida como um “subdomínio da Literatura Comparada” que estuda “as imagens e representações dos ‘outros’ face a um colectivo ‘nós’, tendo em conta os seus caracteres multifacetados, as suas relações variadas e os seus múltiplos confrontos” (Simões, 2011, p. 37). Assim, de um modo necessariamente simplificado, atenta-se, à base de postulações filosóficas de Derrida (p. ex. o seu conceito de “hospitalidade”), Deleuze, Rorty e Levinas (questões de identidade e alteridade), no questionamento da complexidade da relação entre o “eu” e o “outro”, bem como na problemática da identidade à luz de estudos culturais e da psicologia social (cf. Simões, 2011, pp. 23-30). É também no âmbito desta última categoria que tem sido muito discutido o conceito de estereótipo, considerado bastante ambíguo porque inevitavelmente dotado de uma conotação negativa (cf. Simões, 2011, p. 31). Para evitar esta carga de conteúdo indesejado, defluente das construções psicológicas normativas, os imagólogos propõem outros conceitos mais adequados para a pesquisa como imagem, imagotipo, auto-imagotipo, hetero-imagotipo e imagotipia (cf. Simões, 2011, p. 37).19 À base desta nomenclatura, o imagotipo corresponde a uma “representação heterogénea e aglutinante, mas também complexa, dialógica e relacional – aquela que se pressupõe na expressão ‘uns e outros’”, sendo auto-imagotipo e hetero-imagotipo conceitos sociais e culturais que se encontram na literatura. Simões também sugere mais um termo – imagotipo grupal – baseado nas formas de pensar de classe ou de grupo (Simões, 2011, 17 Segundo Fernando Aínsa, isto acontece quando não há comunicação entre o espaço exterior e o espaço interior (cf. Aínsa, 2006, p. 23). 18 Informações detalhadas sobre a imagologia podem ser encontradas em vários trabalhos que Maria João Simões tem escrito, editado ou coordenado e aos quais reenvio a atenção de interessados (p. ex. Imagotipos literários: processos de (des)configuração na imagologia literária, Coimbra, 2011) 19 A propósito, Maria João Simões cita muito bem a definição de Alan Montandon, conforme o qual “o conceito de imagotipo tem a vantagem de não veicular o sentido pejorativo do preconceito e estereótipo e de sublinhar o carácter colectivo de uma representação (...)” (Montandon, 2001 apud Simões, 2011, p. 38). 38 p. 43). Neste âmbito, como diz Maria João Simões, é possível estudar um “estranho” intramuros, “desde que sentido ou percepcionado como diferente” (Simões, p. 42).20 Na atualidade, há várias atitudes críticas, de orientação sociológica, de história cultural/literária, de geografia etc., que escolhem o espaço como objetivo da pesquisa literária. Assim, por exemplo, Franco Moretti preparou o Atlas do romance europeu 1800 - 1900, mostrando os mapas e itinerários de percursos de personagens do romance oitocentista. A base do seu método corresponde à ideia de que a geografia não é um mero contentor inerte em que a história da cultura “acontece”, mas de que se trata de uma força ativa que penetra no campo literário, moldeando-o profundamente (cf. Moretti, 1999, p. 3). O objetivo da sua pesquisa consiste na recolha de dados topográficos nos romances a fim de demonstrar como os textos literários são vinculados ao espaço, iluminando a lógica interna das narrativas (cf. Moretti, 1999, p. 5). É nesta linha de investigação que se enquadra, entre outros, o projeto Atlas das paisagens literárias de Portugal continental, da professora brasileira Ida Alves. Todas estas abordagens do espaço na literatura poderiam ser, naturalmente, muito frutuosas na consideração, análise e interpretação de um elemento espacial e, ao mesmo tempo, topológico e mítico, como é a cidade. 1.2. O espaço urbano A enumeração de vários métodos de apreensão do espaço urbano não seria neste trabalho nem útil, nem desejada. Procurar-se-á, portanto, apontar para aquelas possibilidades de apreensão do espaço urbano que podem ter, até certo ponto, utilidade para as análises da ficção portuguesa, reservando-me o direito de discorrer mais detalhadamente sobre o método geocrítico que constitui a inspiração teórica basilar do presente trabalho. Uma das primeiras grandes correntes no estudo do espaço na literatura relaciona-se com o método que concebe o espaço como um sistema de signos. A análise, sistematização e interpretação de signos no espaço urbano constituiu um dos focos de interesse de Juri Lotman e de toda a Escola de Tartu que colocou no centro do seu interesse “o texto de Petersburgo”, 20 De acordo com Maria João Simões é possível analisar várias figurações e figuras da Imagologia, tais como “phobie”, “manie” a “philie” (conforme Daniel-Henri Pageaux), temas de proximidade e contiguidade/coalescência (curiosidade, cortesia, coabitação, indiferença, separação, o levantar de barreiras, muros), temas de exclusão/integração (alofilia, hibridismo, mestiçagem, mistura, ostracismo), o grau de conflitualidade (ódio, desprezo, ostracismo, racismo, contaminação – xenofobia, fascínio, atracção, enamoramento), sobranceria vs. menosprezo que cria a personagem-tipo de oprimido e silenciado etc. (Simões, 2011, pp. 42-47). 39 considerado como um texto heterogéneo, construído também a partir de componentes não verbais (a cidade tem a sua língua, fala através das suas ruas, praças, edifícios, monumentos, história etc.). Este texto da cidade, conforme os semióticos de Tartu, ultrapassa qualquer experiência individual, funcionando como um paradigma para textos concretos. No seu estudo sobre o espaço urbano, Daniela Hodrová recorda que com base nas pesquisas de obras literárias pertencentes sobretudo aos anos 20 e 30 do século XIX, foi estabelecido um conjunto de motivos recorrentes no texto petersburguiano, esses que incluem determinados estados e sensações (medo, horror, loucura), certas expressões modais (de repente, algures, nunca), névoa, chuva e espetralidade (2006, p. 112). Aos frequentes motivos pertence também, como sugere Hodrová, inspirada pelos pesquisadores de Tartu, o motivo da estátua (o Cavaleiro de Bronze), do duplo e de um sentimento de saudade, chamado em russo toska, que se distingue de outros tipos da saudade pela presença da angústia e ansiedade, comparada à que é sentida pelos epilépticos antes de um ataque (2006, p. 113). Semelhante ramo de análise semiótica estendeu-se à arquitetura. Como é recordado por Joanna Derdowska, um dos predecessores desta “leitura da cidade” foi Walter Benjamin que refletiu sobre a memória que envolve os prédios da cidade e chegou à conclusão de que os prédios podem ganhar um significado diferente do que aquele que lhes foi atribuído pelos arquitetos (2011, 39).21 Trata-se, no entanto, de uma ideia muito mais antiga que pode ser detetada, entre outros, já na obra de Victor Hugo. Este, ao definir um tipo de palimpsesto parisiense avant la lettre, sublinha: Entrez dans cette légende, descendez-y, errez-y. Tout dans cette ville, si longtemps en mal de révolution, a un sense. La première maison venue en sait long. Le sous-sol de Paris est un recéleur; il cache lʼhistoire... Sous le Paris actuel, lʼancien Paris est distinct, comme le vieux texte dans les interlignes du nouveau. (Hugo, 1967-69 apud Allen, 2013, p. 40) O espaço urbano considerado à base do processo de leitura (e escrita) orientou também os estudos de Michel de Certeau. Este dialoga com uma observação feita antes por Roland Barthes e que consistia na possibilidade de observar a cidade, da posição do voo de pássaro, como uma parte da paisagem. Em vez desta posição “superior”, Certeau privilegia a perspetiva “inferior” (“da perspetiva de rã”) ao nível das ruas. Só deste modo é possível, como afirma, perceber o espaço por via da participação na sua estrutura vital (cf. Derdowska, 2011, p. 42). Para além 21 O mesmo procedimento, como será mais tarde explicado, encontra-se também em vários olisipógrafos portugueses como Júlio de Castilho ou Gustavo Matos de Sequeira, os quais, na primeira metade do século XX, iniciaram as suas pesquisas sobre a cidade a partir do interesse por uma casa particular. 40 de sistema de signos, começou a ser também muito cedo aplicado o conceito de imagem, como é de facto possível ver no já referido The Image of the City (1960) de Kevin Lynch, ou em Les images de la ville (1973) de Raymond Ledrut. Neste segundo título, a concepção da imagem prima pela inclusão da experiência humana, do modo como as pessoas habitam a cidade: a imagem da cidade não exprime a cidade como tal, mas a relação global do ser humano no que diz respeito à cidade (cf. Derdowska, 2011, p. 41). A metáfora do texto aplicada ao espaço urbano é também desenvolvida nas ideias originais de Daniela Hodrová. Na sua perspetiva, a cidade é um Texto, um sistema semiótico que, ao lembrar o livro infinito borgesiano, contém todos os textos que sobre a cidade já foram escritos e que se assemelha a uma mónada de Leibnitz por espelhar todas as outras cidades-textos (2006, p. 21). Na sua concepção, também o leitor se torna aquele que “escreve” a cidade e o Texto da cidade torna-se um texto literário, obra coletiva (cf. Derdowska, 2011, p. 42). Derdowska alega que esta metáfora do Texto da cidade foi também cunhada por Michel Butor em La ville comme texte (1985), em que o Texto da cidade é constituído por vários outros “textos”, literários ou outros, como são por exemplo várias inscrições, sinais, cartazes, ideogramas etc.. Como alega Hodrová, também vários elementos arquitetónicos participam na “textualidade” da cidade. Assim, no seu conjunto, o Texto da cidade absorve todos os discursos que entram na sua rede de signos (inscrições, placas, grafitti etc.), bem como os signos não verbais, como é a arquitetura, disposição urbana, estórias dos habitantes da cidade etc. Neste sentido, o Texto da cidade é permanentemente reescrito pela ininterrupta inclusão de novos elementos ou em consequência do seu “apagamento” em caso de derrubamento e outras manifestações violentas no corpo da cidade. É evidente que neste sentido podemos falar de palimpsesto urbano. A metáfora comum tanto ao Texto da cidade, como ao texto literário, corresponde à tecelagem, concebida como uma atividade de raízes mágico-ritualísticas e como metáfora de escrita. Neste sentido, Hodrová insere-se na linha de Walter Benjamin, Roland Barthes e Michel Butor que cunharam a mesma metáfora para apreender o espaço urbano. Como já foi observado por Renato Cordeiro Gomes, em Infância em Berlim por volta de 1900, Benjamin aproveita-se desta metáfora para invocar o trabalho da memória, o modo como é possível resistir ao mundo moderno pela memória afetiva, porque, como exprimiu em relação à obra de Proust, “o importante, para o autor que rememora, não é o que viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência.” (Benjamin apud Gomes, 2008, p. 71). Falando ainda da memória, Renato Cordeiro Gomes comenta que, “[a]o concatenar a memória emotiva do sujeito e a memória da cidade, Benjamin investiga no labirinto urbano ‘o véu latente que ela teceu’” (2008, p. 71). Hodrová também recorda a própria metáfora de “tissu” usada por Barthes, 41 em que vários códigos, fórmulas e significantes entram como fios dentro do texto, no qual um sujeito (pedestre, habitante, escritor) se envolve como aranha na sua própria teia (2006, p. 27). Neste sentido, Hodrová acentua o caráter mitopoético e “psicanalítico” da cidade, uma vez que se interessa pelos arquétipos, imagens do inconsciente urbano. Mais concretamente, a pesquisadora checa concentra-se na cidade de Praga e na sua própria participação pessoal no Texto da cidade (o sentir e o processo de escrita), acentuando o tópico do passeio (sensível) pela cidade à procura de signos míticos da cidade (p. ex. o duplo, dama preta, cidade-submundo, cidade interior etc.). No contexto lusófono, convém mencionar que o trabalho de Renato Cordeiro Gomes é parcialmente interessado no método de legibilidade da urbe por meio de sistema de signos. Gomes, de facto, parte da inspiração de Cidades invisíveis (Le città invisibili, 1972) de Italo Calvino, criando os conceitos operacionais a partir da rede de metáforas presente nos textos analisados: racionalidade geométrica, emaranhado de existências humanas, movimento, (in)visibilidade e projeção onírica da cidade etc.. Aproveita-se sobretudo de imagens que servem de metáforas para indiciar os modos de perceção, bem como as caraterísticas essenciais da cidades invocadas. A primeira imagem de força corresponde ao binómio de cristal e chama, em que o cristal conota definição geométrica, solidez, transparência da forma, enquanto a chama conota a fluidez, a vivência efémera (Gomes, 2008, p. 42). A obra de Calvino apresenta o diálogo de Calvino Marco Polo com o Kublai Khan, sendo este relacionamento caraterizado por Gomes com base no mesmo simbolismo: enquanto Marco Polo, “fabulador proliferante (...) que viaja no império da linguagem”, pode representar a chama, Kublai Khan, com a sua tendência geometrizante e racionalizante, simboliza o cristal (2008, p. 42). A situação inicial parte da incitação de Kublai Khan para Marco Polo falar sobre as cidades que percorrera. As cidades invisíveis correspondem, então, a um “viajar pelo território da literatura, por itinerários já esgotados, em que todas as histórias foram contadas até o limite de saturação e só é possível inventariar e revisitar” (2008, p. 48).22 Com a lista de várias cidades, Calvino indica que a 22 Renato Cordeiro Gomes enumera as cidades calvinianas e esclarece o seu significado. Para manter a fluência da linguagem, utilizo aqui a tradução portuguesa da obra de Calvino, tal como é citada por Gomes. Portanto, seguindo a explanação do pesquisadpr brasileiro, entre as várias cidades encontramos a cidade de Valdrada, construída à beira de um lago, espelho de água refletindo-a de cabeça para baixo, o que aponta para a disjunção de ficção e realidade empírica, entre a cidade e o discurso que a descreve, Eufêmia, avisando que as histórias contadas a partir das recordações, das experiências, são sempre outras histórias, portanto narrar (a cidade) é transformá-la, Despina, exprimindo que a cidade se apresenta de forma diferente para quem chega por terra ou por mar, Irene, cidade distante que muda à medida que alguém se aproxima dela, Moriana, que tem uma face obscura, Isaura, em que uma paisagem invisível condiciona a paisagem visível, Sofrônia, composta de duas meias cidades, uma fixa e uma provisória, Aglaura, a descrita pelos seus habitantes e a que se vê, Pirra, cidade imaginada que não coincide com o que é, Eusápia, cidade gêmea – a dos vivos e a dos mortos, a necrópole construída no subsolo, cópia idêntica da outra, Eudóxia, que se duplica num tapete no qual se pode contemplar a 42 cidade se vai tornando parecida com todas as cidades. Assim, Ricardo Cordeiro Gomes pode assumir que [d]a mesma forma se pode perceber que na poesia dos “modernos”, as cidades são sempre uma e a mesma cidade. Já Freud, em O mal-estar na civilização, via a Cidade Eterna (Roma) como a eterna cidade, manifestação permanente de um arquétipo original” (2008, pp. 61-62). Por isso também o próprio Marco Polo afirma que “cada pessoa tem em mente uma cidade feita exclusivamente de diferenças, uma cidade sem figuras e sem forma, preenchida pelas cidades particulares” (Calvino apud Gomes, 2008, p. 62). Para Marco Polo, essa cidade é Veneza, que permanece implícita nos relatos. Mas, como Gomes aduz, “[f]alar de Veneza, fixando-a com as palavras é cancelá-la da memória; mesmo falando-a através de outras cidades é perdê-la, é jamais poder retornar a ela, é esvaziar a origem.” (2008, p. 63). “O que resta, então,” diz Gomes, “é uma Veneza oculta, desrealizada, tão ou mais invisível que as cidades invisíveis, o duplo de todas as outras cidades que a imaginação do narrador produziu.” (2008, p. 63). Quando cessa a fala de Marco Polo, pode finalmente dar-se lugar a uma Cidade ainda não descoberta, a Utopia, a qual, conforme Gomes “[a]ponta também para a atopia, a ausência de lugar fixo, relacionado à cidade do sonho e fantasia, que se faz e desfaz incessantemente.” (2008, p. 64).23 Estas ideias poderiam ser, com efeito, vinculadas às reflexões de Daniela Hodrová sobre o Texto da cidade e o processo de espelhamento de uma cidade em todas as outras pelo facto de o viajante sempre trazer, para a outra cidade, a imagem da sua cidade, sempre reencontrada (Hodrová, 2006, p. 21). Apesar de as posições semióticas continuarem a encontrar muitos adeptos, enfrentam também várias críticas, precisamente pelo facto de a metáfora do Texto da cidade reduzir o espaço urbano à sua representação, sem atentar nas atividades e eventos que vários lugares promovem ou estimulam (cf. Derdowska, 2011, pp. 44-46). Esta lacuna é preenchida pela crítica feita por parte da sociologia (p. ex. Lefebvre), ou pela corrente que privilegia a concepção do espaço vivido, vinculada ao pensamento de Maurice Merleau-Ponty e outros fenomenólogos. O espaço vivido, ao ser concretizado, acumula dentro de si várias verdadeira forma da cidade, Raissa, cidade infeliz que contém uma cidade feliz que nem mesmo sabe que existe, Marósia que consiste em duas cidades – a do rato e a da andorinha, Leonia que a refaz para si própria todos os dias, Pentesiléia que se expande por diversas milhas ao seu redor numa sopa de cidade diluída no planalto, exprimindo a megalópole sem começo nem fim, sem exterior, policentrada, labiríntica, difícil de ser reconhecida e recordada, Trude que é cópia de um modelo, exprimindo que o mundo é recoberto por uma única Trude que não tem começo nem fim, só muda o nome no aeroporto. Todas as paráfrases são de Gomes (pp. 53-61). 23 A seguir, Ricardo Cordeiro Gomes passa a interpretar o Rio de Janeiro através dos textos de João do Rio, Oswald de Andrade, Rubem Fonseca etc.. 43 manifestações (i)materiais que revitalizam a sua memória. Neste contexto do espaço vivido, discute-se muito o uso das palavras “espaço” e “lugar”. Em princípio, “espaço” corresponde a uma categoria abstrata, objetivizada, enquanto “lugar” a uma sua concretização, um fragmento espacial que é definido subjetivamente, que é existencial e individual.24 Assim, mesmo que as postulações teóricas privilegiem o espaço, algumas metodologias, inclusive a geocrítica, dão prioridade ao lugar. Por isso, costuma-se invocar o caráter mítico da cidade, muitas vezes veiculado pelo nome que alude às suas origens lendárias (p. ex. a origem de Praga é relacionada com Libuše, filha do lendário fundador da nação checa, a origem de Lisboa liga-se com o mito de Ulisses etc.). Várias cidades, de facto, tornaram-se mito, sendo principalmente pela sua aura mítica que costumavam atrair artistas no passado e multidões de turistas no presente. Destas cidades é evidentemente Paris e Veneza que ganham o estatuto das urbes do mito por excelência (cf. Hrbata).25 Na mesma linha de pensamento sobre o espaço, recorda-se também várias vezes o conceito de genius loci, polémico e discutível, por certo, mas relacionado sem dúvida com as forças indefinidas que um lugar pode emanar, apelando à sensibilidade dos que esse lugar habitam, visitam ou o exprimem em obras artísticas. De acordo com Daniela Hodrová, o espírito do lugar aparece sobretudo nos textos que entram numa relação íntima com o substrato mitológico-mágico da cidade, para esta se revelar na sua “duplicidade”, como uma cidade outra, profunda, saída do inconsciente coletivo (2006, p. 31). O conceito de genius loci, de facto, apela para uma perceção do lugar não assente num simples ver/conhecer (monumentos e outros sítios “de interesse” material conforme os guias turísticos), mas num sentir, numa capacidade de se “entregar” às forças que afetam o nosso sistema nervoso e que nunca poderiam ser explicadas só pela “razão” pura e analítica. Precisamente neste contexto convém referir ainda mais uma corrente de pensamento sobre assuntos urbanos, essa que tem origem no movimento de situacionistas, surgido em França em torno de Guy Debord em 1955. Este movimento criticou sobretudo o capitalismo e a arquitetura funcionalista que, na sua opinião, destruíram o individualismo, degradaram pessoas pelo consumismo e transformaram o mundo num espetáculo (cf. Kohl, 2018, p. 130).26 Segundo os 24 Estranhamente só Michel de Certeau usou o significado inverso, dando ao espaço (lʼespace) um caráter de “habitado”, com as impressões da vida humana, ao contrário do “lugar” (le lieu) que apela para o mito, história e acontecimentos que “têm lugar” (ont lieu) (cf. Derdowska, 2011, p. 50). 25 Não é muito comum discutir, no contexto da problemática urbana na literatura, o estatuto da cidade fantástica que, evidentemente, também deve ser devidamente estudada, analisada e interpretada, até pelo facto de esta estar relacionada ou com o mito utópico, ou pelo contrário, com a visão distópica. 26 Trata-se, em grande escala, de arquitetura funcionalista inspirada pelos bairros modernos de Le Corbusier, como o atesta, por exemplo Unité dʼhabitation de Marseilles de 1952 ou Corbusierhaus de 1957 em Berlim (cf. Kohl, p. 131). 44 situacionistas, uma forma de evitar a banalização, a que tais mudanças sociais e culturais levam,27 seria um conceito de dérive, compreendida como uma deambulação pela cidade sem algum objetivo concreto, orientada somente à posssibilidade de viver momentos emocionais, outros humores e estados de consciência. Por outras palavras, a dérive atua contra o consumismo de espetáculos, correntes de imagens, produtos e atividades sancionadas pelo comércio e burocracia (Sadler apud Kohl, 2018, p. 133). Os postulados deste movimento tiveram também direta influência no conceito de psicogeografia que, embora pouco teoretizada e nada sistematizada, propaga um estudo de leis e efeitos especiais pelas quais o ambiente geográfico age diretamente no comportamento afetivo de indivíduos (cf. Debord apud Kohl, p. 135). Conforme Berensmeyer e Löffler, a psicogeografia pode ser descrita como uma prática de escrita, especialmente na primeira pessoa, que combina as descrições topográficas do espaço e lugares atuais com as perceções subjetivas e memória histórica (2018, p. 168).28 Os adeptos da psicogeografia proclamam também a necessidade de deambular livremente pela cidade, recuperando a tradição oitocentista de flânerie e revelando aspetos do ambiente urbano que ficaram, no decorrer do tempo, esquecidos ou marginalizados. Deste modo pode ser “verificada” a força de genius loci, percebida em dado contexto como um espírito de continuidade que entreliga o passado, presente e futuro. Entre os mais reconhecidos cultores da psicogeografia literária contam-se os escritores ingleses como os referidos Iain Sinclair ou Peter Ackroyd, ambos interessados em retratar o espaço londrino.29 Em conformidade com as concepções da psicogeografia, a cidade não funciona somente a nível físico, mas também como um conceito mental, em que o material e o psíquico sempre coexistem e operam numa correlação inerente (Chalupský, 2016, p. 155). Os sítios conhecidos transformam-se numa cidade interior, como uma construção psico-espacialtemporal. As personagens habitam a cidade pela sensibilidade, ficando conscientes do seu caráter transtemporal, da fusão do presente e do passado, numa experiência coletiva. Conforme M. Coverley, a cidade funciona como “place of dark imaginings (...) allied to an antiquarianism that views the present through the prism of the past and which results in psychogeographical 27 No seu trabalho, Kohl evoca a afirmação de situacionistas de que “a mental disease has swept the planet: the banalization” (Chtcheglov apud Kohl, p. 132). 28 Os autores ainda mencionam que a tradição da psicogeografia britânica foi inspirada pela contracultura transatlântica dos anos 60 e 70, desde Beat Generation até ao movimento anti-psiquiátrico, pelas teorias e vanguarda francesas, e inclui escritores e cineastas britânicos, tais como Iain Sinclair, Will Self, Patrick Keiller e Chris Petit, que começaram a procurar alternativas às representações oficiais, orientadas para o património e turismo, bem como as representações pós-modernas do tardio capitalismo, da Grã Bretanha, especialmente de Londres. (2018, p. 166). 29 Por exemplo, nas obras The House of Doctor Dee (1993) ou Dan Leno and the Limehouse Golem (1994) de Peter Ackroyd ou White Chappell, Scarlet Tracings (1987) de Iain Sinclair. 45 research that increasingly contrasts a horizontal movement across the topography of the city with a vertical descent through its past” (Coverley, 2028, p. 17) Além disso, o espaço urbano é percecionado como sagrado ou encantado, de modo que, como alega Niedokos a propósito da prosa de Ackroyd, os sítios particulares, tais como a casa, a rua, o largo etc., constituem um “buraco”, no qual o tempo fica em suspenso. Assim, a mesma história pode repetir-se várias vezes ou as mesmas atividades podem perdurar nos mesmos sítios através de séculos mesmo que a sua continuidade tenha sido cortada por um desastre (incêndio, terramoto etc.) (Niedokos, 2016, p. 83). Neste tipo de determinismo espacial, portanto, o espaço retém a memória dos habitantes e dos fenómenos passados. O último método, a que me queria referir neste quadro teórico, relaciona-se com o conceito da antropologia literária. As inspirações antropológicas, junto com certas correntes como new criticism e myth criticism (p. ex. as teorias de Northrop Frye), revelam-se na teoria literária a partir do início do século XX. Para o relacionamento da perspetiva antropológica (ou etnológica) com a literatura foi também importante o “surrealismo etnográfico” que incluía atividades de um grupo reunido à volta de Collège de Sociologie (Bataille, Callois, Leiris), concentradas em projetos de simbiose entre a arte e as ciências (sobretudo humanidades). Com efeito, Joanna Derdowska informa que os próprios textos de Bataille podem também servir como um elo de ligação entre o pensamento dos anos 20 e 30 em França e os pós-estruturalistas (Foucault, Derrida, Barthes) (2011, p. 20). É precisamente esta investigadora polaca que utiliza o conceito de antropologia da literatura como um instrumento operacional na análise de textos literários. Conforme o seu entendimento, este conceito privilegia a posição da literatura como um foco de interesse primordial (um outro termo possível – antropologia literária – significaria que a literatura servia só como meio de inspiração à antropologia).30 Muito valiosas são as considerações de Derdowska acerca do estudo da antropologia de literatura na Europa Central, sobretudo na Polónia onde, segundo a autora, esta corrente encontrou grande repercussão, sobretudo nas universidades de Katowice e Cracóvia (2011, p. 29). Assim, podemos referir a conceção de Anna Kosowska, professora de Katowice, segundo a qual a antropologia de literatura reconstrói a existência humana no âmbito de cultura à base de textos literários. Neste caso, a literatura funciona antes como um instrumento para a antropologia (cf. Derdowska, 2011, p. 29). O segundo ramo desta corrente na Polónia (da Universidade de Cracóvia) 30 As situações que podem ser estudadas a partir da perspetiva da antropologia de literatura (ou antropologia literária) são sistematizadas por Derdowska de forma seguinte: a) literatura como fonte do conhecimento antropológico b) literatura como tema de antropologia c) literatura como técnica antropológica d) literatura como medium (Derdowska, 2011, pp. 22-24). 46 aproxima-se da conceção de Wolfgang Iser, baseada nas raízes fenomenológicas da estética da receção, segundo a qual o peso do texto se encontra na sua leitura e receção, e não dentro dele ou mesmo fora dele, num mundo atual em que o texto surgiu (cf. Derdowska, 2011, p. 30). É esta segunda linha de pesquisa que se torna mais inspiradora para as reflexões e análises de Joanna Derdowska. O seu objetivo, portanto, não consiste em analisar a historicidade dos textos literários, ou o estado da sociedades em determinado período temporal, mas, pelo contrário, assenta na “experiência da cidade” e na sua “representação literária”, mesmo que os conhecimentos de outras disciplinas possam fornecer dados importantes para a compreensão das imagens literárias do espaço urbano. Na sua análise, Derdowska estuda a relação entre a ficção literária e o ambiente da cidade, no entanto, não privilegia a leitura sociologizante dos textos literários, nem apreende a cidade na literatura como uma projeção das estruturas sociológicas. A imagem literária da cidade é considerada uma qualidade autónoma que contribui para a discussão geral sobre o espaço urbano. Concretamente, com base na análise da narrativa urbana contemporânea checa, Derdowska define as poéticas que servem à representação do espaço urbano e que constituem uma fonte de inspiração para qualquer trabalho sobre a cidade na literatura: 1) a poética do aperto: a cidade é fonte de inquietação ou desassossego, é sentida como espaço gerador de angústia, semelhante a uma prisão, 2) a poética de interseção: polemiza com a antinomia tradicional da cidade e do campo, apontando para as formas de como é possível rasurar esta antinomia, ou como é até viável eliminá-la; estas formas baseiam-se sobretudo nas dificuldades de definir a fronteira entre o centro e periferia da cidade, 3) a poética da perceção: sublinha as estratégias pelas quais a cidade reconquista qualidades que lhe foram retiradas; grande atenção é dedicada à dimensão mítica da perceção do espaço urbano, do seu genius loci. Em todos os momentos Derdowska sublinha que a cidade pode ser descrita de modos diferentes, relevando as suas contradições internas (p. ex. a cidade como fonte do caos e simultaneamente da ordem) que, por fim, se revelam complementares. Um grande impulso para os estudos da cidade na literatura fornece a interdisciplinaridade, embora tenha que ser sempre privilegiado um determinado ponto de vista, isto é, a literatura. A geocrítica de Westphal também opera com o mesmo sentido interdisciplinar, até porque as suas reflexões aderem sempre às relações entre o texto e o lugar. Estas relações deviam ser recíprocas. Há, com efeito, vários arquitetos, planeadores urbanos e geógrafos que costumam ler os grandes autores vinculados às cidades, precisamente com o objetivo de alargarem os seus estudos de espaços reais. Por outro lado, como já foi referido, a própria cidade, a sua geografia e cultura material, torna-se um texto. E, para além do esbatimento de fronteiras entre o lugar e 47 o texto, ou seja, para além da síncrese dos modos topográfico e textual, testemunham recentemente outros tipos de fusão. Convém frisar, neste contexto, o esbatimento de limites urbanos, de fronteira entre o centro e periferia. Na geografia e estudos urbanos, como diz Westphal, esta tendência levou nos últimos tempos à proliferação de novos termos – outer cities, edge cities, technopole, technoburbs, silicon landscapes, postsuburbia, metroplex – para revestir “as margens urbanas” de “poética pós-moderna” (Westphal, 2015, p. 160). Para explicar este fenómeno, Edward Soja, em Thirdspace,31 lança o termo exopolis que surge ao lado de outras transformações urbanas como flexcity (metrópole pós-industrial), cosmopolis (cidade global), polaricity (tipificada pelas crescentes desigualdades sociais), carceral city (prisão ou cidade policial) ou simcity (espaço hiperreal de simulacro).32 Estes neologismos correspondem ao discurso da moderna metrópole. A desconstrução do conceito tradicional do espaço urbano leva a uma relação problemática entre o que é “real” e “discursivo”, adquirindo o espaço um aspeto de simulacro, em que a realidade é, de acordo com os postulados de Baudrillard, suplantada pela “hiperrealidade”.33 Neste espaço, o mapa precede o território e a representação substitui o referente, o qual, ultimamente, figura só no discurso (cf. Westphal, 2015, p. 160). Ou seja, para acabar com as palavras do geocrítico, o lugar é agora criado a partir da coalescência de duas leituras do mundo que eram tradicionalmente separadas: o real e o imaginário, exprimindo um mundo possível (Westphal, 2015, p. 161). 1.3. As bases da geocrítica de B. Westphal Apesar de todas as posições teórico-metodológicas acima comentadas serem levadas em consideração no presente trabalho, o método privilegiado corresponde à geocrítica de Bertrand Westphal. Antes de definir os princípios deste método analítico-interpretativo, urge mencionar as principais ideias que constituem o seu suporte teórico e que foram colhidas no trabalho de Westphal, intitulado Géocritique (2007), que aqui utilizo em tradução inglesa Geocriticism 31 A categoria do terceiro espaço é percebida por Soja como aquela que, inspirada em Foucault e Lefebvre, define o modo da nossa vida, a geografia da vida humana. Trata-se de uma reação ao privilégio que detinha o espaço social (sociedade) e o espaço histórico (tempo). (Borch, 2011, p. 113) 32 Derdowska ainda indica outros termos: polycentric urban region, technocity, galactic metropolis, city without organs, postmodern urban form (cf. Derdowska, 2011, p. 67). 33 Veja a definição de Jason L. Powell: “Baudrillard claims that in the postmodern media-laden condition, we experience something called the death of the real: we live our lives in the realm of hyperreality that is simulated, connecting more and more deeply to things like television sitcoms, music videos, virtual reality games, or Disneyland, things that merely simulate reality.” (Powell, 2012, p. 9) Ou seja, conforme Baudrillard, a ideia da verdade é uma cópia falsa de algo que foi destruído. Temos só simulações da realidade que não são mais nem menos reais que a realidade simulada. Estes simulacros (hyperreal copies) precedem nossa vida (cf. Powell, 2012, p. 9). 48 (2015).34 Os conceitos que inspiraram Westphal a elaborar o seu método desenvolvem as reflexões sobre o espaço e a espacialidade, não só na teoria literária, mas também em diversos ramos da filosofia e cultura. Trata-se, em princípio, da categoria de espaço-tempo (spatiotemporality), transgressividade (transgressivity) e referencialidade (referentiality). Após uma breve apresentação das ideias fulcrais referentes a estes conceitos, será delineada a parte fundamental da teoria geocrítica, o método primário deste trabalho. Convém frisar que a argumentação aqui exposta segue rigorosamente o pensamento de Bertrand Westphal. O presente capítulo deve ser, portanto, considerado como um resumo dos seus princípios metodológicos, sem qualquer ambição de extender o seu alcance teórico ou especulativo. Na parte referente à categoria do espaço-tempo (spatiotemporality), Westphal parte da ideia de que as metáforas do tempo tendem a espacializar o tempo (p. ex. a velha metáfora do rio) e de que, sobretudo a partir das novas descobertas científicas (relatividade, espaço-tempo, ponto e linha, entropia etc.), o espaço começou a lançar novos desafios. O espaço substancial, homogéneo, derivado da geometria grega clássica, deu lugar a um espaço acidental, heterogéneo, em que as secções e frações se tornam essenciais. Westphal, contudo, não pertence àqueles que proclamam a prioridade do espaço. A sua conceção não obedece à supremacia de uma categoria sobre a outra, mas exige, pelo contrário, a necessidade de equilíbrio. Na sua opinião, as duas categorias são intrinsecamente amalgamadas: While it is still conceivable to isolate time from space, or history from geography, it seems intransigent or unwise to deliberately keep the two dimensions separate. (…) It is now necessary to bury time and space in order to make room for space-time (p. 26). Westphal recorda que Bachtin já avançara neste sentido ao criar, nos anos 30, o conceito de cronótopo, inspirado pela teoria de relatividade. No entanto, este cronótopo serve primordialmente como um elemento estruturador da teoria de géneros e, além disso, Bachtin analisa o espaço como um formalista, sem levar em consideração o espaço de referência. Apesar de Westphal achar o cronótopo importante como um conceito estimulante não só para a teoria da literatura, mas também para a arquitetura, o planeamento urbano e a geografia, considera-o sem grande importância para o estudo do romance moderno (p. 27). No campo da geografia cultural foram também feitos alguns estudos com o objetivo de vincular o tempo ao espaço. A este respeito, Westphal refere-se à geohistória de Braudel (correspondente à história que o ambiente constantemente impõe aos humanos e em que o 34 Todas as citações e referências à teoria de Westphal neste trabalho são desta edição. 49 espaço funciona como um indício de um evento histórico) e à Tidsgeografi de Torsten Hägerstrand (que incorpora o efeito das atitudes individuais em relação ao espaço-tempo, prestando atenção especial às sendas escolhidas e usadas pelos indivíduos para alcançar os seus objetivos no espaço-tempo urbano; esta teoria teve impacto nos estudos urbanos e sociais no que diz respeito, por exemplo, à modulação do espaço conforme o gender). Muito importantes foram, na opinião de Westphal, os estudos da condição pós-moderna, promovida desde 1979 por Lyotard e todos os seus seguidores, entre outros David Harvey (The Condition of Postmodernity, 1990), para quem a compressão espaciotemporal carateriza todos os períodos após a crise europeia em 1848, com destaque para os períodos no início do século XX (“Taylorismo” e “Fordismo”, advento do modernismo) e nos anos 70 do século XX (transição para o pós-modernismo). A geocrítica privilegia o estudo interdisciplinar porque nos tempos atuais parece ser desnecessário obedecer ao estrito determinismo que no passado separava o literário do nãoliterário. De facto, é sabido que entre os documentos escritos em que se baseiam os estudos geográficos, a literatura tem sempre mantido um lugar de relevo (Brosseau, 1996 apud Westphal, p. 31). Já nos anos 20, como Westphal alega, John K. Wright insistiu na “hibridização” das duas disciplinas, cunhando até em 1926 um novo termo “geosophy”, argumentando que a história de ideias geográficas era alimentada pela “esfera de ideias”, entre as quais a mitologia e literatura (pp. 31-32). Nos anos 70 ocorreu uma síncrese ainda mais efetiva, seguindo-se depois uma nova onda nos anos 80 e 90. Entre outros assuntos, os geógrafos interessam-se pela literatura por esta fornecer um complemento à geografia regional, por traduzir a experiência do lugar e por exprimir a crítica da realidade ou da ideologia dominante. No caso dos estudos literários, um dos melhores exemplos de convergência das duas disciplinas é o Atlas do romance europeu de Franco Moretti. A regra número um da geocrítica, portanto, consiste na equiparação do espaço e do tempo e na valorização da geografia e outras disciplinas que possam estimular a compreensão de certos patamares da literatura. Outro conceito que serve de suporte à teoria de Westphal corresponde à transgressividade (transgressivity), elemento caraterístico do espaço contemporâneo pela sua capacidade de mobilidade e movimento. Baseia-se este conceito na ideia de que a relação entre a representação de um espaço e o espaço real é indeterminada. Como a homogeneidade euclidiana, considerada durante muito tempo um princípio guiador para a compreensão do mundo, já não é sustentável, o espaço só pode ser entendido na sua heterogeneidade. É o que foi defendido, entre outros, por Lefebvre na obra The production of space, em que se tenta desmantelar o mito da uniformidade do espaço por este corresponder ao signo “fálico”, ou seja, ao poder político. Ao contrário, 50 Lefebvre demonstra que o espaço é compósito (Lefebvre, 1974 apud Westphal, p. 38). Entre outros pensadores que apontaram para a noção da heterogeneidade do espaço, Westphal referese ainda a Gilles Deleuze e a Félix Guattari, sobretudo ao seu trabalho Capitalism and schizofrenia, em que se faz a distinção entre o espaço estriado (striated) e suave (smooth). O espaço estriado é o do aparato estatal, de polis, política, polícia, policiado, enquanto o espaço suave é o de nomos. Ou seja, pode ver-se aqui o dualismo de hadara – city life e badiya – beduísmo. O espaço sedentário é estriado, cheio de muros, enclausuramento e estradas entre enclausuramentos, ao contrário do espaço nómada que é suave, marcado só pelos traços que são logo deslocados pela trajetória, espaço variável, de uma polivocalidade de direções. Há, contudo, algumas ambiguidades, uma vez que o mar, por exemplo, pode ser um espaço suave por excelência e, simultaneamente, corresponde ao arquétipo de todas as estriações do espaço suave. Também deve ser compreendido que este binómio não se pode aplicar à distinção entre o espaço civilizado e não civilizado porque pode haver também um espaço suave dentro de um espaço civilizado, ou seja, estriado (pp. 38-39). Ao invocar policronia, politopia e poliritmia, insiste-se na heterogeneidade, garantida pelo princípio da mobilidade perpétua, e assim também na transgressividade inerente a qualquer representação dinâmica do espaço. Nesta conexão, Westphal aponta ainda para o binómio de centro e periferia (conceito desenvolvido por Even-Zohar e outros), sempre que se estude a questão de liminality e fronteira. Como sustenta Jean Roudaut, o centro parece ter sido o único princípio a coordenar as forças espirituais, tensões políticas, dispersões linguísticas etc.. Por isso, Westphal afirma que o centro é “the crystallization of a moment that was; its status is affirmed at the precise moment when it imprints itself on a memory: memory only, a paradoxical recognition that inflects the present with the power of the simulacrum, a hollow presence, effectively a vacuum.” (p. 48). O centro, na opinião de Giorgio Agamben, também mencionado por Westphal, é stanza, literalmente nada, um fantasma e, como um espaço singular (sistema aparentemente único) é vinculado à periferia que é plural: “The germinal cell is often – or always ? - found in the margins” (p. 48). A geocrítica, portanto, apreende o espaço na sua móvel heterogeneidade. O último ponto que inspira o método geocrítico corresponde à referencialidade (referentiality) que estabelece vínculos entre o mundo real e o texto, ou entre o referente e a representação. Westphal recorda que embora desde Platão e Aristóteles tenha sido aceite que a ficção (poiesis) estava em relação mimética com o mundo, a mudança radical veio com o novo modelo de representação proposto pelos fenomenólogos, modelo que subverteu a hieraquia tradicional por prestar maior atenção ao caráter espaciotemporal da transmissão e à natureza defamiliarizadora dos vínculos que conetam a fonte com os seus derivados (p. 75). Através da 51 representação, o modelo (real) torna-se instável, ou quase aleatório. Esta questão, com efeito, foi extensamente trabalhada na literatura, não só teórica, mas também artística. Recorde-se que muita ficção moderna do século XX, especialmente a das décadas de 50 a 70, entrou numa fase de forte descrença na capacidade da literatura de representar o mundo real, uma vez que este nunca poderá ser apreendido na sua complexidade e “verdade”. Várias reflexões surgiram a este respeito sobretudo entre os inteletuais franceses.35 Em que consiste, então, a posição da geocrítica relativamente a esta questão? Para a perceber convém ainda recordar que nem sempre a literatura se interessa pelo referente. Westphal recorda a situação na Antiguidade em que o espaço era muitas vezes antecipado pela narrativa (por exemplo na Odisseia), constituindo-se a paisagem na obra literária como um resultado da criação poética. As narrativas foram criadas como mapas de palavras, não de lugares de referência. A descrição não reproduzia o referente, pelo contrário, era o discurso que estabelecia o espaço (p. 80). Isto já não é válido para os dias de hoje porque o autor é sempre precedido por aqueles que fixaram o referente (p. 81). Na era pós-moderna surge ainda outra situação, uma vez que a distinção entre o espaço real e o espaço transposto foi eludida (p. 84). No entanto, à pergunta se a representação está sempre ao serviço da realidade, Westphal responde que sim. Ilustra-o pelos exemplos de duas pinturas, uma de Velázques, outra de Picasso. Nos dois casos, a representação reproduz a realidade, ou melhor, a experiência da realidade, porque o que está em questão são os modos de representação. Dentro desta lógica, a pintura de Picasso também representa a realidade, o desvio deve-se só ao facto de ele ter rompido com a poética naturalista de Zola. Isto porque a espécie humana só existe através da sua experiência que é criadora do mundo numa obra de arte. Portanto, cada obra, não interessa quão longe está da realidade apreendida pelas sensações, faz parte do real e, talvez, participa na própria formação do real (p. 85). Por outro lado, é possível observar também um processo que poderíamos denominar ficcionalização do real. Westphal oferece um exemplo bem conhecido de Hyden White que, deste modo, abre a própria historiografia à ficcionalização (a história é sempre um discurso), por via da qual o mundo real (histórico) se torna simultaneamente real e imaginado (p. 101). Tendo em vista o exposto, o lugar literário pode ser considerado um mundo virtual que interage 35 Esta questão foi, entre outros, desenvolvida por Petr Dytrt, nos trabalhos sobre o romance francês contemporâneo. Dytrt também menciona a concepção de Philippe Forest que tenta evitar a confusão que a noção do real trouxe à reflexão sobre a literatura, distinguindo entre o real (réel) e a realidade (réalité). Enquanto o primeiro termo denota aquilo que realmente existe mas sempre nos foge, a realidade (réalité) é aquilo que vemos e o que pode ser transmitido pela literatura porque ela própria cria esta ideia da realidade com a qual substitui o real. A realidade é uma ilusão ingenuamente confundida com o mundo objetivo. (Dytrt, 2013, p. 37). 52 com o mundo de referência (p. 101) É possível estipular vários tipos de vínculos entre o espaço ficcional e referencial. Earl Miner, mencionado por Westphal, divide entre o lugar comum (common place) sem referência ao mundo real, o lugar próprio (proper place) que se refere a um lugar conhecido na sua localização existente e o lugar impróprio (improper place) que corresponde a um lugar não-existente, cuja valência é frequentemente metafórica (paraíso, inferno) (p. 101). Lennard Davis, por sua vez, distingue entre o lugar atual (actual place) como é, por exemplo, a Paris de Balzac, o lugar fictício (fictitious place) como pode ser Middlemarch de Eliot, e lugar renomeado (renamed place) como é East Egg ou West Egg de Scott Fitzgerald (nomes fictícios para os verdadeiros lugares em Long Island em Nova Iorque) (p. 101). Westphal, por fim, oferece a sua própria divisão: consenso homotópico (homotopic consensus), interferência heterotópica (heterotopic interference) e excurso utópico (utopian excursus) (pp. 101-110). Na primeira vertente, as propriedades virtuais expressas pela narrativa serão adicionadas às propriedades progressivamente atualizadas do referente. A verosimilhança é um critério necessário porque se supõe que a representação de um referente emerge de uma série de realemas e que os vínculos entre eles se manifestam. A esta categoria pertence a maioria das narrativas que representam um lugar existente num protomundo. A ficção, no entanto, não mima a realidade, antes atualiza as virtualidades que nela estão latentes, ou seja, deteta as possibilidades enterradas nas dobras da realidade. Há, portanto, uma compatibilidade entre a ficção e a realidade. Na segunda vertente (interferência heterotópica), o nome funciona como um indicador, mas esse que também pode desencaminhar, mistificar, tal como o título. A partir do referente, a ficção desenvolve-se segundo as suas próprias leis, independentemente da verosimilhança. No terceiro caso (excurso utópico), trata-se de utopias (um não-lugar ou-topos) eutópicas (de uma cidade ideal) ou de distopias, podendo tratar-se também de todos os sítios imaginários de fantasy e da ficção científica. A geocrítica é um método que pretende ser geo-centrado e interdisciplinar, embora o interesse primordial pertença sempre à literatura. Há quatro noções cardeais que deviam ser observadas (multifocalização, polisensorialidade, estratigrafia e intertextualidade) e que serão a seguir definidas. A primeira delas, a multifocalização, baseia-se na ideia de que um olhar é sempre incompleto. Por isso, a atitude ego-centrada, por se centrar na subjetividade de um artista, é necessariamente limitada (pp. 126-127). Desde que haja só um ponto de vista, de uma só personalidade artística, o conhecimento do lugar será restrito, de menor valor. Mas, uma vez retirada a concentração num ponto de vista isolado, a questão do corpus torna-se crucial. É preciso estabelecer um limiar a partir do qual as obras podem ser escolhidas. Este limiar é aleatório, não se trata de uma aritmética objetiva. Se se tratar de um lugar relativamente pouco 53 trabalhado (Westphal dá um exemplo das ilhas de Dalmácia, cuja representação se limita ao século XX), a geocrítica em ampla extensão é admissível. Contudo, o mesmo não seria possível no caso daqueles lugares que se converteram em mitos artísticos – Veneza, Paris, Londres, Nova Iorque, Roma etc. Neste caso, a limitação do corpus é imprescindível. Para estreitar o escopo da pesquisa, por exemplo, é possível aplicar o vetor temporal. De qualquer maneira, para os fins da geocrítica deve ser tomado em conta um certo número e ampla variedade de pontos de vista. O alcance desse limiar da representatividade pode ser determinado à base de casos individuais (case-by-case study). Para garantir a variedade, é preciso observar o princípio formulado por Paolo Zaccaria: “points of view do not exclude each other, but can coexist, cooperate and be accomplices.” (Zaccaria apud Westphal, p. 127). No sentido geocrítico, a multifocalidade exprime-se em três variações básicas. O ponto de vista é relacionado com a situação do observador do espaço de referência. O observador apropria-se deste espaço através de vários tipos de relacionamento, desde a familiaridade e intimidade até à sensação de estranheza. O ponto de vista pode ser endógeno (endogenous), exógeno (exogenous) ou alógeno (allogeneous), em que a perspetiva endógena corresponde à visão autóctone do espaço, resistente a qualquer olhar exótico, limitando-se ao espaço familiar, o olhar exógeno reflete a visão do viajante, muitas vezes tingida de exotismo, e a visão alógena situa-se entre as duas precedentes, exprimindo o olhar de quem se radicou num sítio, familiarizando-se com ele, mas continua a ser estrangeiro para os habitantes locais. Os casos típicos são os imigrantes. Destes três tipos de perspetiva, o mais privilegiado foi sempre o ponto de vista exógeno (literatura de viagens), a partir da imagologia em especial, por se tratar de uma posição adequada ao estudo da perspetiva egocêntrica do autor. No estudo geocêntrico, os três pontos de vista são considerados na mesma proporção, num jogo de interações. Estes três pontos de vista podem ser, conforme Westphal, mais diversificados ainda de acordo com o grau de implicação da perspetiva narrativa (estratégia discursiva), para verificar até que ponto a perspetiva do autor corresponde à do narrador. Também dentro de uma obra podem existir várias perspetivas. Noutros casos ainda, pode haver uma perspetiva que poderíamos chamar “simulada” e que oferece a abordagem de um espaço através do ponto de vista falsamente exógeno (p. ex. a França em Cartas Persianas de Montesquieu, nas quais a França é vista do ponto de vista exógeno da perspetiva dos persas). Ou então, numa obra basicamente exógena (p. ex. os romances de aventuras, de Verne etc.) pode haver um ponto de vista endógeno. O ponto de vista alógeno pode variar. Aparece com frequência em vários tipos de arte produzida na situação cultural de in-between (p. 129). Westphal também avisa que a multifocalização é só um instrumento, que não significa o 54 objetivo, uma vez que a pesquisa geocêntrica não tende ao estudo de variabilidade de perspetivas, mas aos efeitos que estes provocam, em termos de representação de um determinado espaço, na sua interseção. Isto torna-se em especial estimulante quando a rede de vários pontos de vista oferece a confrontação de várias alteridades (p. 130). A seguinte estratégia corresponde à polisensorialidade. No nosso contexto cultural há uma hierarquia dos sentidos, em que a visão tem a posição privilegiada (nos Evangelhos ver corresponde ao acreditar, nos idiomatismos, como p. ex. estou a ver, o verbo ver significa “perceber”, na poesia de amor cortês, o amor partia do ver, olhos etc.). A predominância da visão foi também corroborada pelo foco das pesquisas da geografia dos sentidos (sensuous geography), em que, conforme John Douglas Porteous, “[c]oncentration on the non-visual senses is also rare. Few have investigated soundscape, and hardly any have chosen to encounter smellscape or the tactile-kinaesthetic qualities of environment. Taste remains a metaphor.” (Porteous, 1990 apud Westphal, pp. 132-133). Mas esta perspetiva pode variar em diferentes contextos culturais e geográficos. De acordo com Westphal podemos afirmar que a experiência do ambiente provém de todos os sentidos (p. 133). Na literatura, evidentemente, por razões da existência textual, predomina a visão que é, também, a dominante dentro do escopo dos sentidos no texto. Vários outros sentidos, contudo, entram na textura literária para criar a paisagem sensorial. Como Westphal afirma, às vezes encontramos as paisagens dominadas por um sentido, outras vezes as paisagens são “sinestésicas”, visuais, olfáticas, hápticas, auditivas etc. (p. 134). O terceiro ponto importante da geocrítica diz respeito à visão estratigráfica. Westphal recorda que, ao falar sobre o trabalho da memória emotiva e da memória da cidade, Walter Benjamin propôs o “método” de escavar e recordar (p. 137). Ao mesmo assunto refere-se Renato Cordeiro Gomes, segundo o qual esta metáfora arqueológica consistia em descobrir as camadas de significado que permaneciam esquecidas porque o sujeito, como um arqueólogo, “desce às camadas mais profundas da memória, dentro da paisagem arcaica da cidade”, percorrendo “o labirinto de emoções – os roteiros descontínuos de sua infância” e decifrando “não apenas meros traços do passado, mas também dos sonhos e fantasias” (Gomes, 2008, p. 71). A lógica geocrítica é a seguinte. O espaço é localizado numa interseção do momento e duração, a sua aparente superfície assenta num nível do tempo compacto criado ao longo de um período temporal extenso e reativado em cada momento. O tempo presente do espaço, portanto, inclui o passado que flui conforme a lógica estratigráfica. Cada representação leva à redução porque é produto de uma tomada de posição singular. A representação como a presentificação é o resultado da escolha feita de acordo com o seu significado. De sua natureza, a representação 55 do tempo sujeita-se a ficar incompleta, porque a história sedimentada pode ser desvelada só parcialmente. Por isso, reduzir o espaço e sua perceção a uma dimensão superficial seria prematuro: o espaço, cuja superfície é ilusória, torna-se vertical no tempo (p. 138). Westphal menciona alguns teóricos que se aproximaram deste assunto, entre os quais Henri Lefebvre com o seu argumento de que o espaço, sobretudo o espaço social e urbano, apresenta uma estrutura de pastel de mil folhas, mais diversificada do que o espaço homogéneo da matemática clássica (euclidiana, cartesiana). Podemos então ver que o espaço é estratificado: aquilo que viera primeiro sustenta o que veio depois. De facto, o mesmo sentido “arquitetónico” atrai os geólogos porque ambos, arquitetos e geólogos, examinam a estratificação do espaço (p. 138). A seguir, como Westphal aduz, Deleuze e Guattari nomearam este nivelamento pelo termo strata, em que cada stratum é organizado em função de outro stratum que serve de suporte (substratum). De acordo com a lógica de transgressividade, os strata mantêm relações dinâmicas entre si (p. 138). Estas ideias são aplicadas nos estudos urbanos. Marcel Roncayolo, citado Westphal, afirma que as construções territoriais são primariamente consolidadas pelo tempo, sendo que diferentes tempos da cidade estão presentes ao mesmo tempo (p. 138). Dentro desta lógica, Westphal, inspirado ainda pelas ideias de Hans Robert Jauss e Siegfried Kracauer afirma que o presente é uma colagem de instantes ou forças heterogéneas, autónomas (p. 139). Uma vez que os momentos correspondem a uma lógica diferencial, a simultaneidade é também só uma ilusão dessa mesma simultaneidade. A perceção do espaço é similar: o espaço humano faz parte de várias dobras temporais. A geocrítica enfatiza que a atualidade de um espaço é sujeita a um conjunto de ritmos assincrónicos ou, por outras palavras, o espaço tem um caráter fragmentado. Westphal apresenta o exemplo da cidade de Barcelona, cuja representação deve articular as imagens de vários bairros. A cidade assemelha-se assim a um arquipélago. Por outras palavras, como Westphal adiciona, o espaço humano é um jardim de várias veredas, ou simplesmente um rizoma (p. 139). Similarmente, este caráter rizomático é também próprio do texto literário, cujo espaço nunca é representado (e daí, fixado) por uma só obra literária ou por um só autor. O espaço não é único nem uniforme A concepção monolítica do espaço é solo fértil para o estereótipo, desenvolvido pelo discurso hegemónico, monofocal e monocrónico (p. 147). A geocrítica, cujo método é geocentrado, e não egocentrado, desconstrói o estereótipo fundamentalmente pelo uso de multiperspetivismo (p. 147). E embora este método continue a desenvolver estereótipo (porque não pode deixar de o fazer), o cruzamento de perspetivas fornece o seu desvelamento. O metadiscurso geocrítico, conforme Westphal, deveria estar apto a situar cada autor numa rede de precisas referências, em que o espaço sempre oscile entre um “realema” e as múltiplas representações que giram à sua volta (p. 147). 56 Com isto, chega-se ao conceito intertextual. Primeiro coloca-se a questão qual é a relação entre um lugar representado num texto e o seu referente espacial. A este respeito, Westphal invoca o exemplo de Italo Calvino e a sua relação com Paris, pois antes de conhecer Paris pessoalmente, Calvino lera muitas obras situadas nessa cidade, criando assim uma imagem mental da cidade. Deste exemplo deflui um facto evidente: Paris é também a cidade pensada e construída a partir da leitura, sem necessidade de ser conhecida pessoalmente (p. 149). Além de Calvino, Westphal refere-se ainda aos exemplos de Georges Perec e Umberto Eco, resumindo que as atitudes dos autores em relação à cidade são distintas, mas todas fornecem boas lições sobre o relacionamento do escritor com a cidade, uma vez que a representação de Paris é para eles um cruzamento entre a sua direta perceção polisensorial e a construção intertextual, baseada nas suas respetivas enciclopédias pessoais (pp. 149 -150). Porque antes da “sua” imagem da cidade, há ainda a Paris de Balzac, a Paris de Zola, a Paris de Baudelaire etc., tal como antes da imagem da Lisboa nos autores portugueses da década de 30, há ainda a Lisboa de Camilo Castelo Branco, a Lisboa de Eça de Queirós, e, especialmente, a Lisboa de Cesário Verde. A geocrítica pode assim reconstruir a trajetória intertextual que se encaminha para uma concreta representação do espaço. Todas estas ideias se ligam ainda com o estatuto do texto e da literatura no que respeita o espaço geográfico. Podemos concordar com Westphal quando este afirma que, por um longo período, a literatura precedeu a geografia por um passo. As viagens de descobrimentos referidas nas obras literárias (viagens de Ulisses, de argonautas etc.), de facto, alimentaram a imaginação dos viajantes e “descobridores” no verdadeiro sentido da palavra (p. 154). Como uma ilustração deste fenómeno podem servir os topónimos de Antilles e Amazónia. No primeiro caso, o nome deriva de Antilia, ilha fabulosa, inventada pelos cartagineses, no segundo, do mito de Amazonas, mulheres guerreiras. Por isso, Westphal pode até declarar que “America is literally – literarily – European invention” (p. 154), tal como, de facto, muitas outras partes do mundo são uma “invenção” para os outros. Pode tratar-se de “outros” continentes como Ásia e África, aos olhos dos europeus, ou até, de uma parte de um continente para a outra (p. ex. a Europe de Leste para a Europa Ocidental36 ). Neste sentido, se nos restringirmos à questão urbana, algumas cidades podem ser consideradas mesmo “literárias”. Westphal refere-se, por exemplo, ao caso de Claudio Magris que considerou a sua cidade, Trieste, uma “cidade de papel”, uma vez que a 36 Há referências interessantes sobre este assunto em Zygmunt Bauman e Leonidas Donskis (Liquid evil, 2016). Recordam-se aqui por exemplo as obras como Candide de Voltaire (no que diz respeito à imagem do espaço russo), Lokis de Mérimée (imagem da Lituânia) ou Dracula de Stoker (imagem da Transilvânia) (Bauman, Donskis, 2018, p. 176). 57 sua face e forma foi criada, fundamentalmente, por três escritores que lá nasceram, Svevo, Saba e Slataper. É, portanto, evidente que as cidades são expostas às transposições literárias, porque, parafraseando Westphal, a mistura de espaço e literatura evita a aritmética para se instalar na geometria “variável”, não-euclidiana (p. 156). 1.4. Cidade e modernidade A modernidade é a forma através da qual é elevada à consciência plena de si mesma, sob a figura de mito, a realidade moderna por excelência que é a Cidade. Não uma cidade qualquer mas a Metrópole. Eduardo Lourenço37 O que é a cidade? Em princípio, a definição da cidade está relacionada com a sua história. As cidades europeias tinham tradicionalmente um sistema de fortificação, ao contrário das aldeias.38 É precisamente em virtude da distinção entre a aldeia, vila, pequena cidade e grande cidade (metrópole) que podem ser rastreadas algumas diferenças na abordagem do tópico urbano: enquanto a pequena cidade provincial correspondia a um dos espaços mais conhecidos da prosa oitocentista,39 a época moderna tem privilegiado inequivocamente a grande cidade. Com o derrube das muralhas, as cidades perderam o seu traço distintivo, tornando-se cada vez mais difícil definir onde começa ou acaba a cidade, entretanto estendendo-se para os lados do antigo extra-muros. Na linguagem atual, começaram, portanto, a aparecer expressões como post-suburbia ou edge cities.40 Na era moderna, em que se deu um grande surto de aglomerações urbanas, a maior parte da obra romanesca é, de acordo com Jean-Yves Tadié, consagrada à cidade. (Tadié, 1992, p. 37 Lourenço, 1987, p. 183. 38 A cidade grega, tal como a imagem ideal da Cidade, era envolvida pelo campo. Depois começa a “rivalidade”. No século XVIII Jean-Jacques Rousseau opinou que a Cidade dominadora, embora alimentada pelo Campo, correspondia ao local que gerava a perda de autenticidade, ao reino das aparências (cf. Loureiro, 1996, p. 33). 39 Recorde-se, por exemplo, o mito da aldeia (vila) idílica, regida pelo ritmo cíclico, sintoma de certeza, regularidade, relações de vizinhança, confiança no conhecido que garante a sensação de calma e paz, tal como se vê, por exemplo, nalgumas prosas de Herculano (O pároco de aldeia, 1851), Júlio Dinis (As pupilas do senhor reitor, 1866 em folhetim, 1867 em livro), Paganino (Os contos do tio Joaquim, 1861) etc.. A contrastar com esta abordagem, foi também desenvolvido um outro tipo da vila ou cidade provinciana, que se poderia denominar flaubertiana, por influência de Madame Bovary (cf. Hrbata, 2005, p. 369). Esta vila/cidade define-se pelo marasmo, inatividade e inércia que nega movimento e mudança (recordem-se, a título ilustrativo, a Leiria de O crime do padre Amaro de Eça de Queirós ou a vila anónima de Húmus de Raul Brandão). 40 No que diz respeito ao espaço de periferia verifica-se, conforme Hrbata, e inclinação à representação expressionista da cidade, à poética do criminoso, à cidade dos náufragos (cf. Hrbata, 2005) 58 125).41 Mas convém, antes de mais, definir os termos de era moderna, modernidade e modernismo. Conforme Petr Dytrt, “o moderno” é produto da era moderna, ou seja, da fase da história em que se transforma a compreensão do sentido do agir humano, o qual já não é definido de um modo religioso, como um percurso para atingir a vida eterna post mortem, mas como um cumprimento do ideal social de progresso (2013, p. 10). Ainda no início do século XX, “ser moderno” era um atributo da élite inteletual. A modernidade, portanto, era compreendida como uma ideia, cultura, estado de espírito, conjunto de valores e desejos, bem como um sistema de pensamento desenvolvido pelo iluminismo e divulgado nos fins do século XVIII (cf. Dytrt, 2013, p. 10).42 Esta noção cronológica43 da modernidade podia ser ainda dividida em “cascatas de modernidade” conforme o modelo de Gumbrecht (1998 apud Buescu, 2008, p. 468): a primeira idade moderna (modernidade renascentista) correspondente às transformações em torno do século XV, a segunda etapa da modernidade (modernidade epistemológica) da época com início entre 1780 e 1830, suportada pela tese hegeliana do fim do período de arte, e a terceira era (Alta Modernidade) das primeiras décadas do século XX, caraterizada esteticamente pela experimentação. A estas três etapas Gumbrecht ainda adiciona a pós-modernidade como modernidade tardia. O termo de modernismo, por sua vez, foi estabelecido na terminologia da história e teoria literária por volta dos anos 50 do século XX e corresponde a um movimento literário a artístico, cuja fase dominante se situa entre os anos 10 e 40 do século XX (Silvestre, 2008, p. 473). Este modernismo, como sustenta Sharon Lubkemann Allen, emerge precisamente das crises concentradas nos centros urbanos e na consciência urbana: “[m]odernist writers converge in St. Petersburg and Rio de Janeiro, Moscow and São Paulo, as in Paris, London, Lisbon, Prague, New York and other cities whose contours filter into their fictions” (Allen, 2013, p. 11). Também Richard Lehan afirma que o tópico da cidade, revestido de novas técnicas literárias, corresponde a um aspeto definidor para a poética do modernismo (Lehan, 1998, p. 4): Modernism is the second stage of romanticism, the older view of the city transformed by new literary techniques. As the modernists move toward new forms of 41 É óbvio que, para além de histórias situadas em Paris, Londres, Manchester, Berlim ou outras cidades reais, aparecem também cidades inventadas (Héliopolis de Jünger, Orsenna de Gracq etc.) 42 De acordo com Habermas, o termo modernidade foi pela primeira vez usado no século V para distinguir entre o período oficial cristão e o passado romano pagão (Habermas apud Powell, 2012, p. 2). Desde aquela altura, como diz Powell, o termo foi usado muitas vezes para marcar a mudança da velha para a nova era (Powell, 2012, p. 2). 43 Há outras possibilidade de como caraterizar a modernidade. Em vez das fases cronológicas, Matei Calinescu apresenta a divisão em faces da modernidade que seriam modernismo, vanguarda, decadência, kitch e pós-modernismo (Calinescu, 1987). 59 subjectivity, the meaning of the city becomes more dense, until we see the city through layers of historical meaning, or until it blurs into the opaque vision (Lehan, 1998, p. 5). É importante frisar, junto com Lehan, que o sentido da cidade modifica-se em respeito aos períodos históricos precedentes porque, devido a uma maior subjetividade na poética modernista, a cidade adensa-se, concentrando em si forças que até essa altura se tinham mantido exteriores ao sujeito que a vê/sente e nela se projeta. Muitos autores modernistas, com efeito, colocam a cidade no centro das suas narrativas, poemas ou peças dramáticas. É o caso dos nomes famosos como Eliot, Apollinaire, Joyce, Dos Passos, Woolf e outros que não se limitaram, obviamente, a “refletir” a cidade apreendida na sua suposta objetividade, como os realistas e naturalistas se iludiram de o fazer, mas recriaram-na por meio de novos recursos estéticos, tais como a focalização subjetiva, monólogo interior, fragmentarismo, registo polifónico e intertextual, desconstrução das certezas ontológicas etc.. No seu estudo sobre os Textos da cidade (citytexts) de S. Petersburgo e Rio de Janeiro, Allen menciona algumas obras estritamente ligadas com o espaço urbano, declarando que “[t]heir doubly inward turn, into the mind and the margins of the text, appears motivated by the increasing alienation and selfconsciousness of modern urban life” (Allen, 2013, p. 11). Várias dimensões do modernismo (histórica, geográfica, sociológica e psicológica) podem ser, portanto, mapeadas em relação à cidade (cf. Allen, 2013, p. 11). Apesar de concentrada no tópico da cidade na literatura contemporânea, Joanna Derdowska também assinala que a análise da cidade deve sempre levar em consideração o estudo das teorias urbanas do modernismo, devido a uma certa continuidade da tradição cultural, que tem repercussões na contemporaneidade. Derdowska aponta, neste contexto, para o conceito da “modernidade líquida” de Bauman ou do “projeto inacabado” da modernidade de Habermas, como dois exemplos do modo como a modernidade continua a influenciar as teorias atuais (cf. 2011, p.12). Na realidade, conforme a mesma pesquisadora, muitas teorias contemporâneas partem das opiniões de Georg Simmel (1903) e Walter Benjamin (1979), da reflexão sobre a figura peripatética (flâneur) ou sobre o desejo de estabelecer ordem no espaço urbano (cf. 2011, p.12). Apesar de a cidade ter sido obviamente muito importante já na grande prosa oitocentista, realista ou naturalista, podemos concodar com Allen de que a prosa modernista “turns into more degenerate spaces in the literal and social urban landscape than realist ou naturalist fiction, and into darker recesses of individual and cultural consiousness than romantic realism” (Allen, 2013, p. 12). Neste e noutros argumentos, Allen leva em consideração uma já extensa literatura secundária dedicada ao mesmo assunto, dos quais podemos mencionar os impulsos talvez mais 60 relevantes. Ross Chambers opina que numa certa literatura urbana, cujo fundador talvez tenha sido Baudelaire de Tableaux parisiens e Spleen de Paris, promove a cidade que se “pensa duplamente” como “lieu de désordre, bruit, fragmentation, entropie” e, simultaneamente, “lieu de rencontre, séduction” (Chambers, 1984 apud Allen, 2013, p. 13). Jacques Body, por sua vez, inspira-se em Simmel, afirmando que a cidade da ficção modernista é um espaço de descontinuidade e alienação que estimula creatividade (Body, 1984 apud Allen, 2013, p. 13). Ou ainda Bradbury e McFarlane notam que o modernismo corresponde à arte de destruição da civilização, de um mundo mudado e interpretado por Marx, Freud e Darwin, de capitalismo e constante aceleração industrial, de exposição existencial ao nonsense e absurdo (Bradbury, McFarlane, 1984 apud Allen, 2013). A seguir, Allen chama atenção para o facto de o grande perigo na abordagem do tema urbano poder consistir na tendência de “mapear o romance” (mapping the novel) no sentido de reduzir a narrativa a uma reflexão da cidade, tornando-se a interpretação do texto literário uma forma de turismo ou tautologia (2013, p. 24). O objetivo desta pesquisadora consiste, portanto, numa reflexão comparativa e de re-mapeamento das narrativas modernistas com base geo-histórica, considerando a cidade não como esta é cognitivamente mapeada, mas como enquadrada num modo de cognição revelado pelo mapeamento (2013, p. 24). Por outras palavras, o objetivismo transita para o subjetivismo, o fundamento ontológico converte-se em princípio gnoseológico. A metodologia que Allen utiliza e que se torna, até certo ponto, inspiradora também para o presente trabalho, corresponde à pesquisa de textos literários que formam um mito urbano, tendo sempre em conta a cidade “material” como um texto cultural dinâmico. Os incentivos teóricos são, neste caso, prestados sobretudo pela escola de Tartu, concretamente por Lotman e Toporov, através do seu conceito de “semiosphere” como um complexo de relações de signos no tempo e no espaço, uma espécie de dinâmica consciência cultural, ou seja, como um espaço urbano em que a consciência é plural e produtiva (cf. Allen, 2013, pp. 39-44). Dentro deste conceito, Allen também recorda a oposição binária, cunhada por Toporov e Lotman, entre a cidade (e “citytext”) “concêntrica” e “excêntrica”. A cidade concêntrica (no seu caso, Moscovo) é, como Allen informa, profudamente enraizada em tradição, espiritual na essência, concreta nas suas formas arquitetónicas monumentais, com um discurso polifónico determinado pelos estratos temporal, social e histórico e pela absorção de vozes externas (2013, p. 45). A cidade excêntrica, por outro lado, representada por Petersburgo, é desenraizada, abstrata, sem tradição, monologicamente ordenada na superfície, cuja uniformidade eclética, no entanto, reflete a natureza sem leis (cf. 2013, p. 45). O tipo concêntrico da cidade é, portanto, assinalado pela figura de verticalidade: os vários estratos temporais são acumulados num espaço que se ergue às alturas, tanto 61 topografica, como simbolicamente.44 Como Allen demonstra no mapa de Paris, é possível observar, sobretudo nos mapas antigos, que o centro da cidade concêntrica se carateriza por uma grande concentração de edificação, simbolizada pelas dominantes verticais (castelos, palácios, igrejas, catedrais) que podem ser lidas à base de autoridade central e diferenciação social (2013, p. 53). De mesma maneira, as narrativas urbanas “concêntricas” refletem a hierarquia social, proposta pela figura de verticalidade, por meio de lugares socialmente marcados, como são casas patrícias, salões, ruas etc.. A excentricidade, por outro lado, desafia a autoridade central pela inclusão de aspetos que derrubam estas fachadas estáticas e que podem consistir em certo uso de linguagem (paródia, calão etc.), consciência alienada ou “detrito” cultural (inter- ou metatextualidade). Por conseguinte, como Allen ainda alega, a metrópole concêntrica é também representada como necrópole, tanto tomba, como útero, cujo passado, mesmo que decadente ou decaído, é sempre fértil (2013, p. 56). Por contraste, as cidades excêntricas apresentam-se como não-naturais, construções fatais, muitas vezes não enraizadas no seu território e lançadas contra a paisagem natural que resiste à cultivação (cf. Allen, 2013, p. 56).45 Entre outros pesquisadores, mencionados por Allen, há aqueles que, como Trotter in Paranoid Modernism, viram a modernidade, e por extensão, a consciência do eu refletida na cidade, sob o ângulo do patológico ou paranóico, estados gerados por uma angústia e crise. Entre eles, Burton Pike oferece a distinção entre a cidade estática (“static city”) e a cidade em movimento (“city in flux”), baseada no conceito freudiano de cidade de memória, estruturada, à maneira da consciência, como um lugar denso e fantasmático, em que a neurose urbana é delienada em termos de um presente assombrado pelo passado (cf. Allen, 2013, p. 77). Como 44 Também Hodrová indica que há dois tipos fundamentais da cidade: “a cidade-personalidade”, com o centro assinalado e com as dominantes, e a cidade sem dominantes que tem em geral o traçado em xadrez (Hodrová, 2006, p. 17). 45 Conforme a leitura de Allen, as cidades excêntricas correspondem por exemplo ao Rio de Janeiro e Petersburgo. No que diz respeito à primeira cidade, a autora apoia-se na opinião de João de Barros (1881-1960), segundo o qual Rio de Janeiro é “city dynamic in everything in comparison to which, Lisbon, Rome, even Paris are like the old women from the time of the pavana who would stand on tiptoe and sway instead of walking” (2013, p. 57). Quanto à cidade de Petersburgo, Allen inspira-se no imaginário de Gogol, segundo o qual esta cidade é como um dandy, “imposing but also poseur, looking in the mirror that are Petersburgʼs reflective surfaces (its canals, to be sure, but also its gilded buildings, glittering shops, crowded streets, etc., all imitative, in grand style and grotesque proportion)” (2013, p. 57). Em Dostoievski, esta cidade “will turn the reflective dreamscape into potent nightmare”, Bely transforma esta fantasmagoria em realidade e Brodski afirma que durante as suas brancas noites é difícil adormecer porque há muita luz a porque quaquer sonho será inferior à realidade (cf. Allen, 2013, p. 57). Nesta ordem de ideias, a cidade de Lisboa é evidentemente concêntrica, radicada em tradição e profundamente polifónica. Como um exemplo da cidade excêntrica poderia ser talvez invocado, no solo português, o caso de Aveiro, mesmo que esta aproximação seja logicamente impertinente tendo em conta a extensão muito reduzida da cidade portuguesa em comparação com a metrópole russa. Apesar disso, trata-se, nos dois casos, de uma cidade em que a fronteira entre a terra e as águas é permutável, imitando a Veneza italiana, junto com os seus canais, pontes, gôndolas e palácios. 62 também Allen comenta no seu trabalho, Pike baseia-se na ideia da cidade estática como estratificada ao modo de Roma ou Paris e construída ou suprevisionada pelo cemitério (cf. 2013, p. 77). Com base nesta observação é possível interpretar a cidade com uma chave simbólica (p. ex. o subterrâneo é interpretado como um espaço do inconsciente, do id). Mas como Allen alega, o subterrâneo passado re-ordenado pelo presente só é possível na cidade concêntrica, em que a consciência se liga às raízes da psique humana e à civilização (2013, p. 77). Por outro lado, a cidade em movimento é constantemente transfigurada, em transição. À parte desta distinção entre a cidade estática e a cidade em movimento, a literatura da modernidade (e a modernista por excelência) está intrinsecamente relacionada com a memória e loucura que, por sua vez, prosperam no espaço alienado da cidade: “In modernist literature, memory and madness thrive in paradoxically communal and alienating spaces of city and citytext” (Allen, p. 80). Evidentemente, a loucura e criação de duplos pertence entre os tópicos explorados pela ficção “gótica”, em que os protagonistas são perseguidos pelo duplos fantasmáticos nas ruas sombrias da cidade, mas o avanço modernista consiste na incorporação destes aspetos dentro da consciência do “eu”, no discurso auto-reflexivo.46 Neste sentido, as fronteiras entre a realidade e a imaginação dissolvem-se, o discurso interiormente esquizofrénico acaba por recriar constantemente o espaço circundante, também tornado esquizofrénico. Assim, tendo em conta o acima exposto, bem como outras fontes de inspiração, urge apresentar certas imagens de força da cidade moderna, essas que fornecem alguns instrumentos interpretativos para a abordagem da prosa portuguesa da época que neste trabalho me interessa. 1.4.1. Espaço mecanizado e alienado Georg Simmel, um dos pensadores que refletiram sobre os estatuto da cidade moderna e um dos sociólogos mais influentes do início do século XX, analisou a cidade e a consciência moderna como uma complexa transformação cultural do mundo que tende a uma crescente heterogeneidade. Entre as reflexões mais pertinentes relacionadas com o funcionamento da sociedade moderna pertencem as ideias sobre o trabalho moderno e sobre a economia monetária. O dinheiro, de acordo com Simmel, estabelece as relações objetivadas, distanciadas. 46 Embora oriundo de obras setecentistas inglesas (de H. Walpole, A. Radcliffe etc.), o gótico, no sentido mais lato, corresponde, conforme Fred Botting (2002) e outros especialistas da área (Lloyd-Smith, 2004, Hughes et al., 2016 etc.), a um fenómeno transcultural e transhistórico. Para além de se tratar de uma estética de horror/terror, o gótico apresenta ainda um forte envolvimento com o passado ou, nas palavras de Allan LloydSmith, com o retorno do passado, do reprimido, do segredo enterrado que subverte e corrói o presente, daquilo que ninguém ousa falar (Lloyd-Smith, 2004, p. 1). 63 Isto reflete-se também na forma de vida da sociedade moderna, a qual, porém, não podia funcionar de outra maneira, uma vez que as grandes cidades exigem uma maior acumulação de pessoas num sítio. Sem esse distanciamento psíquico, a vida na cidade seria insuportável. O facto de o homem ser forçado a aproximar-se tanto de outros corpos podia causar num ser mais sensível e nervoso uma angústia cruel, se essa objetivação das relações não criasse limites interiores e uma reserva (cf. Simmel, 2011, p. 542). Por isso, o dinheiro introduz entre as pessoas uma distância invisível e funcional que serve de proteção íntima e recompensa por essa demasiada proximidade. Simmel percebe bem que o caráter do trabalho moderno mudou, que se tornou automatizado, executado por máquinas complexas que exigem um ritmo repetitivo, criando também cada vez maior distância entre o homem e o instrumento de trabalho (cf. Simmel, 2011). Todas as relações começam a ser definidas de modo quantitativo, e não qualitativo. Além do trabalho cada vez mais regularizado e mecanizado, o homem na cidade moderna é constantemente exposto a uma grande variedade de estímulos e incentivos que podem alterar a sua sensibilidade. Neste contexto Ricardo Cordeiro Gomes também comenta: Simmel vê nas formas urbanas da era moderna o ambiente que sobredetermina o indivíduo com uma variedade infinita de estímulos. O indivíduo e o grupo realizam-se em um ambiente social artificialmente produzido por eles mesmos e onde são dominados pelo aspecto tecnológico da existência. (Gomes, 2008, p. 74) Por extensão, “o bombardeio dos sentidos por uma pluralidade de impressões produz um acentuado nervosismo”, provocando este estado de “mudanças nas várias formas de defesa interior e distância social” e incitando a uma “completa indiferença” (Gomes, 2008, p. 75). Isto, junto com o trabalho cada vez mais mecanizado, gera uma aguda sensação de alienação (cf. Simmel, 2011, p. 566). Desenvolvendo as ideias de Simmel, podemos constatar que a alienação é estimulada pelo fenómeno mais caraterístico da cidade moderna, que são as massas. A cidade moderna, com efeito, é também na literatura representada pela multidão, como diz Richard Lehan, para quem “[t]he city often presents itself metonymically, embodied by the crowd. We look through the crowd – whether Eliotʼs and Baudelaireʼs walking dead or the violent mob in Dickens, Zola, Dreiser, West and Ellison – to the city” (Lehan, 1998, p. 8). Não se trata, porém, de uma multidão qualquer porque a multidão urbana é específica, é um conjunto de elementos individualizados que não têm nada em comum com os outros. Em vez da comunidade que ainda poderia funcionar, de alguma forma, nas aldeias ou pequenas vilas, na grande cidade desenvolve-se um processo denominado por Engels “atomização da sociedade” (cf. Gomes, 64 2008, p. 75). Deve ser precisamente esta atomização que imprime ao espaço urbano o caráter paradoxal da solidão dentro da multidão. A alienação/solidão do ser humano é agravada por mais um grave problema que deflui das novas exigências impostas aos trabalhadores na urbe moderna e que consiste na redução do homem à máquina. Por trás deste fenómeno alarmante há toda uma série de acontecimentos e “inovações” fabris, sobretudo uma nova conceção científica do trabalho industrial, cunhada por Ford e Taylor, que deveria melhorar o clima social e moral pela imposição da prosperidade, e a consequente crise económica que abalou os EUA e a Europa entre 1929-1934. O filme Modern Times (1936) de Charlie Chaplin é disso uma prova das mais conhecidas. Podemos assim concordar com Ricardo Cordeiro Gomes de que a metrópole se constitui como “lugar de coletividades indefinidas, que pode gerar total indiferença de cada indivíduo para com o outro, na vida cotidiana, como traço de autopreservação.” (Gomes, 2008, p. 74). Em contraste com o campo (ou vila), onde predomina um estilo de vida assente num ritmo e monotonia natural, a cidade oferece uma grande escala de impulsos, que promove uma rápida absorção de novas ideias e estímulos inteletuais, mas pode, por outro lado, desembocar numa diminuição de sensibilidade, ou numa postura cínica e blasé (cf. Derdowska, p. 58). Temos, portanto, a imagem da cidade moderna como um reservoir de sensações, muitas vezes contraditórias, como são um nervosismo/inquietação/hipersensitividade por um lado, e uma indiferença/apatia por outro. As duas vertentes afetivas, no entanto, conduzem ao mesmo sentimento de alienação. Convém recordar que este tipo de sensitividade urbana começa a definir-se com maior intensidade nos fins do século XIX, na época em que a literatura dá voz a várias fobias, manias e obsessões que desregulam a vida estável de uma burguesia autoconfiante, retratada pelos realistas influenciados pelo positivismo. A imagem literária desta face sombria da cidade passou a ser considerada, pelo menos na teoria literária anglófona, herdeira dos romances góticos, pela evidente afinidade no tratamento de horror/terror. Neste sentido, podemos até falar de um gótico urbano (urban gothic), em que a posição central da cidade pode adquirir o protagonismo nas histórias narradas. Ou seja, na esteira de Emily Adler, “the city becomes a key locus for the uncanny” (Adler, 2016, p. 704). Como em qualquer ficção gótica, o conceito do passado, junto com os vários segredos, mistérios e traumas, desempenham o papel principal: “Over a cityʼs history, the layers of its building and rebuilding produce a sense of buried past that shapes charactersʼ experience of the city and re-emerges as repressed secrets, desires, or histories marginalized by a culture formed by capitalist dynamics” (Adler, 2016, pp. 704-705). A face amável, calorosa e hospitalar da cidade desdobra-se num território sombrio, ameaçador, labiríntico, ou até claustrofóbico, povoado de duplos, espetros ou monstros. Ao 65 mesmo tempo, a cidade exibe vários traços do passado que, a cada passo, alertam para a sua descodificação. Neste âmbito do gótico urbano, próximo do conceito da psicogeografia, podem ser inseridas, ainda de acordo com E. Adler, as narrativas famosas como The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (1886) de R. L. Stevenson, ao invocar Londres como o espaço em que o crime floresce e em que a cidade próspera é duplicada pelo seu reverso sombrio, Dracula (1897) de B. Stoker, em que as conquistas da modernidade urbana (o conceito da New Woman, novas tecnologias e capacidade de viajar/comunicar) possibilitam a invasão do Conde, ou The Great God Pan (1894) de A. Machen, em que a cidade de Londres se torna um palco de predação da demoníaca Helen Vaughan (cf. Adler, 2016, pp. 704-705). Todas estas atitudes e imagens são de facto representações da alienação urbana. Ao lado da narrativa de Stevenson que demonstra um dos aspetos mais frequentes da sensibilidade urbana moderna e que se relaciona com a cisão de um eu considerado até agora estável, releve-se também a importância da narrativa de Stoker que, por meio de uma figura do estrangeiro supostamente predatório, aponta para os medos irracionais com os quais a urbe moderna terá que viver. Com efeito, a ideia de que os estrangeiros abalam a ordem de uma sociedade próspera, trazendo só caos e violência, não diz respeito somente aos finais do século XIX e à sociedade inglesa, mas anticipa lucidamente todos os fenómenos de migração, cujo palco será precisamente a Europa dos séculos XX e XXI. Por tudo isso, a figura do estrangeiro (ou foragido) num ambiente urbano, dominado pela crescente alienação, vem atraindo cada vez maior atenção, suscitando interesse não só na área de literatura, mas também, como é óbvio, na sociologia e filosofia. 1.4.2. Hibridismos: diluição de contornos precisos Conforme lembrado por La Salette Loureiro, Rousseau sonhava com uma cidade “mélange de nature sauvage et dʼindustrie humaine” (Loureiro, 1996, p. 35). Embora as cidades modernas cresçam desmesuradamente, tornando-se cada vez mais afastadas da natureza, é possível registar nelas um fenómeno talvez paradoxal. Recorde-se que os lugares em que as cidades foram fundadas, tiveram em geral alguma caraterística especial, ou mesmo “sagrada” e “ritualística”. Este lugar é a seguir “civilizado” pela construção da cidade (cf. Hodrová, 2006, p. 37). Em consequência, porém, verifica-se também um processo que poderia ser denominado “regressivo”. Apesar de os novos cultos serem implantados no lugar em que a cidade se estabeleceu, os cultos primitivos, junto com a “selva” original podem de certa forma regressar. 66 A “panurbanização”, como diz Hodrová, é confrontada com uma força inesperada que lá vai minando secretamente (Hodrová, 2006, p. 37). Pode tratar-se de alguns géneros animais ou vegetais julgados extintos na cidade, ou então de uma “selva” abstrata que vai engolindo partes de uma cidade.47 Este tópico é, com efeito, muito aproveitado em certa prosa de traços fantásticos ou de horror, em que é apresentado um jardim, tornado selva predatória que pode alastrar-se até usurpar o espaço à casa, como se vê, por exemplo, no conto “Szalona zagroda” (A quinta desvairada) da coletânea homónima do escritor polaco Stefan Grabiński, de 1908. Noutras ocorrências, mais frequentes, o jardim selvático entra num jogo de forças antagónicas do consciente (racionalidade) e inconsciente (escuridão de instintos irracionais), como se verifica, por exemplo, no conto “Le jardin malade” (Sortilèges, 1941) do escritor belga Michel de Ghelderode. É, porém, necessário atribuir a cada texto literário o devido sistema axiológico: enquanto no conto polaco, os habitantes ficam dominados pelas forças do mal, o conto belga demonstra simpatia por aquilo que é marginalizado e ostracizado por ser diferente, e considerado como monstruoso pela sociedade ”normalizada”, pacata e burguesa. Nalguns momentos, como se verifica na literatura pós-colonial, esta oposição pode ter mesmo consequências muito mais graves do ponto de vista ético, político e social. É o que acontece, por exemplo, no romance A árvore das palavras (1997) de Teolinda Gersão, em que o antagonismo das casas (branca e preta) se reflete também no confronto da casa (imagem da civilização) e jardim (imagem da natureza africana), visto que a casa corresponde ao espaço rígido, dominado pelas regras, e o jardim significa a liberdade e a espontaneidade. O medo da natureza, a qual poderia reclamar o seu poder frente à civilização, é também neste romance expresso na figura da mulher portuguesa que não consegue, nem tenta adaptar-se ao espaço africano. Deste ponto de vista, o “regresso” da natureza à cidade como uma tentativa de simbiose ou de aproximação por meio de metáforas e imaginário recuperador de valores originais do meio ambiente, adquire traços claramente benéficos. A diluição de contornos do espaço urbano que leva à sua “hibridização” pode ser refletida também a nível mais abstrato. Para este objetivo convém recuperar o famoso termo de liquidez, cunhado por Zygmunt Bauman (Tempos líquidos, Amor líquido, Medo líquido, Mal líquido), 47 Trata-se de um tópico frequente na literatura checa contemporânea (p. ex. O romance Prázdné ulice [Ruas vazias], 2004, de Michal Ajvaz) que até penetrou na ficção para jovens (p. ex. Prašina [2018] de Vojtěch Matocha, em que a selva denominada de Prašina, primeiro restrita a uma só parte de Praga, se alastra para atacar toda a cidade). Também nas literaturas africanas de língua portuguesa podemos encontrar este tópico com alguma frequência, por exemplo, na novela O desejo de Kianda (1995) de Pepetela, a deidade lendária reclama o seu espaço original, exprimindo este seu desejo pelo sucessivo derrube de casas construídas no lugar do antigo lago, no romance Teoria geral do esquecimento (2012) de José Eduardo Agualusa, a selva vegetal-animal (junto com os novos habitantes vindos do campo) penetra dentro de uma casa luandense etc. 67 que se relaciona mais propriamente com a era contemporânea. Além disso, a conjunção de “modernidade líquida” adere também, verbal e conceptualmente, à época que me interessa. Aos aspetos da época líquida pertencem, conforme resumido por Petr Dytrt, os conceitos de progresso, individualização, vazio, identidade, a vitória do caos e globalização (Dytrt, 2013, pp. 19-26). Embora estes traços sejam mais convenientes para a pós-modenidade, as suas raízes devem ser procuradas na modernidade, isto é, na época que termina com a Segunda Guerra Mundial. Apesar disso, existe também uma outra forma de “liquidez” que se relaciona, segundo Hodrová, com a essência do urbano, com as suas caraterísticas fundamentais. Se um texto literário é, por natureza, líquido (mutável, permeável), por estar ligado ao seu contexto extraliterário, igualmente mutável, então o Texto da cidade apresenta uma liquidez ainda maior (Hodová, 2006, p. 22). Ao “ler” uma determinada cidade, não só as “leituras” de todas as outras cidades são atualizadas, mas também é necessário levar em consideração a diferenciação temporal (horas, dias, estações de ano etc.), bem como as imagens do passado, ativadas pelas histórias pessoais, recordações e projeções oníricas apreendidas por meio de várias sensações que acentuam a liquidez, ou seja, a ausência de uma forma firme (cf. Hodrová, 2006, p. 22). Acrescente-se que, para além disso, a liquidez é ainda correlacionada com a vida da população urbana, com o fluxo incessante de pedestres e meios de transporte (cf. Hodrová, 2006, p. 22). Curiosamente, não faltam textos literários em que as ruas costumam ser comparadas a uma onda. Um exemplo desta imagem observa-se, por exemplo, no conto “Homem” (Contos exemplares, 1962) de Sophia de Mello Breyner Andresen, em que a cidade representa um espaço disfórico, escuro e fechado, debaixo de um céu deserto e vazio: “Então, como o nadador que é apanhado numa corrente desiste de lutar e se deixa ir com a água, assim eu deixei de me opor ao movimento da cidade e me deixei levar pela onda de gente para longe do homem.” (Andresen, 1997, p. 144). Finalmente, de uma forma mais ampla, podemos perceber o caráter líquido da urbe na sua capacidade de se metamorfosear (transfigurar) constantemente, por si própria e através dos que a percecionam. A acentuação do espaço vivido sintoniza com as conceções de Ricoeur, ao mesmo tempo que a corporeidade como um meio que possibilita o nosso contacto com o espaço condiz com o ideário de Merleau-Ponty, para o qual a espacialidade do corpo é marcada pela realidade sensorial e também pela presença transcendental (cf. Čapek, 2012). Ou seja, a representação do espaço urbano depende tanto do poder da imaginação, que é por essência fluida e volátil, como da “materialidade” do corpo. A imaginação e a corporeidade são filtros na perceção do espaço. 68 1.4.3. Formas: organismo, diagrama, labirinto, palimpsesto A cidade “vivida” tem muito em comum com o corpo, afirma também Daniela Hodrová, com o seu lado mental e afetivo, sua consciência e seu inconsciente, interioridade (2006, p. 17). A este respeito La Salette Loureiro diz-nos que a tradição de comparar a cidade com um corpo data do século XVII quando, para além de metáforas relacionadas com a natureza (mar, ondas, selva), as metáforas orgânicas (membros, circulação, artérias, sangue, coração, ventre, pulmões etc.) começaram a servir para descrever/ler a cidade moderna (1996, p. 36). Recordemos ainda, junto com La Salette Loureiro, que a cidade pode ser imaginada não só como um corpo humano, mas também como um “corpo cósmico” ou “métacosme” (1996, p. 36). Esta ideia foi verbalizada por Claude-Gilbert Dubois, o qual ainda invoca sentimentos de amor, de um prazer quase erótico-orgástico, que pode ser sentido em relação à cidade (“Le roman dʼamour à la ville superpose lʼorgasme amoureux et lʼextase mystique”, Dubois apud Loureiro, 1996, p. 37). Com efeito, ao estudar as imagens urbanas em Sá-Carneiro, La Salette Loureiro reparou na “relação sexualizada” que o narrador de um conto (“Ressurreição”) mantinha com a cidade de Paris, como se esta pudesse ser possuída à maneira de uma mulher: e ele lograra, em vitória lograra, possuir toda essa capital de assombro – possuir o seu movimento, o seu estrépito, o seu brilho ... oscilá-la no seu sangue ... sê-la, sê-la realmente um instante... esvaí-la num espasmo de altura – hialino, ogival, emaranhado, subtil de multicolor... (Sá-Carneiro apud Loureiro, 1996, p. 290) Por tradição muito antiga, a cidade costuma ser apreendida como mulher, seja em termos de um estatuto etário (menina, moça, velha), de condição (rainha, noiva, amante, meretriz, madrasta) ou por meio de certos atributos (santa, dessacralizada, pura, virgem, morena etc.). Não admira, portanto, que também as cidades invisíveis de Calvino tenham nomes femininos ou que haja tendência de falar sobre a cidade em código afetivo, como se de uma mulher se tratasse.48 Uma outra concepção da “cidade-organismo” relaciona-se com a imagem da urbe 48 De uma forma mais abrangente, não limitada necessariamente à cidade (embora esteja relacionado), Bertrand Westphal refere-se aos paralelos entre o espaço e o corpo feminino. Neste sentido, podem existir interações entre o corpo feminino e o mapa (p.ex. pinturas de Kathy Prendergast, designadas como Body Map Series, de 1983, estudadas por C. Nash em Writing Women and Space: Colonial and Poslcolonial Geographies, organizadas por A. Blunt e G. Rose) ou entre o corpo feminino e a paisagem (que tem uma longa tradição iconográfica pelo menos desde O cântico dos cânticos; recorde-se por exemplo a novela O físico prodigioso de Jorge de Sena, em que a paisagem é descrita em termos de corpo feminino e este, inversamente, como a paisagem). Este processo de erotização do espaço visto como um corpo feminino pertence ao que Steven Marcus, referido por Westphal, chama de pornotopia (“For, in all these fantasies, the body to be conquered or penetrated is always that of the woman”, Westphal, 2011, p. 68). É evidente que este imaginário tem feito parte também do processo de conquista do espaço alheio, em que um lugar acaba por ser (re)nomeado com um nome feminino segundo o homem 69 como mandala. É evidente que esta concepção valoriza tanto o potencial “psíquico”/ “interiorizado” da cidade, como a sua estrutura em forma de diagrama. É exatamente esta forma de mandala que se observa, por exemplo, na urbe atravessada por um peregrino em Labirinto do Mundo e Paraíso do Coração (1631) de Comenius. Não é necessário, contudo, restringir-se à literatura de séculos passados. A ideia da cidade como uma mandala, assente numa estrutura de diagrama em sobreposição sucessiva de níveis concêntricos, pode funcionar como um ponto de partida para as leituras modernas da cidade. Convém referir, por exemplo, a divisão de Daniela Hodrová (2006) em modelos de jin de jang, em que o tipo jang é geométrico, linear e regular (p. ex. Petersburgo), enquanto o tipo jin , de desenho circular ou ondeante, se assemelha a um tecido, rizoma (p. ex. a Praga antiga ou a Lisboa antiga). O crescimento da cidade pode seguir o traçado de xadrez, para o tipo jang, ou de círculos concêntricos, para o tipo jin. Além disso, a cidade pode ser também vista como um “átomo” com “núcleo em torno do qual gravitam os elétrons-subúrbios, ou cidades-satélites, combinando conotações de espaço e energia, para representar os contornos da cidade” (Gomes, 2008, p. 83). Estas estruturas podem ser também correlacionadas com a forma mais arquetípica da cidade, que é o labirinto. A relação de labirinto com a cidade é, com efeito, muito antiga. Recorde-se que já na era romana (os Romanos conheceram a forma do labirinto graças à moeda de Creta), a imagem de labirinto fazia parte de vários elementos arquitetónicos e decorativos (p. ex. o mosaico em Conímbriga, a inscrição Labyrinthus. Hic habitat Minotaurus no peristilo da Casa de Lucretius em Pompei etc.). Curiosamente, como recorda Penelope Reed Doob (2019), as formas labirínticas medievais (de pedras etc.) recebiam denominações “urbanas” como “Trojaburg”, “Jerusalem”, “Babel” ou “Jericho”. Tróia era considerada, na Idade Média, o arquétipo da cidade, o labirinto relacionado com Tróia (através de Lusus Troiae) talvez tenha denotado outras cidades também. O paralelo entre o labirinto e Jericho é ainda mais próximo: os hebreus sitiaram a cidade por sete dias (o número de círculos em muitos labirintos) e Rahab, como Ariadne, ajudou os espiões hebraicos a fugir da cidade com ajuda de um fio escarlate. Babel, relacionada com o labirinto por Petrarca (Liber sine nomine), é continuamente associada à confusão. O traçado labiríntico é, como lembra Daniela Hodrová, excecional nas cidades realmente existentes. Como a pesquisadora checa aduz, a cidade pode só apresentar alguns aspetos (conquistador), p. ex. o estado brasileiro de Rondônia (originariamente Guaporé) foi renomeado segundo Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, ou a antiga colónia de Rhodesia em África (hoje Zimbabwe) foi nomeada segundo Cecil Rhodes. É evidente que esta prática ilustra a violação do espaço pelo colonizador e desrespeito pela cultura local, reflete também a própria violência sexual praticada no espaço conquistado/colonizado. 70 labirínticos, p. ex. na fortificação ou num emaranhamento de ruas estreitas e ziguezagueantes (2006, p. 18). A imagem do labirinto pode ser, contudo, veiculada por uma perspetiva exógena (p. ex. no caso de um estrangeiro não muito familiarizado com o mapa e/ou perdido na cidade) ou por uma perspetiva transfiguradora (p. ex. num sonho, febre, loucura). Para Ricardo Cordeiro Gomes, por outro lado, a cidade moderna (como um arquétipo) encarna um mito de labirinto, não por causa do seu aspeto, como afirma Hodrová, mas pelo seu estatuto ontológico e existencial. Na era moderna, pois, a cidade expande de tal forma que engole os arredores, eliminando-se a fronteira entre o cá e o lá, entre a cidade e o campo, entre a cidade e uma outra cidade, numa imbricação e caos constante: O homem citadino é presa dessa cidade, está enredado em suas malhas. Não consegue sair desse espaço denso, uma vez que a civilização urbana espraiou-se para além dos centros metropolitanos e continua a preencher grandes áreas que gravitam em torno desses centros. A partir da Revolução Industrial, o fenômeno urbano parece ter ultrapassado as fronteiras das “cidades” e ter-se difundido pelo espaço físico. O signo do progresso transforma a urbanização em movimento centrífugo, gerando a metrópole que se dispersa. Assim, o citadino – homem à deriva – está na cidade como em labirinto, não pode sair dela sem cair em outra, idêntica ainda que seja distinta (para repetir a imagem de Octavio Paz). (Gomes, 2008, p. 68) O labirinto urbano, portanto, é um produto do próprio homem que nele se perde, tornandose seu prisioneiro (cf. Gomes, 2008, p. 68). Este estado angustiante tem obviamente influência no comportamento humano, no seu “sentir”. Como já foi referido acima, a cidade moderna está particularmente ligada a várias manifestações de perturbação mental. Por isso, podemos concordar com Ricardo Cordeiro Gomes quando ele afirma que “[o] sujeito se fragmenta no choque das vivências na cidade transformada pelo progresso” (2008, p. 73), perdendo a sua identidade: “A metrópole não é mais o espelho que poderia confirmar a identidade do corpo inteiro. A pólis perversa gerada pela modernidade associa-se à fragmentação e à ruína da sociabilidade” (Gomes, 2008, p. 73). Os heróis deste universo da cidade moderna passam a ser “os inadaptados, os marginais, os rejeitados que reagem à atrofia da experiência” (Gomes, 2008, p. 73). Nesta conexão regressa também a questão de genius loci, uma vez que se trata de um conceito adequado à perceção do “inconsciente” urbano. A alma da cidade, diz Hodrová, é algo que trabalha às escondidas, como o inconsciente humano (2006, p. 39). A cidade é, portanto, um organismo vivo, do qual o ser humano constitui uma das partes fundamentais. Tal simbiose torna-se especialmente patente nos casos em que predomina um simbolismo urbano tipicamente dark, assente em arquétipos sombrios – cidade morta, alheia, fantasmagórica, assombrada, a 71 cidade ligada com os aspetos sombrios do eu – duplicado, louco (cf. 2006, p. 39). É neste sentido que também podemos invocar os postulados de Merleau-Ponty sobre a intrincação do corpo humano no espaço circundante, neste caso, na carne urbana. Além disso, a cidade percecionada pela consciência e pelo inconsciente ao mesmo tempo, não é só uma cidade, mas muitas cidades, um conjunto de cidades inseridas umas dentro das outras, cidades visíveis e invisíveis, do passado, do presente e do futuro (cf. Hodrová, 2006, p. 38). É evidente que esta estrutura – de mandala – exprime a ideia que Westphal sustenta na sua geocrítica. A concepção estratigráfica em que dois ou mais estratos temporais convergem num lugar é denominada por Hodrová como sintopia (Hodrová, 2006, p. 38). Este fenómeno, de facto, pode ser visível, por exemplo na estrutura de uma casa antiga, dentro da qual é possível descer a um estrato anterior (por meio da descida a uma cave gótica) ou invisível, críptica, guardada na memória coletiva como uma aura do lugar (cf. Hodrová, 2006, p. 44). Com isso Hodrová mostra que a conceção de estratigrafia não pode ser limitada à modernidade devido à relativização dos vetores de espaço-tempo, porque se trata de um aspeto pertencente a qualquer cidade em qualquer época da sua apreensão. Neste contexto, Renato Cordeiro Gomes refere-se à tela Ein Blatt aus dem Städtebuch (Uma folha do livro de registo da cidade, 1928) de Paul Klee, quadro pintado depois de uma viagem ao Egito, precisamente na época em que o pintor lecionava na famosa Bauhaus (1921-1930). Recorde-se que a ideia de Bauhaus era construir a utopia de ordem e forma, dominando o caos. Por isso, nesta tela, o pintor recusa-se a ser fiel à reprodução do objeto (cidade) porque, conforme Cordeiro Gomes: Rechaça a noção de profundidade, este meio tradicional de construir o ilusionismo, e fixa a cidade na superfície da folha de um livro, através de elementos mínimos de composição, formas geométricas, sobriedade cromática, que se encaminham para a abstração, tendendo para o grafismo. As breves anotações lembram esquematicamente casas, cúpulas, telhados, muros, igrejas, encimados por um astro misterioso, e adquirem um ritmo geométrico, num equilíbrio racional.” (2006, p. 38) Como Renato Cordeiro Gomes acrescenta, trata-se de uma “espécie de arqueologia de cidades sobrepostas”, em que a tela “serve de metáfora operatória e teórica para a leitura da cidade cifrada (...) de múltiplas e complexas inscrições” (2006, pp. 38-39). Mesmo que estejamos sempre dentro de um formato de diagrama, valoriza-se aqui ainda mais o processo contínuo de inscrição e apagamento, após o qual a prévia inscrição fica perceptível em certos fragmentos (palimpsesto). A cidade é assim lida como um composto de camadas sucessivas de construções e escritas, em que a camada anterior transparece parcialmente na camada ulterior. Nesta estrutura que permanentemente exige um trabalho de descodificação é também 72 valorizado o próprio ato de leitura, e com ela, do leitor que, de facto, acaba por “escrever” um novo texto da cidade. Ao lado da simbiose da cidade e do ser humano verifica-se, assim, uma nova simbiose, a da cidade e do texto. Por último, vale a pena não esquecer que a escrita da cidade não consiste somente na sua construção, ou seja, na inscrição e transcrição, mas também no seu sucessivo apagamento, onde a máquina de escavar funciona como se fosse um computador, em que o desmoronamento corresponde ao carregar na tecla DEL, com a qual apagamos o “texto” anterior. 1.4.4. Flânerie: um modo de habitar as ruas O conceito de flânerie é, por sua natureza peripatética, relacionado com a prática psicogeográfica. Assim, Merlin Coverley bem indica que a psicogeografia não nasce, de facto, do movimento protagonizado por Guy Debord, o qual cunhou este termo, mas de literatura muito anterior, em que a figura de um deambulador pelas ruas urbanas se torna marcante. Tal acontece já nas obras da “tradição visionária” de uma vertente da escrita londrina, a que pertenceram autores como Daniel Defoe, William Blake ou Thomas De Quincey (Coverley, 2018, pp. 18-21). Daniel Defoe é, conforme Coverley, o primeiro escritor que ofereceu uma visão de Londres desenhada pela sua própria topografia imaginária, inaugurando assim a tradição psicogeográfica londrina (Coverley, 2018, p. 37). É sobretudo na sua obra Journal of the Plague Year (1722) que Defoe, ao amalgamar factos e ficção, fez uma pesquisa psicogeográfica, correspondente em vários aspetos às práticas contemporâneas. O caráter muito especial da deambulação urbana cinge-se, nesta obra, ao facto de o aspeto da cidade mudar de acordo com o prosseguimento da infeção, sendo o narrador subjugado a uma “geografia assombrada”: In effect, the catastrophe of the plague creates the characteristic sense of disorientation that we find in all narratives of urban catastrophe, whether caused by warfare, revolution or natural disaster. (…) In such moments the city is momentarily made strange, defamiliarized, as its inhabitants are granted an alternative vision of the city (Coverley, 2018, p. 40). Noutros autores, a transfiguração da topografia urbana deflui diretamente de um estado de imaginação visionária, como se vê em William Blake. Como alega Marlin Coverley, Blake era um deambulador, cujos poemas descrevem a realidade das ruas londrinas setecentistas, mas que são carregadas de uma visão imaginativa intensamente individualista para criar uma nova e 73 transcendente topografia da cidade (Coverley, 2018, p. 42). Por meio desta visão, Blake era capaz de se aperceber de uma essência invariável do espaço londrino, de uma realidade imutável, ou seja, de uma existência simbólica que permanece no decorrer do tempo. Aos outros autores estritamente ligados à cidade de Londres que podem ser considerados, ao lado de Defoe e Blake, precursores da psicogeografia, pertence Thomas de Quincey, cujas Confessions of an English Opium-Eater (1821) são, como diz Coverley, um relato sobre o papel da imaginação e sobre o poder do sonho de transmutar a natureza familiar do nosso ambiente em algo estranho e maravilhoso (Coverley, 2018, p. 45). Convém mencionar ainda Robert Louis Stevenson que inspirou a linha psicogeográfica do imaginário gótico para simbolizar o mistério que se encontra debaixo da superfície banal da cidade quotidiana, ou Arthur Machen com a sua arte de deambulação pela cidade, livre de qualquer objetivo, orientada somente pela imaginação. Foi na Paris oitocentista que a figura peripatética recebeu a designação de flâneur, sendo na posteridade relacionada sobretudo com a obra de Baudelaire. Recorde-se que em Le peintre de la vie moderne, Baudelaire definiu esta figura como um espetator da vida alheia: Sa passion et sa profession, cʼest dʼépouser la foule (...) Lʼobservateur est un prince qui jouit partout de son incognito. Lʼamateur de la vie fait du monde sa famille, (...). Ainsi, lʼamoureus de la vie universelle entre dans la foule comme dans un immense réservoir dʼélectricité. On peut aussi le comparer, lui, à un miroir aussi immense que cette foule, à un kaléidoscope doué de conscience, qui, à chacun de ses mouvements, représente la vie multiple et la grace mouvante de tous les éléments de la vie. (Baudelaire, c/d, p. 9) A primeira inspiração para a gestação desta figura advém, contudo, de Edgar Allan Poe, cuja obra Baudelaire admirou e divulgou em França. Trata-se do conto “The man of the crowd” (1840) em que, de acordo com Coverley, “we witness the emergence of the flâneur, the wanderer in the modern city, both immersed in the crowd but isolated by it, an outsider, even a criminal, a man impossible to fathom and one whose motives remain unclear” (Coverley, 2018, p. 71). Este conto tornou-se também paradigmático da situação do homem na cidade moderna, por relevar como problema, segundo Renato Cordeiro Gomes, a “legibilidade da cidade moderna, através da complexa vida urbana em sua constante mobilidade” (Gomes, 2008, p. 75), cujo cenário são as ruas labirínticas e a multidão. O narrador do conto põe-se a observar um estranho comportamento dum homem que deambula obsessivamente pelas ruas, num percurso circular, como se estivesse num labirinto. A seguir, empreende a mesma rota com o objetivo de perceber o sentido desse trajeto do homem desconhecido, demonstrando, contudo, “a compulsão similar à do perseguido” (Gomes, 2008, p. 80). Deste modo, como diz Renato 74 Cordeiro Gomes, o narrador transforma-se em outro “homem da multidão”, unido ao primeiro pela mesma solidão e alheamento (cf. Gomes, 2008, p. 80). Assim se cria o binómio da multidão/solidão, “termos iguais e conversíveis”, conforme definido por Baudelaire em “Les foules” (apud Gomes, 2008, p. 80). Simutanemante, como diz Gomes, “[o] conto de Poe é um dos textos inaugurais na fixação da imagem da cidade moderna associada à imagem de um homem caminhando, sozinho, pelas ruas fervilhantes.” (Gomes, 2008, p. 80). A figura de flâneur procura dar resposta à multiplicidade urbana. Além disso, a cidade moderna é um espaço em que eclodem crises de personalidade. O anonimado fornece uma ideia (ou ilusão) de liberdade, a qual, no entanto, pode levar a uma alienação (cf. Derdowska, 2011, p. 56). É preciso frisar que embora se fale de flâneur sobretudo em relação à época da modernidade, a sua presença pode também ser rasteada na pós-modernidade. Nos seus ensaios sobre a época pós-moderna, como já foi observado por Derdowska, Zygmunt Bauman utiliza esta figura para a descrição da situação pós-moderna, mudando-lhe o estatuto social, porque enquanto na modernidade flâneur era relacionado com as élites, na pós-modernidade verificase a sua expansão em massa (cf. Derdowska, 2011, p. 60). Mas já não se trata de um deambulador cruzando as ruas ao deus-dará, dono do seu próprio percurso e destino, porque o flâneur pós-moderno é subjugado aos poderes que ele não controla e que são na maioria dirigidos pela publicidade comercial e/ou redes sociais. Os livres percursos pelas ruas que visavam unicamente observar o mundo circundante, ao qual, no entanto, o flâneur mantinha sempre uma indiferença e superioridade alheia, são suplantados pelos trajetos pragmáticos dentro de centros comerciais (cf. Derdowska, 2011, p. 60). A flânerie viveu, contudo, certos períodos de revitalização no século XX. O primeiro passo foi neste sentido dado pelo movimento surrealista francês que chamou estes percursos a pé “deambulation”, a forma de andar “automaticamente”, a perda desorientadora de controle. Foi com base neste conceito que, como foi lembrado por Coverley, nasceram três obras sobre a vida nas ruas parisienses entre duas guerras mundiais: Le Paysan de Paris (1926) de Louis Aragon, Nadja (1928) de André Breton e Les Dernières Nuits de Paris (1928) de Philippe Soupault. Estas três obras coincidem na ausência da trama e num impulso digressivo, o que as faz muito próximas de romances psicogeográficos da contemporaneidade (cf. Coverley, 2018, p. 95). O espírito rebelde dos percursos “automáticos” que animou a vanguarda francesa teve a sua continuação no movimento dos Situacionistas (herdeiro do movimento dos Letterist), protagonizado por Guy Debord que também como primeiro cunhou o termo de psicogeografia e exprimiu a sua definição, conforme a qual se trata de um estudo de efeitos especiais do espaço geográfico nas emoções e comportamento individual (cf. Coverley, 2018, p. 120). 75 Além da conceção “clássica” da figura peripatética num espaço físico, foi criado, paralelamente, um flâneur na esfera da imaginação, ou seja, um viajante mental. Como obra fundamental para este tipo de flâneur deve ser referido o texto Voyage autour de ma chambre (1795) de Xavier de Maistre, em que se observa um modo híbrido entre um viajante pedestre e um “viajante de poltrona”. Nas famosas Viagens na minha terra (1846), Almeida Garrett abre o primeiro capítulo com a referência à esta obra, apontando com muita graça para o facto de o clima em Turim, onde Xavier de Maistre escreveu a sua Viagem, ser demasiado frio em comparação com o clima de Lisboa, sendo portanto natural que a viagem à roda dum quarto não seria muito natural nas terras lusitanas: Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira do Alpes, de Inverno, em Turim, que é quase tão frio como Sampetersburgo – entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia ao quintal. (Garrett, 1986, p. 7) Garrett não podia prever que, no início do século XX, um autor, inspirado precisamente pela sua poesia, irá criar, entre muitas outras, uma figura que realmente se satisfaz em viajar mentalmente, sem sair da casa, no espaço de clima ameno lisboeta. Refiro-me ao dr. Quaresma, criado por Fernando Pessoa, que talvez impedido pelo seu estado de saúde resolve vários casos policiais, literalmente, a partir da sua poltrona, uma vez que a pesquisa empírica dos sítios reais pode perturbar a faculdade de raciocinação. Há, contudo, mais uma nota importante no início do primeiro capítulo das Viagens garrettianas, quando o narrador diz: Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de Estio, viajo até à minha janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me enganar com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infância nos entulhos do Cais do Sodré. (Garrett, 1986, p. 7). Com efeito, as viagens dentro de um quarto, com o objetivo de se chegar à janela, adequamse melhor para a situação das mulheres, cujo habitat era tanto nos século XIX, como no incício do século XX, maioritariamente domiciliário. A figura de flâneur que se movimenta livremente no espaço urbano é, nessa época, a expressão do mundo exterior masculino. Por essa razão, as pesquisadoras de gender aproveitaram-se desta figura para poderem criticar as limitações que as mulheres enfrentavam no espaço público. Ou seja, como diz Merlin Coverley: The dandy, the stroller, these are invariably male figures, dominating the street life and public spaces of cities in which solitary women are largely absent figures. In nineteenth-century Paris and elsewhere, the flâneur principally represented freedom; a 76 kind of freedom which was, however, largely denied to women, to whom the streets were to remain sites of prohibition and exclusion. (Coverley, 2018, p. 77) Num estudo (“The Invisible Flâneuse: Women and the Literature of Modernity”, 1985), Janet Wolff considera mesmo impossível a criação de uma variante feminina (flâneuse), comparável à figura masculina. É evidente, contudo, que se trata sobretudo das mulheres burguesas, uma vez que existia sempre um tipo de flâneuse que dominava a rua noturna, a prostituta. Além disso, Merlin Coverley recorda que têm surgido vários estudos que corrigem um pouco a afirmação sobre a inexistência da flâneuse e, apesar de esta sofrer sempre de uma menor visibilidade, os seus traços podem ser observados nos casos de escritoras como George Sand, Frances Trollope, Kate Chopin, Djuna Barnes, Virginia Woolf, Jean Rhys or Martha Gellhorn (cf. Coverly, 2018, p. 78). O mesmo pode ser verificado no caso português. Embora concordando com a insustentável equiparidade hipotética dos dois géneros, urge admitir que existem também alguns casos de flânerie feminina no início do século XX, como adiante se verá. 1.4.5. A Torre de Babel: caleidoscópio urbano A tradição iconográfica referente à Torre de Babel mostra uma torre nivelada, muito parecida com as estruturas dantescas do Inferno e do Paraíso. O próprio Inferno foi considerado, em Tratado sobre Dante (1933) de Osip Mandelstam, um cume dos ideais urbanos dum homem medieval. Neste sentido, a torre babélica pode promover a ideia de se tratar tanto de um projeto paradisíaco, como infernal, ou seja, a sua construção orientada para as alturas espelha-se na sua profundidade abismal, ganhando o projeto utópico um caráter do seu reverso, de distopia. É precisamente esta reversibilidade que imprime ao mito babélico uma certa ambiguidade e fraca legibilidade. Um exemplo literário que exemplarmente ilustra esta impossibilidade de discernir o paraíso do inferno pode ser encontrado no romance Korrektur (1975) de Thomas Bernhard, em que o protagonista constrói uma casa original para a sua irmã amada, a casa em forma de um cone que claramente lembra o desenho do Inferno dantesco. Talvez por esta mesma semelhança, a irmã, após a entrada na “casa”, morre. Estas coordenadas de intróito apontam definitivamente para a multiplicidade de sentidos com os quais o mito da Torre de Babel pode revestir-se, uma vez que o próprio caráter arquitetónico do projeto babélico – a torre – se assume como um elemento iniciático, esotérico, de significado oculto. Com efeito, não é por acaso que a torre figura, nas cartas de tarot, como um dos arcanos, o de XVI, pois trata-se de uma 77 construção que, imitando a árvore no mundo da natureza, se alça da terra às alturas, numa tentativa imaginária de ligar os dois planos, o terreste e o celeste numa simbiose e plenitude cosmológica, universal. E, no que diz respeito ao “código” terrestre e biológico, a torre alçada é, por sua verticalidade, uma evidente metáfora fálica, à luz da qual o mito babélico, com o seu processo de crescimento e queda, simula o próprio ato biológico, dir-se-ia genesíaco, da criação de vida. Para além disso, uma das leituras fundamentais deste mito cinge-se precisamente ao simbolismo da cidade e, em especial, da cidade moderna. Uma breve abordagem do mito de Babel como uma forma simbólica da cidade torna-se assim incontornável para qualquer reflexão sobre o imaginário urbano. Em geral, a Babel (tal como Babilónia, Sodoma e Gomorra) estimula a leitura da cidade (e, por extensão, da modernidade e da civilização) como um lugar maldito, condenado e, juntamente com a simbologia das cidades bíblicas malditas, corresponde talvez a uma linha de imaginação urbana mais antiga e, simultaneamente, mais recente, projetando-se ainda para o futuro, o que as atuais imagens apocalípticas testemunham.49 Trata-se, simplesmente, de uma luta eterna entre a Utopia e Distopia, entre as cidades de Thomas More (Utopia), Fourier (Le Phalanstère) ou Campanella (Cidade de Sol) e as de Verhaeren (Les villes tentaculaires), Maupassant (Paris de “La nuit. Cauchemar”), Kafka (Praga de O processo), Raul Brandão (a Vila de Húmus), Saramago (a cidade de cegos em Ensaio sobre a cegueira), Fritz Leiber (Chicago de “Smoke Ghost”), Dick/ Ridley Scott (Los Angeles de Blade Runner), Teresa Veiga (Sáfara de “Cuidado com as algas verdes”) etc.. Os exemplos, em que as cidades imaginárias utópicas e distópicas, coexistem com as cidades reais de mesma maneira “imaginárias”, seriam inúmeros. E sem contar certas épocas de exaltação positiva/vitalista do urbano, como aconteceu sobretudo no modernismo futurista, a imaginação distópica parece, em concordância com a profecia bíblica, prevalecer. É o que se verifica no famoso filme Metropolis (1927) de Fritz Lang, em que a distopia é suportada visualmente pelo mito de Babel, o qual ainda entra em diálogo com outros mitos de “criação”, o de Pigmalião e o de Frankenstein, Prometeu moderno. Com efeito, a afinidade entre a criação da torre de Babel e da Criatura de Frankenstein é bem evidente: a confiança num projeto utópico reveste-se cedo do seu negativo, acabando com a destruição da obra como a única possibilidade atribuída ao ser humano. Curiosamente, também 49 Também Fernando Aínsa refere-se, no seu trabalho geopoético, a várias obras da literatura latinoamericana, nas quais é possível detetar a ameaça “babilónica” ou “apocalíptica”: Facundo (1845) de Sarmiento (com “Buenos Aires, la Babilonia americana”), Las puertas de Babel (1920) de Héctor Pedro Blomberg, La casa por dentro (1921) de Juan Palazzo, Historia de una pasión argentina (1937) e La bahía del silencio (1940) de Eduardo Mallea, Los siete locos (1929) ou Los lanzallamas (1931) de Roberto Arlt, Sobre héroes y tumbas (1961) de Ernesto Sábato (em que Buenos Aires é “una Babilonia desestructurada“) etc. (Aínsa, 2006, pp. 150-152). 78 as cidades que se pretendem mostrar como ideiais, utópicas podem na verdade representar o contrário, tal como acontece no romance Nós (escrito 1920-21, publicado 1924) de Zamiatin, em que a cidade, inspirada nos projetos iluministas, com as suas ruas em forma de linhas regulares, o largo de Cubo e o metro composto de 66 círculos concêntricos, assume o caráter de um espaço demoníaco, infernal. Neste caso, trata-se evidentemente de uma imagem da sociedade controlada, totalitária, manipulada. Os anos 30 desenvolvem este espírito antiutópico. É nesses anos, também, que saem outros títulos com esta problemática, em especial Brave New World (1931) de Aldous Huxley e Anthem (1938) de Ayn Rand. Concluindo, as cidades-projeto, cidades demasiado “civilizadas”, como diz Hodrová, são também essencialmente desumanas, porque todas as irregularidades naturais são eliminadas, “corrigidas” (Hodrová, 2006, p. 73). Por isso, as cidades consideradas “racionais” são, de facto, “loucas”, como todas as cidades criadas no traçado geométrico e, dir-se-ia, contra a vontade da natureza (Hodrová, 2006, p. 73). Em termos do imaginário urbano moderno, trata-se então, como sustenta Renato Cordeiro Gomes, de uma “crítica da urbanidade mecânica, da rapidez, do gigantismo crescente” (Gomes, 2008, p. 88), cuja monstruosidade afeta o bem-estar e estilo de vida da população, cada vez mais limitada na sua privacidade, anónima e auto-aniquilada. Os seus habitantes acabam por se assemelhar a “dispersos átomos isolados na multidão e na massa indistinta” (Gomes, 2008, p. 88). Por outras palavras, o projeto civilizacional utópico, assente na ideia de progresso, acaba por falir e, em vez de união, conduz a uma cada vez maior dispersão e atomização. Assim se põe em causa, portanto, é o próprio conceito de progresso. Várias vezes, esta ideia de “progresso” surge incumbida de uma dimensão espiritual. Este facto evidencia-se, como já foi observado por La Salette Loureiro, no pensamento de Baudelaire. Primeiro, Baudelaire tende a avaliar o projeto de civilização à base da eficiência do pecado original: “Théorie de la vraie civilisation. Elle nʼest pas dans le gaz, ni dans le vapeur, ni dans les tables tournantes, elle est dans la diminution des traces du péché originel.” (Baudelaire apud Loureiro, p. 45). Apesar disso, Baudelaire não eliminou o simbolismo do pecado original porque percebeu, em sintonia com os ideários de então e os do porvir, que o progresso tinha a face de Janus e que as suas glórias encerram em si o gérmen de (auto-)destruição. O apogeu extático é, nesta ordem de ideias, sempre seguido pela queda, tal como o orgasmo sexual se converte em imobilidade (“le petit mort”) e tal como a Torre de Babel acaba por ser destruída. Para explicar melhor esta ideia de progresso, Baudelaire invoca a imagem do escorpião, recordada também por La Salette Loureiro: “Je laisse de côté la question (...) si, enfermé dans le cercle de feu de la logique divine, il ne ressemblerait pas au scorpion qui se perce lui-même avec sa terrible 79 queue, cet éternel desideratum qui fait son éternel desespoir” (Baudelaire apud Loureiro, p. 45).50 A fé no progresso tipicamente modernista, testemunhada por vários projetos futuristas, revela-se, portanto, muito problemática, sobretudo a partir da perspetiva atual, ou pelo menos, desde a experiência do nazismo e totalitarismo. A este respeito, Bernard Westphal diz o seguinte: If the gradual and progressive river of time led to Auschwitz, Mauthausen, Stutthof, or Jasenovac, sites of the abomination that drained the color off the map of Europe, or if that same river of time led to Hiroshima and Nagasaki and also to Dresden, where fire-bombing transformed a city into a lunar landscape, then it is better to dam the river entirely. The stream of time had allowed an unwelcome guest: perverse progress. (Westphal, 2015, p. 12) É este “progresso perverso”, causa de um colapso da missão civilizacional,51 que se desenha no simbolismo babélico e que está intimamente vinculado a um poder que tal progresso pretende dirigir ou impor. Nem sequer é necessário recordar aqui os abusos a que tal ideia da missão de progresso levou na história, inclusive na história portuguesa. Visto de perto no caso da problemática urbana, Lewis Mumford já apontou, em The city in history (1961), para o conceito de cidade invisível que é em tudo diferente da concepção de Calvino. Aqui, a cidade moderna adquire o atributo de invisível devido à “desmaterialização das instituições existentes” e devido à abertura do mundo urbano tanto à superfície (esfera do visível), como no interior, por ser “penetrado pelos raios e emanações invisíveis, respondendo aos estímulos e forças abaixo do limiar da observação habitual” (Mumford apud Gomes, 2008, p. 86). Essas forças são invisíveis, é um poder controlador e autoritário, de cuja presença poucos se apercebem. Nalguns casos, tal civilização como a suposta plasmação do progresso, pode ser simbolizada por um motivo concreto, como é um edifício, construção humana por excelência e sinédoque da cidade. Por exemplo no romance O barroco tropical (2009), do escritor angolano José Eduardo Agualusa, apresenta-se o tópico do prédio futurista e hipermoderno, de muitos andares, imagem de progresso que claramente reenvia para o símbolo da Torre de Babel. A sua 50 Renato Cordeiro Gomes recorda, a este respeito, a parábola de Kafka “O emblema da cidade” (1920), em que “a Torre dramatiza a promessa de um futuro glorioso” (...) e cujo “crescimento desmesurado pode liberar as forças destrutoras” (Gomes, 2008, pp. 95-96). Tratando-se de uma referência inovadora, feita por Kafka, ao emblema da cidade de Praga, Gomes opina que “Kafka quis simbolizar com este brasão a ameaça que pairava sobre a cidade (...) e que é produto da racionalidade geradora do progresso” (Gomes, 2008, p. 95). 51 Westphal inspira-se, entre outras teorias, nas ideias de Walter Benjamin: “History continues its march, as with Walter Benjamin´s Angelus Novus. The wind rushes under the wings of the angel of history and carries him onward, inevitably, despite the overwhelming sadness caused by the spectacle unfolding before his eyes. But this movement no longer signifies an unswerving and progressive straight line; blown by such unpredictable winds, history can go forward, turn in circles, or cross and recross its own paths.” (Westphal, 2015, p. 14). 80 verticalidade, tal como nos cones simbólicos de Dante, eleva-se às alturas, mas também mergulha nas profundidades: a imagem inversa do edifício reflete-se no seu subterrâneo, comparável ao reino de Hades ou inferno dantesco, em que domina a escuridão tanto física, como mental. Há ainda outros traços do simbolismo babélico que podem ser evocados em relação ao tópico da urbe. A propósito da fotomontagem “Metrópole” (1922) de Paul Citroen (aluno de Bauhaus), Renato Cordeiro Gomes sustenta tratar-se de uma “imagem do labirinto de Babel moderna feita de pedaços, que se projeta na imagem da cidade moderna como um quebracabeça, um puzzle.” (Gomes, 2008, p. 26). A Torre de Babel, como é sabido, corresponde ao símbolo da confusão, significando a sua construção um desafio aos limites da condição humana. A sua destruição, por conseguinte, aponta para o “desvio, a dificuldade de comunicar” (Gomes, 2008, p. 87), tendo por castigo o isolamento de vários povos. Com efeito, um dos primeiros significados da torre de Babel, desenvolvido pelo motivo da confusão de línguas, relaciona-se com o estatuto da cidade (em princípio, da capital) como um centro de cultura. No século XIX, bem como no ínício do século XX, o centro de cultura europeia correspondia a Paris. A capital francesa tornou-se a tela pintada e repintada por novos e novos retratos que repetiam a mesma imagem codificada (cf. Casanova, 2012, pp. 43-44). Estes retratos, por sinal, não provinham só de nacionais, mas também dos estrangeiros que lá procuravam a liberdade. Assim, como é lembrado por Pascale Casanova, Paris abrigou os polacos depois da “grande emigração” em 1830, os checos exilados a partir de 1915 e muitos outros que vinham para a cidade sonhada, a qual assumiu também a posição de “Babel Noir” para os primeiros inteletuais africanos e antilianos, vindos nos anos 20 do século XX (cf. Casanova, 2012, pp. 49-50). O mesmo é válido para os portugueses. Pense-se em António Nobre, Mário de Sá-Carneiro, Amadeu SouzaCardoso ou mesmo em Aquilino Ribeiro. Se, porém, Paris constituiu a ícone de uma vida frenética, de luxo, mulheres e espetáculos para Sá-Carneiro, Aquilino Ribeiro manteve uma postura muito mais sóbria na sua valorização. Pascale Casanova desenvolve a reflexão sobre o encanto com que Paris atuava sobre muitos escritores e artistas nos séculos XIX e XX chegando à conclusão de que a metrópole francesa impunha um tom de gosto artístico/literário, com o qual os outros se mediam e ao nível do qual se desejavam elevar. A cidade funcionava como um imã, cuja força de atração atravessava fronteiras culturais, mesmo indiretamente. Recordese que Bertrand Westphal invoca, no seu estudo geocrítico, o caso de Italo Calvino que se sentia influenciado pelo mito de Paris muito antes de a conhecer pessoalmente (Bertrand, 2011, pp. 149-150). Semelhantemente, Aquilino afirma ter-se sentido atraído pela cidade na imaginação, aliciado pela literatura que ele chamava “à Luís XIV”, ou seja, “pomposa, megalómana, 81 naturalmente balofa e transpositora, e por conseguinte susceptível de todas as mistificações” (Ribeiro, s/d, p. 21). No entanto, a sua experiência pessoal veio a corrigir substancialmente a imagem pré-concebida: “Também o Paris que encontrei não era o Paris que tinha na imaginação, sobretudo não era o Paris que me pintavam. (...) Tudo era regrado, comum, conservadorão, tamisado pelo filtro utilitário do bom senso e do ne te fais pas mauvais sang.” (Ribeiro, s/d, p. 21). A única maneira de Aquilino Ribeiro ter podido penetrar empaticamente nas graças com a capital francesa foi pela senda do coração, o que de facto aconteceu, como o escritor recorda em 1955: Mas isto, este quid oculto que nos faz adorar a grande urbe e que no fundo não é mais que uma forma da nossa liberdade, se carece de expressão mental, instintivamente todos o sentem e eu acabei por senti-lo. Por estes vínculos ocultos, pela quietude que ali se respira, Paris prende e fascina e, em despeito de qualquer desagrado dos olhos, entra definitivamente no coração. (Ribeiro, s/d, p. 23). Seja como for, urbe amada ou maldita, Paris realmente dominava na Europa oitocentista e na primeira metade do século XX como um espaço de grandes possibilidades e como um símbolo de luxo, volúpia e liberdade. Qualquer cidade que adquire esta aura, porém, deve assumir o risco de se tornar símile de Babel e outras cidades míticas de maldição, votadas à destruição. Ou seja, como Giovanni Macchia aduz, ao tornar-se Paris cidade de mito comparável a Roma, Atenas ou Babilónia, parecia que precisava de provar a sua grandeza pelo espetáculo da sua própria destruição (Macchia 1988 apud Casanova, 2012, p. 45). É o que se observa no conto “A revolução” (Jardim das tormentas, 1913) de Aquilino Ribeiro, em que Paris é, de facto, submergida nas águas devido a um cataclismo destruidor. As visões apocalíticas, por conseguinte, apontam para mais uma dimensão do simbolismo babélico, esse que pode ser a priori ilustrado pelas pinturas maneiristas de François de Nomé e Didier Barra, do século XVII, que assinavam as obras com o pseudónimo “Desiderio Monsù” e cujas pinturas causam estranheza pelo seu onirismo, expresso em toda a sua alogicidade, por meio de elementos alucinatórios e quase “paranóides” (cf. Hocke, 2001, pp. 218-219). O fantasmagórico, presente na arte de Monsú, revela-se essencialmente como um caos, composição de elementos díspares, de vários estilos arquitetónicos, de diferentes épocas artísticas, de motivos incongruentes. Não surpreende que as telas de Monsú exibem frequentemente um motivo apocalítico. Deste modo surge, a meu ver, uma nova ideia de Babel, ou melhor, do universo depois de Babel, esse que não se revela somente pela dispersão de línguas, mas pela dispersão de todas as peças das quais a torre era construída. Esta imagem, de certa forma, contradiz o conceito de palimpsesto, em que permanece a ideia da ordem e 82 temporalidade e em que o estrato anterior é vislumbrado em fragmentos no estrato presente, da superfície. A ideia, a que me refiro, não segue nenhuma ordem, caraterizando-se pela justaposição e sincronicidade caótica, afastando-se assim dos semióticos e da sua ideia do Texto e aproximando-se da concepção de Westphal. Para Walter Benjamin, a modernidade e o seu universo de mercadorias – o sempre novo – assemelha-se ao caleidoscópio, baseado na descontinuidade e efeito de intermitências: “A intermitência faz que cada olhar se lance no espaço e descubra uma nova constelação” (cf. Gomes, 2008, p. 84). Simmel, por sua vez, insiste na preponderância da atividade visual na cidade (cf. Gomes, 2008, p. 84). Tais estímulos visuais, sobretudo em forma de luzes artificiais, relacionam-se também com um aspeto caraterístico da modernidade, que é music-hall, símbolo da Cidade-Espetáculo futurista, cidade de montras, publicidade luminosa, ruídos, multidões, violência, prazer intenso e erotismo. Devido à sua vasta influência em vários setores da vida social e cultural da época de modernidade, music-hall (ou cabaret/variété) tornou-se, de facto, um dos mitos urbanos.52 Encontramos muitos exemplos desta face do urbano na poesia de futuristas italianos, mas também na obra dos modernistas portugueses, sobretudo de Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros, numa festa de explosão sinestética. Mas eram também as imagens do prazer libidinoso, interpretado como depravação ou perversão, que levaram à constituição do mito da cidade moderna como lugar de vício, em repercussão bíblica de Babilónia, Sodoma e Gomorra. Esta dispersão que veicula o imaginário de caos adere, novamente, ao aspeto labiríntico e, por conseguinte, à sua difícil legibilidade. Esta ideia de caos, no entanto, não precisa de ser, a meu ver, considerada exclusivamente em termos disfóricos. Falando de caos em relação à abordagem do espaço, Bertrand Westphal evoca o mito grego de Chaos, deidade sem género, que auto-gerou mais duas deidades, Erebus (a escuridão absoluta) e Nox (a noite). Estas, por sua vez, deram luz a Aether (“ether” ou luminosidade) e Hemera (dia). Com isto Westphal conclui que “[i]t is creative chaos that gives birth to the light and to the day” (Westphal, 2015, p. 6), seguindo de perto o conceito grego de “caos criativo” como um pressuposto necessário a qualquer tipo de criação artística. Literalmente, podemos rastrear esta ideia no projeto do artista eslovaco Matej Krén, que utiliza livros desusados para criar novos objetos artísticos em forma 52 Na sua inventiva recolha da mitologia moderna, Roland Barthes classifica este espaço como essencialmente urbano. “La ville rejette lʼidée dune nature informe, elle réduit lʼespace à un continu dʼobjets solides, brillants, produits, auxquels précisément lʼacte de lʼartiste donne le statut prestigieux dʼune pensée tout humaine: le travail, surtout mythifié, fait la matière heureuse, parce que, spectaculairement, il semble la penser, métallifiés, lancés, rattrapés, maniés, tout lumineux de mouvements en dialogue perpétuel avec le geste, les objets perdent ici le sinistre entêtement de leur absurdité : artificiels et ustensiles, ils cessent un instant d´ennuyer.” (Barthes, 1957, p. 179). 83 de torres. No sentido mais amplo, qualquer destruição pode ser gérmen de algo novo, como se vê na natureza e no ciclo vital. Aplicando esta ideia ao conceito da metrópole caótica, podemos presumir que o caos decorrido da destruição da torre babélica, demasiado organizada e uniformizada, só pode dar um impulso à germinação de novas ideias e de um novo estado de existência, assente não na unidade, uniformização e centralização, mas na diferença, multiplicidade e descentramento vital. 84 2. Lisboa nos anos 30 do século XX A década de 30 do século XX carateriza-se, a nível mundial, por um eclodir de problemas que levaram aos horrores mais atrozes na história da humanidade. A rápida crise das democracias liberais, bem como a ascensão de extremismos tanto de direita (fascismo em Itália a partir de 1922 e nazismo na Alemanha a partir de 1932-1933), como de esquerda (comunismo), tiveram como consequência a eclosão da 2ª Guerra Mundial (1939-1945). Ao mesmo tempo, Espanha é abalada por uma guerra fratricida (Guerra Civil de Espanha, 1936- 1939) e em Portugal são consolidadas as estruturas repressivas do Estado Novo. Em 1930 são aprovados os estatutos da União Nacional, em 1932 Salazar é nomeado Presidente do Conselho. Em 1933 é aprovada a Constituição, estabelecendo definitivamente o regime ditatorial. No mesmo ano são também proibidos os sindicatos, é criada a PVDE. Em 1936 são fundadas as organizações Mocidade Portuguesa e Legião Portuguesa e é aberto o campo de concentração do Tarrafal. A censura, a funcionar em pleno desde o golpe militar de 1926, torna-se mais dura a partir dos anos 30, o que se refletiria na literatura. O problema era muito complexo, uma vez que os próprios autores receavam não só a censura da sua obra, mas também danos que pudessem causar às editoras.53 É muito estranho que esta época tão conturbada política e socialmente, tenha sido acompanhada por um surto de projetos arquitetónicos que definiram uma das faces madernas da capital portuguesa. Com efeito, assistia-se a projetos de construção de bairros novos (p. ex. do bairro Azul, a nordeste do parque Eduardo VII), ou de construções de elementos prefabricados (p. ex. por uma empresa italiana, nas Telheiras, além do Campo Grande ou ao 53 A este respeito, Vítor Viçoso explica: “Este policiamento simultaneamente exterior e interior tornava o escritor português um exilado na sua própria pátria. Convém referir, aliás, que, embora formalmente não houvesse uma censura prévia às obras literárias, o facto de alguns escritores temerem que as suas obras fossem retiradas do mercado por intervenção policial, com os sequentes prejuízos financeiros das editoras, sujeitá-los-ia a uma apresentação prévia informal à Comissão de Censura, ora sendo as obras proibidas, ora sujeitas a rasuras e emendas como forma de garantia do seu trânsito entre o escritor e o público (...). Alguns livros não filtrados por este processo ignóbil seriam abusivamente retirados pela polícia política das livrarias.” (Viçoso, 2011, p. 20). Em Abóboras no telhado, Aquilino Ribeiro comenta, de um modo lúdico, como foi imposta a censura prévia ao seu romance O arcanjo negro, ficando o romance sete anos sem permissão de ser publicado. O que o “salvou”, por ironia do destino, foi a opinião do próprio Salazar: “A certa altura, o Sr. Dr. Oliveira Salazar, entrevistado por Frederico Lefèvre, director das Nouvelles Litteraires, proferiu a meu respeito palavras lisonjeiras, que me permiti atribuir ao sentido transcendente que leva um suzerano a exaltar as qualidades do seu vassalo: ‘– Comece o seu inquérito por Aquilino. É um inimigo do regime. Dir-lhe-á mal de mim, mas não importa: é um grande escritor.’ Estas palavras foram lidas por um censor que entendeu raciocinar deste modo: – Então, o Sr. Presidente do Conselho professa semelhante opinião a respeito deste escritor e nós temos retido aqui o seu livro!? Não pode ser.” (Ribeiro, s/d, pp. 329-330). A par desta “história” mais ou menos bem-humorada é preciso não esquecer que muito mais tarde, em 1959, foi formalizado um processo-crime contra Aquilino Ribeiro na sequência da publicação do seu romance Quando os lobos uivam (1958). Sobre este caso veja-se o artigo de Serafina Martins (2011). 85 Arco do Cego, cf. França, 1989, p. 95) . Nos novos bairros, como José-Augusto França informa, foram abertos vários cinemas: o Trianon (1930) nas Avenidas Novas, o Lys (1930) na Almirante Reis, o Pathé e o Max-cine à Morais Soares ou o Jardim (hoje Monte Carlo, 1931) na Álvares Cabral. Surgiram também novas lojas, sobretudo na Baixa e no Chiado, a exemplo da Loja das Meias (1930-31). Estes esforços revelaram também a necessidade de pôr alguma ordem na vida urbanística de Lisboa (em 1933 foi chamado um urbanista francês A. Agache que traçou novos planos e, em 1934, a Câmara nomeava uma comissão para tratar da estética citadina). Em princípio, então, os anos 30 podem ser considerados como anos de obras modernistas, cuja estética vai desde arts-déco até às formas geométricas inspiradas em Corbusier e Bauhaus. A este estilo pertencem vários edifícios construídos nos anos 30, contando-se entre os mais conhecidos os de Cassiano Branco (p. ex. hotel de luxo Vitória na Avenida de 1936 e o cinema Eden cinema de 1930-37). Tais projetos, de facto, iniciaram a nova era urbanística, cujo ícone arquitetónico, a Igreja da Fátima de Pardal Monteiro, refletia o espírito do próprio Estado Novo e o seu inerente suporte ideológico. Só esta sóbria ilustração fatual demonstra, a priori, em que tipo de ambivalência assentava o imaginário da capital e a vida dos seus habitantes dentro dos seus muros simbólicos. É também esta ambivalência que se lê nas entrelinhas de várias obras literárias escritas nesta época. Antes de penetrar na sua análise e compreensão/interpretação, contudo, urge apontar para a perspetiva da cidade que visa não tanto o efeito estético, mas mais meramente o objetivo instrutivo. Convém recordar, a este propósito, que, tal como foi estabelecido no capítulo anterior, a inclusão de outra perspetiva além da artística cumpre o objetivo da geocrítica. 2.1. Lisboa, menina e moça: breve nota sobre a olisipografia dos anos 30 do século XX Gosto muito de Lisboa, gosto muito da luz de Lisboa, acho que é uma luz única. É uma cidade muito feminina. Eu acho. E é sensual. (...) Há muitos fados e muitas cantigas de Lisboa. Ó, a menina e moça. É um desejo de fazer amor com a cidade. António Lobo Antunes54 Lisboa, com efeito, tornou-se foco de atenção de vários discursos entre os quais se encontram os textos centrados no seu próprio caráter enquanto cidade. Denominamos esta prática textual de sedimentação do simbolismo/imaginário lisboeta de “olisipografia”. 54 Da entrevista na feira de livro Svět knihy de Praga, maio de 2018. 86 Tradicionalmente, a olisipografia é compreendida como pesquisa de aspetos históricos e etnográficos e nesta vertente tem sido abordada a partir do século XIX. Porém, já desde o século XVI, existem relatos que se centram na descrição da cidade de Lisboa e de seus traços caraterísticos. Embora haja algumas referências a Lisboa em certas partes das crónicas de Fernão Lopes, é só com Vrbis Olisiponis descriptio... (1554) de Damião de Góis que se pode falar de um trabalho que tem Lisboa como objetivo (cf. Branco, 1980, p. 13). Neste texto, como informa Fernando Castelo Branco, o autor procura “descrever a cidade, enaltecê-la, e a preocupação de pô-la a par de Sevilha é decerto reflexo da rivalidade existente entre as duas cidades” (Branco, 1980, p. 13). Esta questão assoma também em Livro das Grandezas de Lisboa (1620) de Frei Nicolau de Oliveira, em que o autor já não pretende equiparar a importância de Lisboa a Sevilha, mas demonstrar a superioridade da cidade portuguesa em relação à sua rival espanhola. A primazia de Lisboa sobre Sevilha consiste, conforme o autor, sobretudo na grandeza de edifícios, ruas, casarios, muralhas e arrabaldes (cf. Branco, 1980, p. 15).55 O primeiro verdadeiro olisipógrafo é, porém, Júlio de Castilho com a sua obra Lisboa Antiga, publicada em vários tomos (Lisboa Antiga – Bairro Alto, Lisboa Antiga – Bairros Orientais, Ribeira de Lisboa) a partir de 1879.56 Aos seus seguidores mais conhecidos e importantes pertencem Gomes de Brito (Lisboa do passado, Lisboa dos nossos dias de 1911, e Ruas de Lisboa57 ), Freire de Oliveira (Elementos para a história do Município de Lisboa, 1882 - 1911) e João Pinto de Carvalho, chamado Tinop (Lisboa de outros tempos, a partir de 1898). Na olisipografia, a década de 30 ganha certa importância especial, uma vez que funciona “como um marco na história recente de Lisboa, um momento em que a consciência da mudança de uma cidade se impõe, ao qual não é alheio o contexto político de lançamento das bases do Estado Novo” (Silva, 1994, pp. 12-13 apud Cordeiro, 2007). Nesta época, com efeito, surgem vários trabalhos de autores que já publicaram as suas primeiras obras no período anterior. Entre eles convém mencionar Gustavo Matos de Sequeira, autor do trabalho A velha Lisboa – memórias de um bairro (1906-1909), que, nos anos 30 do século XX, publica as últimas partes da obra Depois do Terramoto – subsídios para a história dos bairros ocidentais de Lisboa (1914-1933) e O Carmo e a Trindade (1939). Como informa Fernando Castelo Branco, o primeiro título demonstra vários paralelos com o trabalho de Júlio de Castilho, uma vez que 55 Para a consulta de outros títulos veja-se o estudo de Fernando Castelo Branco (1980). 56 Sigo a opinião de Fernando Camilos Branco de que Júlio de Castilho foi “criador e o pioneiro da olisipografia” (Branco, 1980, p. 23). 57 Foi António Baião, diretor da Torre do Tombo, que reuniu os verbetes de Gomes de Brito e os publicou após a morte em 3 volumes com o título Ruas de Lisboa. Acessível em https://toponimialisboa.wordpress.com/2013/02/08/gomes-de-brito-o-olisipografo-criador-dos-estudostoponimicos/ (Cit. 7.7.2020). 87 também se concentra nos bairros e foi concebido de uma maneira bem parecida, partindo do interesse por uma casa particular: Castilho interessou-se pelo prédio em que seu pai nascera, tal como Matos Sequeira se interessou pela sua casa natal (Branco, 1980, pp. 42-43).58 A forma como é abordada a área da parte ocidental da cidade assemelha-se também, conforme Castelo Branco, à que fora usada por Júlio de Castilho: “dá, como este, um carácter de deambulação citadina às suas evocações históricas, tratando das igrejas, largos, palácios, monumentos, conventos, instituições, à medida que estes pudessem deparar-se a alguém percorrendo Lisboa, ou fossem trazidos à lembrança pela contemplação dos locais onde existiam outrora” (Branco, 1980, p. 43).59 No segundo título acima referido, o autor usa o mesmo método mas muda a área de foco e, em vez de tratar de certos elementos (casas, ruas etc.) individuais diacronicamente, opta por uma explanação por períodos (1º vol. 1218-1600, 2º vol. 1600-1755, 3º vol. a partir de 1755). Outras obras olisiponenses são ainda publicadas nos anos 30 do século XX. Convém nomear ainda o trabalho de Augusto Vieira da Silva, sobretudo as segundas edições de O Castelo de S. Jorge (1ª ed. 1898, 2ª ed. 1937) e A Cerca Moura de Lisboa – Estudo histórico e descritivo (2.ª ed. 1939), a que se seguem As Muralhas da Ribeira de Lisboa (2.ª ed. 1940) e A Cerca Fernandina de Lisboa (2 vol. 1948, 1949). Trata-se de uma reconstituição das antigas muralhas da cidade a partir de vestígios, documentos e plantas antigas. Este trabalho, com efeito, vem ao encontro da estratigrafia lisboeta, por investigar as “cidades sobrepostas”, uma antiga e outra contemporânea. A respeito de As Muralhas da Ribeira de Lisboa, Fernando Castelo Branco afirma o seguinte: “O Terremoto de 1755 fez desaparecer a cidade baixa e, no mesmo local, edificou-se uma outra, que dela herdou uma grande parte da sua nomenclatura, sem que entre os antigos e os novos nomes haja no terreno perfeita identidade.” (1980, p. 56). Além dos trabalhos sobre a reconstrução de muralhas, Vieira da Silva merece ser também recordado pela sua pesquisa da Lisboa romana. É precisamente na década de 30 que publica uma das obras de mérito, intitulada As termas romanas da Rua da Prata (1934), a qual contestou a ideia de Sequeira Matos de se tratar de um complemento da Lisboa Pombalina (cf. 58 Diz Júlio de Castilho ter iniciado “minuciosas buscas a respeito de um prédio”, o do nascimento do seu pai, prosseguindo depois com a pesquisa do “sítio onde ele se erguera”. Similarmente, Matos Sequeira explica: “Da minha casa natalícia sabia já que chegasse, e entrou a rua, à beira da qual ela se construira, a interessar-me de sua vez.” (Branco, 1980, p. 43). 59 Fernando Castelo Branco informa também no seu trabalho que Matos Sequeira é autor de outras obras dedicadas à olisipografia e publicadas nos anos 20, entre as quais pode ser mencionado o título Tempo passado (crónicas alfacinhas , coletânea de artigos sobre vários aspetos curiosos da história de Lisboa, e Relação de vários casos notáveis e curiosos sucedidos em tempo na cidade de Lisboa e em outras terras de Portugal, com várias crónicas de temática olisiponense. Ambas as obras fornecem também um material interessante para os estudos camilianos (Branco, 1980, pp. 45-46). 88 Branco, 1980, p. 59). A importância e o interesse desta obra estende-se, naturalmente, à área da arqueologia clássica. As ruas e praças da cidade de Lisboa, bem como os acontecimentos que lá tiveram lugar, foram também estudadas, em dada época, por Luís de Pastor Macedo, em A Rua das Pedras Negras (1932), O Antigo Terreiro do Trigo (1932), A Baixa Pombalina (1938) e A Rua das Canastras (1939).60 A esta lista vale a pena adicionar ainda dois nomes de olisipógrafos, cuja investigação incidiu em especial sobre a epigrafia e etnografia: J. M. Cordeiro de Sousa que, entre outros assuntos, elaborou estudos sobre as inscrições da Sé de Lisboa e de outras igrejas e edificações lisboetas, e Luís Chaves, etnógrafo, que publicou, nos anos 30, Lisboa no folclore (1939), em que analisa as referências a Lisboa na poesia popular portuguesa. Para além de tudo que foi referido, convém reter, entre todos os discursos que surgiram nos anos 30, dois títulos que fornecem uma perspetiva dominante no discurso olisipógrafo de dada época. Trata-se de Peregrinações em Lisboa (1938-39) de Norberto de Araújo e Lisboa: da sua vida e da sua beleza (1937) de José Sousa Gomes. Nos seus estudos referentes a estas obras, Graça Índias Cordeiro mostrou plausivelmente de como, através destes e doutros trabalhos da mesma espécie, “se fixou uma imagem de Lisboa como popular, bairrista e pitoresca ao longo dos anos 30 do século XX” (Cordeiro, 2007, s/p). Embora a primeira das obras referida se interesse mais por fornecer informações em registo descritivo, a segunda opta mais claramente pela transferência de atitude pessoal, da relação íntima que o seu autor mantém para com a cidade. Neste sentido é interessante observar que a sua imagem da cidade é orientada, basicamente, por três eixos, definidos por Cordeiro como “visão macro/micro”, “presente/passado” e “cidade/natureza”. No que diz respeito ao primeiro, opta-se por relevar as duas perspetivas que podem ser aplicadas na avaliação da cidade e que foram já mencionadas como a do “voo de pássaro” e a da ”rã”, ou seja uma privilegia a visão panorâmica, de preferência de um cimo de colina (um miradouro etc.), enquanto a outra prefere a observação parcial, detalhada e mais íntima, da posição de um pedestre. Neste sentido, a primeira perspetiva proporciona uma visão do conjunto que é descrito de um modo eufórico, sendo marcante a beleza da cidade: Se desejardes conhecer intimamente uma cidade, subi ao cima das alturas que a dominam e daí estudai a fisionomia que se vos apresenta, com suas rugas, sulcos profundos feitos entre casario pelas ruas e avenidas – suas protuberâncias – os monumentos e colinas – seus sorrisos – os reflexos das águas do seu rio ou porto. Pouco a pouco o caos organiza-se, torna-se claro, fala-vos. Um quarto de 60 A estes títulos seguiram-se outros: Tempos que passaram – um artista, uma rua e uma freguesia de Lisboa (1940), Lisboa de lés a lés (5 vol., 1940-1943), vários estudos sobre os edifícios, igrejas, A Ribeira de Lisboa etc. 89 hora de observação ter-vos-á sugerido mais ideias que vinte e cinco páginas de um livro. (Gomes, 1937, p. 9 apud Cordeiro, 2007, s/p) Ao contrário, a perspetiva microespacial concentra-se sobretudo nas ruas, cuja descrição obedece também a uma divisão, expressa em termos valorativos, em duas Lisboas, uma velha, pobre, de um dédalo de ruelas estreitas, outra moderna, geométrica, rica e elitista: A população das cidades divide-se em dois mundos que, vivendo sempre em contacto, afinal se ignoram mutuamente e fazem vida à parte um do outro. Um faz a vida que se mostra, que todos vêem, da qual em Lisboa, por exemplo, todos sentem o contacto no Chiado, na rua do Ouro, nos teatros da Avenida; outro é o mundo dos que trabalham para alimentar o luxo daquele e se sustenta também, por vezes, dos seus vícios: leva a vida na cidade ignorada, na cidade obscura, esconde-se em becos e ruelas que vale a pena conhecer. Os locais onde melhor surpreendemos a vida destes dois mundos justapõem-se, atraem-se mutuamente, tomam sempre contacto no coração da cidade. (Gomes, 1937, p. 13 apud Cordeiro, 2007, s/p) Esta distinção topografica e socialmente marcada correlaciona-se também com o eixo do passado/presente, uma vez que o espaço “pitoresco” e “colorido” da Lisboa Velha é valorizado em termos positivos, com a evidente nostalgia dos tempos idos, enquanto o espaço chique e moderno é avaliado depreciativamente por sua rigidez semelhante a outras cidades europeias. Nalgumas partes da obra de Gomes encontram-se até certas sugestões quanto ao planeamento urbano: (sobre Alfama) Há volume, há carácter nestas esquinas; a variedade de efeitos é infinita e não nos cansamos de admirar as notas de inconfundível pitoresco destes escondidos recantos de Lisboa Velha. Que longe estamos da monotonia insípida dos bairros modernos… Que artistas eram os construtores destas casitas simples, que souberam, com uma combinação de janelas, com a saliência de um pórtico, com o traçado gracioso de um telhado em bico, dar-lhes um encanto que não se encontra em mais nenhuma parte… (Gomes, 1937, p. 29 apud Cordeiro, 2007, s/p) …cuidado com essas transformações, que não se risquem abstractamente ruas e conjuntos urbanos sem se atender à cor e condições do local. Porque não reproduzir nas íngremes encostas de Alcântara os conjuntos tão interessantes de Alfama e do bairro do Castelo, que tão bem se adaptavam à topografia do local? Para esses novos bairros (…) poder-se-ia trazer o pitoresco e colorido dos bairros da Lisboa Velha… (Gomes, 1937, p. 107 apud Cordeiro, 2007, s/p) A preferência pelo pitoresco da Lisboa Velha, salientado também na obra de Norberto de Araújo, para quem “todo o interesse de Lisboa moderna está na sua mão estendida a um passado, criador e estimulador” (Araújo 1993, lv. XI, p. 62 apud Cordeiro, 2007) leva, portanto, Graça Índias Cordeiro a resumir que se trata, nos dois autores, de uma “visão romantizada de 90 uma cidade antiga”, “saudosa de um passado onde vai buscar as raízes da sua identidade – como se a nova cidade pusesse em risco esta identidade, tornando-a igual a todas as outras” (Cordeiro, 2007, s/p). E apesar de o teor saudosista de ambas as obras poder provocar reações negativas, devido ao contexto sócio-político, em que foram escritas e que privilegiava claramente esse tradicionalismo “pitoresco” do olhar de fora (porque nunca existe um pitoresco para quem está dentro), há uma proximidade entre esta sensibilidade urbana e as tendências contemporâneas, expressas sobretudo pela psicogeografia. A este respeito, Cordeiro se refere a uma conferência de Norberto de Araújo, proferida nos Paços do Conselho em 1936, e publicada com o título “Lisboa tem um Sentimento”, em que o autor diz existirem duas Lisboas, uma “imóvel”, “estática” e “eterna como Roma” e a outra “que nasce, se expande e enraíza no século XX”, sendo que “[o] sentimento da primeira tem de continuar na segunda, como um vínculo de família” (Araújo, 1936, p. 6 apud Cordeiro, 2007, s/p). Com efeito, como ainda Cordeiro aduz, Norberto de Araújo refere-se muito a certas paisagens de Lisboa de cunho nostálgico que evocam aguarelas e gravuras de Roque Gameiro, “fazendo com que, inclusivamente, a realidade surja como uma mimetização das suas obras” (Cordeiro, 2007, s/p). Por último, o eixo da cidade/natureza evidencia-se em especial na localização topográfica de Lisboa, sobre a qual Cordeiro resume: A sua topografia acidentada, com as ruas seguindo linhas de crescimento ao longo dos vales e colinas, onde a numeração das casas toma como referência o rio Tejo, por onde se espraia o casario cuja ordem respeita a orientação e intensidade dos ventos, cuja cor se adequa às tonalidades de um clima ameno onde o céu azul e a luz intensa do sol produzem um conjunto de grande harmonia onde a ruptura cidade/natureza pouco se dá a ver. (Cordeiro, 2007, s/p) Este resumo, feito pela pesquisadora à base da perspetiva de José Sousa Gomes, releva certos pontos de valorização que se adequam não só à olisipografia “oficial” dos anos 30 do século XX, mas também a todos os discursos eufóricos que têm por fito acentuar a beleza da capital portuguesa e, com isso, exprimir o amor à cidade. Com efeito, trata-se de uma perspetiva que sustenta o imaginário/simbolismo lisboeta dominante em todas as épocas, tal como, entre muitos outros, Baptista-Bastos mostra nas suas crónicas dedicadas a Lisboa, nas quais é possível encontrar vários pontos em comum com a perspetiva de José Sousa Gomes. Veja-se só um texto, intitulado “Lisboa contada pelos dedos”, para ilustrar esta posição. Para além de sublinhar a beleza da cidade na sua totalidade, comparada tradicionalmente a um corpo feminino (“aprecio as tuas declinações de corpo” [...], “és uma rapariga debruada de sol numa 91 janela de flores”, 2006, p. 11),61 Baptista-Bastos privilegia a perspetiva da “rã”, a vida colorida e pitoresca das ruas, apreciando também os traços que claramente exprimem a nostalgia: Há, em todo este cenário, as imagens turvas de um tempo onde as verdades mais singelas estavam reclusas. Venho desse tempo, de um tempo de silêncio, de um tempo em que as cores eram desbotadas e surdos os gritos e as palavras. De um tempo sem som; ou, melhor, de um tempo em que o som permitido era, apenas, o do bandolim tocado pelo suserano.” (2006, pp. 16-17).62 Embora este amor exprimido em relação à cidade seja naturalmente bem compreensível, porque cada um nasce num lugar concreto, com o qual mantém um relacionamento íntimo ou mesmo sentimental, convém também discernir a diferença entre um afeto pessoal e um estereótipo inculcado pela tradição discursiva. Ora, o que pode constituir um estereótipo? Conforme Bernard Westphal, o estereótipo é um “índice da história tornada pastiche ou paródia” (2015, p. 9), mas pode ser também um determinado aspeto da vida coletiva ou um indício sensorial. Neste sentido, aos estereótipos lisboetas pertencem tanto sardinhas, fado, azulejos e saudade (conforme “Lisbonne revisité” de dʼOlivier Rolin apud Westphal, 2015, p. 9), como Pessoa ou mesmo Cesário, embora precisamente estes dois tivessem combatido, na sua obra, o estereótipo como tal e para isso se tivessem servido de uma iconoclastia lúcida e veemente. Veja-se, por exemplo, o estereótipo da cor, no caso de Pessoa. Embora haja uma certa tradição de achar Lisboa a cidade branca (por influência de Baudelaire, decerto, perpetuada pelo cineasta Alain Tanner),63 Pessoa indica também outra coloração de cinza pálido entre azul, verde e amarelo, como já foi observado por Westphal (2015, p. 12). No caso de Cesário, o valor contra-estereótipo consiste sobretudo na falta de motivos de amenidade, doçura e sentimentalidade de quadros pitorescos. Por outro lado, também os motivos relacionados com 61 A antropomorfização é neste caso demasiado carregada de motivos sentimentais ou mesmo de uma sensualidade erotizada, a que, obviamente o nome em feminino da cidade instiga: “Lisboa. Soletro-te o nome e lá estás, naquele cotovelo da rua onde a rua forma uma lomba e eu digo, não é possível!, e tu abres os olhos e sorris o sorriso cândido de todas as ofertas, e dançamos nesse baile antigo, indiferentes a quem nos observa, contemplando-nos, corpo no corpo, arfantes e aflantes, e dançamos na noite de uma vida inteira, e quando te penso és uma rapariga debruada de sol numa janela de flores.” (2006, p. 14). 62 Repare-se que Baptista-Bastos, para acentuar a importância das ruas, abdica até das vistas abrangentes, tão apreciadas na generalidade: “O lado luminoso da cidade nunca deve ser contemplado e muito menos escrito do alto, tendo por apoio a colina, a meseta, o logradouro. Só servem para deformar as emoções; perdições no vago. Lisboa são as ruas; os reinos arcaicos onde a liberdade sempre permaneceu, mesmo nos tempos em que a generosidade estava desempregada e a indulgência desprevenida” (2006, p. 17). Um certo problema, a meu ver, surge nas passagens em que o autor promove um discurso assaz retórico e patético, cujo alcance ultrapassa os muros urbanos, visando a generalidade da “pátria” através de uma visão centralizadora e hegemónica (“Quando te ergues, Lisboa, a pátria treme de emoção. Quando despertas das sonolências, Lisboa, forjas o berço e teces o bragal de civilizações que se completaram no ventre fecundo da esperança de se cumprir um destino...”, 2006, p. 15). 63 Refiro-me ao famoso poema em prosa de Baudelaire, intitulado “Any where out of the world”, em que se diz, sobre a capital portuguesa: “Cette ville est au bord de lʼeau; on dit queʼelle est bâtie en marbre, et que le peuple y a une telle haine du végétal, quʼil arrache tous les arbres.” (Baudelaire, 1972, p. 172). 92 os aspetos menos benignos da cidade, tais como o terramoto de 1755 ou a inquisição, podem tornar-se estereótipos. Cesário Verde e muitos outros poetas e escritores conseguiram, contudo, vencer o estereótipo por uma nova abordagem de motivos recorrentes, essa que está assente na heterogeneidade e perspetivismo muito mais do que numa homogeneidade petrificada. É, contudo, na década de 30 que ocorre uma brusca cisão na abordagem do tema lisboeta, uma vez que as vozes literárias, em clara controvérsia com a perspetiva olisipógrafa nãoartística, começam a exprimir-se em tons menos eufóricos, reanimando o imaginário sombrio, prevalecente no fim do século XIX. Esta tendência parece ter uma continuação nas décadas posteriores, durante as quais, paradoxalmente, a ditadura salazarista impunha a propaganda da grandeza da pátria, estimulando deste modo uma certa visão próspera da capital. Vários autores saídos dos movimentos de Presença ou neorrealismo, com efeito, desconstroem os estereótipos mencionados, optando por uma atitude ambígua. Um dos melhores e mais lúcidos retratos foi escrito por Miguel Torga, membro de Presença, da qual se desligou juntamente com Branquinho da Fonseca em 1930. O seu magnífico ensaio Portugal (1950) contém também uma parte dedicada à cidade de Lisboa, onde louva a capital, com justiça, pela sua beleza e harmonioso enquadramento natural, mas onde também indica os pontos nevrálgicos de um ressentimento e/ou quase frustração. É bastante perceptível esta atitude, tendo em conta também certos discursos posteriores de um elogio patético, como os de Baptista-Bastos de algumas partes de crónicas, cujo alcance ultrapassa os muros urbanos, visando a generalidade da “pátria” através de uma visão centralizadora e hegemónica (“Quando te ergues, Lisboa, a pátria treme de emoção. Quando despertas das sonolências, Lisboa, forjas o berço e teces o bragal de civilizações que se completaram no ventre fecundo da esperança de se cumprir um destino...”, 2006, p. 15). As palavras de Miguel Torga são, neste contexto, mais que justificadas: Seja como for, a nação não morre de amores por Lisboa, e sabe-se que Lisboa lhe paga na mesma moeda. É uma mútua hostilidade latente, que os anos não suavizam. O grito doloroso e revoltado que ainda hoje ecoa pelas serras da Beira – “O país não é o Terreiro do Paço!” – exprime uma parte desse desencontro; a ironia e o superior desdém com que o lisboeta fala da província, é outra imagem dele. A centralização que o progresso tem acentuado, fazendo convergir todo o esforço do país para a sede do poder, aviva feridas mal cicatrizadas e abre outras de maior purulência ainda”. (Torga, 2007, pp. 81- 82) No seu diagnóstico do país, contudo, Torga mantém uma postura bem equilibrada. Também invoca a “Pátria”, decerto, mas acentua que ela não se pode restringir à capital, uma vez que “Pátria é tanto o lodo de Alfama, o poleiro de S. Bento e a miséria mental do Chiado, como a lisura de Trás-os-Montes e a ênfase do Alentejo” (Torga, 2007, p. 82). O debate acerca 93 do confronto entre a cidade e a província é já de longa data. Recorde-se que, entre muitos cronistas oitocentistas que escreveram sobre a vida em Lisboa, encontra-se por exemplo Júlio César Machado, autor famoso no seu tempo e hoje em dia esquecido, que exprimiu ideias claras e bem humoradas sobre a relação entre Lisboa e a província. As cidades, a seu ver, são “o luxo das nações”, mas “não passam disso”, porque é precisamente lá onde “vêm parar as ambições, as misérias e os erros” (Machado, 2002, p. 79). O que salva a província, como diz, é principalmente “a circunstância de que a política, que para Lisboa é tudo, tem para o cultivador muito menos importância do que a chuva, o vento, o sol” (Machado, 2002, p. 80). Mas a primazia atribuída à província vem sobretudo da persistência das relações humanas ainda não estragadas pela corrupção e falsidade urbana: “Em Lisboa tem-se pouco inimigos, mas na província tem-se mais amigos” (Machado, 2002, p. 82). Ainda que a província vença também claramente nas opiniões de Miguel Torga, convém frisar que Torga se mantém crítico no que diz respeito ao país como um todo, considerado por ele “narcísico”, de que “Lisboa é essa flor em que o destino nos transformou; o Tejo, o rio onde nos perdemos a contemplar a própria imagem” (Torga, 2007, p. 83). Embora a pesquisa olisipógrafa goze de uma rica tradição também nos anos posteriores aos que se indicam neste lugar, opto por não recapitular os títulos que já nada podem acrescentar à pesquisa geocrítica por mim desenvolvida, circunscrita a um período concreto. Refira-se que, na contemporaneidade aparecem muitas obras deste tipo, sobretudo aquelas que salientam o lado desaparecido ou misterioso da cidade. A figura dominante neste tipo da olisipografia contemporânea é Marina Tavares Dias que a partir de 1987 publicou nove volumes de Lisboa desaparecida, para além de outros títulos mais específícos como Rossio pelos olisipógrafos (2002), A Feira da Ladra pelos olisipógrafos (2002), Lisboa de Eça de Queiroz (2001), Os cafés de Lisboa (1999), Lisboa nos anos 40 (1998), Lisboa – past and present (1998), Os melhores postais de Lisboa (1996), Lisboa de Fernando Pessoa (1991), Photographias de Lisboa 1900 (1989) ou Lisboa misteriosa (2004). Um olhar exógeno, por sua vez, apresentase no livro Lisboa mítica e literária (1990) de Ángel Crespo. 2.2. A Lisboa da modernidade literária Quando o russista checo Svatoň analisou as prosas russas oitocentistas, verificou que uma das imagens mais poderosas do século XIX era precisamente a da imagem da cidade. Não a imagem criada a partir da realidade observada, mas a imagem simbólica, baseada na 94 sistematização e apresentação de traços idênticos em autores diferentes (cf. 2002, p. 222). A cidade, portanto, corresponde a uma estrutura da vida humana, a um modelo de existência, sendo também a sede da degradação de valores e relações naturais (cf. Svatoň, 2002, p. 222). Em Portugal, há vários autores no século XIX que inseriram as suas narrativas, peças ou poemas no espaço urbano, não só lisboeta, mas também portuense (p. ex. O Arco de SantʼAna, 1845, 1850 de Garrett, algumas obras de Camilo Castelo Branco e Júlio Dinis) ou conimbricense (p. ex. algumas lendas de Herculano). No que diz respeito a Lisboa, é impossível não lembrar a tradição folhetinesca dos mistérios urbanos (Mistérios de Lisboa, 1854, de Camilo Castelo Branco, O mistério da estrada de Sintra, 1870, de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, O mistério da Rua Saraiva de Carvalho, 1919, de Reinaldo Ferreira etc.), romances/contos realistas e naturalistas de Eça de Queirós (O primo Basílio, 1878, Os Maias, 1888, A capital, 1925, A relíquia, 1887 etc.), Abel Botelho (O Barão de Lavos, 1898), Fialho de Almeida (A cidade do vício, 1882) e muitos outros. Um capítulo muito especial da modernidade literária lisboeta foi, no entanto, escrito por Cesário Verde que enriquece o imaginário lisboeta com uma profunda melancolia e com o tópico da cidade noturna (morta, criminosa, babilónica, babélica e solitária). O poema mais famoso do autor, intitulado “O sentimento dum ocidental” (1880) expõe precisamente um passeio solitário e noturno pelas ruas lisboetas ao modo de “[s]infonia de uma capital, com seus andamentos, da melancolia ao tédio, da miséria à dor” (França, 1993, p. 61). Além disso, o legado de Cesário Verde é perceptível em todos os textos que invocam estas imagens, seja o poeta explicitamente referido ou não. Todos os autores que o precederam, inclusive Eça de Queirós e outros realistas e naturalistas, não ganharam tantos seguidores quanto à “matéria” lisboeta como precisamente este poeta. Era na altura da intervenção da geração de 70 que Cesário começou a escrever e publicar os seus poemas, mais concretamente, no ano de 1873. Por isso, podia estar até certo ponto familiarizado com alguns eventos “revolucionários” que tiveram lugar nesse período, como as Conferência Democráticas do Casino (1871), fundação do jornal O Pensamento Social (1872) e publicação de obras orientadas para a crítica social (p. ex. o conto “Singularidades de uma rapariga loura” de Eça de Queirós ou o poema narrativo A Morte de D. João de Guerra Junqueiro, os dois títulos de 1874). Dificilmente, porém, procurarímos a mesma expressão da crítica social que Eça exprimiu nas suas obras dos anos 70, porque a poesia urbana de Cesário não assenta numa fria racionalidade distante e irónica, típica para o paladar queirosiano, mas é tecida de um material próprio das emoções e sentimentos. É óbvio que as duas poéticas, queirosiana e cesariana, são baseadas no percepcionismo e na estimulação dos sentidos, dos quais a visão é notoriamente a mais privilegiada (porque olhar significa também observar), a 95 poesia de Cesário é, porém, mais dada a várias transfigurações, pelas quais um fenómeno apenas entrevisto pode ganhar uma dimensão emocional e um significado mais ambíguo. Há mais diferenças, obviamente. Repare-se, junto com Eduardo Lourenço, que a crítica não impediu a Eça de Queirós de retratar Lisboa como uma cidade de facto “solar”, enquanto a Lisboa de Cesário, mesmo que realista, é essencialmente sombria, melancólica e onírica: A Lisboa de Cesário é uma mistura da Leiria do Crime e da Lisboa do Primo Basílio de Eça, mas com uma porta de saída onírica que a visão mais naturalista e crítica de Eça não comporta. O universo de Cesário não é um universo pensado, crítico, à maneira de Eça via-Proudhon, é um mundo sentido, palpado e ao mesmo tempo transcendido pelo sonho que é desejo de um lugar-outro, de uma humanidade-outra que inconscientemente o conforta na sua admiração pela força, pela saúde e energia que a memória e o sangue lhe denegam. (Lourenço, 1993, p. 130) De mesmo modo, Eduardo Lourenço percebeu que a poesia de Cesário, tal como a prosa de Eça, era “a expressão de uma nova forma de erotismo, complexa, ambígua, de recorte baudelairiano em superfície, mas sem a fascinação pelo artifício nem o peso de uma culpabilidade absoluta.” (Lourenço, 1993, p. 130). Os dois, com efeito, exprimiram na sua obra um erotismo ambíguo, em que a atração supostamente fatal, exercida pelas aristocratas finas e luxuosas, é logo desconstruída por uma ironia ou sarcasmo corrosivo. No caso de Eça de Queirós é evidente que a maior paixão de toda a sua obra romanesca, a de Carlos de Maia e Maria Eduarda, termina com um fracasso irónico, por se tratar de incesto. Repare-se no procedimento ainda mais ambíguo no caso de Cesário Verde. Por exemplo no poema “Deslumbramentos”, o sujeito poético começa com o elogio à dama: Milady, é perigoso contemplá-la, Quando passa aromática e normal [...] Em si tudo atrai como um tesoiro [...] Ah! Como me estonteia e me fascina... O poema continua com a desconstrução da mesma atração insinuando a frieza da dama (“Pois bem. Conserve o gelo por esposo”) e acaba com os versos que sugerem uma revolta da plebe contra a aristocracia, seu poder e atração magnética: E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas, Sob o cetim do Azul e as andorinhas, Eu hei-de ver errar, alucinadas, E arrastando farrapos – as rainhas! (Verde, 1999, pp. 35-37) 96 Esta ambiguidade poderia ser, talvez, melhor percebida à luz das perturbações de género, às quais o poeta possivelmente tenha sucumbido. A este propósito, Martim de Gouveia e Sousa observa: Muitas das vezes de forma hesitante, cautelosa mesmo, lá vão surgindo, para trás e para a frente, ligeiros mas claros enfoques homográficos e tendências homossexuais na literatura portuguesa e nos seus fautores. Por exemplo, estão «sob suspeita» homossexual Cesário Verde e Silva Pinto, assim como deste existem claras incidências homográficas no conto «Berloque Vermelho» e daquele o estranho designativo para uma irlandesa de «rural boy» (Verde, 1983: 73) do poema «Manhãs brumosas», bem como um indicioso pavor às «carnações redondas» (Verde, 1983: 53) decorrente da composição «Frígida». O mesmo Silva Pinto, autor, como vimos, de um deslembrado conto sobre uma paixão entre dois rapazes escrito na primeira pessoa no ano em que conhecera Cesário (1873), manterá uma relação tempestuosa com um jovem poeta «prodígio» de nome Narciso de Lacerda, com quem passará a viver. (Sousa, 2009, p. 47) Sem invocar as hipóteses acerca da orientação sexual dos autores, convém assumir que esta alusão a um possível, somente implícito, homoerotismo na poesia de Cesário Verde (que não está presente em Eça de Queirós) poderá ser também uma das linhas de leitura de outros textos do modernismo português, não só da geração de Orpheu, como também do modernismo tardio que me interessa neste trabalho. Mas a sintonia entre Cesário e Eça, no que se refere às mulheres, consiste sobretudo no retrato das burguesinhas de luxo, acomodadas ao seu estado privilegiado e abastado, conhecidas de quase todas as obras queirosianas (e especialmente de O primo Basílio) e de alguns versos cesarianos, sobretudo de “O sentimento dum ocidental”. Uma sombra de dúvida paira só no caso da visão futurista de mansões “de vidro transparente”, prevista como um abrigo de “castíssimas esposas” (Verde, 1999, p. 104). Esta imagem surpreende pela deslocação temporal, evocando não só a arquitetura modernista, mas também, do ponto de vista atual, a casa dos programas acéfalos de reality show televisivos que apostam no prazer voyeurista de certo estrato do público espetador. Não contando com esta aberração imaginativa, fica a pairar, por aqui, a pergunta de como imaginar, neste tipo de edifício, um ninho de esposas castíssimas se o vidro transparente, em princípio, revela muito mais em vez de esconder e proteger. A amplificação pelo superlativo, assim, parece uma ironia sarcástica, talvez mesmo dirigida a essas burguesinhas muito católicas, cuja castidade é desmascarada como hipócrita. O vidro transparente, de facto, podia também funcionar como a metáfora do olhar duplo de autor/leitor que tem entrada voyeurística nesses ninhos burgueses de Luísas queirosianas para averiguar do seu grau da castidade a que elas são submetidas pelos princípios 97 da mentalidade patriarcal. Como, porém, estamos na cidade, na época em que se debate a posição da civilização, com todas as suas conquistas técnicas (recorde-se o romance A cidade e as serras de Eça de Queirós), frente a um mundo possivelmente arcaico e genuíno, a metáfora cesariana insere-se dentro de uma vertente da literatura realista e naturalista em que, conforme José Carlos Seabra Pereira, inspirado por Philippe Hamon, são “recorrentes as cenas e imagens de vidro, cristal, superfícies translúcidas, luminosidade penetrante etc., em conexão com o tropismo da informação civilizacional e suas injunções técnico-compositivas” (Pereira, 1992, p. 21). A diferença entre Cesário e Eça, no que diz respeito à imagem do feminino, vê-se contudo nas figuras das mulheres pobres: enquanto Eça entreliga, de maneira micheletiana, um aspeto degradado e coçado de uma mulher que nunca na vida podia contar com alguns favores tanto materiais, como sentimentais, com o caráter de mesmo modo “podre” (p. ex. Juliana de O primo Basílio), Cesário recria a figura de uma pobre engomadeira que, embora feia e doente por não poder ser bem alimentada, emana uma ternura que ganha simpatia não só do sujeito que a espia através da janela, mas também do leitor. De mesmo modo, valoriza o trabalho hercúleo de pobres mulheres trabalhadoras no cais lisboeta que, após um dia de labuta, regressam a um bairro, em que o “peixe podre gera os focos de infecção” (Verde, 1999, p. 99). O universo urbano percecionado e simultaneamente transfigurado de Cesário Verde encontra a sua fértil perpetuação na poética de Livro do Desassossego de Bernardo Soares pessoano, estudado já, a partir da perspetiva do espaço, por La Salette Loureiro (1996) e Maria Fernanda de Abreu (2018), entre outros. As duas investigadoras coincidem sobretudo no facto de valorizarem particularmente as contínuas variações e contrastes de luz e sombra, bem como o aproveitamento dos sentidos, sobretudo da visão e audição. Curiosamente, as duas poéticas, a de Cesário e Bernardo Soares, coincidem não só na plasmação da cidade como um espaço essencialmente sinestésico, mas também na sua coloração que contesta o tratamento cromático estereotipado (sobretudo o branco, como já foi recordado). Veja-se, por exemplo, o motivo da chuva que, na paleta pessoana, adquire a cor amarela e cinzenta. Maria Fernanda de Abreu comenta este espetro cromático com a seguintes palavras: Un “día de lluvia” (título de un fragmento) puede tener, también, colores específicos; puede hacer que el aire sea “de un amarillo oculto, como un amarillo pálido visto a través de un blanco sucio”, puede hacer que haya apenas “amarillo en el aire ceniciento”, puede, en fin, hacer que “la palidez de lo ceniciento” tenga “algo de amarillo en su tristeza” (Abreu, 2018, p. 275). 98 O amarelo é uma cor particularmente interessante, visto que é uma das cores mais caraterísticas da cidade de Lisboa e, ao mesmo tempo, corresponde à cor de larga repercussão na estética do fin-de-siècle e início do século XX. Desde “Les rayons jaunes” (Poésies) de Sainte-Beuve e Amours jaunes (1873) de Tristan Corbière, até a “Primavera amarilla” (Poemas mágicos y dolientes, 1909) de Juan Ramón Jiménez, poemas de Lorca e Rafael Alberti, a cor amarela exprimia tudo que era corajoso, impertinente e extraordinário, tornando-se também a cor da saudade. Como diz Claudio Guillén, o amarelo era a única cor a servir para a concepção moderna da arte (Guillén, 2008, p. 223). O cinzento, por sua vez, corresponde à cor das grandes metrópoles europeias, como se lê em “O sentimento dum ocidental” de Cesário Verde, em que pode simbolizar tanto a monotonia e rotina, como o insólito do espaço que se aproxima da capital britânica (“E os edifícios , com as chaminés, e a turba, / Toldam-se duma cor monótona e londrina”, Verde, 1999, p. 97). Helder Macedo relaciona mesmo esta cor com a imagem de Londres, “cidade monstruosa que se tinha tornado, na literatura do século XIX, num símbolo de desespero, da miséria e da opressão da sociedade industrial”, Macedo, 1986, p. 171). Deve ter sido também esta conotação que mais tarde levou o autor neorrealista Mário Dionísio a eleger esta cor como cimeira nos seus contos lisboetas (O dia cinzento, 1954). Assim, a Lisboa não se apresenta só como uma cidade de sol e de cores alegres, mas antes como uma urbe melancólica. Esta melancolia tem origem na sensação do sujeito cesariano de ser um marginalizado, excluído desse mundo que “parece estar em toda a parte salvo em Lisboa” (Lourenço, 1993, p. 127), sendo desenvolvida numa reflexão de teor pessoal (duplicidade do eu/cidade) e ao mesmo tempo coletiva (mergulho num solo mítico do destino português), evidente tanto em Cesário, como em Bernardo Soares e toda a obra de Pessoa. Esta ideia pode ser ilustrada por um exemplo. Apesar do sol e várias cores, Maria Fernanda de Abreu avisa que a representação da Lisboa de Bernardo Soares é guiada pela ideia de “opressão” (Abreu, 2018, p. 271), demonstrada no fragmento a começar pela frase: “Desde o princípio baço do dia quente e falso nuvens escuras e de contornos mal rotos rondavam a cidade oprimida” (Pessoa, 2006, p. 177) Embora a pesquisadora não avance na interpretação deste indício, para mim de alto interesse, suponho haver um relacionamento entre esta sensação de opressão e os motivos que se seguem no fragmento e entre os quais se contam as nuvens, a parte da barra, o castelo, a parte antiga da cidade, a parte setentrional e a parte oriental da cidade. O olhar, deste modo, contorna o espaço, alcançando as suas fronteiras naturais que é o horizonte. Vale a pena registar o cromatismo das nuvens que, pela parte do norte, se juntaram para formar uma só nuvem – “negra, impalcável, avançando lentamente com garras rombas de branco cinzento na ponta de braços negros” (Pessoa, 2006, p. 178). Maria Fernanda de Abreu comenta tratar-se de 99 uma cena “animada por un angustiado movimiento, que da vida a una ciudad que espera una nube convertida en hombre-monstruo, una tormenta“ (Abreu, 2018, p. 272). Por mais justíssima que esta observação seja, pode avançar-se com maior coragem na interpretação desta cena. Trata-se evidentemente de um registo descritivo sobre a tormenta que se está a aproximar. A sua antropomorfização, essa “nube convertida en hombre-monstruo” nas palavras de Maria Fernanda de Abreu, contudo, evoca duas imagens fantasmagóricas sancionadas pela tradição. A primeira corresponde à imagem de Adamastor camoniano, o gigante de pedra que simboliza o Cabo da Boa Esperança (o antigo Cabo das Tormentas) e cujo aparecimento é, em Os Lusíadas, precedido por uma “nuvem que os ares escurece” (Camões, 1994, p. 213), e cuja imagem é perpetuada em Mensagem (1934) de Pessoa. A segunda imagem que tenho em mente diz respeito à Criatura de Frankenstein, figura composta de diversas partes corporais, retiradas dos mortos, e animada pela descarga elétrica. Nos dois casos, portanto, temos uma “matéria” inanimada levada à vida por via de eletricidade, natural ou artificial, que fornece uma visão alucinatória. Nos dois casos, também, temos um indício de “tristeza” que circunscreve a “vida” dos dois seres míticos, uma vez que ambos estão infelizmente apaixonados, não correspondidos por serem monstros. A descrição da Lisboa sob uma nuvem negra, transfigurada num monstro de tormenta, não pode ser assim lida só em termos de um registo meteorológico, mas também dentro de um código simbólico-mítico como um corpo dorido, condenado pela vis maior a uma existência triste, cheia de saudade do que nunca houve. Maria Fernanda de Abreu, com efeito, afirma, glosando Bernardo Soares pessoano (a paisagem não é um estado da alma, é um símbolo), que a paisagem é um Mistério, a metafísica, e isto lhe traz o desassossego “causado por una dupla herencia romántica y romántico-simbolista, para lo cual solo hallará reposo en la lectura de los clásicos” (Abreu, 2018, p. 286). Nesta perspetiva, a invocação de dois mestres, Cesário e Alberto Caeiro, pode exprimir o desejo de ser diferente do que se é, o desejo de atenuar o fundo romântico-simbólico que Bernardo Soares sente profundamente em si. Assim, de acordo com Maria Fernanda de Abreu: ... la relación con la “ciudad” parece ser vivida por Fernando Pessoa-Bernardo Soares en esa tensión entre el movimiento espontáneo hacia una "identificación del corazón con el paisaje" y, por otro lado, la necesidad de "sosegarse" de ello. Tendríamos, entonces, en estos momentos, la reflexión, la meditación, si se quiere, la metadescripción, la elaboración, incluso, de pasos hacia una teoría de la descripción y, a veces, la ironía y la auto-ironía. (Abreu, 2018, p. 289). 100 A imagem da trovoada é também fundada na perceção auditiva que atesta certos paralelismos com a poesia de Cesário Verde. A mais ilustrativa e talvez a mais conhecida é a imagem “sonora” da última parte do poema “O sentimento dum ocidental”, em que o silêncio noturno é sublinhado por um som que, num ruído diário, seria completamente despercebido: “Um parafuso cai nas lajes, às escuras” (Verde, 1999, p. 103). O facto de se tratar de um som, e não de uma imagem visual, é reforçado pela escuridão, na qual um simples parafuso não pode ser visto. No caso de Bernardo Soares, por sua vez, as suas páginas do diário fictício são também preenchidas de vários ruídos com os quais a cidade se apresenta quotidianamente (p. ex. “os carros eléctricos rosnam e tinem”, p. 102). Entre estes, Maria Fernanda de Abreu chama a atenção para o repetitivo som da chuva, ouvido do quarto, o som “como se fosse de morte” que enche o sujeito de medo, e também o som do vento, em várias escalas de intensidade e registo emocional (também o vento é antropomorfizado ou animalizado quando o seu som é classificado como “soluço” ou “gemido”) (cf. Abreu, 2018, p. 274). Além do registo das várias perceções e sensações que o passeante experimenta ao deambular pelas ruas, é curioso notar como a dimensão do exterior penetra dentro do sujeito observador até convergirem num certo tipo de duplicidade. Embora o tópico da duplicidade tenha sido muito aproveitada na prosa oitocentista, sobretudo no que diz respeito à prosa urbana, este tipo de duplicidade soaresiana é essencialmente modernista: aqui, o eu já não se sente perseguido por um outro ameaçador, como acontecia por exemplo nas histórias de Dostoievski (O duplo, 1849) ou Gogol (Contos de Petersburgo, 1842), porque o eu já não se ilude acerca da natureza da sua fusão com o espaço, assumindo-a conscientemente. Nenhum outro representante do modernismo português exprimiu tão forte simbiose com o espaço lisboeta como Pessoa que, além de Livro do Desassossego e poemas (sobretudo do heterónimo Álvaro de Campos), escreveu também em inglês um texto substancialmente olisipógrafo, O que o turista deve ver (escrito nos anos 30, publicado postumamente), um guia da cidade carregado de informações fatuais, históricas e culturais. Convém salientar que paralelamente à pesquisa olisipógrafa, de teor informativo, abundam nas letras portuguesas muitos textos literários que, nas suas páginas, recriam esse universo tipicamente “alfacinha”, sobretudo dos bairros da cidade velha, com as suas idiossincrasias populares e um certo pitoresco que dá cor e vivacidade aos quadros da vida retratada. Entre os textos deste tipo, escritos na década de 30, sobressai a peça Alfama (1933) de mais um grande representante do modernismo português, António Botto (1897-1959), conhecido sobretudo pela sua poesia invulgarmente pura, melódica e concisa, na qual o autor conseguiu exprimir um tipo de erotismo substancialmente carnal (não muito familiar à tradição 101 da lírica portuguesa). A intriga da peça Alfama, por sua vez, não se centra na problemática do amor homoerótico, como é caraterístico para os poemas de Botto, mas sim num clássico triângulo amoroso que envolve um casal e um pretenso “dandy” de bairro pobre. É bastante curioso que, nesta peça, Botto reflete sobre o adultério feminino, distanciando-se completamente da abordagem positivista vigente no século XIX (O primo Basílio de Eça de Queirós etc.) e privilegiando a perspetiva feminina. Com efeito, a personagem de Júlia, mulher casada com um “proletário” desempregado e alcoólico, a quem de facto sustenta e de quem trata, deixa-se seduzir por um jovem marinheiro, filho da sua senhoria, por quem se apaixonou e de quem esperava um amor “romântico”. Percebendo que não serve para mais que um entretenimento temporário para o jovem, e uma criada para o seu marido, decide-se a sair de casa, entregando-se a um destino incerto, mas em liberdade. Assim, embora haja na casa personagens que reprovam a infidelidade de Júlia, a peça não sucumbe ao ditado do moralismo burguês tradicional. Em vez disso, oferece uma alternativa: a imagem da mulher honesta (porque não mentirosa), frustrada e profundamente magoada. O espaço da peça reduz-se ao interior de uma casa pobre, cuja ligação com o exterior assenta só nos motivos auditivos, cantigas populares cantadas nas ruas por ocasião das festas de S. António, o padroeiro de Lisboa. Este facto também justifica o título da peça. Alfama como o bairro e como o título da peça resume tudo que se percebe por “popular”: tradição festiva, figuras de estratos baixos, linguagem viva e coloquial, pormenores espaciais heteróclitos que “tipificam” o ambiente (oleografias de “Dr. Sidónio Pais, Estaline, e o Senhor Jesus dos Passos da Graça”, “cómoda de vários apetrechos em cima”, “um guarda loiça de estilo complicadíssimo”, “uma mesa bastante tôsca”, uma guitarra, “duas cadeiras de palhinha já usadas”, à janela “uma panela de fôlha ferrugenta com trepadeiras floridas” etc., Botto, 1945, pp. 195-196). É este ambiente popular do bairro de Alfama que será mais tarde retratado por Aleixo Ribeiro (Bairro excêntrico, 1945)64 ou, mais tarde ainda, por Mário de Carvalho (Casos do Beco das Sardinheiras, 1982).65 Ao contrário de Pessoa e Botto, outro modernista ligado ao grupo de Orpheu, Mário de Sá-Carneiro, não demonstrou, nas suas obras, grande afeição em relação à capital portuguesa, mostrando-se especialmente seduzido pela metrópole francesa. Em alguns textos situados em 64 Como se trata já da obra influenciada pela ideologia neorrealista, o retrato do bairro popular é carregado de traços miserabilistas e abjetos que contrastam com o ambiente da Lisboa burguesa. 65 Há ainda outros bairros lisboetas, cujo imaginário tem sido cultivado nas obras literárias. Convém referirse, por exemplo, ao caso de Benfica, bairro de António Lobo Antunes, e ao bairro de Ajuda de Baptista-Bastos (sobre este autor veja-se o estudo “Recolhi nos olhos esta cidade” em Lisboa em Baptista-Bastos, 2015, de Ernesto Rodrigues). 102 Paris (p. ex. no conto “Ressurreição” de Céu em fogo, 1915), a capital portuguesa é mesmo considerada como uma cidade provincial, como uma casa estreita amarela – parentes velhos que não deixam sair as raparigas – luz de petróleo, tons secos, cheiro de alfazema (...) Porque a sua tristeza provinha disto: só na Lisboa medíocre não circulavam mulheres luxuosas na audácia seminua dos últimos figurinos, nem silvavam automóveis pejando as avenidas - não havia museus nem grandes bibliotecas – nem corpos nus nas apoteoses dos teatros – e os cafés eram desertos, e os amorosos não caminhavam de mãos dadas nem uniam as bocas pelas ruas (Sá-Carneiro, s/d, p. 202). Uma relação bastante ambígua, à mistura de amor e crítica lúcida, desvela-se ainda nalguns títulos de José de Almada Negreiros, em que Lisboa constitui um cenário da trama. Trata-se, em primeiro lugar, do romance Nome de guerra (1938), em que o protagonista penetra em vários espaços de boémia, tanto públicos (cafés, hotéis), como privados (casa da prostituta Judite). Para além destes lugares, no entanto, um interesse particular vincula-se à sensação da multidão urbana. O empenho do protagonista é “misturar-se com a multidão, fazer parte da humanidade” (Negreiros, 2001, p. 44), mas este lugar do indivíduo na multidão é visto, conforme La Salette Loureiro, “como um número e não como uma pessoa, tal como em Baudelaire” (Loureiro, 1996, p. 353). A mesma investigadora salienta também que, nas suas deambulações pelas ruas, o herói é assaz sensível à iluminação noturna das ruas e casas, cuja atmosfera íntima lhe evoca valores tradicionais de um lar de família (cf. 1996, Loureiro, p. 352). Recorde-se também que é precisamente o motivo da iluminação das ruas, das projeções de luz e sombra, com que o legado de Cesário Verde é repercutido até numa obra de proveniência caboverdiana, novela Recaída (1993, ed. póstuma), de António Aurélio Gonçalves.66 Nesta novela, situada no Mindelo, há inclusive um capítulo intitulado “Nas nossas ruas, ao entardecer” que parafraseia o primeiro verso de “O sentimento dum ocidental”, em que o protagonista deambula pelas ruas nas horas crepusculares (“A claridade das lâmpadas distantes apanha as frontarias do lado oposto, caindo sobre elas obliquamente, de tal maneira que ficam frouxamente iluminadas, como por reflexos.” Gonçalves, 1993, p. 57). Sugestivo é também o nome da rua onde o herói vagueia, Rua de Lisboa, bem como o aspeto de uma outra rua, à qual ele chama Rua das Sombras, que de dia “tem a banalidade e a completa ausência de gosto de uma velha rua mindelense” e que à noite se transforma numa “rua velha e carcomida, sobrevivendo numa cidade em ruínas” (Gonçalves, 1993, p. 59). 66 Embora seja a última novela publicada do autor, trata-se de um dos seus primeiros escritos. 103 O tópico de uma urbe noturna e sombria (ou mesmo “em ruínas”), é de facto a vertente dominante não só em Cesário Verde e Gonçalves, mas também em autores do grupo de Presença que surgiu em 1927 em Coimbra em torno da revista homónima, fundada e dirigida por José Régio, Branquinho da Fonseca e Edmundo de Bettencourt, aos quais em breve se juntaram outras grandes personalidades da chamada “geração de 30”. Quando os dois ultimamente mencionados saíram da Presença em 1930 (junto com Miguel Torga), o grupo não perdeu nada do seu fôlego, acolhendo outros nomes (João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro, Saul Dias, Carlos Queirós etc.) que ganhariam reputação como autores e/ou exímios críticos literários. Apesar de vários ataques que a Presença teve que enfrentar, sobretudo a partir de 1937, devido à crescente necessidade de refletir a realidade conturbada,67 é preciso não esquecer que a Presença contribuiu substancialmente para a consolidação do modernismo na literatura portuguesa e, além disso, para a consciencialização da necessidade de abertura, sinceridade e originalidade estética que foi elevada ao ponto cimeiro de toda a produtividade artística. Por isso, a Presença queria figurar como “literatura viva” (Régio), em que, conforme João Pedro de Andrade, o humano se torna coletivo mas com raiz individual (Andrade, 2003, p. 18). Um dos melhores balanços desta discussão geracional foi exprimido também por João Pedro de Andrade, na revista O Diabo de 3/4/1938, em que o crítico afirma afigurarem-se-lhe “por igual estreitas e opressivas para a arte as fórmulas que dizem: De hoje em diante o artista só poderá revelar o seu mundo interior; ou: No futuro só as obras que se integrarem no social serão dignas de interesse.” (Andrade, 2003, p. 32) Evidentemente, nem um, nem outro dogmatismo é saudável para a arte e por isso, só as verdadeiras obras de arte, sejam psicologistas, sejam de inspiração social, sobreviveram até ao presente. Além disso, as duas correntes não se encontravam em pólos antagónicos no plano político, a sua disputa assentava só no aspeto estético-ideológico. Do ponto de vista atual, até se mostra desnecessário fazer uma clara demarcação entre o psicologismo presencista e a arte social neorrealista, visto que, no fundo, as duas tendências estão presentes precisamente nas melhores obras da época. A este respeito, Vítor Viçoso, estudioso da ficção neorrealista diz que “nem o psicologismo da 67 A polémica com os neorrealistas baseava-se na imcompatibilidade da conceção da arte presencista (sem engajamento político e social) com a crise em se encontrava o país e toda a Europa nos anos 30. Nestas circunstâncias, o subjetivismo e psicologismo presencista foi facilmente derrotado, na polémica que cumulou em 1938-39 com a posição de Álvaro Cunhal. Muito mais tarde, a arte de Presença tornou-se também um alvo de certa crítica para Eduardo Lourenço, o qual já não a comparava com a arte neorrealista, mas com o grupo de Orpheu. É bem conhecida a sua afirmação tratar-se no caso de Presença de uma “contra-revolução” em relação à revolução estética de Orpheu. Mas é impossível cotejar os dois grupos pela mesma medida, porque o que se deu em 1915 não se pode repetir sem o prejuízo da perda da originalidade. Como João Pedro de Andrade afirma “1927 não era 1915. Havia já uma tradição poética à margem do embalador lirismo português. Com os homens do Orpheu e das revistas relâmpagos que lhe sucederam, as fórmulas métricas tinham sido sacudidas e a renovação do estilo poético fora feita. Todas as audácias inovadoras de agora empalideciam ante as do passado.” (Andrade, 2003, p. 46) 104 Presença esteve totalmente afastado da literatura neo-realista, nem a socialidade como tema literário, apesar da centração egotista, esteve arredada dos pressupostos de alguns presencistas” (Viçoso, 2011, p. 51). A inimizade dos neorrealistas em relação a Presença deveu-se talvez, nas palavras de Viçoso, a “um certo provincianismo cultural” e a “uma luta pelo hegemonismo cultural” (2011, p. 51).68 De qualquer maneira, é nos anos 30 do século XX que começam a aparecer verdadeiras jóias da arte narrativa e este legado será plenamente desenvolvido nas décadas seguintes, nas quais a literatura portuguesa, de rica tradição “lírica”, assume a narratividade romanesca ou contística como um dos seus aspetos mais poderosos. Assim, são publicados, nesta década, romances de José Régio (Jogo da cabra cega, 1934), José de Almada Negreiros (Nome de guerra, escrito 1925, publicado 1938), João Gaspar Simões (Elói ou romance numa cabeça, 1932), Joaquim Paço d’Arcos (Ana Paula: perfil duma lisboeta, 1938), Aleixo Ribeiro (Bússola doida, escrito 1932, publicado 1938), Ferreira de Castro (Eternidade, 1933 e Terra fria, 1934), Fernando Namora (As sete partidas do mundo, 1938), romances, novelas e contos de Aquilino Ribeiro (O homem que matou o diabo, 1930, A batalha sem fim, 1932, As três mulheres de Sansão, 1932, Sonhos de uma noite de Natal, 1934, Quando ao gavião cai a pena, 1935), narrativas de Branquinho da Fonseca, José Rodrigues Miguéis e Irene Lisboa ou peças e poesia de António Botto. Neste quadro, os autores escolhidos para o presente trabalho pertencem aos mais representativos. Dos outros aqui não analisados há os que não escreveram sobre Lisboa em dado período (casos de José Régio ou Ferreira de Castro, por exemplo) ou aqueles, cuja obra não se eleva, a meu ver, ao ponto cimeiro no que diz respeito à sua qualidade (caso de Joaquim Paço d’Arcos). Dos autores aqui analisados, só Branquinho da Fonseca fez parte do grupo da Presença (que, como já foi referido, abandonou em 1930), com o qual Irene Lisboa simpatizou e colaborou, enquanto Aquilino Ribeiro e José Rodrigues Miguéis ficaram à margem, apesar de terem absorvido e interiorizado várias técnicas e tópicos dos quais os próprios presencistas se alimentavam. O que têm todos os autores mais ou menos em comum é o facto de quase todos estarem, na década de 30, no início da sua carreira literária. Branquinho da Fonseca publica a coletânea de poesia Mar coalhado (1932)69 e as coletâneas de contos Zonas (1931-1932) e Caminhos magnéticos (1938), mas as obras mais conhecidas, nomeadamente O Barão, Rio turvo e Bandeira preta, só sairiam mais tarde (1942, 1945 e 1956, 68 Vítor Viçoso também afirma, pertinentemente, que por exemplo a novela Davam grandes passeios aos domingos (1941), de José Régio, “onde o drama amoroso de Rosa Maria se articula magistralmente com os códigos socioculturais provincianos poderia caber perfeitamente no campo neo-realista”. (Viçoso, 2011, p. 51) 69 Antes só havia publicado uma coletânea de poesia (Poemas, 1926). 105 respetivamente). Quanto a José Rodrigues Miguéis, a novela aqui trabalhada (Páscoa feliz, 1932) é a sua estreia a que se seguem todos os outros títulos marcantes, publicados entre os anos 40 e 80. O mesmo é válido para Irene Lisboa (só com a exceção de um título de contos infantis). O diário ficcionado Solidão – notas do punho de uma mulher, publicado em 1939 sob o pseudónimo de João Falco, é a sua primeira obra de relevância. A exceção é aberta para Aquilino Ribeiro que publicou já a partir do início do século XX (desde 1913 com Jardim das tormentas)70 . Outro traço comum é, com exceção de José Rodrigues Miguéis, a sua proveniência provinciana, apesar de Irene Lisboa poder ser considerada como naturalizada, tal não é válido para Branquinho da Fonseca e Aquilino Ribeiro que, mesmo vivendo em Lisboa por um período mais ou menos longo, não podem ser tidos por “lisboetas”, uma vez que o amor às terras da Beira, onde os dois nasceram, transparece em muitas das suas obras antes ou depois dos anos 30. O clima literário predominante na década de 30, o psicologismo e introspetivismo com alguns traços de um crescente interesse pela problemática social, verifica-se como influente também na obra dos autores estudados, com maior intensidade na novela migueisiana e na prosa ireniana e com um afrouxamento nas narrativas aquilinianas, onde um interesse pela dimensão social-coletiva é bem marcante. Em todos os casos, não obstante, o espaço urbano, lisboeta, determina o comportamento, sensibilidade e mentalidade das personas/personagens literárias e constitui-se, no plano diegético, não só como uma coordenada espacial, mas assume o verdadeiro protagonismo nas obras abordadas. 70 Na sua bibliografia consta ainda o título A filha do jardineiro (1907), o qual, no entanto, não foi reconhecido pelo autor como a sua estreia. 106 3. Deambulando pela cidade de sombras Agora, quando fechados às duas da noite, os cafés e as tascas, amadornada a luz dos lampiões, a viação parada, a vida extinta, algum tresnoitado se aventura a errar pela cidade, súbito, das negridões dos bairros quietos, uma Lisboa diferente irrompe em sobressaltos, dos abismos das ruas, dos lagos de sombra das praças, e das crateras extintas dos outeiros; uma Lisboa outra e toda ela latente de tragédias. Fialho de Almeida: “Fantasmagorias da noite” No seu ensaio sobre a cidade na literatura, Álex Matas Pons declara que os inícios da poética urbana coincidem com o início da era burguesa no século XVIII, desenvolvendo esta questão na reflexão sobre a modernidade da cidade, revolução demográfica e revolução administrativa (cf. 2010, pp. 227-230). O fenómeno migratório corresponde sem dúvida a um dos maiores impulsos do crescimento das cidades modernas. Por isso era frequente, na literatura do século XIX, retratar a cidade como um monstro que devora os recém-chegados. Raymond Williams recorda, nesta conexão, que já em 1783, Tucker considerava Londres “a kind of monster, with a head enormously large, and out of all proportion to its body” (Tucker apud Williams, 1993, p. 146). Mais tarde, também Dickens não poupa com os atributos negativos ao descrever a capital britânica: Day after day, such travellers crept past, but always [...] in one direction – always towards the town. Swallowed up in one phase or other of its immensity, towards which they seemed impelled by a desperate fascination, they never returned. Food for hospitals, the churchyards, the prisons, the rivers, fever, madness, vice, and death. They passed on to the monster, roaring in the distance, and were lost. (Dickens apud Williams, 1993, p. 159) Ao mesmo tempo, o crescimento da cidade (e da sua importância na estrutura social e económica de cada país) tem aportado o fenómeno adjunto: a ascensão da burguesia e um caráter “comercial” da sociedade. No caso de Londres, contudo, o caso foi mais interessante por terem sido criadas duas partes antagónicas da cidade, West End and East End e, enquanto a primeira se tornou o sinónimo do êxito comercial, riqueza aristocrata e burguesa, a outra parte constituiu-se como industrial, com muitos problemas de teor social. Já nos fins de oitocentos, East End adquiriu o epíteto de “Darkest London”, expressão do lado sombrio e espetral de West End que era a parte favorecida e luminosa. Neste sentido, como Williams afirma, a imagem de East London penetrou na literatura: “A predominant image of the darkness and poverty of the 107 city, with East London as its symbolic example, became quite central in literature and social thought” (1993, p. 221). A imagem disfórica, tal como foi aplicada à cidade de Londres, pode ser detetada também na literatura portuguesa dos fins de oitocentos. 71 Na segunda metade do século XIX, o estatuto de Lisboa como metrópole europeia era duvidoso. Na perspetiva dos inteletuais da Geração de 70, como é bem sabido, Portugal (e, por extenso, todo o espaço ibérico) estava em decadência. Não é de estranhar, portanto, que a élite portuguesa de oitocentos, instruída, consciente da posição de Portugal na periferia europeia, se deixou atrair pelos centros europeus cultural e industrialmente desenvolvidos, em especial pela “capital” europeia do século XIX, Paris. Nessa altura, a atenção dos jovens autores portugueses centra-se no tratamento literário de Lisboa como a metonímia de todo o país. Lisboa torna-se cenário dos romances realistas de Eça de Queirós: nestes, mostra-se o mundo burguês, bem como certos círculos aristocráticos, dominados pelo snobismo e pela ilusão do amor romântico. Tendo por objetivo aproximar, de um modo verosímil e objetivo, os estratos sociais mais altos da sociedade lisboeta, Eça de Queirós retrata, na sua prosa, sobretudo os lugares destinados ao lazer e descanso, tais como passeio público, teatros e casitas/quartos chamados paraísos que servem a encontros amorosos clandestinos.72 Contudo, por detrás destes lugares eufóricos, convenientemente expostos, encontra-se a face obscura da cidade, o mundo dos bas-fonds urbanos, cuja proveniência é muitas vezes rural, do interior do país, e que espera encontrar, na cidade, melhores condições de vida. Precisamente no último quartal do século XIX, sob influência das mudanças socioeconómicas relacionadas com a revolução industrial, Lisboa transforma-se substancialmente. A cidade cresce, torna-se “tentacular”, engole os arredores e, com isso, dá lugar aos novos 71 Não contamos neste tipo da moderna literatura urbana os vários romances-folhetim, chamados “mistérios”, tornados moda na primeira metade do século XIX, após a publicação de Les mystères de Paris de Eugène Sue e logo seguidos por vários outros autores na tentativa de inserir uma ação atraente nas cidades de própria proveniência (Londres, Madrid, Praga, Lisboa etc.). Mas embora estes romances se tenham centrado na trama aventureira, sensacional ou policial, em detrimento de uma sondagem mais aprofundada do caráter do espaço urbano e relações que o compõem, é-lhes devida uma importância por terem chamado a atenção para as idiossincrasias do espaço urbano e, especialmente, para as questões sociais, até essa altura pouco abordadas na ficção. É também indubitável que os traços sombrios do espaço urbano, preferidos nesses textos, podem ser vinculados com a poética urbana finissecular, em especial com o tópico da cidade morta. Além disso, os folhetins determinam também uma nova atitude relativamente à literatura que, literalmente, “desce” do pedestal elitista e sábio ao povo. Este aspeto de popularização da literatura é, com efeito, mencionado também por Álex Matas Pons como um traço reforçador da moderna cultura de caráter comercial que se põe em marcha através da imprensa (cf. Pons, 2010, p. 247). 72 A respeito de “paraísos”, Fialho de Almeida comenta, de um modo sarcástico muito dele: “A instituição dos paraísos, primeiro exclusiva dalguns estrinas maçados de apanhar piolhos nos prostíbulos, veio-se generalizando um pouco entre ces dames, para evitar a constatação dos flagrantes delitos do trintanário francês, incómodos sempre que o contrato nupcial não defende ou garante a fortuna da esposa, e para também um pouco vestir esses amores banais do romanesco que a iminência dum escândalo quase que chega a dar às coisas sem sabor.“ (2011, p. 36). 108 bairros operários, nos quais se geram as sensações de desenraizamento e alienação.73 Se em 1878, conforme apontado por José-Augusto França, o censo oficial da população indicava 187 mil habitantes de Lisboa e mais 40 mil de Belém e Olivais, em 1890 eram já 301 mil habitantes (1989, p. 71). À base de testemunhos de viajantes, o mesmo ensaísta frisa também que em fins do século XIX Lisboa se definia, aos olhos dos estrangeiros, como uma cidade “banal”, “triste e solitária”, “pretensiosa e ridícula” (1989, p. 75). A cidade luminosa, alumiada a gás no século XIX, e com um primeiro lugar (Chiado) a ser eletrificado em 1878,74 ensombra-se simbolicamente. A imagem da sociedade abastada e ociosa é substituída pela imagem das ruelas lamacentas e pestilentas, onde vivem os pobres. Também os bairros antigos, como Alfama, Mouraria ou Bairro Alto, degradam-se, tornando-se um foco de vício e crime. Embora este segundo tipo do imaginário lisboeta faça em geral parte da estética naturalista,75 é indubitável que a sua melhor representação artística se encontra na obra de autores desviados das normas realistas e naturalistas, os quais, insatisfeitos com a perspetiva objetiva, tentaram oferecer a sua própria visão da sociedade. Nestas obras, a cidade transforma-se numa urbe decadente, neurótica e agonizante, assemelhada ao imaginário infernal de “città dolente” de Dante .76 3.1. A noite/morte lisboeta Uma das imagens urbanas poderosas que surgem na época do fim do século XIX ajustase perfeitamente à sensibilidade finissecular e ao seu cultivo da decadência e finitude. Trata-se do tópico da urbe morta, ligado a cidades como Bruges, Veneza, Toledo ou Petersburgo, nas quais a água se casa com a pedra, muitas vezes numa atmosfera voluptuosa de agonia, de decomposição e miasma simultaneamente repelente e (fatalmente) atraente.77 Noutras obras, ainda, retratam-se nos mesmos tons crepusculares as cidades antigas, testemunhas de glórias 73 A urbanização de Lisboa contou, por volta de 1880, com algumas modificações, dentro das quais “cabiam agora bairros apropriados para habitação de operários que, no lento desenvolvimento fabril da capital, iam vivendo em precárias condições” (França, 1989, p. 76). 74 Como José-Augusto França informa, nos anos 50 do século XIX, as ruas e casas eram já iluminadas a gás (1989, p. 62). 75 Por exemplo, nos romances Filho das Ervas (1900) de Carlos Malheiro Dias ou Os Famintos (1903) de João Grave. 76 Veja-se o meu estudo “The myth of the dead city in Portuguese fiction at the turn of the nineteenth and twentieth centuries“ (2017). 77 P. ex. Bruges-la-Morte (1892) de Georges Rodenbach, Der Tod in Venedig (Morte em Veneza, 1912) de Thomas Mann, La mort de Venise (1903) de Maurice Barrès, Petersburgo (1916) de Andrei Béli, Itália coroada de rosas (1909) de Justino de Montalvão etc. 109 passadas, como Micenas,78 ou então as cidades decadentes, esquecidas, paradas, herdeiras de um passado colonial que, enfim, provam a transmissão do tópico finissecular ao solo sul- americano.79 Também na produção poética da segunda metade do século XIX encontram-se dispersos os semas da cidade morta, recorrendo-se frequentemente ao tema de passeio pela cidade (nalguns casos – como nos poemas de Baudelaire, de flânerie), por meio do qual é veiculada uma específica poética e mitologia urbana.80 Convém mencionar, a título de exemplo, um poema de Christina Rossetti, de inspiração romântica (“Dead City”, 1847), em que o sujeito lírico passa por um rico banquete, sopesado de fruta, cujos comensais, devido a um luxo desmedido, se revelam petrificados. Outro poema importante é “The City of Dreadful Night” (1874) de James Thomson, em que os leitores reconheceram a imagem distópica de Londres, símbolo da humanidade no seu aspeto horrífico, e que serviu de inspiração ao famosíssimo poema modernista The Waste Land (1922) de T.S. Eliot (cf. Crawford, 1990, p. 41). Um paralelo interessante desenha-se igualmente entre este poema (e também The Waste Land) e “O sentimento dum ocidental” de Cesário Verde. As duas imagens urbanas, de Londres e Lisboa, respetivamente, acusam a inspiração dantesca, a sua passagem pelas esferas infernais (cf. Reckert, 1989, p. 18).81 A evocação de Londres, com efeito, surge no próprio texto de Cesário, ao se referir à cor “monótona e londrina” (Verde, 1999, p. 97). Também a caraterística geral do poema de Thomson, definida pertinentemente por Raymond Williams como “a symbolic vision of the city as a condition of human life” (Williams, 1993, p. 236), pode ser aplicada ao poema de Cesário Verde, visto que o imaginário urbano, recriado à base de metáforas que ressoam na intimidade do sujeito, exprime o drama humano. Todos os sentimentos expostos neste poema se encaminham na mesma direção. Tudo o que o sujeito vê, percebe e experimenta na objetividade urbana, se reflete no seu interior, até esse estranho “desejo de sofrer” que é absurdo porque, como diz Helder Macedo, “lhe é imposto irracionalmente, por contágio da própria cidade (Macedo, 1986: 171), exprime o mesmo teor emocional. Nos dois textos, de Thomson e Verde, o ambiente apresentado é quase terrífico, senão mesmo assombrado. A intensidade 78 P. ex. La Città Morta (1899) de DʼAnnunzio. 79 P. ex. Cidades Mortas (1919) de Monteiro Lobato ou La ciudad muerta (1911) de Abraham Valdelomar. 80 Um tanto à margem, é curioso referir que a imagem de Lisboa como urbe morta (embora deslocada do período decadentista hegemónico) aparece inscrita num poema inédito de Sérgio Pachá, amigo de Ruy Belo. O poema “Morte em Lisboa” (1967) de Pachá, com efeito, pode ser considerado, simultaneamente, uma homenagem à capital portuguesa (Pachá era brasileiro) e ao mito da cidade morta, codificado pelas obras como Morte em Veneza de T. Mann. O poema que curiosamente acusa certos traços decadentistas (p. ex. o léxico como amplexo, silente, pubescente) é transcrito num curto ensaio de Ruy Belo (1984, pp. 221-224). 81 Recorde-se que, embora no sentido em tudo diferente, Cesário explicitamente alude a Dante no poema “Impossível”: “Eu posso amar-te como o Dante amou / Seguir-te sempre como a luz ao raio” (Verde, 1999, p. 153). 110 melancólica, de um horror subtil e psicológico, é no poema cesariano redobrada pela presença de um pedinte excêntrico – o velho professor de latim (a evidente alusão ao Canto XV de Inferno de Dante, em que é apresentado Brunetto Latini, o mestre de Dante), de velhinhas e crianças nas prisões, de soldados “sombrios e espectrais”, de “dúbios caminhantes” ou de cães errantes que, à noite, “parecem lobos”).82 Além disso, os atributos como sinistro (mar), sepulcrais (prédios), triste (cidade) ou mórbido (me sinto) contribuem para a relevância da isotopia da morte, presente também em grande dose no poema do autor inglês, em que a cidade representa a morte na vida.83 O retrato de Lisboa, feito por Cesário, é um pesadelo; é uma imagem de solidão, alienação e desespero dos pobres e marginalizados que formam o outro lado da vida lisboeta. Seria puramente hipotético, mas aliciante, pensar que nesta imagem infernal da capital portuguesa se reflete algo do sofrimento pessoal sentido pelo poeta na altura da escrita do poema, tendo já perdido a irmã, em 1872, ao falecimento da qual seguiria o do irmão, em 1882, e o do próprio poeta em 1886, todos vítimas da tuberculose. De facto, como alega Joel Serrão, “[m]esmo no período dionisíaco de 1874, a morte era já, em Cesário, a vera efígie das coisas” (Serrão,1986, p. 12).84 A cidade, portanto, pode ser já sentida através desse filtro de vírus que infeta o seu espaço, literal e metaforicamente, uma vez que nessa época, conforme António Carlos Cortez, “[t]al como na Londres vitoriana, surtos de cólera, tifo e peste, além da tísica e da sífilis, faziam parte do quotidiano das cidades negras do século que viu nascer mitos literários que de algum modo espelham os perigos de uma industrialização caótica em que o crime, a luxúria e a depressão se concluem.” (Cortez, 2020, p. 16) O imaginário noturno e, até certo ponto, mórbido, prevalece na obra de dois autores que, ao lado de Cesário, constituem um paradigma da distopia lisboeta, Fialho de Almeida (1857– 1911) e Raul Brandão (1867–1930). Veja-se primeiro o exemplo da prosa de Fialho de Almeida que, afastando-se gradualmente do naturalismo, desemboca num esteticismo alucinatório. Esta poética da despolarização do real, analisada por Isabel Cristina Pinto Mateus (2008) em 82 Para além de estabelecer o nexo intertextual com o inferno de Dante, a enigmática referência ao velho professor de latim sugere ainda a ideia da devoração das figuras antigamente privilegiadas. A este respeito, Álex Matas Pons recorda que no texto “Les foules”, Baudelaire expôs a figura de um poeta que, dentro da massa anónima da cidade, perde a sua auréola, tornando-se um qualquer, um homem indistinto dentro da multidão porque a burguesia, na opinião de Marx, retomada por Pons, “ha despojado de su aureola a todas las profesiones que hasta entonces se tenían por venerables z dignas de piadoso respeto. Al médico, al jurisconsulto, al sacerdote, al poeta, al sabio, los ha convertido en sus servidores assalariados” (Pons, 2010, p. 249). 83 Em 1872, o pintor Gustave Doré com Blachard Jerold fizeram um percurso pela cidade de Londres, o qual ficou registado no livro London A Pilgrimage. O livro é largamente ilustrado por Doré que, desse modo, deixou um precioso testemunho humano da capital inglesa oitocentista. Estes desenhos, de facto, salvo todas as diferenças geográficas, arquitetónicas e culturais, poderiam de certo modo servir também como ilustração do poema cesariano, pelo menos no que diz respeito aos seus aspetos mais lúgubres e, por isso, mais perturbantes. 84 Repare-se, por exemplo, no poema “Setentrional” com os versos: “E eu passo tão calado como a Morte / Nesta velha cidade tão sombria” (Verde, 1999, p. 40) 111 contraste ao processo de “kodakização” ou seja, à representação mimética, pode ser muito bem observada nas histórias situadas em ambiente urbano, nas quais predomina a atmosfera sombria e em cuja emocionalidade ressoa uma certa piedade para com os indefesos e sofredores. Nestas prosas, de vocação expressionista e grotesca, o espaço anima-se, tornando-se um refúgio de vários espetros e alucinações. Interessantes são, nesta perspetiva, os microespaços que poderiam ser denominados, de acordo com Michel Foucault, de heterotopias. Nas prosas de Fialho de Almeida dominam sobretudo as heterotopias do cemitério e do hospital que se apresentam como cidades dentro de cidades, nas quais a vida se relaciona com a morte. Na novela “A Ruiva” (Contos, 1881), por exemplo, o cemitério é descrito como a “gélida cidade de cadáveres” (1996, p. 19), em cujo solo cresce a hortaliça, vendida pelo coveiro no mercado. Porém, o cemitério apresenta-se aqui também como um monstro à espera das suas vítimas, cuja porta costuma ser “escancarada sempre, como a goela dum plesiossauro” (1996, p. 19). Por fim, trata-se também de um espaço de iniciação da jovem Carolina, filha do coveiro, que se sente no cemitério como rainha na sua cidade, aprendendo a ler graças às inscrições nas sepulturas e sentindo a primeira perturbação erótica ao tocar os corpos de jovens falecidos. No conto “Três Cadáveres” (O País das Uvas, 1893) de Fialho de Almeida, o cemitério é tratado de uma forma ainda mais expressionista como uma necrópole dividida em bairros conforme o estatuto social. Assim, os ricos “passam a estrume entre confortos” no bairro de mármore, “burilados de alhambras e de estátuas”, os menos ricos têm habitações mais modestas e, finalmente, os pobres amontoam-se nos “arrabaldes, cavernas e buracos” (1987, p. 241). Esta onírica “Gomorra submersa” (1987, p. 241) anima-se no sonho do protagonista, João da Graça, estudante de medicina: as multidões ameaçantes dos mais pobres levantam-se, em forma de espetros amorfos e fosforescentes, da cova comum, e, silenciosamente, transferem-se para os bairros dos ricos, onde, tal como em vida, continuam as festas galantes. Às portas dos lupanares, os bêbedos, apesar de mortos, continuam a estar embriagados pelo absinto e aguardente. As prostitutas corcundas, de língua entumescida, saúdam os seus hóspedes. Alguns mortos, meio engolidos pela terra, esforçam-se por se levantar, em vão. A cidade dos mortos torna-se a mesma sementeira dos vícios como a cidade dos vivos. É de supor, apesar de não haver nenhumas provas para tal, que estas e parecidas cenas inspiraram mais tarde a obra simbólicodecadente de Raul Brandão, em especial o seu imaginário apocalíptico-visionário de Húmus (1917). No mesmo conto acentua-se também o tópico do hospital como uma outra heterotopia, apresentada de uma forma ainda mais terrífica que o cemitério. Enquanto na cidade subterrânea, os mortos continuam a “viver” a sua “vida” grotesca, nos hospitais, os doentes só sofrem. Trata- 112 se de um lugar soturno, glacial, infecto e cheio de larvas desde os alicerces até à clarabóia do teto. Nas enfermarias, os pacientes mais pobres perdem quaisquer ilusões sobre a possível cura e reconvalescência. Uma delas, Marta, morena frágil, delicada e sensual, adoece após ter sido seduzida e abandonada pelo amante e, depois, rejeitada pelo seu pai. É precisamente esta mulher tuberculosa, bela e melancólica, que se torna um objeto de adoração de João da Graça. Amandoa em vida, platonicamente, como a uma madona, ama-a depois da morte, protegendo o seu corpo perante o “sacrilégio”.85 Também no conto “O Roubo” (Cidade de vício, 1882), a enfermaria corresponde a um lugar tenebroso que gera sensações de solidão e medo, transfigurando-se num espaço espetral: os cones ténues da luz, arremetidos da abóbada para o meio do âmbito podre, criam sombras misteriosas nos cantos e nas paredes; o espaço é assombrado por fantasmas reais e imaginários. A imagem mais impressionante da Lisboa finissecular que atinge a dimensão mítica de uma cidade morta pode ser encontrada nas crónicas fialhianas “De noite” e “Madrugada de inverno” da coletânea Lisboa galante (1890). Na primeira crónica, o narrador passa pela cidade noturna ao mesmo tempo que, ao modo de Cesário Verde, recolhe as sensações visuais (“os lampiões de gás acendem as suas luzinhas vermelhentas”, “as lojas iluminam as suas étalages”, “o céu ganhou uma cor de nanquim lúgubre” etc., 1994, p. 122) e auditivas (os sinos, os garotos a apregoar os jornais, o “ronronar” da cidade, “ruídos multíplices” etc., 1994, p. 122). Do cimo da colina, a cidade transfigura-se numa “indefinida necrópole” (1994, p. 122), numa urbe agonizante.86 O narrador passa a vista por algumas dominantes lisboetas (a Baixa, o Rossio, o monte do Castelo etc.), sustendo-se, por fim, nos edifícios de hospitais, os “canzarrões dantescos” (1994, p. 124), que “ladram” aos transeuntes. A comparação fialhiana de Lisboa com a cidade morta baseia-se sobretudo na dimensão social porque é precisamente nesta visão 85 A sua descrição (a tísica bonita, “cuja graça faz dos sofrimentos a mais sublime obra de arte”, de “magreza diáfana”, de “corpo que pesava uma folha de magnólia”, de “face de mágoa divina, espiritualizada com brilhos de cera virgem”, 1987, p. 216) evoca a arte pré-rafaelita e sua imagem da femme fragile. Ao lado da cocotte sedutora, este tipo feminino pertence aos mais prediletos de Fialho de Almeida. Semelhantemente, aparece também em “Madona de Campo Santo” (Cidade de vício), em que uma bela tuberculosa (invulgar pelo facto de se alimentar só de pétalas de rosa) funciona primeiro como um objeto de desejo de um jovem escultor, mais tarde (quer dizer, após a morte), figura também como o seu modelo artístico. . 86 É provável que Fialho de Almeida se tenha inspirado pelo “Epilogue” (Petits Poèmes en Prose, 1869) de Baudelaire, no qual o sujeito lírico observa a cidade de Paris, da perspetiva de voo de pássaro: “Le cœur content, je suis monté sur la montagne / Dʼoù lʼon peut contempler la ville en son ampleur, / Hôpital, lupanar, purgatoire, enfer, bagne…” (Baudelaire, 1972, s/p). A visão fialhiana de Lisboa como necrópole contrasta substancialmente com a perspetiva de algumas personagens queirosianas, do jovem seminarista Amaro, antes de se tornar no hipócrita Padre Amaro, ou de Artur Corvelo, idealista romântico do romance A capital! (1925, escrito 1877). Na perspetiva deste último “[a] cidade cavava-se em baixo, no vale escuro, picado dos pontos de luz das janelas iluminadas, e, na escuridão, os telhados, os edifícios, faziam um empastamento de sombras mais densas! Aquelas luzes, debaixo daqueles tectos, que fermentação de vida! Quantos amores, quantos mistérios, crimes talvez! (...) Que grande, Lisboa!” (Queirós, 2015, p. 132). 113 noturna que Lisboa se metamorfoseia num “monstro escamoso e fosforente” (1994, p. 124), cujo sistema nervoso é transido de miséria e dor. Na segunda crónica, intitulada “Madrugada de inverno”, o narrador também passa pela cidade “morta”, sinistra e sepulcral, observando as estranhas “almas” humanas que ainda podem ser encontradas de madrugada numa Lisboa vazia e que parecem ser umas figuras grotescas de um outro mundo, espetral (um velho que “traz o casaco logo por cima da carne sem camisa” que circula pela cidade, debatendo consigo “um velho caso trágico de outrora”, um outro que aos saltos aparece e desaparece como um pássaro de noite, um anão que não fala nem se mexe, “só o seu olho torto vai rolando numa melancolia agourenta” etc., 1994, p. 188).87 Estas figuras extravagantes e pouco comuns na literatura portuguesa antes de Fialho de Almeida merecem piedade não só do narrador, mas também do leitor. São a expressão da cidade moderna, na qual germinam as sensações de alienação, a neurose e loucura. Trata-se de novos heróis de uma nova epopeia, escrita pelos autores na época do crepúsculo da civilização. O imaginário expressivo e emotivo de Fialho de Almeida foi acolhido pela seguinte geração de autores portugueses, conhecida como a geração de 90, na qual se destaca a figura de Raul Brandão. Quanto à abordagem do tópico urbano, convém mencionar o seu romance Os pobres (1906), em que o espaço se interioriza, ganhando a dimensão alegórica. A cidade não tem nome, é descrita como repelente, pedras e muros. O seu caráter sinistro é acentuado pela extensão tanto horizontal (a cidade parece infinita), como vertical (chaminés são cada vez mais altas). À noite, a cidade desdobra-se, plasmando-se como um pesadelo, habitado por figuras tristes, sofredoras, quase imateriais. Todas as cenas importantes de Os pobres se passam à noite, quando tudo parece espetral, terrível e grotesco. Evita-se qualquer ilusão da realidade; a cidade passa a funcionar dentro do regime do subjetivo. As ruas não parecem ser ocupadas por pessoas, antes por sombras, os duplos sinistros. Os contornos da cidade diluem-se sob o peso da lama, símbolo do caos e disformidade, na qual a cidade se desmorona, tornando-se morta: A sombra caminha, toma por ruelas funéreas. Vai sozinha com o seu sonho ou a sua desgraça. Três horas numa torre. Há um silêncio cavo. Chove sempre a mesma chuva tenaz, com um céu nublado e aflitivo. A cidade morta, sob o aguaceiro, espapaça-se na lama. (Brandão, 1994, p. 150)88 87 À semelhança do poema de Cesário Verde, a imagem da cidade infernal é criada por certos motivos sugestivos, como é por exemplo o motivo das casas/fachadas sepulcrais que aciona a imagística cemiterial da urbe morta. Compare-se: “E, enorme, nesta massa irregular/De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,/A Dor humana busca os amplos horizontes, / E tem marés, de fel, como um sinistro mar!” (Verde, 1999, p. 105, sublinhado meu) e “Amortalhadas de sombra, as casarias alinham duramente as suas altas fachadas sepulcrais, ao longo das ruas cada vez mais extensas e desertas...” (Almeida, 1994, p.186, sublinhado meu). 88 A chuva corresponde ao símbolo do mal e catástrofe. Contudo, tendo em conta outros motivos aquáticos, tais como as lágrimas, sangue e suor, exprime também a catarse, a violência através da qual uma certa regeneração 114 A problemática social, mesmo que desprovida da transgressão lírico-metafísica e inserida nas coordenadas espácio-temporais concretas (as da Lisboa na viragem dos séculos XIX e XX), acentua-se ainda nas crónicas do ciclo Miséria em Lisboa, publicadas no periódico O Dia em setembro de 1902. No texto “Uma leva de famintos”, por exemplo, Lisboa é retratada como a cidade noturna, espaço tanto de boémios e libertinos, como de pobres, vagabundos, pedintes ou criminosos. Nas horas da madrugada, porém, a cidade, tal como nas crónicas de Fialho de Almeida, fica esvaziada, transformando-se numa cidade morta, na qual um par de seres miseráveis, à beira da morte, se arrastam como espetros: “Eram três horas da manhã. Lisboa tinha o aspecto de uma cidade morta; apenas, dispersamente, os candeeiros punham manchas de luz pelas calçadas. E os desgraçados, mortos de cansaço, lá iam arrastando, pela existência fora, as lívidas carcaças.” (Brandão, 2013, p. 333). O semelhante imaginário lisboeta distópico, com as devidas variações e modificações, pode ser também detetato na literatura ao longo do século XX, em especial naquela que se refere ao período da vigência do Estado Novo. O pessimismo relacionado com o espaço sombrio e/ou noturno deve-se muitas vezes aos valores axiológicos que certas obras exprimiam já no tempo da ditadura, devendo ser a distopia lida como um reflexo da falta de liberdade que reinava no país. Pode ser lembrada, a título de exemplo, a poesia de Alexandre OʼNeill (1924-1986), pertencente à estética surrealista. No poema “Um adeus português” (No reino da Dinamarca, 1958) estabelece-se a dicotomia entre Lisboa e Paris, sendo a capital portuguesa retratada como “esta roda de náusea em que giramos / até à idiotia”, em contraste com a metrópole francesa “aventureira” onde “o amor encontra as suas ruas” (OʼNeill, 2005, p. 53). Na mesma coletânea, satiriza-se também um modo de vida burguês, cheio de falsidade (“Os domingos de Lisboa”). Outros exemplos poderiam ser prestados pelas narrativas de ficção, como é o romance A noite e o riso (1969) de Nuno Bragança (1929-1985), em que a cidade de Lisboa adquire traços particularmente disfóricos. Além disso, a linha distópica na representação do espaço lisboeta é prolongada ainda na época pós-revolucionária, sobretudo por dois motivos. O primeiro relaciona-se com a época retratada, pré-revolucionária, como se vê, por exemplo, nos primeiros romances de António pode ser estabelecida. Embora este tipo de cidade morta não pressuponha nenhum prazer mórbido da decomposição, o qual encontramos nalgumas prosas decadentistas, a imagem da putrefação e do consequente renascimento funciona, na poética de Raul Brandão, como motivo da vida, proveniente da morte. Assim, a imagem da cidade morta pode ser interpretada como um mergulhar no inferno viscoso da decomposição, solo matricial, em que germinam as primícias de uma (nova) vida. Daí, também, todas as personagens dos pobres funcionarem como figuras crísticas, cujo sofrimento individual se transforma numa dor cósmica que fornece a salvação. 115 Lobo Antunes (1942) ou em A balada da Praia dos Cães (1982) de José Cardoso Pires (1925- 1998); o segundo motivo consiste no facto de começar a ser abordada a problemática da descolonização que pôs em foco a questão da migração, sobretudo os fluxos de “retornados” das ex-colónias africanas que na segunda década de 70 regressavam em massa à ex-metrópole. Todos estes problemas são, de facto, muito bem trabalhados na estreia romanesca de António Lobo Antunes, de teor autobiográfico, intitulada Memória de elefante, publicada em 1979. O protagonista deste romance (em forma de personagem focalizada ou narrador autodiegético) é um psiquiatra e ex-oficial da guerra colonial que, assombrado pelos espetros da guerra e do absurdo da vida, não consegue, após o regresso a Portugal, inserir-se na sociedade burguesa lisboeta. Separa-se da mulher, a qual, apesar de tudo, continua a amar, e mergulha numa vida instável, noturna, fazendo percursos pela cidade de Lisboa. Vai sempre de carro, comparado a um barco, como um aventureiro às avessas que, numa versão paródica da história portuguesa, vai navegando pelos mares da cidade adormecida. Há vários lugares determinados que o protagonista antuniano percorre nas suas rotas diárias, empreendidas desde manhã até à noite fechada. No entanto, para além dos sítios nomeados no romance (Martim Moniz, avenida Almirante Reis, Praça da Figueira, Rua do Ouro, Cais do Sodré, Jardim das Amoreiras, Avenida da República, Avenida Óscar Monteiro Torres, Rua Augusto Gil, Praça José Fontana, Duque de Loulé, a Marginal, Estoril etc.) há também lugares que não surgem nomeados, mas que se filiam à mitologia urbana. Trata-se, em primeiro lugar, do Hospital, embora se saiba, a partir do macrotexto antuniano e da biografia do autor, que este corresponde ao Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda. Pelas suas (parcas) descrições, o hospital é demarcado como um lugar de alienação, miséria e solidão absoluta (“antigo convento de relógio de junta de freguesia na fachada, pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos de calmantes”, Antunes, 2004, p. 13). O motivo dos plátanos oxidados introduz também a isotopia da corrosão e degradação, imagética que se estende à perspetivação de toda a cidade, a metonímia do país pós-colonial.89 89 Curiosamente, é também no contexto da literatura portuguesa contemporânea relativa à questão da descolonização que a imagem heterotópica do hospital surge com certa frequência. No caso de Lobo Antunes, a heterotopia do hospital aparece em Memória de elefante como uma imagem fundatória, sendo depois desenvolvida em O conhecimento do inferno (1980), As naus (1988) e A comissão das lágrimas (2011). Apesar de a heterotopia do hospital se vincular em todos os romances antunianos à pós-colonialidade, sincretizando-se a alienação dos doentes com a alienação das personagens, desenraizadas identitariamente, traumatizadas e desorientadas num mundo à deriva, é especialmemte nos dois últimos romances referidos que esta problemática aflora com maior urgência. Em As naus, as pessoas que tinham abandonado as ex-colónias, juntamente com as ilustres figuras simbólicas do passado glorioso português, são acolhidas num antigo sanatório de tuberculosos, ficando à eterna espera de um D. Sebastião. Por outro lado, em A comissão das lágrimas seguimos as peripécias de uma família que, comprometida com o novo regime implantado na Angola pós-colonial, prefere depois emigrar para Portugal. A protagonista Cristina, de mãe portuguesa e pai angolano, que também se assume como instância narrativa, num 116 Por extensão, a própria cidade, a Lisboa pós-colonial, também se apresenta como uma heterotopia, como o espaço fechado, doente, carcomido, cujo corpo em supuração precisa de purificar-se em vias de uma regeneração. Não faltam as descrições que traduzem a decadência urbana, roçando o aspeto moribundo (p. ex. “A avenida Almirante Reis [...] trotava na direcção do Tejo entre duas gengivas de prédios cariados”, 2004, p. 84). As metáforas da decadência prenunciam a imagem da cidade-sepulcro (“cidade morta, pensou o médico, cidade morta em urna de azulejos a esperar sem esperança quem não virá mais”, 2004, p. 102), essa que é reiterada no romance Os cus de Judas (1979). Neste sentido, na perspetiva do personagemnarrador, a cidade corresponde a um espaço infernal, domínio da morte e alienação mental. Plasma-se como a cidade deserta, sem alegria nem prazer da vida, para todos os que como o psiquiatra passaram pelo inferno bélico, ou pelo inferno da deslocação e perda das suas raízes. Assim, o psiquiatra funciona como vítima da crise social e existencial, manifestada pela errância através da capital portuguesa. O sentimento de perda e a completa desorientação mostram-se através das suas obsessões, como é por exemplo a ida regular à Rocha do Conde de Óbidos, o ponto final das suas peregrinações pela cidade, que é na verdade o ponto inicial do seu calvário, aquando da partida para África. Deste ponto de vista, o aspeto da cidade fundese perfeitamente com o espírito do sujeito, com o seu sentir: Eu sou um homem de uma certa idade, citou ele em voz alta como sempre lhe acontecia quando Lisboa, num gesto meditativo de lagosta de viveiro, lhe apertava as pinças em torno dos tendões do pescoço, e casas, árvores, praças e ruas penetravam tumultuosamente na sua cabeça à moda de um quadro de Soutine dançando um charleston carnívoro e frenético. (Antunes, 2004, p. 69) Esta imagem é, de facto, a de uma cidade asfixiante que se reflete na subjetividade do protagonista. Aludindo ao seu inferno interior, a uma descida ao “fundo do fundo dos fundos” (2004, p. 63), o sujeito procura um fio de Ariadne nesse labirinto de emoções contraditórias. É na verdade o sentimento da perda (de si, da mulher, da cidade) que faz o protagonista deambular pelo espaço crepuscular e noturno. Ao mesmo tempo, o espaço da memória é dominado pelas constante flutuar entre os vários níveis ficcionais do texto, é após o “retorno” a Portugal (que para ela não é retorno, visto que nasceu em Angola) instalada numa clínica devido à sua completa alienação e incomunicabilidade. A imagem heterotópica do hospital é ainda, no romance As naus, alterada para uma pensão em que são alojados os retornados em Lisboa. Também neste caso, como nos anteriores, o espaço, desligado da lógica aceite, é descrito pelos atributos de crise e clausura, em que os hóspedes são submetidos a uma exploração material e mental. Semelhantemente, o tópico do hotel que preserva parcialmente os atributos do hospital (psiquiátrico) aparece também no romance O retorno (2011) de Dulce Maria Cardoso ou no romance A costa dos murmúrios (1988) de Lídia Jorge. A heterotopia do hospital/hotel pode, assim, representar um huis clos português do fim do império, cujo declínio é nos romances As naus e O retorno simbolizado pelos contentores, depositados à margem do rio, nos quais apodrece seja o lixo, seja aquilo que foi trazido das colónias. 117 lembranças da guerra em Angola, que veiculam a imagética da morte e do lúgubre. A este respeito, e não só, deve ser novamente invocado o nome de Cesário Verde, cuja sombra se projeta no romance antuniano. Numa passagem, o narrador refere-se explicitamente ao poema cesariano: “O Sentimento Dum Ocidental era um pouco a sua roupa interior, ceroulas de alexandrinos nunca despidas, mesmo para os minutos ardentes de uma relação furtiva.” (2004, p. 84). A sequência narrativa, aberta por esta referência, fornece um subtil e talvez inconsciente diálogo entre o hipotexto cesariano e o hipertexto antuniano. Decreve-se o percurso do narrador ao longo da avenida Almirante Reis e através de ruas transversais em direção do Tejo, durante o qual o narrador nota a atmosfera90 , os sintomas da decadência urbana, bem como os lugares de convivência social (cafés, cabeleireiros, lojas, cervejarias). O cenário observado proporciona-lhe, também, um mergulho nas lembranças do passado.91 A esta luz, o noturno lisboeta, materializado numa viagem de carro pela cidade, poderá ser também lido como uma catábase parecida à de Cesário Verde, sendo porém esta, ao contrário do poema cesariano, rematada por uma promessa da alba.92 . 3.2. A cidade transfigurada: “A tragédia de D. Ramón”, de Branquinho da Fonseca Regressando à época do ínício do século XX, concentremo-nos na obra contística de Branquinho da Fonseca. Tal como outros representantes do movimento da Presença, Branquinho da Fonseca procurou captar, na sua prosa, o “espírito” da cidade em ligação com a psicologia das personagens. Recorde-se, contudo, que antes do Branquinho, já o seu companheiro de ofício, José Régio, elaborara magistralmente o tópico urbano no romance Jogo 90 A avenida “eternamente cinzenta, pluviosa e triste” (2004, p. 84), evoca o verso cesariano “O céu parece baixo e de neblina” (Verde, 1999, p. 97). 91 A carvoaria da infância do narrador faz lembrar “os carvoeiros que aparecem ao fundo dumas minas” do poema “Noite fechada” de Cesário Verde (1999, p. 83). 92 Há que ver que o narrador-personagem antuniano, embora magoado, consegue recriar também as imagens de uma ternura inesperada, à laia de Cesário Verde, a figura acarinhada pelo narrador-personagem. Através de imagens tiritantes de emoção, o narrador-personagem recria o tópico clássico da cidade-amante, a qual já não adquire os atributos vigentes nos oitocentos (perigosamente sedutora que leva à perdição e causa a desilusão), mas exprime o caráter instável e incaptável da cidade, perseguida pelo protagonista na tentativa de a (re)conhecer (“Esta cidade que era a sua oferecia-lhe sempre, através das suas avenidas e das suas praças, o rosto infinitamente variável de uma amante caprichosa que as árvores escureciam do cone de sombra dos remorsos melancólicos”, 2004, p. 81). Efetivamente, a errância do psiquiatra, longe do encanto do flâneur baudelaireano, traduz o esforço do protagonista em reaprender a cidade e, através dela, em se reconhecer a si próprio. Ao lado destes motivos (percurso do sujeito pelas ruas até ao cais, sensibilidade à atmosfera, notação da decadência e referência aos sítios sociais), verificáveis na leitura das primeiras estrofes de “O sentimento dum ocidental”, convém referir também certa ternura para com as “traseiras de prédios fuliginosos de que ele gostava, com as marquises salientes como verrugas de ninhos precários em que se adivinhavam as tábuas de passar a ferro e melancolias domésticas” (2004, p. 110) que invocam, conscientemente, as imagens cesarianas de pobres engomadeiras lisboetas. 118 da cabra cega (1934), em que surge a Coimbra noturna, povoada de sombras e duplos demoníacos. A cidade de Coimbra marcou também o imaginário de Branquinho da Fonseca. O único romance do autor, intitulado Porta de Minerva (1947), demonstra que, apesar da vida “frenética” dos seus estudantes, a cidade revela-se como uma urbe sombria e opressiva.93 Para além de certas passagens deste romance, as caraterísticas de um espaço adormecido, estagnado, até letal, aparecem também nalguns poemas da fase inicial da carreira do escritor,94 alargandose o explícito negativismo à descrição urbana prevalecente em vários contos de Zonas (1931), Caminhos magnéticos (1938) e Rio turvo (1945). Um outro elo entre a poética de Branquinho da Fonseca e de José Régio (e também de alguns outros presencistas) consiste na eloboração do tópico da deambulação noturna pela cidade. A este respeito, João Pedro de Andrade já observou que o primeiro capítulo do romance regiano se intitulava O hábito de caminhar de noite, que o romance Pântano (1940) de João Gaspar Simões começava com a frase “Caminhar ao acaso, numa grande cidade, por entre os desconhecidos, livre, perfeitamente livre, sempre se lhe afigurara um sonho” e que o conto “Um pobre homem” (Rio turvo) de Branquinho da Fonseca, tinha o seguinte início: “Naquela noite eu vagueva pelas ruas, sem destino, como tantas vezes” (Andrade, 2003, p. 21). É, por isso, este tópico que suscita o primeiro interesse na pesquisa da prosa urbana de Branquinho da Fonseca. 3.2.1. A cidade-inferno: no rasto de Cesário É por mais sabido, como bem informa António Manuel Ferreira, que as marcas pouco otimistas impostas ao espaço urbano contrastam, na obra fonsequiana, com a recriação literária do ambiente rural. Este continua a ser um reservatório de pureza e naturalidade apesar da pobreza e miséria. No espaço citadino, por outro lado, prevalece a “impressão de um locus 93 Na configuração da imagem coimbrã prevalecem os motivos de fachadas negras e de ruas íngremes e escuras que se afundam “entre dois edifícios enormes esmagadores” (2010b, p. 205), de ruas “frias e húmidas, apertadas entre velhas casas” (2010b, p. 211). Aliás, já António Manuel Ferreira escreveu, a propósito da relação do protagonista com o espaço urbano, que “[n]as primeiras impressões de Coimbra, avultam as sombras, as ruas tortuosas, a sensação de peso opressivo dos edifícios” (Ferreira, 2004, p. 138). Petar Petrov identifica, no romance, a mesma carga negativa: “A construção do eixo axiológico da opressão, por exemplo, processa-se com a apresentação dos espaços nos quais decorrem as acções, com incidência na residência dos estudantes e nos locais citadinos. Note-se que estes são descritos em tons particularmente negros, num estilo que enfatiza a carga negativa do retratado. (...) De modo semelhante aparecem as ruas da cidade, cujo aspecto labiríntico e escuro remete para uma atmosfera de estagnação e de morte.” (Petrov, 2007, p. 64). 94 A poesia de Branquinho da Fonseca não demonstra a concreta topografia, apresentando-se em geral de modo mais abstrato, indireto, o que evidentemente alarga o espetro das leituras do ponto de vista simbólico. Apesar disso, o específico ambiente urbano, geralmente de modo sinedóquico, pode ser identificado nalguns poemas como “Domingo” (1930) ou “Naufrágio” (1929), em que aparecem as ruas tranquilas, paradas, mergulhadas em luar. 119 infectus” (Ferreira, 2004, p. 205).95 Tal imagem é marcante em várias narrativas de Branquinho da Fonseca, especialmente no conto “Andares” (Zonas), que é construído como um corte imaginário de uma casa habitada desde a cave até ao sótão por certos representantes do povo urbano. Tal situação evoca necessariamente a casa do romance Os Pobres de Raul Brandão, em que o sótão, o espaço da lucidez conforme o simbolismo de Gaston Bachelard (1957),96 pertence ao “filósofo” Gabiru, a parte central é ocupada pela família do pobre escrivão Gebo, o rés-dochão corresponde ao prostíbulo e o subterrâneo, emblema bachelardiano das trevas do inconsciente, é habitado por um homem que se amuralhou vivo. Semelhantemente, a casa de Branquinho da Fonseca apresenta seis andares, em que vivem dez famílias, todas “uma pobre gente” que exibe, por osmose97 , os mesmos defeitos como a casa: escuridão, moleza, humidade, mau cheiro e impossibilidade de melhoria.98 As mesmas caraterísticas, todas sugerindo um espaço não só infecto como infernal, aparecem igualmente no conto “A tragédia de D. Ramón” (Caminhos magnéticos) que domina no leque dos contos fonsequianos inseridos no ambiente lisboeta e que já suscitou um merecido interesse de António Manuel Ferreira (2004).99 Apoiando-se na análise deste especialista português, pretende-se, neste capítulo, desenvolver uma reflexão sobre o imaginário urbano no dado conto, acentuando, porém, uma outra vertente interpretativa, baseada em mitemas que constituem a estrutura profunda do texto e, deste modo, se inserem na rede intertextual, cujos paradigmas correspondem à poesia de Cesário Verde e à prosa de Raul Brandão, ao seu imaginário noturno e agonizante. A história apresenta um drama interior de Ramón, de proveniência argentina, que sofre remorsos após ter casado a filha preferida, “la dulce Catarina”, com um homem prático e rico, mas odiado pela rapariga. A figura de Ramón é, contudo, vinculada simbolicamente ao espaço circundante, realçando a temática da cidade 95 Repare-se que a imagem disfórica da cidade encontra-se também nos poemas publicados nos anos 30 do século XX. No poema “Bairro velho” (Sinal, nº 1, 1930), por exemplo, a cidade “cosmopolita” é comparada explicitamente a “ocas torres de Babel”, em que as ruas “quebradas e desarrumadas, fogem pra todos os lados”, exprimindo a mesma desordem no interior do sujeito lírico (Fonseca, 2010a, p. 145). 96 Diz Gaston Bachelard: “La maison é imaginée comme un être vertical. (...) La verticalité est assuré par la polarité de la cave et du grenier. (...) En effet, presque sans commentaire, on peut opposer la rationalité du toit à lʼirrationalité de la cave. “ (Bachelard , 1957, p. 35). 97 O termo já foi utilizado por António Manuel Ferreira para analisar este conto (2004, p. 204). Na sua leitura, à qual reenviamos, Ferreira interpreta sistematicamente as sucessivas partes do conto. 98 Apesar disso, a casa fonsequiana é habitada por três “pérolas” que ocupam os lugares de importância simbólica: no sótão vive a jovem Maria Paula, produtora de bonecas de palha, o terceiro andar cabe ao jovem Eduardo, escritor dos jornais, e a cave pertence à porteira, senhora Amélia, cuja morte proporciona a junção amorosa de Maria Paula e Eduardo, correspondendo, assim, simbolicamente, ao renascer, a uma nova vida. 99 Todas as citações deste conto no presente trabalho são da edição de Obras Completas. Vol. I. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2010 (indicação bibliográfica 2010a). Por razões de redundância, as citações deste conto serão aqui identificadas só pelo número de página. 120 como a essência semântica de toda a narrativa, já que a própria cidade vem sendo recriada em função dos sentimentos, movimentos íntimos e perspetivas do protagonista. A intriga passa-se no dia do casamento da filha, após a boda. À noite, tendo-se despedido dos últimos hóspedes, Ramón não consegue ficar na casa desprovida da presença da filha querida e prefere sair. A deambulação por Lisboa, a que se entrega um tanto maquinalmente, sem um propósito ou destino, evoca claramente a passagem noturna empreendida pelo sujeito de “O sentimento dum ocidental” (1880) de Cesário Verde. Em ambos os casos, os passeantes andam à toa pelas ruas da cidade velha, reparando involuntariamente no cenário que se oferece à sua vista. A passagem pela cidade, neste sentido, traça a linha horizontal: os sujeitos cruzam lugares concretos, delineando um mapa da cidade velha sui generis. Entre tais sítios contam-se, no texto fonsequiano, o Bairro Alto, o Chiado, a Baixa, Alcântara e Cais do Sodré, os quais, em princípio, correspondem ao itinerário cesariano. À passagem por estes sítios surgem, em ambos os textos, vários quadros de temática social, os bas-fonds lisboetas (com os motivos de tabernas, prostitutas100 ou crimes101 ), a burguesia endinheirada102 , ou então, a multidão anónima com o seu bulício inerente (motivos dos passeantes, dos operários, de elétricos a transbordar de gente etc.). Convém registar, igualmente, as várias impressões visuais e auditivas, transmitidas por ambos os sujeitos, tanto o cesariano, como o fonsequiano: A espaços, iluminam-se os andares, (Verde, 1999, p. 99) Viu em baixo o Largo do Rossio, iluminado. (Fonseca, 2010a, p. 380) E nestes nebulosos corredores Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas; Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas, Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores. (Verde, 1999, p. 104) 100 Em Cesário: “Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros, / Tossem, fumando, sobre a pedra das sacadas.” (Verde, 1999, p. 105) e em Branquinho da Fonseca: “Voltou-se de repente e viu que era detrás dumas persianas que se entreabriram para aparecer uma mulher de vestido decotado, que lhe fez um sinal com a mão, a chamá-lo.” (p. 382). 101 Em Cesário: “Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas/ E os gritos de socorro ouvir estrangulados.” (Verde, 1999, p. 104) e em Branquinho da Fonseca: “Na rua, de repente, gritaram: ‘Socorro!Ai!’, um ai estrangulado.” (p. 384). 102 Em Cesário: “Que grande cobra, a lúbrica pessoa / Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!” (Verde, 1999, p. 102) e em Branquinho da Fonseca: “Aquele aluvião de gente bem vestida, feliz, que passava por ele em conversas amenas acerca dos actores e da fita, os homens com lindas mulheres pelo braço, todo aquele ambiente burguês e endinheirado que ali lhe surgiu de repente,...” (p. 387). Neste momento, Ramón até adquire o aspeto de um flâneur, deambulando ao deus dará pelas ruas, juntando-se à multidão: “Tirou um cigarro do bolso, acendeu-o com volúpia, e começou a descer o Chiado, sorvendo o aroma duma bela mulher que caminhava diante dele, pelo braço do marido. (...) Abstracto e lírico, foi caminhando sem dar por isso.” (p. 387) 121 Um polícia passou a rondar. Ramón deu a volta à esquina da rua e meteu por uma travessa estreita e sombria. Duma espécie de casa de pasto ou taberna quase subterrânea veio outra voz que cantava ao som doutra guitarra. (p. 383)103 Os dois sujeitos, contudo, empreendem mais um percurso, este no sentido imaginariamente vertical, simbólico, cheio de significados duplos, em que a deambulação corresponde ao processo de conhecimento de si (Sansot, 1971, p. 155). Neste sentido, a deambulação representa também, como aliás qualquer peregrinação, uma demanda mítica em termos de uma aventura cavaleiresca, constituindo-se duplamente como uma viagem no espaço (através de referências a lugares extraliterários) e, simultaneamente, como uma viagem às profundezas do eu: De tout temps, les pèlerinages et les odyssées sont apparus comme des explorations intérieures. Un tel privilège ne devait pas nous surprendre à lʼhorizon dʼune pensée mythique ou religieuse. Le voyage sʼeffectuait à travers des itinéraires surchargés de significations lʼinitié refaisait, sur un mode symbolique, les gestes du héros. (Sansot, 1971, p. 155) Tal viagem às profundezas é sinalizada, no conto fonsequiano, por várias subidas e descidas que, de facto, veiculam a imagética infernal. A primeira ocorre logo no início do conto, quando Ramón sobe no elevador de Santa Justa, para descer as ruas em seguida. A segunda passa-se na casa do seu amigo: Ramón, não sabendo o que fazer nem aonde se dirigir, visita o seu amigo, o qual, no entanto, está ocupado, dedicando-se a uma séance de espiritismo um tanto bizarra. Às escuras, Ramón sobe e desce as escadas na casa do amigo, tal como mais tarde sobe e desce as escadas na casa do seu genro, num súbito e irrefletido ímpeto de ver a sua filha recém-casada. Todos estes espaços, para além de serem caraterizados pela escuridão, constituem-se como lugares fechados e transfigurados, assemelhando-se a pequenas prisões, conhecidas já do poema cesariano.104 De uma forma talvez mais sugestiva, a imagem da prisão é sobreposta ao motivo da porta de grade no elevador de Santa Justa, a qual engole Ramón tal como a baleia bíblica trava o pobre Jonas. As escadas em ambas as casas, por sua vez, sendo completamente escuras, são também estreitas (estimulando a sensação de um poço) e bafientas 103 As perceções sensoriais vão, contudo, ainda mais longe no conto de Branquinho da Fonseca. Em pontos estratégicos, o narrador regista a atmosfera: o vento fresco (p. 380), a chuva (p. 390) e os seus efeitos (“Soprava, às rajadas, um vento frio que atirava a chuva de rastos pela rua. O chão rebrilhava como se fosse de vidro, e as cordas de água batiam nas manchas de luz e fugiam diante dele...”, pp. 390-391), a madrugada (“O céu tinha começado e clarear.”, p. 394), o nevoeiro (p. 395). 104 Conforme Helder Macedo, o sujeito do poema cesariano “logo vê também a cidade aprisionante a propagar-se, desmultiplicando-se em novas, pequenas prisões, ainda inacabadas”, Macedo, 1986, p. 172). No conto fonsequiano, a isotopia do aprisionamento liga-se igualmente com a filha de Ramón (“E Ramón sabia tudo o que se passava, o cerco em que a fechavam, as lindas cores que lhe pintavam, a asfixia que a rodeava.”, p. 390). 122 da humidade. Assim, descendo as escadas é como se Ramón descesse os círculos do inferno dantesco que é, evidentemente, só o seu próprio inferno, as suas trevas de remorsos. A este propósito, António Manuel Ferreira comenta: “O seu périplo nocturno e solitário adquire assim os contornos de uma descida ao inferno, a um duplo inferno: o da sua própria alma e o da cidade que não o reconhece” (2004, p. 373). É, portanto, esse inferno interior que faz Ramón deambular pelo espaço citadino noturno, recriado metonimicamente à imagem dos seus sentimentos. A noite escura da alma corresponde à noite escura da cidade, como diz Daniela Hodrová, plasmando-se a noite como uma imagem da angústia existencial que oprime um passeante dentro da cidade, nas suas ruas tenebrosas e desertas (Hodrová, 2006, p. 329). É também esta metáfora dantesca que liga o texto fonsequiano ao cesariano, visto que o próprio poema de Cesário Verde, como vimos, desenvolve o imaginário de uma cidade morta e sinistra. Em ambos os casos, portanto, o itinerário urbano não representa somente um movimento físico, deambulação pelas ruas da cidade, mas sim uma viagem ao fundo da noite, como a certa altura disse o famoso Céline, uma descida ao mundo dos fantasmas interiores. 3.2.2. A cidade-circo: alucinações brandonianas Para além de ser noturna, a Lisboa fonsequiana é também, em certos momentos, alucinatória. Tal como a Lisboa de Fialho de Almeida “aparece transmudada numa outra cidade, uma cidade oculta e sinistra” (Mateus, 2008, p. 331) ou a de Raul Brandão, em que predomina “o regime nocturno e funambulesco do meio urbano” (Viçoso, 1999, p. 117), o ambiente fonsequiano surge povoado de sombras que se arrastam pela cidade, transfigurando a cidade num espaço de fronteira entre o real e o onírico. Ou, como se diz no conto, “[a]s sombras e claridades davam à rua a transfiguração de entre a realidade e o sonho, numa deformação em que já não havia, em nada, a nitidez das linhas” (p. 393). O essencial princípio transfigurador é, de facto, o jogo de luz e sombra (ou mesmo a escuridão), presente sobretudo na passagem da subida no elevador de Santa Justa.105 Tal como na prosa fialhiana, em que estes jogos correspondem a “instrumentos da despolarização do real” (Mateus, 2008, p. 331), bem como na obra brandoniana, em que “tudo na treva é fantástico” (Brandão, 1994, p. 49), as formas no conto fonsequiano alteram-se, os objetos deformam-se, a cidade encobre-se de visões 105 “O elevador de Santa Justa, como um balão iluminado, subia e descia entre as fachadas escuras.” (p. 379), “E numa subida lenta começou a ver, em baixo, a cidade escura, com pontos de luz, as ruas direitas, e mais adiante montes de telhados.” (p. 380), “Viu em baixo o Largo do Rossio, iluminado. E, em volta, montes de casas escuras.” (p. 380), “No céu, com laivos brancos, a Lua corria por entre nuvens.” (p. 389) 123 fantasmagóricas.106 Logo, a alteração brusca de efeitos visuais (o acender e o apagar da luz) imprime às cenas também um forte traço de espetacularidade, evocando novamente a poética brandoniana. Repare-se, a propósito, que mesmo no poema de Cesário Verde são mencionados alguns aspetos do espetáculo circense: Um trôpego arlequim braceja numas andas (Verde, 1999, p. 98) E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos Alastram em lençol os seus reflexos brancos; E a Lua lembra o circo e os jogos malabares (Verde, 1999, p. 99) Mas é sobretudo em Raul Brandão que, conforme Vítor Viçoso, a cidade é conotada com os atributos do circo: “universo social urbano é um gigantesco clown, ao mesmo tempo grotesco e trágico” (Viçoso, 1999, p. 115), tal como é grotesco e trágico o personagem fonsequiano (“E apertava a cara nas mãos, num desespero grotesco e trágico”, p. 392). O doseamento de traços funambulescos demonstra, no conto de Branquinho, uma sensível gradação: o elevador de Santa Justa “como um balão iluminado” evoca um chapitó iluminado, o empregado dentro do elevador mostra “uma cara de máscara de carnaval” (p. 380), a dark-séance na casa do amigo, assemelhando-se já em si a um número teatral, exibe um ambiente com “um aspecto fúnebre” (p. 381), cujos participantes são fortemente apalhaçados (“Pareciam alucinados; os olhos saltavam-lhes das órbitas”, p. 382) e abonecados (“tinha o ar dum fantoche de pau, partido pelos engonços”, p. 382). Até a própria criada, “hipopótamo enorme” (p. 381), adere ao imaginário circense. Mas é sobretudo a figura de Ramón que ganha traços funambulescos bem pronunciados. A descrição de Ramón deambulando pela cidade concentra-se em especial no seu modo de andar, o qual é quase sempre cambaleante (“desceu a escada cambaleante e sem destino”, p. 379, “Mas cambaleou e caiu no passeio”, p. 389, “cambaleava, com as pernas a dobrarem-se, moles”, p. 391) ou trôpego (“E lá foi indo, devagar, arrastado, aos tropeções”, p. 106 Bem evidente é entre outras a seguinte descrição da transfiguração urbana na narrativa de Brandão: “Uma escada esganiça-se entre dois prédios, confundidos e enormes, e, arredado, um lampião luz na esquina dum beco. Parece que vão cair sobre o outro, que são feitos de sonho e de pesadelos petrificados. Advinha-se um começo de ruela num esgar, e umas escadinhas escusas trepam até ao negrume opaco...” (Brandão, 1994, p. 49). Uma das imagens alucinatórias mais interessantes do conto fonsequiano (que também se alia a um certo expressionismo ao jeito brandoniano) diz respeito à sensação auditiva: “Então começou a descer a escada, agarrado ao corrimão, pondo os pés a medo sobre os degraus, que rangiam. E no silêncio, na escuridão, aquele ranger era desconforme, parecia-lhe que devia ouvir-se por todos os andares e iam acender-se as luzes e a todas as portas apareciam muitas pessoas admiradas, a olhá-lo. O gemer das tábuas era cada vez maior, devia ouvir-se já na rua. Em toda a cidade adormecida se ouvia agora aquele gemido sobrenatural que lhe fazia estalar a cabeça.” (p. 393). 124 388). Este modo de andar, por conseguinte, conjuga-se com o seu ar atarantado e, também, com a sua moleza de membros que o assemelha a um fantoche (“Os braços pendiam-lhe ao lado do corpo, como se fossem de pau,” p. 379, “invertebrado, deixou-se cair outra vez pesadamente sobre o banco”, p. 388, “Mas, como um boneco de borracha que se enchesse de vento e logo se esvaziasse, no mesmo momento amolecia, se deformava e então via debaixo daquela ideia aparecer uma outra verdade persistente.” p. 390).107 Todos estes aspetos correspondem à imagem de um clown, um pobre palhaço sempre escorraçado e grotesco. O clown que é, conforme Vítor Viçoso, “o símbolo da irrisão da vida” (Viçoso, 1999, p. 116).108 Dessa forma, novamente, o protagonista fonsequiano entra em osmose com o ambiente urbano, igualmente clownesco, circense. Na mesma ordem de ideias, D. Ramón poderia ser ainda assemelhado à figura do vagabundo/louco fialhiano, tal como se vê, de modo ilustrativo, no texto “A tragédia dum Homem de Génio Obscuro” (Os Gatos, 1890) de Fialho de Almeida, em que a cidade de Lisboa fornece um cenário propício, alucinatório, a um drama pessoal, de cisão interior do protagonista. Tal como esta personagem fialhiana sucumbe, aos poucos, a uma loucura incurável, metamorfoseando-se, por fim, num “palhaço” ou “máscara grotesca representando o seu último papel no anfiteatro da vida” (Mateus, 2008, p. 352), D. Ramón, cujo atributo de dom ou don o aproxima também de um D. Quixote igualmente trágico, patético e inadaptado, passa a desempenhar o seu próprio espetáculo. Repare-se que, nalguns momentos, a sua figura surge cruelmente iluminada na escuridão circundante, como se mesmo de um número circense se tratasse (p. ex. “caiu-lhe em cima a luz crua duma lâmpada eléctrica”, p. 38), noutro momento ele próprio faz um show para os espetadores mudos das fachadas: Mas Ramón tornou a abri-la, deitou a cabeça de fora e, fazendo uma vagarosa vénia para a parede fronteira, disse em voz cerimoniosa: - Buenas noches! E, recolhendo-se, fechou outra vez a porta. Mas como se esperasse uma resposta e ninguém lha tivesse dado, no mesmo instante tornou a abri-la, saltou à rua e atirou um berro: - Buenas noches! 107 Repare-se que tais caraterísticas assemelham a figura de Ramón a Gebo, personagem brandoniana de Os Pobres, como aliás já foi observado por Adolfo Casais Monteiro (Monteiro, 1950, p. 276, apud Ferreira, 2004, p. 214). De facto, na descrição das duas figuras proliferam os mesmos atributos. Tal como Ramón, Gebo “vai aos tropeções” (Brandão, 1994, p. 115), aparecendo frequentemente “atarantado” e “grotesco” (pp. 87, 58, 117 etc.). Igualmente, Gebo tem uma única felicidade, a sua filha e, semelhantemente a Ramón no fim do conto, consegue descansar somente ao dormir um sono profundo, de um quase aniquilamento. 108 Vítor Viçoso refere-se, naturalmente, à obra de Raul Brandão, em que o clown constitui também “uma hipérbole trágico-grotesca do olhar finissecular sobre a natureza humana e a condição do esteta numa sociedade burguesa.” (Viçoso, 1999, p. 116). 125 (p. 389)109 Porém a cena mais comprovativa passa-se no cais, onde Ramón observa a entrada no estuário de um transatlântico. Relembremos, a propósito, que a “tragédia de Manuel”, protagonista fialhiano, se configura como “a encenação do seu próprio ‘suicídio’, um espectáculo simultaneamente trágico e grotesco (Mateus, 2008, p. 353). Também num dos episódios mais trágicos e comoventes de A Morte do Palhaço de Raul Brandão, apresenta-se precisamente um palhaço sem nome, melancolicamente apaixonado pela acrobata Camélia, que, ao salvar a vida ao amante da sua amada, se imola a si próprio, na arena, aos olhos dos espetadores: “Viu-se então um trapo negro, bordado a cores escarlates, vir de cima, lá do alto do circo, e com todo o ruído das bexigas de porco, que prendia na túnica, o Palhaço estoirou na arena, grotesco até na morte...” (Brandão, 1978, p. 74). O conto fonsequiano expõe um ambiente semelhante. O cais de Lisboa com as pessoas à espera dos familiares transfigura-se num circo imaginário, em que Ramón interpreta o seu último espetáculo, caindo às negras e viscosas águas do rio Tejo, em frente da multidão de “espetadores” (“Uma multidão compacta e imóvel olhava para o rio e erguia no ar um coro difuso de falaça.”, p. 396).110 O fim, apesar de não ser tão trágico como no caso brandoniano, é por outro lado muito mais ridículo e patético: Ramón, apanhado e salvo, representa uma figura cómica, ficando completamente encharcado com a boca cheia de detritos engolidos dentro da água. O verdadeiro desfecho deste “número”, porém, tem lugar na própria casa de Ramón, aonde chega “trágico e ridículo, com a blusa de gola decotada, como vestido de menino, à maruja” (p. 399), acabando por ser impiedosamente chacoteado pela sua mulher, filha e até pela criada.111 As gargalhadas das mulheres soam com uma gradação cada vez mais intensa, mais cruel, até ao fim do conto, ambíguo, em que Ramón desce, finalmente, quase ao fundo do “seu abismo de escuridão e quase de paz” (p. 401). 109 É evidente que D. Ramón passa a representar o duplo papel, de palhaço e do seu próprio espetador, correspondendo a uma linha que se imiscui, paulatinamente, no texto, e que corresponde a uma perturbação psíquica e emocional, um certo tipo de loucura, em que o eu se projeta num outro, numa fragmentação interior. Trata-se de um tópico já insinuado no poema em prosa “Palhaçada” (1928): “Às vezes damos espectáculo. Armase em redondo o barracão de lona branca. Então visto uma casaca que tenho muito cuidada e apresento os números ao público – a eles que são eu. E quando começam, procuro um lugar entre a assistência e sento-me também a vêlos.” (Fonseca, 2010a, p. 104). 110 Repare-se, a propósito, que Branquinho da Fonseca também tratou este tema no seu poema de prosa, intitulado “Triunfo” (1928), em que um acrobata dá, perante os espetadores ansiosos de espetáculos macabros, o seu último show que acaba tragicamente, com a sua queda mortal. É precisamente este espetáculo que a assistência aplaude com mais fervor. Este tópico da encenação macabro-grotesca pode ser ainda seguido na poesia de José Régio e, também, na literatura contemporânea, como o demonstra o romance Explicação dos Pássaros (1981) de António Lobo Antunes. 111 “(...) E guinchavam às gargalhadas (...). Mas as gargalhadas redobraram. (...) E elas rebolavam-se sobre a cama, uivavam. (...) e no ataque de gargalhadas limpava à fralda as lágrimas do riso.” (pp. 400-401). 126 3.2.3. Cidade – saudade – sujeito: fragmentação do ser e do espaço Como afirma António Manuel Ferreira, “[a] representação das personagens como bonecos animados é, normalmente, um sintoma de esvaziamento do poder controlador da vontade”, o qual, no conto fonsequiano, salienta a dimensão grotesca (Ferreira, 2004, p. 372). Ramón, seguramente, é uma personagem em que a morte vence a vida porque, como afirma Daniela Hodrová nos seus estudos mitopoéticos, em forma de uma marioneta, o homem existe “menos”, sem a liberdade, sendo condenado a viver ao jeito de um ser manipulado (Hodrová, 2006, p. 323). A fantochização, portanto, não só veicula o grotesco, como também amplia a problemática existencial. Estendendo tal ideia ao conto de Branquinho da Fonseca, pode ser verificado que a sensação mais intensa, tratada em relação a Ramón, é a terrível angústia, a mesma a que sucumbe o Palhaço brandoniano. Não surpreende, pois, que a própria cidade, neste estado de sentir, se transforme em espaço de inquietação e ameaça ou, até, num monstro gigantesco, povoado metonimicamente de dezenas de monstros pequenos, mas nem por isso menos ameaçadores. No seu percurso pela cidade, realmente, Ramón enfrenta alguns desses “monstros” que são, na verdade, os grandes navios: E de repente um ronco de monstro gelou-o de terror. Mas era a sereia dum navio. (p. 394, sublinhado meu) E vagamente via o grande transatlântico deslizar sobre as águas negras, avançar como um grande gume, a proa alta, uma fantástica casa branca, de janelinhas abertas, os mastros finos, as chaminés azuis e um emaranhado de fios por cima de tudo. Como se fosse uma alucinação, era agora monstruoso e vinha a cair para cima dele. (p. 397, sublinhado meu) De um modo parecido funciona igualmente o motivo do rio, descrito como “água que desliza lá em baixo, viscosa e turva” (p. 396), assemelhando-se à imagem monstruosa do rio animado na narrativa “Rio Turvo”, o qual, pela sua capacidade de engolir e aprisionar, cria analogia aos corredores escuros e ao elevador de Santa Justa. A sensação de ameaça nessa cidade-monstro ajusta-se ao tópico bíblico das urbes malditas, a que as personagens femininas, bestializadas, como a esposa e outra filha-nínfia de Ramón, fornecem o pitoresco brutal. Daí, o espaço é também sentido como falho de familiaridade, como lugar de alienação. Repare-se, no conto, na quantidade de cenas em que Ramón se move com dificuldade, às escuras, tateando: “tacteando os degraus” (p. 380 ), “A tactear, encontrou a porta” (p. 380), “percorrendo o corredor às apalpadelas” (p. 382), “como cego, estendeu as mãos a tactear” (p. 392), “com as mãos trémulas, a apalpar no escuro” (p. 393), “Cego, aflito, tacteava as paredes.” (p. 393). 127 Embora tais situações se prendam às movimentações dentro das casas sem luz, podemos ver, nestes gestos náufragos, o reflexo da perplexidade interior do personagem. Também nas ruas, Ramón várias vezes se sente desorientado, perdido, como se circulasse dentro de um labirinto: “Quando reparou, viu-se sozinho numa rua estreita e escura. Estacou sobressaltado, sem saber onde estava nem como tinha vindo ali ter.” (p. 386), “Ficou parado, na rua, a olhar em volta, como se naquele momento tivesse acordado num sítio desconhecido.” p. 393). O labirinto, é claro, constitui mais uma imagem em que se opera a conexão entre a personagem e o espaço: Ramón sente-se perdido dentro de si próprio, procurando-se e procurando a sua identidade perdida.112 Assim, sendo de proveniência argentina, Ramón procura desesperadamente, em todos os cantos de Lisboa, a sua cidade natal, Buenos Aires. Só desse modo pode abarcar a cidade iluminada com o olhar, murmurando “Mi Buenos Aires!” (p. 380). A personagem fragmenta-se interiormente, habitando dois espaços sobrepostos, um real, fisicamente presente, outro sonhado, existente na memória emocional. Com a deambulação em círculo, marcada por uns toques de paranóia, Ramón reencarna a figura poeana de “homem da multidão”, sendo da mesma maneira alienado e indiferente à população urbana, fechada dentro dos seus ninhos familiares. Os acontecimentos que preenchem a noite reveladora de Ramón aquando do seu percurso pela Lisboa noturna, são por sinal de índole violenta, marcados por um insólito de aventuras. Tudo isto enfatiza a sensação de angústia que um estrangeiro, mesmo que já familiarizado com o sítio, sente. Esta perspetiva alógena na terminologia de Westphal é também, pelo menos parcialmente, devedora da fraca orientação, se bem que momentânea, do protagonista no espaço físico. Repare-se que a metrópole argentina, apesar de estar situada, tal como Lisboa, numa grande baía fluvial que desemboca no Atlântico, demonstra uma topografia bem diferente da capital portuguesa, já que em vez de dédalo de ruas estreitas e ziquezagueantes das partes antigas lisboetas, apresenta uma planta geométrica e a priori bem legível.113 E apesar de esta diferença, nunca explícita, funcionar somente a nível simbólico, pode hipoteticamente perturbar a sensibilidade e capacidade do protagonista de ler devidamente a cidade. Consequentemente, abre-se no conto mais um filão semântico que se afasta um pouco do drama inicial, relacionado com a boda da filha preferida. O que atrai Ramón ao cais já não é tanto a preocupação pela filha, mas sim a saudade que Ramón sente e não consegue combater (“E aquela saudade matava-o.”, p. 387). É como se este tópico de cais surgisse justaposto àquele cais tornado famoso pelos versos de Cesário Verde, mas também de Álvaro de Campos. A 112 A imagem do labirinto coincide ainda com a imagem da espiral: Ramón várias vezes sai e regressa ao mesmo ponto, que é a sua casa, para logo reiniciar o seu percurso pela cidade. 113 Esta observação foi-me gentilmente cedida por Marcelo Pacheco Soares. 128 saudade do sujeito cesariano é regressiva, é a saudade do passado definitivamente perdido, das “crónicas navais”, enquanto a saudade de Álvaro de Campos é antes progressiva e abstrata, ligada a todos os tempos simultaneamente, pois “todo o cais é uma saudade de pedra” (Pessoa, s/d, p. 154). A saudade de Ramón, no entanto, é bem mais feita à medida do homem comum, é a saudade da cidade que existe lá longe, um nó emocional, lugar de felicidade.114 O gradeamento do cais transfigura-se em última prisão que deverá ser rompida, em vão. Cada saída da prisão temporária (elevador, corredores, rio) é só imaginária, afundando-se Ramón cada vez mais no seu abismo interior. Não há uma verdadeira saída do seu huis clos da solidão que é também a cidade, reflexo da sua alma estilhaçada. Cada ação, sentimento ou reflexão do protagonista exprimem a noção de perda, desorientação, crise existencial. A errância pela cidade, repetitiva, baseada em paralelismos de ação (sucessivas entradas e saídas de sítios disfóricos) é, sintomaticamente, acompanhada pelo solilóquio que se abeira da loucura: A boca mastigava-lhe uns sons incompreensíveis, de que se distinguiam umas palavras repetidas: “Ayer, ayer... Responsabilidad... No. Mi responsibilidad... E luego me van a decir...con cariño, Ramóncito, oye... ”. Por vezes apressava o passo. Mas logo descaía num divagar lasso, de passos ao acaso, andando para a frente sem saber para onde. (p. 394) A desorientação da personagem alienada e psiquicamente aprisionada num espaço que lhe não pertence desemboca na crise de identidade, veiculada também por uma linguagem híbrida do “portunhol”, a que é sujeita qualquer pessoa que imigra. O texto não revela as razões pelas quais Ramón partiu da Argentina para se transferir para Portugal, sabe-se somente que Ramón, tocador de tango, veio a Lisboa com um grupo de músicos, depois ficou na capital portuguesa e casou-se com uma portuguesa. Apesar deste lugar branco semântico, fica bem claro que, para além da problemática ética introspetiva, Branquinho da Fonseca aborda um assunto moderníssimo e na década de 40 ainda pouco tratado em Portugal, que é a questão da imigração e da crise relacionada com a deslocação. Evidentemente, a transferência no espaço acarreta o problema da inadaptação (expressa aqui pela imagem clownesca) e da alienação (veiculada pela imagem infernal da cidade, pelo solilóquio e desorientação da personagem no espaço). Estes são também os fatores que influem na perturbação identitária do protagonista, na sua cisão interior, na sua fraca capacidade de lançar novas raízes no espaço físico e social 114 As sensações da desorientação e da saudade evidenciam-se também nas respostas confusas, como se Ramón perdesse a noção de quem é e onde está: - Ramón...?!... quê Ramón...?!... (...) – Casa?... Qual... casa?! Mi casa... es en Buenos... Aires...” (p. 388). 129 que é, às vezes, sentido por ele como inimigo. A troça da sua mulher, bem como o desinteresse dos amigos e a pouca estima com que é tratado por todos os desconhecidos, tudo isso só aprofunda a sua convicção de acabar por ser, para sempre, um estrangeiro, ou mesmo um inimigo. Neste caso, com efeito, verifica-se a ambiguidade que está assente na mínima diferença entre as palavras latinas hospes (hóspede) e hostis (inimigo). Daí, a sua relação com a cidade nunca poderá ser assente na simpatia mas sim, na atitude patológica, geradora de monstros. Neste sentido, “A tragédia de D. Ramón” de Branquinho da Fonseca insere-se perfeitamente na linha da ficção portuguesa, na qual a representação da cidade ganha contornos disfóricos devido a um mal-estar social (p. ex. a imagem oitocentista finissecular ou a figuração da cidade salazarista) que se projeta, em certos momentos cruciais, numa crise existencial e identitária (como se vê, por exemplo, na imagem da cidade pós-colonial após o influxo dos “retornados”). Por tal motivo (e não só), este conto de Branquinho da Fonseca continua a ser, ainda hoje em dia, estimulante e aliciante. 3.2.4. A cidade fonsequiana: um mundo sombrio Resumindo, o conto “A tragédia de D. Ramón” insere-se decididamente na linha das narrativas que recriam a atmosfera sombria e espetral da capital portuguesa, assemelhando-se ainda, pelo seu aspeto noturno, a um outro conto fonsequiano, intitulado “O Anjo” (Caminhos Magnéticos), em que o protagonista “que fora, segundo faz-se crer, injustamente detido na prisão, efetua, após a sua fuga do cárcere, um caminho de egressão da cidade“ (Soares, 2017, p. 69).115 Para além de assistirmos, nos dois contos, a um percurso pela cidade com certos traços insólitos, o elo de ligação entre eles corresponde ainda a uma recriação do espaço transfigurado, polisensorial, povoado de alucinações ou visões estranhas, em que a sensação de solidão e alienação predominam. Tais caraterísticas espaciais, porém, propõem ainda outra imagem urbana, a da cidade como um espaço mítico, em que o protagonista segue um itinerário aventureiro e, em “A tragédia de D. Ramón”, também paródico, pela humilhação e chacota. Ainda outro elemento espacial comum, o rio (neste caso, o Tejo) aproxima estes dois contos de mais duas narrativas de Branquinho da Fonseca, ambas de Rio Turvo: “Jack” (de um ambiente 115 Remetemos para a leitura lúcida do conto, feita por Marcelo Pacheco Soares “O anjo anunciador da cidade em um conto fantástico de Branquinho da Fonseca” (2017). 130 dos bas-fonds lisboetas)116 e “A prova de força”. Em todos estes contos, pois, o rio demonstra as mesmas caraterísticas: a sua água é “viscosa e turva”117 (p. 396), “grossa e parada”118 (Fonseca, 1997, p. 77) e “negra”119 (Fonseca, 1997, p. 77), tornando-se um habitat de navios- monstros.120 A noite e as sombras, diz António Manuel Ferreira, “são duas presenças muito fortes em grande parte dos textos de Branquinho” (Ferreira, 2004, p. 47). No entanto, esta noite e estas sombras, por mais que ensombrassem ou assombrassem o espaço, podem também revelar a verdade que à luz do dia fica imperceptível. Por outras palavras, como Ferreira afirma em relação ao poema fonsequiano “Canção da noite”, “[a] noite é construtora, fabrica enganos, mas também desfaz enganos; ocultando, também acaba por revelar” (Ferreira, 2004, p. 47). Por isso, é também à noite que Ramón, cercado de sombras, se pode aperceber que o seu sonho de felicidade não é senão uma quimera. Em suma, embora as sombras constituam um imaginário de força em toda a obra de Branquinho da Fonseca, parece que a sua presença no espaço urbano, em geral distópico, aponte para certas coordenadas axiológicas do autor de O Barão, cujo mundo privilegiado, pessoal e íntimo é, apesar de tudo, mais ligado ao espaço rural, em que nasceu e com o qual sempre manteve uma afinidade afetiva. 116 Este conto apresenta também um elevado grau de transfiguração, sobretudo na passagem em que os dois protagonistas cruzam o espaço urbano, restrito, neste caso, a zona das docas lisboetas. A atmosfera torna-se cada vez mais pesada, mais carregada de sombras (“O outro continuava a caminhar sempre calado, os olhos fixos naquela sombra que as outras sombras engoliam”, Fonseca, 1997, p. 77), transfigurando-se a cidade num espaço mítico, povoado de monstros e homens semelhantes a quimeras (“Este seria o símbolo de uma legião em que a heroicidade existia. Era o bastante para o erguer e sonhar assim, grande e belo como um herói lendário que atravessava o mar por entre monstros e traições, para alcançar um país desconhecido.”, Fonseca, 1997, p. 78). 117 “A tragédia de D. Ramón” 118 “Jack” 119 “A prova de força” 120 Em “A tragédia de D. Ramón”: “E de repente um ronco de monstro gelou-o de terror. Mas era a sereia dum navio.” (p. 394) ou, em “Jack”: “Os grandes navios [...] monstros adormecidos, ao mesmo tempo familiares e desconhecidos, como se tudo se tivesse transformado num mundo sobrenatural.” (Fonseca, 1997, p. 73) 131 4. Pesadelos urbanos: egotismo, alienação e crimes perversos Mas se vivemos, os emparedados, Sem árvores, no vale escuro das muralhas!... Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas E os gritos de socorro ouvir estrangulados. Cesário Verde: “O sentimento dum ocidental” That City’s atmosphere is dark and dense, Although not many exiles wander there, With many a potent evil influence, Each adding poison to the poisoned air; Infections of unutterable sadness, Infections of incalculable madness, Infections of incurable despair. James Thomson: “The city of dreadful night” A problemática social, miséria e pobreza de uma parte da população lisboeta, associada a problemas como o alcoolismo, torna-se um profícuo tema literário a partir dos fins de oitocentos. Embora radicado na estética naturalista, não se restringe a esta, abrindo um caminho divergente com o surgimento de novas correntes literárias como o simbolismo e, um pouco mais tarde, o modernismo. Com efeito, os autores como Raul Brandão ou Branquinho da Fonseca procuram novas atitudes relativamente à problemática social escrevendo uma literatura de alta qualidade, livre de dogmas e ideologias. As questões de teor social, retratadas ou aludidas na literatura dos anos 30 do século XX, abrangem especialmente a migração do campo para a cidade, miséria dos que vieram à cidade e se instalaram sobretudo nas suas periferias, crescimento da classe operária, alcoolismo, prostituição, violência doméstica e criminalidade. Conforme relatado por Maria Rita Lino Garnel, já desde os finais do século XVIII, as transformações demográficas, económicas e sociais, junto com o construção urbanista e crescimento da industrial, impulsionaram os “medos urbanos”, na linguagem de Michel Foucault (cf. Garnel, 2007), muito parecidos aos atuais “medos líquidos” de Zygmunt Bauman, e que correspondem a medos nem sempre racionalizados e justificados, como é, por exemplo, o medo das ruas escuras, do amontoado de casas, da acumulação de fábricas, do crescimento de cemitérios, das exalações miasmáticas, da propagação de epidemias etc. (cf. Garnel, 2007). No início do século XX, existia mesmo a convicção de que o maior perigo se localizava precisamente nos sítios habitados pelos estratos sociais mais desfavorecidos, opinião que era apoiada tanto pelo setor policial, como pela burguesia. Esta ideia é desenvolvida na pesquisa de Maria Rita Lino Garnel que, ao estudar os espaços de violência em Lisboa no início do século 132 XX, cita entre outros a descrição da Lisboa perigosa, feita por Albino Forjaz de Sampaio em Ilustração Portuguesa, II volume, 19 – XI, 1906: ...inexplorada, soturna, tenebrosa, cheia de sombras, onde o pão é amassado com fel e a enxerga trescala suores e podridões. (...) Alfama e Mouraria são os dois focos perigosos da nossa capital. Ali naquele dédalo de ruelas estreitíssimas, naqueles prédios cambados, podridos e senis, se acoita toda a população de vagabundos, de falsos mendigos e de mendigos verdadeiros, de faquistas, gente baixa, e não raras vezes serve de velhacouto a verdadeiros criminosos. (Sampaio, 1906 apud Garnel, 2007, s/d). Quanto à topografia da criminalidade, os focos de violência urbana do início do século XX, concentraram-se, conforme Garnel, nos bairros lisboetas de Santa Isabel, Alcântara e Beato que, nessa época, cresciam a ritmo rápido. Nos anos 20 do século XX, ainda de acordo com a mesma historiadora, podem ser ainda adicionadas as freguesias de Marquês de Pombal, Santos, S. Sebastião da Pedreira e Arroios, sendo a freguesia de Santa Isabel a que exibe a maior quantidade de agressões, registadas pelos peritos forenses (cf. Garnel, 2007).121 Os dados estatísticos, todavia, não podem, nem parcialmente, explicar as razões que levam à violência. O álcool, como se regista nos atos forenses, desempenha um papel preponderante, é certo (cf. Garnel, 2007). Mas não se explica, nesses atos, o que leva as pessoas ao consumo exagerado do álcool e o que, em seguida, este recurso faz com os corpos e mentes dos viciados. A literatura, com efeito, é capaz, como única, de penetrar para além da superfície fatual, insinuando os motivos que tornam as pessoas violentas, ou mesmo perversamente agressivas. Nesta perspetiva, um dos maiores problemas parece ser a crescente alienação que, em estrita dependência do espaço urbano cada vez mais anónimo e privado de laços familiares firmes e estáveis, faz bloquear todo o controle autónomo, bem como o comportamento de respeito pelos outros. E quando a isto se junta a pobreza, a alienação fica irremediavelmente instalada no cérebro perturbado. 4.1. Degeneração, nevrose, miséria 121 À medida que o medo da violência crescia entre a população lisboeta, os relatos dos crimes e de todos os casos de agressão tornavam-se cada vez mais procurados nos periódicos da época. A este respeito, Garnel explica: “Se, nos anos terminais da Monarquia, os crimes e desordens eram relatados sob a epígrafe geral de ‘Ocorrências diversas’, nos anos terminais da I República, estes acontecimentos recheavam as páginas interiores de O Século e do Diário de Notícias, agrupados sob várias designações: ‘A Província trágica’, ‘Desaparecidos’, ‘Suicídios’, ‘Desordens e agressões’, ‘Vítimas de desastres’, são os títulos genéricos que dão conta dos vários tipos de acontecimentos transgressores da ordem, enquanto os relatos de crimes mais dramáticos, ou misteriosos, são autonomamente reportados, estendendo-se a sua publicação por vários dias.” (Garnel, 2007, s/p). 133 Numa das suas crónicas, datada de 1893, Raul Brandão escreveu: “No findar deste século passam-se dramas pavorosos, que em vão a Humanidade procura explicar – e que atiram para a loucura os desequilibrados...” (Brandão, 2013, p. 281). Nesta crónica, intitulada “O remorso”, Brandão de facto refere-se a crimes extremos, assassínios de membros da família, executados por duas pessoas completamente diferentes e apesar disso, bem parecidas, porque vítimas da nevrose finissecular. Um era Urbino, um “criminoso nato” conforme as teorias da época, sobretudo as de Lombroso, outro um músico genial, Marcas. Tais assassínios seriam, conforme Vítor Viçoso, um “sintoma evidente da degeneração sociocultural e da caminhada para a catástrofe”, estimulado pelo clima neurótico, em que os crimes hediondos, como o de Jack o Estripador (1889), Rodolphe de Habsbourg (1889) ou Boulanger (1891) proliferaram (Viçoso, 1999, p. 148). A literatura começou bem cedo a refletir tal atmosfera viciada, saturada de depressão e melancolia negra, criando várias figuras de assassinos múltiplos, ou seja, na linguagem “atual”, de vários tipos de serial killer. Ao lado de casos verídicos foram aproveitadas algumas lendas já bem famosas, como foi entre outros a lenda do Barba Azul, cuja revivescência na era finisecular foi notável. Recorde-se, a propósito, o terrível Gilles de Rais, cognominado Barbe-Bleue, de Huysmans. Mesmo hoje em dia, na literatura contemporânea, surgem várias narrativas que retomam o mito de Jack o Estripador londrino, atualizando-o e situando-o, por vezes, noutros contextos culturais. Em geral, contudo, mantém-se o tempo e atmosfera dos fins do século XIX. É o caso, por exemplo, das narrativas From Hell (1999) de A. Moore e White Chappell, Scarlet Tracings (1987) de Iain Sinclair, que especulam sobre os mistérios acerca dos assassínios de 1888 de Jack o Estripador; do romance LʼÎle du point Nemo (2014) do francês Jean Marie Blas de Roblès, que em forma de paródia e travestia atualiza também o mito do detetive sherlockiano – John Shylock Holmes, viciado em ópio como o seu modelo doyliano; do romance El secreto de Vesalio (2015) do catalão Jordi Llobregat, que recria a Barcelona finissecular, do romance Lord Mord de 2008 do checo Miloš Urban, que se passa na Praga Judia dos fins de oitocentos, ou então do romance Estação de Chuvas de 1996 do angolano José Eduardo Agualusa, cuja primeira parte mostra a Luanda dos fins do século XIX em linhas mágico-animistas, correspondendo o serial killer a um assassino de sereias chamadas kiandas. Há, contudo, diferenças entre os vários tipos de serial killer na literatura. Se há os que matam por motivos “socio-políticos” (p. ex. o assassino do romance checo Lord Mord estrangula as mulheres, sobretudo prostitutas, do degradado bairro judeu praguense para ajudar a convencer os habitantes sobre a “necessidade” de levar para frente o plano do saneamento do bairro), há 134 também os que matam por uma ambição desmedida (p. ex. o médico de LʼÎle du point Nemo), por um puro prazer sádico ou, ainda, motivado por um desequilíbrio pessoal. Um dos assassinos apresentados na crónica de Raul Brandão, é um violinista que, num ataque de loucura, mata a sua mulher. Brandão comenta: Nervoso, e de uma sensibilidade de doente, intratável, como disse, a Vida, que para ele era dura, afligia-o. Desconhecido o seu génio, insultado muitas vezes; quando recolhia, fazia sofrer a mulher, uma pobre alma tímida, que só a ele via na terra. (...) Um dia de perversidade, talvez desesperado, por ver que ela o sofria sempre resignada, matou-a. O crime foi atirado para as costas de um assassino vulgar. (Brandão, 2013, p. 281) Após o crime, contudo, o músico-assassino sofre de remorsos, os quais se projetam na sua maneira de viver/sentir “alucinada” (“andava sempre, para se cansar, para dormir”, 2013, p. 282), bem como na sua música, enlouquecida, “como feita de gemidos de assassinados, ora rouca, com estertores de epilepsia, já triste e simples como fora talvez o último olhar da sua mulher” (2013, p. 282). À noite, o espetro da mulher assassinada começa a aparecer-lhe com regularidade, talvez para se vingar. Incapaz de suportar o peso da má consciência, vai um dia entregar-se à polícia, supostamente pela incitação da morta. Nas palavras de Vítor Viçoso, o músico corresponde “à grelha do artista maldito finissecular: genial e obscuro; plenamente consagrado à Arte; nevrótico e sadomasoquista; marginal e misantropo; hipersensível e perverso” (Viçoso, 1999, p. 149).122 Esta versão do artista, com efeito, condiz com os sentimentos que, de acordo com Laura Winkiel, dominaram na cultura finissecular oitocentista e que influenciaram um certo tipo do modernismo europeu (2017, p. 57). A este respeito, pode ser invocado o caso de Max Nordau, escritor e jornalista de origem húngaro-judaica, que em 1892 publicou um tratado polémico Degeneration, no qual apresenta o prognóstico da 122 É deste tipo, por exemplo, o protagonista do conto “Alma a penar” (A mentira vital, 1897) de Henrique de Vasconcelos (1872 – 1924), poeta e escritor português tipicamente finissecular (com uma obra [ultra]romântica, macabra, inspirada em Hoffmann e Poe. O protagonista do conto, conde de Forbach, é apresentado como um velho misterioso, de quem ninguém sabe nada e à roda de quem, portanto, giram várias histórias e lendas mais ou menos inverosímeis. Há quem diga que se trata de um “nobre boémio, mal visto na corte austríaca por suspeitar-se que conspirava pela sublevação da Boémia”, outros afirmam que é “um aventureiro sueco, enriquecido em negócios escuros” (Vasconcelos, 1988, p. 74). A sua descrição é cheia de clichés típicos das figuras demoníacas ultraromânticas: é misantropo, provavelmente de origem fidalga, seco, de cara “comprida, amarelada e enrugada”, de lábios finos, de crânio nu e de olhos fundos “cavados nas órbitas como poços”, de um “olhar mortiço, quase cego” (Vasconcelos, 1988, p. 74). O próprio narrador invoca metatextualmente a sua semelhança com as figuras de contos de Hoffmann. Trata-se, em suma, de uma figura com os traços vampirescos à la conde Dracula, sádicodemoníacos à la Gilles de Rais e fantásticos à la Frankenstein. Pior que o seu aspeto, contudo, são os rumores que correm a seu respeito e conforme os quais o conde, na sua propriedade na Boémia, construiu um laboratório, um teatro anatómico para a dissecação de cadáveres e criação de violoncelos com as fibras de alma humana. 135 decadência moral da sociedade.123 Tal descrição de artistas modernos anticipa, conforme Winkiel, o romance Dracula (1897) de Stoker, em que o perverso Conde suga o sangue aos ingleses em tudo saudáveis (2017, p. 58). Com efeito, o conceito da degenerescência, junto com as intrigantes teorias darwinianas, influenciaram em grande escala a ficção dos fins de oitocentos e inícios do século XX, em especial aquela da vertente fantástica ou, em termos ingleses, gótica, como se vê, por exemplo, nos romances The Great God Pan (1894) de Arthur Machen ou The Time Machine (1895) e The Island of Dr Moreau (1896) de H. G. Wells. Convém mencionar, contudo, que ao lado do processo de degenerescência (também chamada regressão)124 é muito usado o termo de evolução paralela125 (cf. Hurley, 1996, p. 61). A bestialidade, gerada através destes processos, constitui, de facto, um dos tipos de alienação, ou mesmo duplicidade (homem/besta), que virá a ser abordada ainda na literatura moderna e contemporânea, sobretudo aquela que se centra na representação do horror urbano. Tais imagens da degenerescência, entre outros, fazem parte da estética de Fialho de Almeida. Ele próprio, no opúsculo Literatura gagá, afirma o seguinte: Sob o capricho extravagante das modas e a distinção dos hábitos mundanos, observando bem essas figuras de homens e mulheres notar-se-á em muitas já o quer que seja duma antropologia regressiva: crânios em pêra, têmporas deprimidas, grandes rebordos ósseos nas órbitas, maxilas de dogue, espessuras compactas de rochedo; certos prognatismos gorilanos, certos espessamentos de lábios fazendo tromba, certos olhos mui juntos do nariz, onde a expressão tem da raposa e do sagui... (Fialho de Almeida, 2011, p. 24-25) Embora o processo de degenerescência se possa aplicar, na conceção fialhiana (e no rasto de Nordau), sobretudo aos “gagás”, reis de futilidade, preguiça e vida luxuosa, é interessante observar que os traços animalescos, citados pelo autor, constituem também retratos de algumas figuras do outro lado da sociedade, representantes da marginalidade urbana. Veja-se o exemplo do conto “Mefistófeles e Margarida” (A cidade do vício, 1882) que retrata o “subterrâneo” 123 De acordo com Sue Chaplin, “In 1896 the anxieties occasioned by certain interpretations of Darwinʼs account of evolution reached their highest pitch with the publication of Max Nordauʼs Degeneration, the language and tone o which is distinctly Gothic; Nordau warns that the whole of civilisation is under threat from nameless forces of destruction. (Chaplin, 2011, p. 106). 124 Usa-se o termo conforme K. Hurley: “Degeneration was evolution reversed and compressed. Like evolution theory, degenerationism concerned itself with the long-term effects of heredity within the life-span of a species, and with biological variations from type that affected not just the individual, but the generations to follow.” (Hurley, 1996, p. 66) 125 O termo relaciona-se com a teoria de evolução darwiniana, vista por Hurley como uma das fontes poderosas das narrativas góticas finisseculares: “Darwin´s narrative proved to be an extraordinarily fertile source for Gothic plotting, which in turn placed its phantasmatic entities within an explicitly evolutionist or pseudoevolutionist framework (…) Gothic stories of parallel evolution represent anomalous phenomena (monsters are properly biological sports) as logical products of natural processes“, Hurley, 1996, pp. 60-61) 136 lisboeta com as suas figuras típicas, como são a pobre florista Clara, vivendo miseramente num apartamento subterrâneo, o seu filho Gabriel, que num único dia descobre o peso da vida à margem da sociedade, e o corcunda Tromba, obsesso pela paixão por Clara. Precisamente este corcunda pertence às típicas figuras grotescamente deformadas (“monstros” com traços animalizados126 ) de Fialho de Almeida, ilustrando bem a época finissecular.127 Tromba, destruído pelo álcool, doenças venéreas e raquitismo, é definido pelo narrador como a última fase do homem que degenera numa besta, de modo que já não é capaz de pensar nem falar razoavelmente, deleitando-se, tão só, em espiar o seu objeto de obsessão erótica por uma frincha na parede. Clara, assim, é completamente destituída de um mínimo de privacidade que o seu apartamento lúgubre e infecto lhe possa dar. O drama destas personagens encaminha-se implicitamente ao selamento dum pacto diabólico, anticipado já no título faustiano do conto. Tromba, pois, rouba o dinheiro, esperando ansiosamente pelo dia em que Clara, no fundo do fundo da sua miséria, se lhe entregue voluntariamente, com ajuda desse dinheiro. Além desta linha de acentos horrorrosos, o conto desenvolve ainda a micro-história de Gabriel, filho de Clara, que costuma sair de casa para deambular pela cidade, na tentativa de vender as flores da mãe. Como os dias da diegese correspondem à época de carnaval, Gabriel encontra pelo caminho várias máscaras, dentre as quais não falta, curiosamente, a máscara de Mefistófeles e Margarida. A sua atenção é, contudo, atraída pela máscara de galo, entrevista numa loja, que lhe é financeiramente acessível. Por causa desta máscara entra num conflito com uns rapazes de “boa família”, acabando por ser detido pela guarda. Mas é precisamente o motivo da máscara que estabelece, no conto, a tensão entre a realidade/essência e aparência que, por sua vez, acentua a dimensão existencial e social da história. Pelo processo do contraste, estudado já por Sandra Jatahy Pesavento na obra de Baudelaire, a cidade finissecular ganha aspeto de um espaço dicotómico, dos ricos e dos pobres, do espaço das casas de luxo, restaurantes chiques e 126 Nestes casos o narrador usa frequentemente as designações como gorila, orangotango, macaco ou monstro. Em certo sentido pode tratar-se, no caso de Fialho de Almeida, de figuras provenientes da imaginação arquetípica e romântica (da criatura de Frankenstein, de monstro e da bela, de Quasimodo de Victor Hugo etc.). Pela transposição noutra época, porém, estas figuras perdem o halo de idealização, adquirindo os traços naturalistas. Na descrição de Tromba, portanto, o narrador exagera com os atributos repelentes, com o fito de acentuar a ideia da decadência e degenerescência. Nalgumas prosas situadas no espaço rural, no entanto, aparecem ainda outros casos. Por exemplo, no conto “Os pobres” (O país das uvas), o protagonista, vadio de nome José, encarna um tipo dum “monstro” simpático e tímido que só deseja um pouco de amor que, por causa do seu aspeto, não consegue ganhar. 127 Parece-me que semelhante tratamento de certas figuras de estratos sociais inferiores possa ser encontrado também na obra de Branquinho da Fonseca. Um bom exemplo constitui a novela Rio turvo (1945), em que o personagem-narrador diz, a propósito: “No refeitório dos trabalhadores o barulho era ensurdecedor enaquanto não começavam a comer. Depois, quase de súbito, ficava um silêncio em que se ouvia só o som da loiça. Estavam a engolir. Os animais, à manjedoira. Como me vexava o primitivismo daquela gente! (...) Tínhamos a mentalidade confusa e agressiva de homens de uma época de transição. (Fonseca, 1997, p. 49) 137 produtos atraentes nos escaparates por um lado, bem como do subterrâneo da pobreza por outro lado. 128 Um bom exemplo desta alienação, que inclui um crime bestial dirigido a um parente, pode ser encontrado no conto “O Resto” (Zonas, 1931-32) de Branquinho da Fonseca. Nesta narrativa, localizada na cidade de Lisboa, o protagonista chamado o Resto, viúvo, vive num apartamento pobre com a sua filha Lucínia. Pobre e repelente, o Resto entrega-se ao vício do álcool, perdendo-se cada vez mais no abismo da sua escuridão. Quando a filha, bonita e fresca, é pedida em casamento pelo seu namorado rico de boa família, o Resto não consegue agir de maneira adequada. Ofuscado pela sensação de uma injustiça dirigida exclusivamente à sua pessoa, decide cortar a sorte à sua filha, assassinando-a junto com o seu namorado na sua própria casa. Este crime, premeditado, é particularmente cruel, uma vez que se trata da morte por fogo: o Resto fecha os namorados dentro do quarto onde anteriormente tinha derramado gasolina. Todos os três morrem na casa sufocados e queimados. A personagem do Resto pode ser considerada, simplesmente, louca. Contudo, embora no início do conto o narrador afirme que, “[n]o dia em que lhe morreu a mulher, [o Resto] enloqueceu”, logo a seguir desmente: “mas agora já andava bom” (Fonseca, 2010a, p. 339). O maior problema do homem não é só o facto de não possuir um sentido de vida, porque isso acontece a muitos, mas é o mundo dos outros, a sua felicidade. “Lʼénfer, cʼest les autres”, disse Sartre na peça Huis clos (1943). Aqui, com efeito, são os outros felizes que constituem um estímulo de tortura infernal para o Resto, uma vez que a relação do Resto para com os outros se baseia em afetos negativos, de inveja, ciúme e ódio. Há nele, inclusive, o ódio contra a própria vida, esvaziada e sem sentido. Podemos assim concordar com António Manuel Ferreira que vê nesta personagem “uma espécie muito particular de Medeia que projecta no infanticídio não apenas a raiva contra o abandono amoroso, mas o ódio ferino e alienante contra uma vida que não passa de morte quotidiana” (Ferreira, 2004, p. 210). Os afetos negativos, a par do alcoolismo e incapacidade de viver decentemente, são também sintomas da degeneração, da sua regressão ao estado primitivo, irracional e bestial. Fisicamente, a bestialidade do Resto evidencia-se em vários traços animalescos que caraterizam a sua figura. A cantiga que o Resto repete todos os dias (“Eu sou como o gavião”) traz-lhe a alcunha, precisamente, de gavião (“Ó gavião!... dá cá o pé, loiro!...”, Fonseca, 2010a, p. 339), ficando a assemelhar-se, de facto, a 128 Sandra Jatahy Pesavento faz referência, entre outros, ao famoso poema em prosa “Les yeux des pauvres” (Le Spleen de Paris) de Baudelaire, em que a imagem de um café parisiense, a brilhar no boulevard, contrasta com a imagem do pobre pai com dois filhos que espreitam, com estupefação, para dentro do café (1999, pp. 102-103). Situação semelhante encontra-se também neste conto de Fialho de Almeida. 138 uma ave de rapina, ou fera predadora (“Ele seguia-os, a rastejar, a tremer, com a respiração suspensa, e dos cantos da boca entreaberta escorria-lhe uma baba espumosa”, Fonseca, 2010a, p. 342).129 O Resto não vê ninguém, senão a si mesmo. Pode dizer-se até que o verdadeiro motor da patologia do Resto é o seu narcisismo bloqueador de qualquer relacionamento empático para com os outros, inclusive para com a filha. O amor-próprio verifica-se explicitamente no momento em que o Resto se observa ao espelho: “Foi diante do espelho e ficou parado a olharse com um olhar imóvel e calmo. Passava os dedos sobre os cabelos brancos, palpava as rugas da cara, examinava-se pormenorizadamente e tinha os olhos com lágrimas.” (Fonseca, 2010a, p. 343). A partir desta cena é possível supor que, para além da falta da mulher, o Resto é atacado pela crise da idade, pelo medo de envelhecer. Talvez este espetro da velhice seja a causa primordial de todos os problemas interiores do protagonista, este mesmo tornado também espetral à semelhança da sua mulher morta.130 De um outro ponto de vista, este homem/besta, totalmente alienado e egotista, pode ser considerado um produto extremado da cidade moderna, em que até os laços familiares sofrem a total deformação. A indicação geográfica do conto é imprecisa, sendo referido somente que se passa na cidade. Certas circunstâncias, de teor textual e biográfico, no entanto, conduzem à conclusão de se tratar de Lisboa, tal como noutros contos de Branquinho da Fonseca concretamente localizados (em especial no conto “A tragédia de D. Ramón”). Um indicador infalível corresponde ao tópico da casa, que é aqui um edifício de cinco andares, velho e podre, semelhante ao que desempenha o papel fulcral no conto “Andares” da mesma coletânea. As relações entre os vizinhos podem ser definidas como tipicamente urbanas, baseadas antes na indiferença ou hipocrisia (“ ‘- Pois muitos parabéns, menina Lucínia, e que seja tão feliz como deseja...’ E, desde a cave até ao quinto andar, toda aquela gente se mordeu de inveja.” Fonseca, 129 A caraterização por meio de atributos animalescos é recorrente, aparecendo nas seguintes variações: “Os dentes batiam-lhe uns nos outros e ele agarrava a boca com as mãos para os parar, e aquela baba espumosa resfolgava-lhe por entre os dedos. (...) Caíam-lhe bagas dum suor frio, pela cara abaixo, e a boca resfolgava-lhe mais, abafada nas mãos...” (Fonseca, 2010a, p. 342) 130 A propósito da espetralidade vigente na representação do protagonista, atente-se nas seguintes descrições: “Pouco depois levantou-se como um espectro e subiu a escada. Ia já lúcido, tinha-lhe passado a embriaguez, mas sentia a cabeça vazia, a esvair-se... e os olhos esgazeados saltavam-lhe da cara, como se enlouquecesse.” (Fonseca, 2010a, p. 340), “Aquela cara plácida parecia de pedra e o olhar, parado, dum morto. (Fonseca, 2010a, p. 341), “Deitou-se outra vez na cama e ficou na mesma, com a cara de pedra flácida, a arrefecer e os olhos de morto a olharem a claridade da janela... (Fonseca, 2010a, p. 341). Para além destas descrições que imprimem ao protagonista uns traços macabros, convém mencionar ainda o facto de ele próprio ser acometido de visões espetrais da sua mulher morta: “E então vinha-lhe mais nítida a visão da mulher, que tinha morrido há três anos, quando ele era feliz e respeitado” (Fonseca, 2010a, p. 341). Este grande amor, contudo, ao contrário de muitas histórias sobre a projeção da mulher morta na filha ou noutra mulher parecida, é somente gérmen de uma aversão para com os vivos, supostamente felizes. 139 2010a, p. 340). Além disso, sabendo-se que o Resto é um ex-empregado do ministério, a alusão à capital torna-se evidente. Portanto, o caráter alienado do Resto pode ser moldeado precisamente pela vida urbana, ainda que o horror intrínseco à história fique exclusivamente reservado ao tratamento do protagonista. A própria cidade, com efeito, mantém-se indiferente à violência doméstica, como se tudo não fosse mais que um espetáculo para o povo se entreter (“E o povo da cidade, em volta, olhava como nas fogueiras do S. João...” (Fonseca, 2010a, p. 344). Enquanto o Resto não é uma espécie de serial killer, apesar do horror dos seus gestos patológicos e perversos, o mesmo já não se poderia dizer do protagonista do conto “Memória de um degredado” de Tomaz de Figueiredo, publicado pela primeira vez em 1934, isto é, dois anos depois da coletânea fonsequiana. A situação é bem diferente: aqui, o protagonita não mata por amor próprio e inveja doentia, mas por vingança. Enlouquecido, o herói corre pelas ruas lisboetas em perseguição do violador da sua noiva, matando todos os homens que exibem caraterísticas semelhantes ao perseguido. Curiosamente, depois do primeiro assassínio, o narrador-protagonista, que se diz “desdobrado”, entra num estado próximo de delírio, matando por uma pulsão irreprimível (“Agora, era um impulsivo destrambelhado, só digno duma camisola de forças.” Figueiredo, 2012, p. 59, “Não vi mais nada. Não tive tempo de pensar mais nada. Peguei na manivela e esmigalhei-lhe o crânio...”, Figueiredo, 2012, p. 60). No fim, não aguentando já a carga enorme causada pelos sucessivos assassínios de que era agente, pretende fugir. Em vez de fugir para o estrangeiro, como desejava, porém, entrega-se no posto da polícia. O espaço urbano torna-se, também aqui, fundamental, uma vez que o narrador-protagonista se sente irracionalmente preso à cidade onde comete os assassínios em série (“Não poderia afastarme dos sítios onde sofrera. Abandonar Lisboa. Impossível! À cidade maldita prendia-me a indolência e a dor.” Figueiredo, 2012, p. 59). Encontramos ainda, na obra de Branquinho da Fonseca, outros contos que encerram os tópicos do narcisismo, crime e cidade, em diversas proporções. Convém, a este respeito, aludir brevemente ao conto “A prova de força” (Rio turvo, 1945). Neste texto, com efeito, detetamos a figura de um velho louco que conta ao narrador a sua vida e o seu crime passional, arranjado de forma a parecer um acidente. O crime não era nada menos que o assassínio da mulher supostamente infiel. Tendo fugido à justiça, porém, o velho não pode escapar a uma existência solitária e alienada. A necessidade de falar sobre o crime que cometeu por ciúmes reflete a escuridão a que ele próprio se condenou, à maneira de uma prisão interior. Nada mais lhe resta a não ser um egotismo extremo, (re)vivendo sempre os mesmos momentos dramáticos numa confissão exibicionista. A história passa-se em Lisboa, sendo realçado o rio Tejo, turvo e 140 escuro, que funciona como um reflexo da escuridão interior do homem ciumento, no momento preciso da sua pulsão assassina. Bem poderia ser evocado, nestas circunstâncias, o poder do “arcanjo negro”, caraterizado por Aquilino Ribeiro como “um vampiro mais temível que o das florestas da Guiana que se apodera duma pessoa”,131 sobretudo se esta for ciumenta, devorada pela frustração e incerteza.132 Os ciúmes, portanto, tal como no caso do Resto, podem estimular o desvelamento da face terrível de Narciso, do id ocultado, talvez soterrado debaixo das camadas de um ego displicente, mas sempre presente e ameaçando a sua irrupção. Mais um caso interessante pode ser ainda encontrado na obra de Branquinho da Fonseca. Trata-se do conto “O passageiro da 2ª classe”, pouco conhecido, da coletânea Zonas, que discorre sobre mais um crime, desta vez envolvido em mistério. O narrador relata a sua viagem de comboio noturno para Lisboa, durante a qual é abordado pelo Dr. Jardim, “chefe político e especialista de doenças nervosas” que diz interessar-se pelos casos clínicos de assassinos reincidentes. Durante a viagem, é sobretudo o Dr. Jardim quem fala, limitando-se o narrador a referir não tanto o conteúdo da conversa, mas antes as suas reações contraditórias, a oscilar entre o repugnante e o agradável, que a conversa provoca no seu sistema nervoso.133 Mas há vários mistérios. Primeiro, não se sabe até que ponto o narrador é de confiança, uma vez que ele próprio confessa discordar do Dr. Jardim quanto aos efeitos da conversa no sistema nervoso (“O Dr. Jardim dizia-me que estivesse descansado, que ele ia a falar baixo e que eu é que imaginava os berros... Não era verdade. Tenho a certeza de que ele falava muito alto, sim, que por vezes dava verdadeiros berros..., Fonseca, 2010a, p. 331). Segundo, há uma figura misteriosa, um homem a dormir no canto do banco do mesmo compartimento em que viaja o narrador com o Dr. Jardim. Apesar de se receber a informação, logo em seguida, que esta figura não corresponde a nenhum espetro, como poderia parecer à primeira vista, a sua presença, de testemunha silencioso, assemelha-se a uma sombra (quase junguiana), a um duplo sinistro seja 131 Citação tirada da capa do livro (Ribeiro, 1960). 132 O romance O arcanjo negro (1947), continuação do romance Mónica (1939), discorre sobre Ricardo Tavarede, homem patologicamente ciumento que, apavorado pela velhice precoce, não sabe como tratar a sua esposa jovem e bela. O tema de ciúmes, que não raramente acabam em violência, constituem, de facto, uma linha poderosa de narrativas “clássicas”, como é, por exemplo, a famosa novela A sonata de Kreutzer de Tolstoi. Pela lógica narrativa, portanto, o homem ciumento mata a sua mulher, como fez o protagonista de Tolstoi ou de Branquinho da Fonseca, ou então sente pulsão de a matar, como o narrador-protagonista de novela “Vestido cor de fogo” (Histórias de mulheres, 1962) de José Régio ou o Ricardo aquiliniano (“Um dia destes teu marido matate”, diz Carma à sua filha Mónica, neste romance O arcanjo negro de Aquilino Ribeiro, 1960, p. 336). 133 “Primeiro pareceu-me um louco e confesso que aquela maneira de olhar me perturbava e me incomodava e que, se isto se repetisse mais alguma vez, podíamos ter um incidente desagradável, porque de cada vez que ele fazia isto, a seguir à suspensão de forças que o olhar dele me causava, eu tinha um impulso irresistível para o atirar para o fundo do compartimento, atirá-lo para o chão e dar-lhe pontapés até ele não se mexer. Repugnava-me como um bicho peganhento. E então parecia-me feroz. Mas eu dominava-me, resistia. E passada esta impressão ele era uma pessoa agradável, atraente, conversando com muito interesse.” (Fonseca, 2010a, p. 330) 141 do narrador, seja do Dr. Jardim, ou de ambos. Terceiro, conforme as notícias de jornal do dia seguinte, houve um crime de assassínio no mesmo compartimento. Este enigma policial não é resolvido, uma vez que ninguém é acusado de crime, nem o narrador, nem o Dr. Jardim. O final do conto é, contudo, irónico porque a alusão à pasta de Justiça atribuída ao Dr. Jardim no novo governo remete para o facto de ser precisamente o Dr. Jardim assassino. Uma certa ironia podia consistir também num paralelismo literário, em que o Dr. Jardim, com a sua sombra-homem silencioso, encarnasse um Dr. Jekyll, com o seu Mr. Hyde. Mais ainda, na “nota da redacção” do mesmo jornal escreve-se, em tom patético-nacionalista que “[a] superior mentalidade das altas figuras que constituem o novo governo, mais uma vez nos impõe a iniludível certeza nos altos destinos da Pátria, dum Portugal maior, que...” (Fonseca, 2010a, p. 336). A cidade de Lisboa como sede desse mesmo governo baseado na dissimulação, portanto, adquire um caráter bastante sombrio e alucinatório. Até poderíamos arriscar em formular a hipótese de se tratar de uma alusão a certos dirigentes do Estado, nos alvores dos anos 30, que se aproveitam de poderes de manipulação, sugestão e hipnose coletiva. 4.2. Dentro do abismo de escuridão: Páscoa feliz, de José Rodrigues Miguéis A novela Páscoa feliz (1932) de José Rodrigues Miguéis desenvolve todos os aspetos mencionados nos contos fonsequianos, acentuando muito mais ainda tanto a problemática do narcisismo e a consequente fragmentação do sujeito, como a relação entre o homem e a cidade. Trata-se de uma história dum alienado, geralmente classificado como esquizofrénico, que, após entrar numa crise de identidade, rouba e supostamente mata o seu patrão.134 A história é narrada retrospetivamente, em forma autodiegética, a partir do momento em que o protagonistanarrador julga expiar o seu crime na prisão, que é, de facto, um hospital psiquiátrico. Neste aspeto, a novela migueisiana evoca o famoso texto de Mário de Sá-Carneiro, A confissão de Lúcio (1914), em que o protagonista-narrador se encontra na situação idêntica, pensando-se aprisionado por causa de um suposto crime. É evidente que, para além das mesmas circunstâncias (a ambivalência do espaço heterotópico da prisão/manicómio), os protagonistasnarradores destes dois textos são movidos também pelo mesmo problema de desdobramento e 134 O próprio escritor fala do protagonista como de um “esquizofrénico paranóide” (em “Nota do Autor” à segunda edição, In Miguéis, 1974, p. 159). Teresa Martins Marques, a estudiosa da obra migueisiana, igualmente assume a mesma “definição” (“a esquizofrenia do narrador apresenta-se como um dado assente”, Marques, 1997, p. 32). 142 cisão interior. Consequentemente, o mito de Narciso anima os dois textos, de uma forma de mise-en-abyme. Os dois refletem-se a si próprios dentro do texto que estão a produzir, refletindo simultaneamente o narcisismo como um traço definidor das suas personalidades. A importância da relação do protagonista de Páscoa feliz para com a cidade, na qual a história é desenvolvida, foi já sublinhada por Teresa Martins Marques no seu excelente ensaio sobre o imaginário de Lisboa na ficção narrativa de José Rodrigues Miguéis (1997).135 A minha análise toma este trabalho como ponto de partida, detendo-se a seguir em certos motivos que podem ser perspetivados à luz do método geocrítico, sobretudo no que diz respeito à relação da novela com a tradição literária, cultural e mítica. Deste modo, pretendo reforçar o relacionamento íntimo entre o sujeito e a cidade, apontando simultaneamente para certas ambiguidades que nos convidam a dar mais uma “volta ao parafuso”136 na leitura. 4.2.1. Espetros da rotina urbana No início deste capítulo sugeri que a figura modernista do (mental e socialmente) alienado reflete, muitas vezes inconscientemente, a discussão epocal sobre a degeneração e/ou regressão a um estado, dir-se-ia, anterior ou mais primitivo. Consequentemente, estas questões apontam também para o estado atual da civilização, considerada já desde os fins de oitocentos um tanto esgotada e cansada. Por outras palavras, o progresso vertiginoso tem sempre um lado obscuro que põe em causa, em certas circunstâncias, a própria noção do progresso como tal. Por isso, as distopias, como as criadas por H. G. Wells, alertam para o perigo que a civilização corre, pelo menos, a partir da revolução industrial e científica oitocentista. O mesmo imaginário distópico anima também várias obras modernistas, entre as quais a já mencionada The Waste Land de Eliot marca a sua posição privilegiada. Em Páscoa feliz apresenta-se o mesmo vetor vertical, de declínio: o progresso conduz a stasis e esta à degeneração. A fase de stasis é, com efeito, representada por um iterativismo agressivo que sugere a ideia de monotonia e automatismo: As carroças e os camiões carregados trovejam todo o santo dia no pavimento irregular da rua. Cheirava ao mesmo tempo, a fumo de carvão, a maresia, ao peixe frito das tabernas vizinhas – e ao bafio do escritório. Próximo dali, nas oficinas e armazéns 135 No seu estudo que faz parte de um trabalho mais amplo sobre o imaginário de Lisboa na ficção narrativa de José Rodrigues Miguéis, Teresa Martins Marques distingue, em primeiro lugar, entre o espaço da criança e o do adulto, sendo este segundo desenvolvido em forma de vários “espaços” conforme o comportamento e interiorização subjetiva do protagonista: espaço de errância, onírico, claustrofóbico, “culpado” e “testemunha”. (Marques, 1997). 136 Refiro-me naturalmente à famosa novela The turn of the screw de Henry James, que é uma das mais enigmáticas e ambíguas histórias na literatura mundial e, como tal, geradora de inúmeras leituras possíveis. 143 retiniam ferros. Rangiam correntes nos guindastes do cais. As vozes do trabalho enchiam-me os ouvidos. Os apitos das fábricas, alegres e estridentes e as sereias dos vapores de som grave e rouco, faziam trepidar as vidraças. (Miguéis, 1974, p. 46)137 De acordo com Teresa Martins Marques podemos verificar, nesta passagem, a “desumanização desse espaço de Lisboa não apenas no sentido em que transmite uma sensação de agressão, mas ainda porque as acções são apresentadas como se fossem executadas por robots, nunca sendo explícito o elemento humano que as executa.” (Marques, 1997, p. 45). A crescente robotização da sociedade, expressa pela ideia do progresso, leva naturalmente ao esgotamento, burnout effect e alienação e, com isso, ao crescimento da criminalidade. Paralelamente, porém, a crescente automatização de processos vitais leva à revolta contra o normativismo, a uma anarquia perspetivada não só a nível sócio-político, mas também pessoal. Para equilibrar esta tensão, urge encontrar algum método de compensação que pudesse resolver graves problemas de teor psíquico. A compensação menos prejudicial corresponde, naturalmente, à evasão pela fantasia. Tudo isto vem a respeito do protagonista de Páscoa feliz, Renato Lima, personagem que me parece pouco compreendida, até pelo próprio autor que a criou e que a classificou, como vimos, de um “esquizofrénico paranóide”. Parece-me antes que, de um certo ponto de vista, Renato Lima encarna um melancólico deprimido que, pela evasão no mundo de fantasia procura compensar os enormes complexos e traumas que têm norteado a sua vida desde a infância. Algumas questões relacionadas com esta leitura afloram com maior lucidez desde que se leve em consideração o espaço topográfico-social, no qual o protagonista é inserido. O ponto básico, pois, consiste no facto de Renato Lima se incluir num tipo social, essencialmente urbano, um funcionário público ou um empregado de escritório, frequentemente um guarda-livros de uma casa comercial. Daniela Hodrová, ao debruçar-se sobre as várias encarnações da monstruosidade nos textos literários, aponta para a importância desse homem “comum” por este parecer, à primeira vista, um antípoda do monstro como tal (Hodrová, 1994, p. 172). Na realidade, Hodrová afirma haver um relacionamento entre a profissão banalmente estereotipada, a existência não menos estereotipada, a regularidade circular da vida e a monstruosidade, evidenciada no comportamento sadomasoquista, na megalomania ou humildade ou, mesmo, na pulsão assassina (Hodrová, 1994, p. 172). A análise de uma vida “comum” leva à descoberta do monstro num homem “comum” (Hodrová, 1994, p. 172). A literatura dá-nos muitos exemplos deste fenómeno. Com efeito, o paradigma desse homem 137 Todas as citações referentes à novela estudada de José Rodrigues Miguéis são desta edição. Por motivo de redundância, as citações serão a seguir identificadas só pelo número da página. 144 “comum” pode ser rastreado até ao século XIX, quando a literatura começa a preferir figuras de uma modernidade urbana em desfavor de monstros românticos. Neste sentido podemos mencionar sobretudo os funcionários públicos de Gogol (Contos de Petersburgo, 1842) e Dostoievski (Memórias de Subterrâneo, 1864). Com o advento do século XX, a mesma figura ganha cada vez maior repercussão, sendo retratada, de modo polémico, em várias obras modernistas (de Pessoa, Hostovský138 etc.). Como um dos precursores desta figura na poesia, convém referir um autor não muito conhecido, John Davidson (1858-1909), que se tornou numa das fontes de inspiração da poesia de Eliot. Com efeito, nos poemas da coletânea In a Music Hall and Other Poems (1891), a figura do funcionário desempenha o papel fundamental. Robert Crawford alega que este funcionário, “[w]orking in the office day after day, loses his soul nightly in the music hall – a wish to escape from an inane world” (Crawford, 1990, p. 57). Retrata-se, assim, “[t]he routine life under which a terror may lurk” (Crawford, 1990, p. 58). Além disso, Álex Matas Pons afirma que o drama do funcionário é um drama urbano, o da modernização (Pons, 2010, p. 46) explicando que o funcionário “cuyo abrigo le ha sido proporcionado por aquella misma aventura modernizadora (…) acaba por ver cómo esta misma aventura le roba su abrigo cuando se convierte en rutina tras el triunfo de la burocracia y el capital.” (Pons, 2010, p. 46). Toda a noção do progresso, modernidade e civilização é, assim, posta em causa, mesmo que de uma forma ambivalente porque, ainda de acordo com Matas Pons, a figura do funcionário não é a simples recusa do ideal do progresso, uma vez que ela própria se sabe produto desse mesmo progresso (Pons, 2010, p. 55). A mesma ambivalência paradoxal que domina nas estruturas da modernidade assenta também na base da figura migueisiana. Embora não se trate de um funcionário, mas de um guarda-livros, o trabalho por ele executado é da mesma maneira estereotipado, maquinal e rotineiro. O problema é que o estereótipo que vigora no trabalho do protagonista se reflete também na casa e, por extensão, em todo o ambiente em que Renato se move. Efetivamente, como Eduardo Lourenço já tinha reparado, o protagonista migueisiano é “sufocado pela pasmaceira de Lisboa, pelos seus horizontes mesquinhos e sórdidos, consciente da mediocridade da sua própria vida“ (Lourenço, 2001, p. 47). Tudo o que é associado, por ele, à monotonia e rotina, seja a cidade, casa, escritório ou o seu próprio corpo, é também sentido como uma prisão. Todos os espaços, transfigurados por uma visão alucinada, são também imagens da psique do herói, dos seus terrores irracionais e incontroláveis. Por isso sente tanto desejo de se evadir: da cidade – pelos passeios ao cais, admirando os navios e sonhando com 138 Deste autor checo (1908-1973) pode ser mencionada a novela Sombra perdida (Ztracený stín, 1933) sobre um jovem funcionário público que se aproveita de uma fraude do seu patrão para o chantagear. 145 as aventuras impossíveis, da casa – pelas fugas para a vida noturna, boémia e desregrada, do escritório – pelos supostos crimes de roubo e assassínio, do seu próprio corpo – pela criação de seus duplos. O primeiro aspeto do desdobramento que surge como consequência da vida mesquinha e rotineira corresponde à evasão solipsista, alimentada de sonhos e delírios. O narrador frisa, logo no início, que não está satisfeito com o seu aspeto: “Um dos meus martírios foi sempre ver-me ao espelho: tenho o rosto assimétrico, os olhos divergentes, as orelhas espalmadas.” (p. 29). Atente-se no pormenor de “olhos divergentes”, sublinhado pela repetição (“Ultimamente o meu estrabismo acentuou-se”, p. 29), o qual pode ser transferido do plano somático ao psíquico, sinalizando a cisão interior. Esta auto-imagem negativa é ainda alimentada pelos traumas com os quais o narrador se debate desde a infância, por ter sido alvo da praxe dos colegas de escola e por ter perdido, muito cedo, os pais. Pela hipertrofia da fantasia, o protagonista, portanto, cria dentro de si próprio uma persona romântica, semelhante aos heróis da literatura popular e sensacional (de tipo folhetim), chamada Renato Lima, em que o nome (re-nato) é sintomático desse processo de compensação (o nome verdadeiro do protagonista será talvez Abílio, nome mencionado no hospital psiquiátrico). Esta nova persona, impondo-se por uma masculinidade atraente pouco em conformidade com o verdadeiro sujeito, encarna um “eu ideal”, comparável ao duplo de Mário de Sá-Carneiro do conto “Eu-próprio o Outro” (Céu em fogo, 1915).139 Este aspeto do duplo provoca um prazer profundamente narcísico, sendo também este duplo que se presta com facilidade a uma vida boémia, plena de aventuras eróticas e viagens sonhadas. O narrador sente-se, afinal, satisfeito: “Vejo num espelho o fulgor novo dos meus olhos, o rubor das minhas faces... Sou, sou outro. Estou contente comigo.” (p. 76). Para além de este duplo causar satisfação ao sujeito, é ainda revestido de atitude libidinosa, sintomática do narcisismo: Todo o meu corpo vibrava por fim num desejo misterioso – o desejo duma posse inigulável, transcendente, que viria a ser afinal o meu crime. (p. 51) 139 Recapitule-se, brevemente, a trama deste conto reflexivo que é concebido como um diário íntimo, com as entradas desde 12 de Outubro de 1907 até Novembro de 1913. Numa entrada datada de 1909 e situada em Paris, o narrador encontra o seu duplo pela primeira vez, num café. O duplo é belo, ao contrário da perceção que o narrador tem de si próprio. Assim, o duplo cumpre o desejo do narrador, plasmando-se como a sua antítese, a completação da parte omissa. Apesar de eles começarem a passar as noites juntos, a sua relação fica brevemente deteriorada pela disarmonia. O duplo vem absorvendo a sua vítima, até o narrador alcançar a fase de se considerar o outro, o seu doppelgänger. A certa altura, o narrador dá-se conta que, para além de ter adquirido alguns traços fisionómicos do seu amigo, começa a pensar e escrever de modo diferente, como o seu duplo. O horror do narrador, portanto, está ligado ao medo de perder a sua própria identidade em favor de um outro vampiresco. A resolução final de matar o usurpador parece-lhe como a única possibilidade de se libertar. Para a análise mais detalhada, veja-se o meu artigo “Aquele que passeia ao teu lado: O fascínio dos duplos em Mário de Sá-Carneiro e Richard Weiner“ (2019). 146 Um outro amor, abstracto, imaterial, incoercível começava a ocupar em mim o lugar dessa afeição tranquila – o amor do fantasma que em mim se gerara e concebia lentamente. Sim, era um verdadeiro amor, um estranho narcisismo, uma embriaguez deliciosa e odiosa, que me queimava as energias afectivas, como as amantes que adivinham os nossos mais ocultos desejos, para os satisfazer até à loucura, o esgotamento e a morte. (p. 61) Outro aspeto do desdobramento relaciona-se com o conceito de monstruosidade que é efeito essencial da existência monótona e letal de um empregado de escritório. Tal como Jekyll criou o seu Hyde e Frankenstein a sua criatura, o protagonista migueisiano cria também o seu duplo monstruoso, esse que será o suposto agente de roubo e assassínio. A criação de Hyde fornece a Jekyll a possibilidade de entrar numa vida dissoluta, na Londres de East End, sementeira de prostituição e criminalidade, portanto na vida, na qual como um gentleman de classe média nunca poderia penetrar se não quisesse perder respeito e boa reputação. O duplo monstruoso do narrador migueisiano age também contra todas as regras e convenções sociais, mudando-se o seu aspeto tal como o de Jekyll ao desdobrar-se em Hyde. Assim como Hyde encarna o vício a que a honestidade de Jekyll não pode sucumbir, o narrador migueisiano desdobra-se em outro para poder satisfazer os seus desejos ocultos: “No meio da honestidade insípida da minha vida, experimento a mais absurda atracção do prazer, do vício e da acção.” (p. 69). Neste sentido, parece-me que o protagonista migueisiano é ainda dotado de uma poderosa imaginação transgressora que releva certas pulsões sexuais, em princípio tabuizadas, que se elevam a nível incestual, homoerótico e sadomasoquista.140 Com efeito, várias imagens que entram no plano afetivo são estranhamente veiculadas pelas metáforas que sugerem a sensualidade e relação libidinosa. Quando o protagonista fala do seu filho, exprime não só um amor propriamente narcísico, mas também um amor sensual (“Oh, esse eu continuava a amálo, a ver na sua carne o reflexo palpável do meu ser... pp. 61-62, “A boca, apetece devorá-la com beijos – é rubra, recortada em pequenas curvas harmoniosas, que morrem em duas cavidades miniaturais...”, p. 80).141 Também o fascínio que o narrador sente em relação aos homens das forjas, realçando os seus músculos, força e violência, não exprime só uma simpatia pelo trabalho manual à maneira cesariana, mas um desejo latente e vibrante.142 O corpo da 140 Nesta ordem de ideias, estamos sempre perto da persona de Hyde que encarna os tabus sexuais vitorianos, em especial a homossexualidade. Esta novela de Stevenson, nas palavras de Elaine Showalter “is a case study of male hysteria, not only that of Henry J., but also of the men in the community around him. It can most persuasively be read as a fable of fin-de-siècle homosexual panic, the discovery and resistance of the homosexual self.” (Showalter, 1990, p. 107) 141 Há mais passagens, nas quais o sujeito se reflete narcisicamente no seu filho: “É a carne da minha carne, prolongamento da minha vida, promessa impressionante e misteriosa da imortalidade...” (p. 85) 142 “Quando passava junto das forjas, parava, olhando com infantil curiosidade: eram cavernas infernais, cheias de sombras e clarões, onde os homens, negros e vermelhos, semelhantes a monstros, fabricavam estrelas, 147 esposa, ao contrário, provoca no sujeito sensações que vão desde uma indiferença glacial até ao desprezo e ódio, a beirar uns impulsos homicidas.143 Contudo, as imagens mais perturbadoras desenham-se na famosa cena do suposto assassínio. Embora todos realmente queiram ver nela o crime de assassínio, todos os detalhes sublinhados pelo protagonista expressam antes uma excitação sexual sadomasoquista, comparável a certos versos sensacionistas de Álvaro de Campos pessoano. Repare-se que, primeiro, a fixação fetichista da lâmina a brilhar sugere um desejo tenebroso de penetração,144 a seguir a mesma lâmina é desejada para fazer parte do narrador.145 Esta imaginação, dir-se-ia freudiana e fortemente masculinizada, é ainda aproveitada na descrição do apunhalamento, visualizada em slow motion cinematográfico: Deito-lhe a mão esquerda à gola do casaco, e ele segura-me o pulso com as duas mãos, a tremer, cerrando os olhos. Com a mão direita firo-o rapidamente no pescoço, duas, três vezes – não sei ao certo. O sangue vermelho e vivo gorgoleja, alagando o casaco e a camisa. O velho fica de olhos cerrados, com um suspiro fundo, quase de bem-estar. (p. 136) A cena é fortemente vampiresca, ao modo de romances sensacionais que nutriam a fantasia do protagonista: o violador investe repetidamente contra o pescoço, sublinhando o fascínio pela cor e derramamento do sangue. Há só um desvio em relação ao vampirismo porque malhando nas bigornas. Força e violência... (...) Invejei os homens que, com os seus músculos possantes, criam as formas e o movimento.” (p. 47). Ao contrário dos versos cesarianos, de pura simpatia social (“Num cutileiro, de avental, ao torno,/ Um forjador maneja um malho, rubramente”), o imaginário migueisiano denuncia as conotações eróticas, desde “as cavernas infernais” até aos gestos dos homens “negros e vermelhos, semelhantes a monstros” que malham nas “bigornas”. Estes homens assemelham-se a um protótipo satânico, na esteira de Milton e Baudelaire. Com efeito, o narrador migueisiano, ao contrário de Cesário, não apresenta nenhuns indícios de alguma soliariedade social, porque admira a boémia urbana e vida de luxo. Porém, pertencendo a um estrato social originalmente humilde, os seus desejos de uma outra vida tornam-no cada vez mais egotista e alienado. Portanto, a referência aos forjadores é uma exceção que pode estar mais propriamente relacionada com outros aspetos mais condicentes com o perfil sensual e erótico-mórbido do narrador. 143 “O amor perdeu, com a satisfação das primeiras curiosidades, o impulso e a chama, e transformou-se num vago enternecimento que se apagou por sua vez, deixando apenas a tarefa.” (p. 84) “Renasce em mim a cólera, o desprezo, a vilania, o esquecimento. O desejo do mal convulsiona-me. Chego a crispar sobre ela, num impulso homicida, as minhas mãos de ladrão nocturno.” (p. 80) 144 “E esta carícia – uma coisa que brilha – que vem não sei donde... e que me atrai... (...) Fascina-me a lâmina brilhante e longa duma faca de papel, poisada sobre a mesa. Os meus olhos não a largam. Mil raios vivos, irisados, acariciam-me os olhos (...) Atrai-me aquele pedaço de metal, tão fino, cuja frescura eu gostaria de sentir nas mãos, na testa, no pescoço... Estremeço. A ideia da carícia da lâmina gelada, penetrando devagar na minha carne, rasgando nervos, músculos, artérias, produz em mim um bem-estar dormente, sensual, um repouso quase absoluto. (...) Oh, como seria bom sentir no sangue a frieza do metal...(...) O frio do metal dá-me uma volúpia alegre, penetrante e doce (pp. 132-135) 145 “Os meus dedos seguem pelo gume fora, até à ponta, e tenho a impressão de que eu próprio assim sou – longo, delgado e cortante – todo eu sou um punhal... (p. 135) 148 em vez da oralidade, intrínseca ao erotismo vampírico, é novamente sublinhada a penetração.146 O efeito da violência na vítima é também mais descrito dentro dum código de sensualidade do que em termos terríficos ou dolorosos: em vez de gritos, olhos esbugalhados ou deformações faciais, comuns às descrições de cenas violentas, há só um doce cerrar de olhos, um suspiro fundo e um quase bem-estar. Também é preciso ver que Renato, de facto, não faz outra coisa senão aquilo que ele próprio desejaria, narcisicamente. Assim, onde podemos ler o assassínio, poderíamos ler também o sexo, numa abordagem narcísica, sadomasoquista e alucinante. Curiosamente, esta situação evoca entre outros o famoso poema baudelairiano “lʼHéautontimorouménos”, o qual conforme Jean Starobinski justapõe a agressão sádica e a passividade masoquista (“Je suis la plaie et le couteau!/ Je suis le soufflet et la joue!/ Je suis les membres et la roue,/ Et la victime et le bourreau! ”, Starobinski, 2013, p. 27).147 A cena do assassínio dá-se no escritório, sem a presença de testemunhas, adotando caraterísticas de um espaço fechado como prisão (e há, com efeito, alguns motivos que a sugerem: uma velha porta chapeada, um rumor pesado de ferrolhos, ripas da cancela).148 Ao mesmo tempo, trata-se de um espaço familiar, íntimo (“Ouço o tiquetaque familiar do relógio de pêndulo invisível”, p. 128), reservado só a dois protagonistas de um drama extremo, no qual a atitude do senhor Nogueira, invulgarmente submisso nessas circunstâncias, parece enigmática (“Voltamos dentro, ele trás de mim, em silêncio, passivamente.” p. 134). Por isso, a ambiguidade do espaço, os tópicos de crime e vitimização, bem como o comportamento estranho das personagens que envolve vagas reminiscências à homossexualidade e ao incesto (o patrão representa a figura paterna), aproximam-se de recursos que a teoria inglesa chama gothic tropes, aproveitados não só no romance gótico como tal, mas (e principalmente) em toda a história e atualidade literária inclinada à representação de excesso e transgressão, muitas vezes de origem sexual, através da qual a ordem social e política, vigente em dada época, pode ser efetivamente subvertida. A este respeito, George E. Haggerty afirma: 146 Se a lâmina penetrasse, em vez do pescoço, no coração, poderíamos ler os papéis das personagens de modo inverso, isto é, como a aniquilação do vampiro na pessoa do patrão. Se, de facto, o patrão não representa, propriamente dito, o vampiro, é certo que para Renato ele encarna uma espécie de espetro, um espetro do pai morto e um espetro da riqueza que ele ambiciona. 147 De facto, lendo esta passagem alucinante, a relação entre o protagonista e o patrão mostra-se de um modo ambíguo, e mais narcísica ainda. Nogueira desejaria ter filhos, mas não os tem, nem sequer uma mulher. O seu amor é todo orientado para a pessoa de Renato que goza de uma liberdade no escritório e de uma confiança absoluta da parte do patrão. Também a prenda que o patrão oferece ao seu empregado, um anel com um diamante, é um tanto invulgar. Quando Renato vende o anel para saldar algumas das suas dívidas, Nogueira reage de modo quase magoado, perguntando-se por que razão Renato não usa a jóia oferecida. 148 Quando o protagonista sai do escritório, é como se saísse duma prisão. O movimento de descida estimula ainda as perceções disfóricas: “A escada é sombria; vem de baixo um cheiro reles, de gatos e de lixo.” (p. 133) 149 In gothic novels, love between sisters, between mothers and daughters, fathers and sons, again and again challenges the status quo with the taboo around which the patriarchal system is organized. Other forms of extreme and excessive desire, violent sexuality, victimization, and erotic submission are at work in many of these novels. I call these works queer because there is no way that they merely contribute to the sexual status quo, and in some cases they militate strenuously against it. (Haggerty, 2006, p. 19) Embora, evidentemente, a novela migueisiana não tenha nada a ver com o gótico, é indubitável que, se fosse escrita em inglês por um escritor inglês ou americano, seria considerada como tal, não só pelos tópicos relativos ao crime e sexualidade, mas também pela atmosfera lúgubre, fantasmática e delírica que reina em todo o texto. À semelhança de prosas góticas de proveniência anglófona, podemos ler também a cena do assassínio em termos simbólicos não só como uma cena sexual e narcísica, mas como uma cena de repercussão sóciopolítica. Nesta leitura, o patrão representa, para além de toda a classe de “capitalistas”, o próprio fundamento do sistema patriarcal a ser vencido pelos súbditos. Mas nem mesmo esta linha axiológica evita, na narrativa, uma problematização e ambiguidade correlativa. Isto vê-se de melhor forma na metáfora do corvo/canário. Enquanto a imagem sombria e terrífica do corvo pode conter o significado de violência e revolta (contra a ordem, instituição paternalista, fundamentos sócio-políticos), o canário representa a submissão e humilhação: “Não é livre. Mas que seria dele sem a nossa protecção, fora da gaiola doirada, onde nada lhe falta?” (p. 94) Deste modo, o próprio conceito de liberdade é profudamente questionado, acabando Renato por exprimir um oxímoro que aponta para a ambiguidade da liberdade, tal como é retratada na novela: “Sou um prisioneiro da liberdade!” (p. 94). O narrador, aqui, corresponde precisamente a este pássaro que, consumado o crime-libertação da gaiola, perde o rumo da sua vida, acabando na alienação total. Remetendo ainda ao título da novela, Páscoa feliz, podemos, enfim, ler a novela também em termos de representação da paixão que corresponde, na tradição religiosa e místico-amorosa ocidental, à via dolorosa.149 Parece-me que não interessa aqui só o sentido comum de votos de Páscoa feliz que se dão no advento do feriado, mas o sentido religioso. Renato volta ao escritório do patrão após ouvir os votos de Feliz Páscoa, numa necessidade irracional de que havia qualquer assunto esquecido a cumprir. Desse modo, o patrão deve morrer, como Renato 149 Com efeito, Renato é, de sua natureza excitante e romântico-sensual, um homem de extremos, oscilando entre o vício/devassidão/prazeres intensos e abnegação/sacrifício e julgando que poderia apagar as consequências nefastas de um pólo pelo outro: “Ah, eu acredito na remissão dos meus pecados pelo sacrifício...(...) Em mim há, no fim de contas, como em toda a gente, várias personagens que se contradizem, predominando alternadamente na vontade. E uma tendência religiosa, o apelo para o ‘mais alto’” (p. 95). 150 bem o sente, porque a lógica da narrativa o comanda. E deve morrer como um Cristo, traído por um novo Judas, pelo qual nutria um amor paterno. Há também a paixão de Renato que, num estado de delírio, corre pela cidade, na tentativa de se aniquilar, suicidar, tal como Judas fez, precisamente. E há, por fim, também a terceira paixão, relacionada com o filho de Renato que morre inocente, expiador de culpas do seu pai (“Hoje. Donde me vem esta ideia de coincidência? Coincidência, mas de quê?” p. 145). 4.2.2. Multidão urbana, pânico e terror A rotina do trabalho e o consequente marasmo interior em que o narrador se afunda provocam, em conjunto, um efeito mais para além da transgressão por via do delírio sadomasoquista. “Esmago o meu desejo” (p. 140), diz a certa altura o narrador sem uma clara referência. Parece que este esmagar do desejo, precisamente, está na base de tudo que acontece na novela. É óbvio que quando há esta tendência de subjugar por força os instintos hipertrofiados, o organismo arranca os processos de defesa ou, na linguagem freudiana, de compensação. Isto pode ocorrer, conforme Freud, em sonhos. Repare-se que a linha onírica constitui um plano bastante pronunciado na novela migueisiana, tratando-se ora de um excitante e eufórico sonhar acordado, ora de um sonhar profundo que traz pesadelos e terrores. No primeiro caso, o jovem protagonista costuma deliciar-se com várias fantasias eróticas, onanistas (“nem houve nunca corpo de mulher que pudesse galvanizar-me num espasmo tão intenso e profundo como esses que eu sonhava solitariamente, nas longas insónias da minha puberdade”, p. 41). No segundo caso, porém, os pesadelos, sobretudo se forem repetitivos, podem provocar uma profunda melancolia e depressão. Além disso, o narrador da novela migueisiana refere-se várias vezes a um estranho estado de torpor ou adormecimento cerebral semelhante ao estado de sonambulismo, o qual, com efeito, pode ser patenteado em várias histórias de desdobramento, sinalizando a presença de duplo. Esta abulia pode ser tanto um sintoma da loucura, como um efeito da rotina, ou as duas coisas em simultâneo. É como se o sujeito, em sua função de funcionário/empregado automatizado, estivesse um morto-vivo. Ao falar sobre os aspetos degeneracionais da civilização ocidental nos textos góticos ingleses (pré)modernistas, Sue Chaplin aponta precisamente para essa afinidade entre o esgotamento, transmitido pela monotonia e rotina, e a imagem da morte, confirmando este paralelismo com o romance The Island of Dr Moreau de H.G. Wells (“Particularly nauseous were the blank, expressionless faces of people in trains and omnibuses; they seemed no more my fellow-creatures than dead bodies would be, so that I did not dare to travel unless I was 151 assured of being alone” [H. G. Wells apud Chaplin, 2011, p. 113]) e com The Waste Land de Eliot (“A crowd flowed over London Bridge, so many/ I had not thought death had undone so many”, Eliot apud Chaplin, 2011, p. 113). Não há, na novela migueisiana, nenhuma alusão tão explícita ao aspeto mortífero do povo urbano automatizado mas, apesar disso, as referências a uma multidão anónima e automatizada vai ao encontro desta sugestão: “Fico de novo entre os prédios indiferentes, inexpugnáveis, e a gente que passa. São horas de recolher a casa. Vultos escuros, apressados, e um rumor de passos batendo o chão confusamente.” (p. 140). Repare-se que o elemento humano está aqui reduzido a um som despersonalizado de passos apressados no chão, exprimindo a completa alienação e indiferença ao ambiente circundante. Esta indiferença é, por conseguinte, metonimizada pelos prédios, também indiferentes como os vultos que ao lado deles passam. É óbvio que nesta imagem do espaço urbano repercutem-se os pesadelos noturnos do narrador migueisiano que traduzem um semelhante pavor e, simultaneamente, uma terrível atração pela morte. O narrador tem três pesadelos seguidos. No primeiro predomina a imagem de uma cidade distópica, deserta, muito semelhante à paisagem noturna parisiense no conto “La nuit. Cauchemar” (Clair de lune, 1888) de Guy de Maupassant. Neste conto, Maupassant apresenta um narrador que, depois de passar por uma Paris completamente deserta, não aguenta o terror que o domina, suicidando-se no rio. Miguéis aborda a mesma questão, só com a diferença de o “eu” do pesadelo entrar numa casa, igualmente deserta, fria e escura e, dentro desta, num compartimento fechado que corresponde a um cofre. Quando pretende sair, no entanto, não consegue. Fica fechado vivo dentro do cofre como num caixão, a sufocar. No segundo pesadelo, o narrador encontra-se num cais, novamente deserto, e embarca num navio. Tendo em conta as suas fantasias adolescentes, o motivo do mar/navio deveria significar a satisfação, realização de um desejo. Mas não é assim. Trata-se de um “barcofantasma”, também deserto. O motivo da sufocação já é anticipado pela referência ao ar (“O ar sufoca”, p. 102). A seguir, o barco transforma-se em um bote que, mais uma vez, se assemelha a um caixão. O bote naufraga, o sujeito é acometido pelo terror de ser dilacerado pelos corvos. Atmosfera marítima, noturna, é delineada em tons sombrios e espetrais (“No fundo nocturno, a brancura espectral e sinistra da rebentação desenrola-se, agitada, pela costa fora, como uma mortalha ululante”, p. 103). No terceiro pesadelo, o “eu” caminha ao longo duma larga rua, numa atmosfera primaveril e deliciosa que faz lembrar o Brasil para onde o patrão se retirou. Mesmo dentro do sonho, o sujeito sente-se desdobrado: “Procuro ver-me eu-próprio-um-outro” (p. 107). Esta situação evoca o já mencionado conto “Eu-próprio o Outro” de Mário de Sá-Carneiro e, assim, 152 se confirma o paralelo já anteriormente estabelecido entre a novela migueisiana e a prosa carneiriana. A seguir, porém, o sujeito depara-se com uma procissão fúnebre, silenciosa e fantasmagórica (“Dir-se-ia que roço e traspasso fantasmas”, p. 108) e averigua, após olhar para dentro do caixão, que o morto é ele próprio. Mas sabendo-se morto, debate-se com a questão de quem é se, de facto, continua vivo (“Se aquele sou eu .. Sou eu, então, outro?, p. 109). Mesmo sendo evidente que se trata da lógica de sonho, o problema fica claro para o narrador e para o leitor. O eu-passado, o empregado pontual e marido cumpridor, é definitivamente morto e, em seu lugar, domina um novo eu, subversivo e detrator de convenções sociais. A mesma problemática, com efeito, aparece também noutras prosas de José Rodrigues Miguéis, como é por exemplo o conto “O lodo” (Passos confusos, 1982) em que o narrador passa primeiro por uma cidade anónima e a seguir atravessa um leito de um rio, composto de lodo. Aqui, o “eu” do narrador luta com uma criança-vampiro que simboliza o seu eu-passado. Mas enquanto este conto traz à cena o trauma do emigrante, a novela Páscoa feliz parece apontar para as sensações de um homem alienado, ou mesmo aniquilado, por força do trabalho e vida rotineira. Todos os três pesadelos convergem na sensação de uma angústia atroz, experimentada pelo sujeito ao ser, de facto, enterrado vivo. Trata-se de um motivo que pertence ao imaginário predileto da literatura de terror, pelo menos desde o século XVIII, sendo aproveitado, no que diz respeito à literatura portuguesa, na prosa de Raul Brandão, Domingos Monteiro ou Agostinho da Silva (cf. Špánková, 2020). A inclusão deste motivo na novela migueisiana sublinha a verdadeira atmosfera de terror (com os tropos “góticos”), que se alia muito bem à história de duplicidade, crime, alienação psíquica e transgressão de convenções sociais. Além disso, o motivo do enterrado vivo não deve ser percebido como um elemento sensacional supérfluo, mas antes deve ser lido como um componente significativo da problemática tratada em toda a novela e que corresponde, em toda a sua extensão, à crise do homem moderno. O empregado obediente e humilde, que nunca levanta a voz para discutir o que quer que seja, pode sentir-se, de facto, como um enterrado vivo, à imagem do eu do pesadelo: “Sinto que estou realmente no esquife, eu, morto e só! (...) Estou morto. (...) Um terror sem limites. Que escuridão horrível! (...) Tenho a rigidez dos mortos.” (p. 110). Estas imagens provocam a sensação insólita de não existir uma clara e definidora fronteira entre a vida e a morte. Também os mortos (verdadeiramente mortos) podem, com efeito, assumir um aspeto de um vivo, desde que haja alguém com a sensibilidade recetiva deste fenómeno. É o caso dos espetros, imagens fantasmáticas criadas pelo cérebro suficientemente perturbado ao ponto de justapor a fatualidade e fantasia numa nova realidade eminentemente subjetiva. Nas conceções modernas, a noção da espetralidade baseia-se em especial nos postulados de hauntology de Derrida (1994), 153 cuja caraterística primordial corresponde, precisamente, à desestabilização ontológica, Julian Wolfreys resume: “Strictly speaking, that which is spectral is neither living nor dead; it is, moreover, neither simply a presence nor an absence; it crosses and recrosses such binary loci” (Wolfreys, 2016, p. 638). Na novela migueisiana há um tipo de espetralidade que poderia ser classificado como “aparição”. Trata-se de visões de pessoas próximas, familiares, enquanto mortas. A primeira visão corresponde ao pai morto: Meu pai! Vejo-o morto – onde isso vai! – com as mãos lívidas e magras enclavinhadas numa cruz de madeira, e o lenço manchado de sangue atado na cabeça... Apavora-me a visão que julgava extinta.” (p. 98) Este tipo de aparição, mesmo que assombrosa, é mais próxima da lembrança traumática, uma vez que o pai do narrador realmente morreu, por afogamento, quando este era ainda criança. Mas há outra visão muito mais perturbadora que se relaciona com o filho, imaginado como morto: “Como tudo é branco! O sorriso dele é branco... Flores? Não, não! Flores não! (...) Tens as mãos tão frias...” (p. 144). As duas visões compartilham a isotopia fúnebre, justapondo-se assim ao pesadelo do narrador. Ademais, o narrador fica deveras assombrado pela visão do seu filho, quando este lhe começa a aparecer por todo o lado: “Por toda a parte ele me aparece, sufocado, com as mãozinhas estendidas para mim” (p. 91). Aparições, conforme Mackenzie Bartlett, expõem a psique àquilo que a assombra: morte, o passado, o eu inconsciente (cf. Bartlett, 2016, p. 36). O mesmo é válido para a novela de Rodrigues Miguéis: todos os pesadelos e aparições corroboram a perceção de que Renato, afinal, não faz outra coisa senão imaginar e desejar a morte, por ser traumatizado pelo seu passado (na infância e na idade adulta antes do desdobramento) e por ser assombrado pelos seus impulsos ocultos do inconsciente, sadomasoquistas. As visões fantasmáticas correspondem à mesma isotopia: o pai morreu sufocado por afogamento, o filho é imaginado como sufocado. Em todos os pesadelos, a sensação de aprisionamento (no cofre-caixão, no bote-caixão e no próprio caixão) também provoca a sufocação. É óbvio que se trata de imagens que exprimem os traumas do narrador, a sua incapacidade de se livrar dos espetros do passado e das suas pulsões inconscientes. Mas não é só o trabalho que asfixia o narrador pela rotina, também a casa, o matrimónio e tudo que exprime um quotidiano regular e monótono provoca as mesmas sensações de aperto. Enfim, até o corpo da esposa sinaliza ao narrador que o seu passado está morto (“Na urna branca do seu corpo – impossível tocá-lo! – olho o meu passado morto, sem remédio, inatingível.”, p. 97) e que os seus sonhos de infância e adolescência fracassaram (“O meu desejo de partir tornava-se 154 doloroso sob a consciência duma inacção que me impedia de sonhar aventuras e viagens, como outrora, na adolescência”, p. 47). Por conseguinte, estas pulsões do inconsciente relacionam-se estritamente com o espaço urbano em forma de um espelhamento recíproco, porque é sempre nalgum espaço sentido como aprisionador (o quarto, a rua, a cidade) que o narrador fica assaltado pelas visões (“Isto não é nada, é o pesadelo que me assedia de novo em plena rua, o terror que me volta, mascarado na ilusão.” p. 145)150 e porque o próprio espaço físico (geográfico e cósmico) provoca a mesma sufocação (“A noite asfixia, extingue as luzes...”, p. 145). 4.2.3. Rumo ao inconsciente urbano As sensações extremadas, bem como os impulsos mórbidos do narrador encontram a sua correspondência na perceção do ambiente urbano, em que, sobretudo no início, predomina o imaginário crepuscular e agonizante, evocador de Cesário: Volto à Baixa, enquanto as ruas e avenidas vão mergulhando numa sombra azulada. (p.138) O crepúsculo agoniza... (p. 140) Procuro as ruas mais estreitas, onde há menos luz e o movimento é menor. Na penumbra, avultam carroças de muares enormes e tranquilas roendo o jantar com as cabeças mergulhadas nas alcofas. Junta-se gente nas tabernas, donde sai um rumor grosseiro de vozes e de louças que se entrechocam, e um fumo acre de azeite queimado e peixe frito. Um fumo azul... Olho o céu: é noite fechada e, por cima dos telhados, alastra o clarão sanguíneo das luzes e passa confuso o clangor das buzinas dos autos. (p. 143)151 Para além de semelhantes motivos espaciais (referência concreta à Baixa, às ruas e avenidas, ao crepúsculo, às tabernas) há ainda muitas afinidades com a poética cesariana, sobretudo de “O sentimento dum ocidental”, no que diz respeito ao uso de metáforas espaciosensoriais (o crepúsculo a agonizar) e sinestesias que amalgamam as sensações visuais (fumo azul, clarão sanguíneo de luzes), olfativas (fumo acre de azeite) e auditivas (rumor grosseiro de vozes e louças que se entrechocam, clangor de buzinas). À semelhança do sujeito cesariano, o narrador migueisiano entra sucessivamente nos cafés (“Entro e peço um copo..”, p. 143, 150 O motivo da visão fantasmática correlacionado com o espaço urbano (ruas) é reiterado e, assim, sublinhado noutras passagens da novela: “Em pleno dia, na rua, as visões tomam conta de mim. Tenho um receio horrível de enlouquecer completamente.” (p. 106). 151 A expressão sugestiva de “noite fechada” reenvia, imediatamente, ao poema “Noite fechada” de Cesário Verde. 155 evocando o verso cesariano “Entro na brasserie...”, Verde, 1999, p. 101) e também, explicitamente, sai (“Saio. Esmago o meu desejo”, p. 140, evocando o cesariano “E saio. A noite pesa, esmaga.”, Verde, 1999, p. 101). Algumas cenas acentuam o sentimento nostálgico: “Lembrou-me agora a Baixa vasta e sossegada, que a melancolia verde do gás iluminava, a Baixa da minha infância, com o seu ar tão simples e honesto, limpa e discreta...” (p. 143). O desejo de reviver a calma melancolia das ruas iluminadas a gás encaminha-nos novamente à poesia de Cesário Verde, tal como a referência concreta ao ar “simples e honesto” que evoca uma das passagens mais famosas de “O sentimento dum ocidental” (“E de uma padaria exalase, inda quente,/ um cheiro salutar e honesto a pão no forno”, Verde, 1999, p. 102). Neste sentido, Renato pertence à galeria dos grandes melancólicos que, na esteira de Baudelaire, se deixam dominar pelo spleen moderno, vigorosamente urbano. Após o suposto crime, porém, segue-se uma longa cena, na qual o narrador-protagonista corre pela cidade. É uma cena intensa e cheia de movimento que, por isso mesmo, contrasta com as passagens que abordam a rotina e dias cinzentos, monótonos de um viver castrador do empregado. O movimento passa a transmitir o estado do crescente delírio do sujeito, mas fá-lo em estrita conexão com o espaço urbano, num espelhamento recíproco. Deste modo, o movimento pela cidade corresponde intimamente aos movimentos da psique do narrador, na qual se testemunham, simultaneamente, modificações da sensação, deformações da perceção de si e do ambiente (alucinações e distorção da realidade), outra perceção do fluir temporal e amplificação emotiva. Ou seja, a cidade se transfigura, aos olhos do sujeito, numa imagem dirse-ia psiquedélica. O movimento acelerado, de corrida pela cidade (“Atravesso a pé toda a cidade, subo às Avenidas Novas.” p. 137, “Corro e choro”, p. 138, “Vou pôr-me a correr de novo as ruas”, p. 140, “ponho-me a andar a toda a pressa”, p. 143, “fujo a correr”, p. 147, “ponho-me a andar depressa”, p. 148, “Deito a correr ao acaso nas ruas molhadas de chuva”, p. 149, “corro ao longo das avenidas”, p. 150), reflete-se nas sensações íntimas, psicossomáticas (“Os arrepios correm-me a pele como descargas eléctricas”, p. 152), bem como no movimento acelerado de atividade percetiva e sensorial, ao criar imagens psiquedélicas, movimentadas, intermitentes, brilhantes ou fosforescentes, anunciadas já na cena do assassínio pelo brilho da lâmina: E aquele brilho... Mil raios coloridos, espiralados, como um turbilhão de luz, dançam no meu crânio... (p. 133) O número, porém, já me não deixa. Fosforesce-me na retina, até ao âmago do cérebro; sobrepõe-se, como um reclamo luminoso no fundo escuro da noite, à imagem do 156 cabeçalho vermelho do jornal. (...) Os algarismos voltam sempre, dançando, deformando-se, irónicos e vivos... (p. 142) E essas luzes, para que são todas essas luzes em pleno dia, senhor? E amarelas! Apaguem isso! Apaguem isso! Eu apago...! (p. 144) As luzes formam linhas sinuosas nos passeios desertos. (p. 146) A luz, de facto, é também a perceção mais forte que o narrador embriagado experimenta num bar (“E a luz... É luz, ou são miosótis que chovem?” , p. 70, “Luz viva! Luz branca!”, p. 71) ou que deteta ao olhar a água do rio (“A água oleosa reluz, picada aqui e além de pirilampos ou fogos fátuos”, p. 146). A luz, em princípio, relaciona-se com o conhecimento, lucidez, mas quando há em demasia, provoca deslumbramento, cegueira momentânea.152 Isso, por conseguinte, pode eclipsar num torpor cerebral, perturbação psíquica e alienação. As perceções extremadas da luz são ainda acompanhadas por um invulgar, ou mesmo excessivo, cromatismo. Para além de imagens multicores que imprimem, à cidade, uma intensidade veemente, evocando a literatura urbana baseada na escrita em imagens (p. ex. Fialho de Almeida, Fernando Pessoa) ou as pinturas de artistas como van Gogh ou Carlos Botelho (p. ex. “O céu de nuvens baixas, contrastando com as paredes avermelhadas, parece dum azul intenso, artificioso.”, p. 140). Contudo, a cor que predomina em toda a novela é o amarelo. Teresa Martins Marques já sublinhou a preferência desta cor na novela, anotando justamente que a cor amarela costuma ser, por tradição, associada à loucura (cf. Marques, 1997, p. 45). É a cor que se encontra na Casa da Areia, onde há o escritório (“A casa era ali ao Cais da Areia [...] paredes amarelas”, p. 46) e que evoca, desde logo, a emblemática Casa Amarela lisboeta: o Convento de Rilhafoles, o futuro Hospital Miguel Bombarda)153 . Neste sentido, trata-se também de uma cor da paleta preferida de certos autores russos (Gogol, Dostoievski, Béli), com cuja obra a novela migueisiana atesta vários paralelos.154 O amarelo é também, como vimos, uma das cores prediletas de Bernardo Soares, codificada culturalmente como a cor mais expressiva do fim de século XIX. Na imaginação do protagonista migueisiano, a cor amarela relaciona-se com a morte: aparece tanto na visão da morte do pai (“E esta cor amarela?”, p. 98), como do filho (“E essas luzes, para que são todas essas luzes em pleno dia, senhor? E amarelas!”, p. 144). 152 Da mesma isotopia, são na novela reiterados os motivos de clarão e incêndio. 153 É impossível não lembrar também o filme Recordações da Casa Amarela (1989) de João César Monteiro, filmado precisamente no mesmo hospício. 154 Por exemplo a respeito do romance Petersburgo (1913) de Andrei Beli, Renate Lachmann refere que a cor amarela entra na linha semântica com os atributos “asiático” e “diabólico”. A frequência desta cor é elevada, sendo presente no vestuário, objetos, caraterísticas das personagens e na própria arquitetura imperial da cidade (os protagonistas – pai e filho – habitam uma casa amarela na margem do rio Neva). (Lachmann, 2002, p. 75). 157 Paralelamente, não deve ser ainda menosprezada a referência a um moço de casaco amarelo, com o qual o narrador se cruza ao sair do café na noite de assassínio (p. 143). Resumindo: luzes, cintilações, fosforescência, a cor amarela, tudo pertence ao mesmo estado da perceção delirante que instaura, na novela, um dinamismo proporcionador de imagens “em movimento” semântico. Este dinamismo é visível tanto no delírio do narrador, como também no próprio texto, cada vez mais acelerado e fragmentado, e na representação da cidade “psiquedélica” como um reflexo do estado psíquico do “eu”. A cidade do quotidiano cesariano preenche-se, portanto, de imagens cada vez mais dinâmicas. Sobretudo nas horas noturnas, a cidade começa a metamorfosear-se, adquirindo um aspeto de um espaço espetral, semelhante à prosa de Raul Brandão e aos contos de Branquinho da Fonseca, em que predomina a tonalidade lívida e transfiguração fantasmagórica. A transformação revela-se primeiro nas imagens de uma cidade triste e melancólica, vista através das vidraças, a que o contraste da chuva (metáfora da monotonia e tristeza) e do vento (elemento dinâmico que subverte a monotonia) imprime um caráter de um conflito interno, refletido no sujeito da narrativa: Ergo-me e vou sentar-me a ver amanhecer por detrás das vidraças, na melancolia cinzenta e silenciosa desta manhã de Inverno. Uma tinta lívida e amarga espalha-se nas fachadas, que vão surgindo aos poucos da penumbra caótica da noite. Formas e cores... As árvores, sem folhas, esbracejam. E as últimas gotas de chuva escorrem nas vidraças, como lágrimas silenciosas. (p. 101) A bonança foi de pouca dura e, um dia, recomeça a chuva e o vento sopra, com a sua tristeza, nas janelas altas da casa. (p. 118) Olhamos, através das vidraças, a chuva que alaga em rajadas os telhados vizinhos, crepitando, fumegando, impelida pelo vento (p. 118) Ao mesmo tempo que a chuva pegou, entristecendo a cidade, que parece assolapada, pegajosa, sob a intempérie. (p. 119) O espaço assolapado e pegajoso evoca o imaginário brandoniano de Os pobres, em que os contornos da cidade se diluem sob o peso da lama, símbolo do caos e disformidade. Em conformidade com a poética brandoniana, a chuva na novela migueisiana pode ser também lida como um símbolo do mal e catástrofe. Tendo em conta, todavia, outros motivos aquáticos (lágrimas, sangue, suor), pode exprimir também a catarse, a violência através da qual uma certa regeneração pode ser estabelecida. Tanto no romance brandoniano, como na novela migueisiana, estas imagens funcionam como a metáfora do inconsciente (da cidade e do 158 narrador), um mergulho nos filões ocultos do ser. Além das imagens de água e lama, o inconsciente costuma ser representado metaforicamente como uma catábase, ou descida aos infernos do eu. A grande frequência das imagens de descida na novela migueisiana, de facto, comprova a hipótese de que o sujeito, narcísico por essência, se sente empurrado insistentemente ao mergulho na esfera freudiana do id: É preciso saltar, ainda que, liberto, role no declive, até ao fundo dos abismos, como o trem que descarrila. (p. 68) Parece que me abismo, que caio indefinidamente... (p. 72) Percebo debaixo de mim um abismo escuro – e vou sempre. (p. 96) Nesta esfera do id, tal como nas trevas infernais, reina a escuridão total. Trata-se, evidentemente, da esfera de impulsos não só homicidas, como também suicidas, sempre na mesma lógica do sujeito masoquista. Nalgumas situações, o narrador imagina-se mesmo morto (“Desço ao fundo do mar... (...) As minhas mãos, mãos de defunto, perderam a força...”, p. 70). O mais importante, no entanto, é o facto de estas sensações terem o correlativo na imagem urbana: o id do sujeito reflete-se no id urbano e vice-versa. A descida aos estratos do inconsciente urbano verifica-se primeiro no sentido concreto, como início da vida libertina cheia de prazer e vício (“Agora saio todas as noites, contra o costume que durava desde o nosso casamento. Desço até à Baixa, entro nos cafés – salas de visitas – vagueio nas ruas mais iluminadas e nas praças, fumando. (...) Como é que eu não tinha descoberto a cidade?”, p. 68). Após o delírio de assassínio, contudo, o espaço urbano adquire caráter de um labirinto, em que o sujeito se perde, desorientado, correndo de um lugar a outro. Só assim é também possível explicar que, a acerta altura, regressa à Casa da Areia, lugar do delito. Deste modo, Renato move-se num circo vicioso como o homem da multidão poeano. Com este movimento circular que desemboca numa sensação de vazio, Renato assimila também o simbolismo do Louco das cartas de tarot. Com efeito, é como se Renato, semelhantemente a Ramón de Branquinho da Fonseca, encarnasse uma carta ou peça de jogo, movida no tablado imaginário da cidade, ofuscando, cada vez mais, os contornos reais do espaço. O próprio inconsciente urbano revelase frequentemente por meio de algumas figuras enigmáticas que surgem das trevas da cidade (cf. Hodrová, 2006). Na novela migueisiana, isto acontece no encontro com a velha, cuja mão, “esquelética, engelhada” (p. 141) sai dum xaile preto, causando terror a Renato. Esta velha, que 159 também evoca a pedinte velha cesariana,155 oferece-lhe a sorte, lançando-lhe o número 2713. Para além de a última cifra indicar o número 13, também a contagem de todas as cifras perfaz 13, como o narrador bem percebe. Na mitopoética urbana, este encontro com a velha simboliza, claramente, a morte. Simultaneamente, o número 13 corresponde, na simbologia de tarot, ao arcano mais terrífico de todos, à morte. Em seguida, o vetor de horizontalidade (passagem alucinada pela cidade) dá lugar ao vetor vertical. O caso mais flagrante é o rio que, pelos seus atributos de verticalidade e escuridão, representa o símbolo mais evidente do id urbano.156 A imagem fantasmática de um sorvedoiro de água que gira vertiginosamente corresponde novamente à geometria psiquedélica, registada também nos desenhos faiscantes de luz (“A água oleosa reluz, picada aqui e além de pirilampos ou fogos-fátuos”, p. 146). Ao mesmo tempo, o vampirismo devorador da água conota, obviamente, a morte (“Ah, é bom deixar-me assim levar, para o fundo, para o fundo... Oh, que vertigem... Talvez a morte!” p. 146). Mas esta morte que simula a morte por sufocação, tantas vezes relembrada ou fantasiada (do pai, do filho, de si nos pesadelos), não parece já causar terror, é antes algo que assegura a paz procurada, um abraço voluptuoso (“O rio. A ideia de me ir deitar ao Tejo cor de tinta, que corre ali a pouca distância, calado, ameaçador, dá-me vertigens voluptuosas.” p. 149). É impossível não reparar que a água, em termos de imaginário, representa um espelho. O narrdor, ao sentir volúpia de se entregar às águas, portanto, continua a sentir sempre o mesmo desejo narcísico que é, com efeito, acentuado pelo comprazimento em solidão (“Sinto bem até que ponto estou só na vida, na solidão que voluntária, gostosamente edifiquei”, p. 149). Os tópicos da morte, espelho e solidão, por conseguinte, revelam quanto o “eu” do narrador é, afinal, subjugado à melancolia, aos estados alternativos de exaltação e soturnidade (cf. Starobinski, 2013, p. 43). Declara a este respeito Jean Starobinski que a experiência afetiva da melancolia, em que frequentemente predomina a sensação de peso, é associada ao espaço hostil que estanca ou bloqueia todas as tentativas de movimento, tornando-se um símile do peso interior (Starobinski, 2013, p. 39). Podemos constatar que é precisamente a situação de Renato, sentindo-se aprisionado na casa, no escritório e na cidade. O único desejo do narrador torna-se, 155 Refiro-me ao poema “Humilhações”, aos seguintes versos: “De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,/ Pôs-se na minha frente uma velhinha suja, E disse-me, piscando os olhos de coruja: – Meu senhor” Dá-me um cigarro? Dá?...” (Verde, 1999, p. 48). 156 Curiosamente, não encontramos muitas referências ao rio na poesia de Cesário Verde. Há só algumas referências esporádicas, como por exemplo no já mencionado poema “Noite fechada”, em que a imagem do rio exibe conotações disfóricas, em concordância com a novela Páscoa feliz e com os contos de Branquinho da Fonseca: “E ali começaria o meu desterro!.../ Lodoso o rio, e glacial, corria; (...) Toda a maré luzia como escamas,/ Como alguidar de prateados peixes.” (Verde, 1999, p. 85). 160 de facto, a possibilidade de romper com esta prisão que ele edificou dentro de si, evadindo-se da cidade. 4.2.4. A cidade migueisiana: as ruas de pesadelos Na esteira do pensamento de Eduardo Lourenço que sintetizou o estado da literatura da primeira metade do século XX em dois símbolos, de Narciso e D. João, Miguel Real considera Narciso o “retrato cultural do homem contemporâneo: tão individualista quanto egotista, solitário e isolado” (Real, 2008, p. 108). Temos aqui, portanto, a imagem do homem novecentista, egotista e, simultaneamente, perdido dentro do seu próprio labirinto interior. É o que, enfim, demonstram as narrativas de Rodrigues Miguéis e Branquinho da Fonseca, cujos protagonistas não sabem resolver os dilemas que se travam nas suas profundidadades interiores, terminando por cometer um crime, imaginado ou real, que declara a sua alienação total. Mas para além dos problemas intrínsecos à psique humana há ainda, nas personagens, um tipo de sensibilidade que involuntariamente reage ao ambiente. Todas as narrativas aqui estudadas (e muitas outras de semelhante problemática) são inseridas no espaço urbano. Não interessa, neste momento, o facto de se tratar da capital portuguesa que na época abordada não exibia um caráter tão héctico e alienatório como as grandes metrópoles de formato do Londres ou Nova Yorque. Interessa, sim, o facto de a urbanidade, correspondente a qualquer cidade, se tornar nos inícios do século XX o paradigma da modernidade definida por uma considerável alteração nas relações humanas. Por sinal, todas as personagens aqui consideradas são funcionários públicos ou privados, existindo pouca diferença entre o ex-empregado do ministério (“O Resto”), o escriturário na Alfândega (“A prova de força”) e o guarda-livros (Páscoa feliz). Todas estas profissões caraterizaram já na literatura oitocentista o tipo humano nomeado “pequeno” ou “simples”, em contraste à figura do herói de traços semi-divinos. O russista checo Vladimír Svatoň, ao estudar as prosas urbanas de Gogol, chamou a atenção para a figura de Popriscin, conselheiro titular de um dos Contos de Petersburgo (1842), que é internado no manicómio por se considerar o rei da Espanha (cf. Svatoň, 2002). O raciocínio de Popriscin baseia-se na ideia de que não há nenhuma diferença moral entre ele e um rei. Porquê, então, ele não poderia ser o rei? Svatoň vê neste dilema o tema central do demonismo, uma vez que o “demónio” corresponde a um ser humano que não pretende subjugar-se ao plano do universo, à sua ordem intrínseca (cf. Svatoň, 2002, p. 227). Gogol, assim, conforme Svatoň, retratou o homem “simples” como uma versão dos heróis sublimes das obras românticas, como a sua revalorização interna (cf. Svatoň, 2002, 161 p. 227). Simultaneamente, ainda na esteira do pensamento de Svatoň, Gogol desvelou assim a essência da situação urbana, assente no individualismo e no caos que penetra também no interior humano, amortecendo a capacidade do homem de se formar como uma personalidade (cf. Svatoň, 2002, p. 222). O ser humano, portanto, transforma-se num nó de pequenos desejos e reações nervosas (cf. Svatoň, 2002, p. 222). Deste modo, a novela migueisiana comprova também a existência da estrutura da “cidade simbólica” a que Svatoň se refere nas suas análises de Petersburgo (cf. Svatoň, 2002, p. 222). A cidade migueisiana de Páscoa feliz, porém, não entra somente em correlação com as outras obras portuguesas que retrataram a capital portuguesa, mas exibe alguns traços em comum com várias outras narrativas que focaram a experiência urbana nos séculos XIX e XX. Além de paralelos com a obra dostoievskiana, que é em geral aceite como uma das fontes ideológicoartísticas de Páscoa feliz (cf. Marques, 1997), há também o já referido parentesco com Gogol ou com um autor alemão de Praga, não muito conhecido, chamado Paul Leppin (1878-1945). Com efeito, na novela Severins gang in die finsternis. Ein Prager gespensterroman (O caminho de Severin até à escuridão. Um romance de horror de Praga, 1914)157 de Leppin encontramos também a figura de um empregado de escritório, precisamente um guarda-livros como Renato migueisiano, que se evade à rotina monótona do trabalho ao sonhar sobre aventuras158 e ao caminhar pela cidade (“With his eyes wide open he looked into the city, where people were moving like phantoms”, Leppin, 2001, p. 12).159 Fica então fascinado pelo espaço urbano, transfigurado numa aparência fantasmática, esse espaço que pode ser apreendido pelas sensações visuais, auditivas ou olfativas (p. ex. “The noise of the carriages and the rattling of the trams blended with the voices of the people to make a harmonious clamor in which a distinct cry or shout occasionally sounded.”, Leppin, 2001, p. 12).160 Os dois textos, portanto, utilizam vários recursos estilísticos que já em Cesário Verde configuravam a cidade como uma paisagem 157 Utiliza-se aqui a tradução inglesa Severinʼs journey into the dark – a Prague ghost story de Kevin Blahut. 158 P. ex. “Here the stories of knights and adventures of sailors that he read at home became a small but genuine reality that brought heat to his face and hands and stifled his breath in mute agitation.” (Leppin, 2001, p. 13). Tal como o protagonista migueisiano, Severin sente-se bloqueado, sem a liberdade de viver a vida que deseja (“Sometimes he was overcome by a senseless fear and a horror that his life would amount to nothing. Since he had become an adult and started earning his own bread, bleak and vapid walls had risen around him and blocked his view. All around, everywhere he looked, he saw dull and mundane convention.”, Leppin, 2001, p. 14) 159 Repare-se no poder transfigurador do espaço, em muito semelhante à poética espacial de Cesário Verde, Rodrigues Miguéis e Branquinho da Fonseca: “He knew every part of the city, but now it gained a timid, unfamiliar power over him. (…) His senses were clear and alert, he saw how the night transformed everything, how everything lived a separate, different life than it did by day. He saw how it made melancholy landscapes from the bleak, empty squares, and dark subterranean dungeons from the narrow lanes.” (Leppin, 2001, p. 47) 160 Há ainda, no texto de Leppin, belas imagens olfativas, p. ex. “He walked past the walls of the large gardens that enclosed the hospitals and institutes. He was struck by the smell of decaying leaves and damp earth.” (Leppin, 2001, p. 12) 162 urbana visual e sonora, em certos momentos até espetral.161 Os dois personagens, migueisiano e leppiniano, podem ser considerados, de um certo modo, “vítimas” de um mundo urbano cada vez mais automatizado e, daí, não só falho de contornos “reais”, mas ainda prenhe de violência que acompanha a revolta fracassada (“Now, alienated and bereft of expectations, he sat in this world, which seemed automated and unreal.” Leppin, 2001, p. 48). Os pesadelos que atormentam os dois personagens simbolizam, assim, a sua caminhada para dentro da escuridão alienante e definitiva.162 161 Recorde-se o famoso verso cesariano em que um caleche se transfigura num monstro de olhos vermelhos (“E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos”, Verde, 1999, p. 103). A imagem semelhante, com outro cromatismo, encontra-se na novela de Leppin (“The electric tram drove past with yellow eyes.”, Leppin, 2001, p. 12), bem como no conto de “Passageiro da 2ª classe” de Branquinho da Fonseca (sobre o comboio: “à frente, um cossaco a cavalo, com a lança no ar, e trás dele aquela fila de caveiras com os olhos alumiados de febre”, Fonseca, 2010a, p. 327). 162 Os dois personagens têm ainda mais traços em comum, fundamental seria sobretudo a sua essência sadomasoquista (repare-se que o protagonista de Leppin tem o nome tirado da famosa obra Venus im Pelz, 1858, de Sacher-Masoch), bem como a imaturidade e fraqueza interior (nos dois casos existe uma figura da mulher que funciona como o símile materno e em cujos braços os dois não procuram amor ou sensualidade, mas somente o consolo maternal). 163 5. A cidade maldita Oh, Christ! it is a goodly sight to see What Heaven hath done for this delicious land! What fruits of fragrance blush on every tree! What goodly prospects oʼer the hills expand! (…) But here the Babylonian Whore hath built A dome, where flaunts she in such glorious sheen, That men forget the blood which she hath spilt, And bow the knee to Pomp that loves to varnish guilt. George Gordon Byron: Childe Haroldʼs Pilgrimage163 A cidade maldita costuma ser correlacionada, por tradição, com a cidade infernal. Ou seja, todas as urbes, a começar com Enoch (a primeira cidade bíblica fundada por Caim), nascem, simbolicamente, sob o signo de maldição. Total ou, pelo menos, parcialmente. É o que, de resto, também admite Jean-Yves Tadié, ao afirmar que, nos ramos da sua poética da cidade, o imaginário de uma urbe real ou inventada pode “ter o seu inferno” (1992, p. 126). Podemos pensar na Viena de Robert Musil, a qual conota a morte de um Império e, por extensão, a morte de “qualquer capital” (Tadié, 1992, p. 146). Pode ser também referida a Praga de Processo de Kafka que “já não é senão o reflexo humano de uma outra cidade, ela própria ausente; perdeu a sua alma, como K. A disposição do seu destino: é inabitável” (Tadié, 1992, p. 147). Ou então podemos invocar, junto com Tadié, a cidade de La Nausée de Sartre, inspirada por Le Havre e transformada em “cidade metafísica com a qual o herói confronta a sua solidão” e, sob cuja “calma mineral”, vê um cataclismo que transtornaria este mundo rígido, geométrico, natural, mineral” (Tadié, p.147). É também este imaginário que encontramos na literatura portuguesa anterior ao existencialismo, sobretudo em Raul Brandão, cuja Vila de Húmus prefigura todas estas conceções modernas da cidade. É também desde os tempos remotos que a cidade é simbolicamente comparada a uma mulher. “Les villes sont, imaginairement, des femmes”, confirma Claude-Gilbert Dubois (1989, p. 33), ao estabelecer duas imagens fundadoras do imaginário urbano: “Jérusalem de lʼApocalypse, qui sʼoppose terme pour terme à un autre modèle – la ville corrompue assimilée à la courtisane – la Babylone de la Bible ou la Rome décadente de lʼApocalypse, prostituée rouge chevauchant le dragon.” (1989, p. 35). Este imaginário foi também aplicado à cidade de Lisboa, e não só pelo facto de Lisboa ser construída nas sete colinas, tal como Babilónia e Roma. É sobretudo a partir do século XVIII, após o Terramoto de 1755, que a representação de 163 Trata-se de uma parte do poema narrativo de Lord Byron, em que se fala de Lisboa e Portugal. 164 Lisboa vem sendo modelada a partir do simbolismo bíblico relacionado com a Babilónia, arquétipo da cidade rica, orgulhosa e depravada, a Grande Rameira, condenada pela profecia bíblica à extinção (Is. 47, Jer. 50-51), em contraste com Jerusalém, cidade divina (cf. Frye, 2004, p. 52). O simbolismo bíblico de cidade maldita acentua-se, contudo, na segunda metade do século XIX, com o advento das correntes literárias de realismo/naturalismo, cujos partidários exprimiam juízos assaz negativos sobre o estado da sociedade, sua depravação e a consequente degradação. Entre estes autores deve ser destacado Émile Zola que, entre outras obras, inseriu o simbolismo da cidade-vício, babilónica, nos romances Au bonheur des dames (1883) e Le ventre de Paris (1873). No primeiro romance, é o grand magasin que, conforme Jatahy Pesavento, “assinala o triunfo do capital sobre as pequenas boutiques” e que é “descrito como uma Babel de múltiplos andares” (Pesavento, 1999, p. 128). No segundo romance, ainda mais famoso, é Les Halles que, como já ficou assinalado pela mesma estudiosa, “é nomeado como Babilônia de metal” (1999, p. 128). A aplicação do mito da Babilónia ao imaginário lisboeta deve-se sobretudo ao facto de a capital portuguesa ser, por tradição, representada como uma urbe demasiado sedutora e, daí, destinada à maldição e destruição. Nos fins do século XIX, Fialho de Almeida foi quem levou mais longe a crítica deste aspeto moderno, embora tenha sido precisamente a sua prosa que mais energia libidinosa involuntariamente encerrava no seu imaginário traçado a pincel expressionista. O “vício”, portanto, seja como tema, estética ou estilo (e sem necessidade de interpretações moralistas) deve ser aceite como um dos aspetos fundamentais da cidade da modernidade e da cidade modernista em primeiro lugar. No conto “Noite no rio” (Cidade de vício), o narrador de Fialho de Almeida diz a propósito deste caráter da capital portuguesa: Olhada assim de longe, daquele fundo de sombra salgada, Lisboa tinha o ar de uma grande cidade entregue à nevrose trágica do vício, pois que se apagavam na noite as frontarias dos edifícios burgueses, as arquitecturas híbridas dos palácios e dos templos, a uniformidade das ruas geometricamente alinhadas, e no tremeluzir dos lampiões se podia evocar alguma dessas necrópoles torvas onde as festas resumiam a vida, as carnes das mulheres se cobriam de chamas de ouro em púrpuras radiantes, a música embalava a embriaguez dos soldados e capitães, e do homem nada vivia senão a besta, tripudiando em concupiscências fenomenais. (Fialho de Almeida, 2010-2012, s/p) É evidente que a imagem da cidade de vício é relacionada estritamente com o feminino, intensamente sensualizado, que funciona como um elemento de sedução. Com efeito, a cidade seduz tanto mais quando as mulheres seduzem o olhar masculino. Uma das provas encontra-se, por exemplo, no romance O crime do padre Amaro de Eça de Queirós, em que o jovem Amaro, 165 ainda a viver em Lisboa, observa da janela do seu quarto um recanto da cidade baixa, sonhando com a vida boémia que lá se deve passar e, sobretudo, com as mulheres que a devem animar: O seu quarto ficava em cima, na trapeira, com uma janelinha num vão sobre os telhados. Encostava-se ali olhando, e via parte da cidade baixa, que a pouco e pouco se alumiava de pontos de gás: parecia-lhe perceber, vindo de lá, um rumor indefinido: era a vida que não conhecia e que julgava maravilhosa, com cafés abrasados de luz, e mulheres que arrastam ruge-ruges de sedas pelos peristilos dos teatros, perdia-se em imaginações vagas, e de repente apareciam-lhe no fundo negro da noite formas femininas, por fragmentos, uma perna com botinas de duraque e a meia muito branca, ou um braço roliço arregaçado até ao ombro... (Eça de Queirós, s/d, p. 29) A cidade, portanto, não seduz somente pelo que se vê, mas também pelo que se imagina que ela poderia ser. É precisamente este imaginário “babilónico” de uma cidade sedutora e maldita que pode ser observado também na prosa portuguesa da década de 30 do século XX. 5.1. A cidade sedutora, a cidade de sedução A certa altura, o narrador do romance O arcanjo negro (1947) de Aquilino Ribeiro define Lisboa como “lânguida, troca-tintas e sedutora” (Ribeiro, 1960, p. 268). Lisboa surge, assim, personificada e feminina. O atributo de sedução faz dela uma cidade babilónica, ao mesmo tempo que a sedução desempenha também um dos papéis fundamentais no relacionamento entre as personagens literárias. O velho tema donjuanesco (e não só) encontra um propício campo de batalha na Lisboa oitocentista onde há também vários lugares que favorecem os olhares discretos ou mais atrevidos, lançados em todas as direções para os alvos de interesse. Aos sítios de maior intensidade do jogo de sedução oitocentista pertencem naturalmente teatros, bailes, serões, passeios públicos e, cada vez mais, a simples rua, sobretudo se for da zona comercial.164 O Passeio Público, traçado pelo arquiteto Reinaldo Manuel, era conforme José-Augusto França, “alameda ajardinada e murada, à saída da cidade, primeiro logradouro burguês convidando a novos hábitos de merecido ócio, estabelecido, em 1764, em certa medida, contra o Rossio popular, com apertadas regras de utência” (França, 1989, p. 51). De fraca utilidade nos seus inícios, o Passeio tornou-se centro de vida social urbana ao ar livre no século XIX, até à sua demolição em 1879, devido ao plano de abertura da Avenida da Liberdade. O valor de atração da rua, por sua vez, ficou bem documentado, entre outros, nas crónicas de Fialho de Almeida. 164 É óbvio que muitos espaços interiores, especialmente teatros e salas de baile, devem ser considerados como fundamentais na arte de sedução oitocentista e ainda no início do século XX. Exemplos que o comprovam são inúmeros, pertencendo aos mais ilustrativos, obviamente, os romances de Eça de Queirós. 166 Por exemplo, na crónica “As ruas – O demónio da vitrine. Um adultério cor-de-rosa” (Lisboa galante, 1890), o narrador encarna um flâneur baudelairiano, passeando pelas ruas e prestando atenção efémera seja aos passeantes, seja a uma mulher elegante, seguida pelo labirinto das ruas até ela desaparecer numa casa, em que é vislumbrada só em forma de uma sombra a cair nos braços masculinos.165 Além de Fialho de Almeida e Eça de Queirós, é novamente Cesário Verde quem, por inspiração baudelairina, elevou a rua (lisboeta) a um dos tópicos de sedução mais importantes na literatura portuguesa oitocentista. Em princípio, é mais uma vez a rua da zona central urbana que desempenha o palco propício ao magnetismo do olhar, pois as mulheres jovens, ricas, elegantes e orgulhosas só podem passar ao lado do sujeito lírico, sem lhe dedicar atenção. Esta situação evidencia-se no ciclo da “dama fatal”, sobretudo nos poemas “Humilhações” (com o tópico do teatro), “Frígida” ou “Esplêndida”. A este respeito, Óscar Lopes comentou que era este tipo da “mulher requintadamente perversa, toda ela feita de luxo, calma e volúpia baudelairianos” que se convertia em “emblema de uma cidade, de uma aristocracia ou alta burguesia corruptas, imorais, mas que o intelectual pequeno-burguês tanto vitupera como admira de um modo mais ou menos inconfesso” (Lopes, 1993, p. 105). Trata-se da mesma força magnética com que os fidalgos-vampiros ingleses oitocentistas seduziam tanto as mulheres, vítimas da sede erótica, como os homens burgueses, fascinados pelo carisma vampírico que desejariam para si.166 Mas para além do espaço chique, propício aos olhares sedutores, há também um outro tipo de ruas, as de periferia, sombrias, nas quais pode dar-se um instantâneo espetáculo de sedução involuntária. Assim acontece no poema “Cristalizações”, situado numa rua em construção, supostamente na periferia, lúgubre, cuja soturnidade é acentuada pela invernia (poças de água, árvores despidas, frialdade). Aqui, a masculinidade rude dos trabalhadores, que constroem a rua, contrasta com a fragilidade de uma atriz fina a caminho do teatro. Precisamente deste contraste alimenta-se o erotismo vibrante da cena em que os homens 165 Por várias razões, a cultura oitocentista inventou um fenómeno de adultério. Embora a literatura mostre bem que o adultério muitas vezes não é mais que um desejo de imitação, é preciso ver também que se trata, em princípio, de um termo criado pelos homens para com ele vergastar as mulheres pouco “virtuosas”, quer dizer, desobedientes. Mas o “adultério” no sentido de uma relação extramatrimonial segredada e dissimulada tinha que existir, uma vez que a própria instituição do matrimónio era baseada, frequentemente, na caça ao proveito material, engano recíproco e subalternização das mulheres. A codificação do estatuto da mulher no século XIX era também justificada por várias teorias pseudo-científicas, à base das quais a mulher era considerada, por natureza, frágil e inteletualmente inferior ao homem. Nalgumas opiniões extremas, como nas teses de Michelet, a mulher tinha uma fisiologia patológica e, portanto, era “uma doente” (cf. Vaquinhas, 2000, p. 22). Em Portugal, semelhantes ideias eram divulgadas por Oliveira Martins: “Dantes (...) Deus era médico da mulher: hoje o seu médico e o tutor dessa pupila eterna é o homem: o pai, o marido, o filho. Ai da mulher que se não submeter, dócil e amoravelmente, a cada um desses médicos nos períodos sucessivos da sua existência!” (Martins, 1924 apud Vaquinhas, 2000, p. 22). 166 Veja-se o capítulo “As máscaras do Barão” no livro Pelos caminhos do insólito na narrativa breve de Branquinho da Fonseca e Domingos Monteiro (Špánková, 2020). 167 “bovinos, másculos, ossudos” fitam a mulherzinha a tropeçar nas suas “botinas de tacões agudos” (Verde, 1999, p. 73). A dupla validade da sedução enquanto atributo da cidade e tema do texto literário, cujo paradigma corresponde ao romance Les ilusions perdues (1837-1843) de Balzac, pode ser detetada no romance A capital de Eça de Queirós, publicado postumamente em 1925, mas escrito já em 1877. O protagonista do romance, Artur, seduzido pela poesia lírica sentimental ou panfletária, sonha igualmente como Lucien balzaquiano com a possibilidade de ir à capital, “carregada de desafios e de promessas ilusórias”, como diz Carlos Reis (Reis, 2012, p. 20), onde pudesse brilhar com o seu talento literário. Há muitas passagens no romance que exprimem, de forma explícita, a sua paixão arrebatada pela cidade, um “suspirar quase histérico por Lisboa” (Queirós, 2015, p. 82). Além disso, é de reter que a sua idealização da capital portuguesa é filtrada pela imagem de Paris, tal como esta ficou eternizada na literatura (“Lisboa! – Concebia a vida que a enchia, violenta e grandiosa, como o mundo da Comédia Humana, de Balzac.”, Queirós, 2015, p. 82).167 Simultaneamente, o romance oferece ainda outros pontos de vista, nomeadamente os do povo da província e da própria capital, participando assim na criação de um mosaico de discursos divergentes, mas todos tingidos de uma ironia ou sarcasmo tipicamente queirosiano. Por exemplo, na perspetiva das tias de Artur, que vivem na pequena vila de Oliveira de Azeméis, a ideia da capital cinge-se precisamente à simbologia bíblica da Babilónia (“Pois ele queria levar para Lisboa aquela riqueza? Até lhes parecia pecado, e olhavam o oiro, o papel, com pavor, pensando que ia ser devorado na Babilónia, como se vissem reluzir nas libras olhos de sereias e nas notas negrejarem programas de bacanais.” (Queirós, 2015, p. 118). Mas são sobretudo os aspetos pretensamente cosmopolitas que parecem mais valorizados por todos os mundanos aos quais Artur gostaria de pertencer. A simbologia da Babilónia, com efeito, está sempre presente no romance como uma sombra da cidade real, sendo até cogitada por Artur para o título de um dos seus projetos de livro de poemas (Nova Babilónia). Um assunto semelhante encontra-se também no conto “Dois primos” (Contos, 1881) de Fialho de Almeida, em que Albertina, filha mimada de uma família abastada, alicercada por 167 A passagem continua com uma explicitação ainda mais concreta: “Era, de resto, pelos romances franceses, que reconstruía a sociedade de Lisboa e não tinha uma ideia menos desproporcionada da sua edificação, imaginando-se de ruas enormes, sonora de trens e flamejando de gás, assentando a sua pompa movimentada sobre a larga baía azul, onde esquadras manobravam e salvavam as torres de outros séculos! Mas era sobretudo a existência nocturna de Lisboa que o fascinava: imaginava sentir, nos cafés, entre o oiro dos espelhos, balançar-se a sussurração das conversas literárias; via, à porta dos teatros, apinhar-se uma multidão sôfrega de arte, e em redor, nas praças todas alumiadas, grupos discutirem com subtileza a estética dos poetas e a política dos oradores.” (Queirós, 2015, pp. 82-83). 168 valores pequeno-burgueses, deseja tornar-se atriz. Desloca-se, portanto, para Lisboa e, sendo bonita, ganha rapidamente simpatias de alguns ricos homens lisbonenses. Apesar do seu sucesso, todavia, domina no conto o tópico de ilusões perdidas: a vida de luxo não traz à rapariga a felicidade, mas sensação de estar só. Do peso da solidão não a livra nem o seu primo Jorge, antigo pretendente, que também sucumbe à sedução da vida boémia lisboeta. Enquanto Albertina deseja uma relação estável, o primo prepara um plano de como se aproveitar da bela prima como amante para brilhar na alta sociedade. Um pouco à maneira de O primo Basílio de Eça de Queirós, retrata-se neste conto, em miniatura, um jogo de sedução a que a figura feminina não fica indiferente. Mas não só na intimidade do quarto com Albertina, também no espaço público, Jorge sabe como atrair a atenção desejada: Estava no primeiro andar do Alliance, quarto e saleta com porta independente, frquentava os teatros e batia em tipóia pelo Chiado as quatro da tarde, mostrando no assento dianteiro os bicos dos enormes sapatos de polimento e a seda cor de pérola das meias esticadas. De resto, fazia um gasto decente no elemento espanhol, sem indagar se lhe vinha directamente das Caldas ou da agência de criadas. E à noite, descendo o Chiado com a gola do carrick levantada, sentia-se apetecido pelas senhoras pálidas que iam pelo braço dos maridos caquéticos ou condescendentes, com o adultério nos olhos. O seu ar de campónio de bom sangue fazia impressão: era desejado. (Fialho de Almeida, s/d, p. 193) Repare-se que o espaço exterior lisboeta mais privilegiado a esses olhares apreciadores, tanto femininos como masculinos, era o Chiado. Também no poema “Esplêndida” de Cesário há um pormenor espacial, a Rua do Alecrim, que condiz com a preferência do Chiado para a representação da cena galante. A mesma topografia lisboeta de sedução é mantida também no início do século XX. As ruas da Baixa e do Chiado continuam a figurar como um verdadeiro palco de sedução, onde muitos se passeiam só para serem vistos e admirados e, simultaneamente, para verem e admirarem os outros. No romance O arcanjo negro, de Aquilino Ribeiro, a burguesia lisboeta é até metonimizada e projetada na imagem da própria cidade: “A Lisboa que, depois das cinco horas, não tem mais nada que fazer além de passear e exibir-se, subia e descia a rua, singrando mansa e langorosamente como anjos nas procissões. (Ribeiro, 1960, p. 209). Mas há ainda outros microespaços na Lisboa do início do século XX que adquiriram o papel de lugares de sedução e que entraram como tópicos na literatura modernista: são os vários cafés, clubes, cinemas, lojas e bares noturnos que modificaram o aspeto da capital portuguesa, tornando-a mais cosmopolita e cheia de vida. Nos inícios do século XX apareceram os clubes da Baixa (o “Maximʼs”, o “Monumental”, o “Avenida Parque”, o “Club Palace”, ou o “Bristol Club”, mais moderno de todos, pois em 1925 obteve decoração modernista, inclusive 169 a Pintura Decorativa de Nu de Almada Negreiros à entrada), ou cafés do Chiado (“Brasileira”, “Chiado”) (cf. França, 1989, p. 97). Dentro destes, o clube Bristol, a funcionar entre os anos 1918-1928, pertence aos lugares eternizados na literatura, sendo nomeado como um sítio frequentado pelo protagonista da novela Páscoa feliz de José Rodrigues Miguéis. Entre outros exemplos literários pode ser ainda recordado o conto “Mulher de perdição” (O dominó preto) de Florbela Espanca, em que é mencionado “Modern Club”, sítio de sedução, onde o protagonista da história encontra a bailarina Reine Dupré, uma das muitas “salomés” que preenchem as páginas da literatura finissecular e modernista. Além disso, convém recordar que o romance Nome de guerra, de Almada Negreiros, sobre o processo de amadurecimento do jovem Antunes, prefere também o espaço de um clube noturno como um lugar representativo do espaço urbano. As luzes artificiais dos bares modernos sintonizam, por sua vez, com um novo aspeto da noite urbana, iluminada cada vez mais intensamente pela iluminação pública e pela publicidade luminosa, com os “néons” instalados em 1934. Deste modo, a cidade torna-se ainda mais provocadora e sedutora. 5.1.1. Seduções modernas Há, no mínimo, três narrativas publicadas em 1938 que se centram no tópico da sedução urbana: o conto “A minha inimiga” (Caminhos magnéticos) de Branquinho da Fonseca, a novela Maria Adelaide de Manuel Teixeira-Gomes e o romance Bússola doida de Aleixo Ribeiro.168 E embora haja em todas estas narrativas a figura donjuanesca que quase em todos os aspetos adere ao protótipo de um sedutor patriarcal, é sobretudo no último título que largamente se explora a questão dessa dupla sedução, da mulher e da cidade (Lisboa). Além do tema, trata-se também de um dos primeiros trabalhos literários em Portugal que se perfilam decididamente como modernos. Com efeito, neste romance, avaliado por João Gaspar Simões como “o primeiro romance português a propósito do qual a invocação do nome de Marcel Proust não seria descabida” (Lisboa, 1994, p. 554), e que poderia ser designado como bildungsroman (romance de formação), o protagonista António recorda o tempo da sua adolescência e da sua procura do amor. Este esforço fracassa porque o feitio de António, como 168 Tanto no conto fonsequiano, como na novela de Teixeira-Gomes, a figura masculina vacila entre duas mulheres que o atraem por motivos diferentes. Curiosamente, o protótipo feminino fonsequiano que corresponde a uma donzela bela e pura (tópico de femme fragile ou donna angelicata) e que é tão bem retratado nas narrativas mais famosas como Rio turvo ou O Barão, é neste conto subvertido em favor de uma mulher experiente e perigosamente sedutora. Na novela de Teixeira-Gomes, ao contrário, mantém-se a figura de Lolita que é, ao adoecer, substituída por uma outra, mais nova e inocente. 170 ele reconhece no fim, não pode conduzir a uma vida normal e pacífica. Pelo contrário, os seus atos e gestos são orientados por uma “bússola doida”, à qual corresponde a imagem da trepadeira, a planta que cresce de um modo incompreensível como o amor: Não, pessoalmente não descobri nada. Foi a trepadeira que mo descobriu. O amor é uma coisa que não se agarra acto continuo ao objecto amado, fá-lo como os caules trepadores que não se dirigem logo ao suporte para que sentem imediatamente espigar as suas gavinhas; seguem-lhe ao longo, têm até pequenos desvios ariscos e só depois, furiosamente, se enrolam ao suporte. Assim, entre os vegetais, porque entre os homens pode ser mais complicado. (Ribeiro Júnior, 1938, p. 89)169 Mas a sua inconstância amorosa não faz dele, também, um Don Juan português porque as mulheres, com as quais ele se enlaça, não o enchem de satisfação, e isso não por causa delas, mas por causa do seu próprio fastio pessoal, soturno e melancólico, que não lhe permite viver em felicidade real ou imaginada. Maria do Carmo Cardoso Mendes diz a este propósito: De facto, António não é uma representação de Don Juan. O repúdio da personagem mítica pelo casamento é nele compensado pela idealização da união duradoura; o ímpeto erótico é substituído pela hipótese de diversas uniões matrimoniais que, mais ou menos conscientemente, suplantam a fragilidade do amor reduzido ao domínio do erotismo; a multiplicação de conquistas não conduz a uma sexualidade vivida em plenitude. (Mendes, 2014, p. 425) Portanto, mais que as relações efémeras que António estabelece com várias mulheres, interessa observar os sentimentos que ele experimenta em relação a si e ao seu ambiente, pois são estes sentimentos que compõem a verdadeira trama do romance. Só por esta introspeção, com efeito, o romance pode ainda despertar certo interesse hoje em dia. A partir do início verifica-se também que as emoções que António minuciosamente reconstrói e articula, desde a distância temporal e afetiva, surgem em função do envolvimento espacial. Tudo ao redor se projeta no interior do sujeito e vice-versa numa estranha simbiose. Deste modo, por exemplo, António sente cair a sua vida como os pingos na casa de banho (“Noutras noites era aquele pingo de água que caía, caía monótono, lento, mas infatigável, no silêncio da casa de banho e de todo o prédio. [...] Como eu, talvez, como a minha vida!...” p. 24). Por outro lado, as vertigens que António sente muito dentro de si propagam-se ao exterior (“Eram vertigens súbitas, esvaímentos inexplicáveis, que logo tomavam um aspecto assustador, propagando-se a tudo em redor”, p. 24). Noutras passagens ainda, o protagonista entra em relação íntima com 169 Usa-se aqui a indicação extensa do autor como Ribeiro Júnior, para evitar a confusão com Aquilino Ribeiro. Todas as citações deste romance serão a seguir identificadas só pelo número de página. 171 um elemento espacial como é, por exemplo, a rua (“Eu já nem sequer pensava; quando, altas horas, vinha para casa, eram as ruas que pensavam por mim.” p. 24). A duplicidade entre o sujeito e o espaço circundante, criada através dessas e de outras analogias referidas na narrativa, encontra ainda um reflexo num paralelismo entre o sujeito narrador e uma figura anónima que representa a vida banal, mesquinha e sórdida da rua. No primeiro caso, há um vendedor de mexilhão que incompreensivelmente passa pelas ruas à noite, quando todos já estão recolhidos: “A certa hora anoitada, passava lá pela rua o homem do mexilhão, e não sei quê da soturnidade do seu pregão àquela hora se conjugava perfeitamente com a minha soturnidade.” (p. 24). De facto, a figura espetral do vendedor solitário, cuja presença nas ruas é anunciada por um pregão “soturno”, funciona como um espelho côncavo do personagem-narrador, imagem inversa do fauno grotesco.170 Tal como o vendedor, o narrador costuma passar pelas ruas da cidade adormecida, caçador do sexo feminino destituído de transcendência e mistério e rebaixado a um elemento puramente corporal, consumível.171 Outra situação delineia-se numa passagem introspetiva quando António, depois de reconquistar a relação com uma das ex-namoradas, cisma sobre o seu feitio faunesco enquanto um amigo-duplo caminha ao seu lado: “No entanto, ao deixar Estela naquele dia em que a tive pela primeira vez, quando já na noite das ruas fugia de mim, um amigo desconfiou, caminhando a meu lado, perscrutando-me, como essas pessoas indiscretas que nos querem ver por dentro e adivinharem-nos” (p. 263).172 O terceiro momento decisivo desvela-se no final do romance, quando o narrador se apercebe que ele próprio criara o seu drama pessoal ao querer assemelhar-se aos heróis romanescos. O pior é quando compreende que esse drama, afinal, não tem interesse absolutamente nenhum, por ser completamente banal: E quando supões que assim te poderias exibir, em qualquer circo, como um fenómeno humano, um prodígio, vamos – um abôrto, o público olhava para ti e não veria nada de extraordinário. Seria, por certo, como nesses ajuntamentos da rua, que a 170 De facto, António dá-se conta de que a boémia só lhe aprofunda a melancolia inata (“A minha única enfermidade vinha a ser a boémia, que pretendia ser alegre e não passava de vaga, arlequinesca, triste.” p. 38, “a minha decepção por tudo era tão grande que eu não podia sequer perder-me na boémia”, p. 37). 171 O narrador refere-se várias vezes ao “consumo” sexual (que já não tem nada a ver com o erotismo), p. ex. “Nos meus braços ia apertando corpos, aqui e acolá e que eram sempre o mesmo corpo, sem já ser o da interessante mulher que eu despira, pois só custava mais ou menos dinheiro”, p. 37, ou “Já não via caras bonitas, nem lindos vestidos, nem belos chapéus, mas só ancas reboludas, só colos esféricos ou ponteaguçados como gorros ilheus, só bôcas, só sexos contrários.” (p. 76). 172 Repare-se no tópico de doppelgänger (termo cunhado por Jean-Paul Richter em 1796 que significa precisamente o duplo ou segundo eu, literalmente “alguém passando ao teu lado, o companheiro de viagem” [Bravo, 1996, p. 343, tradução minha]). Em geral, a imagem do duplo pode ser percebida em forma de reflexo no espelho, retrato, sombra, ou então como uma cisão pessoal. Neste romance parece tratar-se de uma imagem de sombra que exprime a profundidade da desilusão do narrador, a consciência da sua própria imperfeição e fraqueza inata. 172 gente fura para ver o que há de extraordinário, e damos com um rato, um pequenino rato, meio-morto, assustado, esquivo, ou um homem caído, que sofre, e quando nos debruçamos sôbre êle, para ver o esquisito da sua dor, o fantástico da sua tragédia, parece que nos debruçamos sôbre um espêlho. Porque aquele homem se parece connosco, tem a mesma figura humana – , tanto que poderíamos ser nós próprios. (p. 272). Estas e outras passagens de índole emotiva correspondem a lugares de força do romance e, como tal, são muito mais importantes de que as conquistas amorosas. Estes lugares, precisamente, fornecem uma melhor possibilidade de avaliar o grau de introspeção do sujeito porque expõem o drama do homem moderno: a sua vontade de recriar grandes aventuras imaginadas e o choque ao saber que essas aventuras que se queriam forçosamente viver não são nada. A depressão e melancolia defluentes deste estado condiz com a imagística vertical, abismal, que percorre toda a narrativa, análoga, neste sentido, à novela de José Rodrigues Miguéis.173 Tal como Renato da novela migueisiana, António sente, nas profundidades do seu ser, a existência de um filão secreto, do qual os outros nem sequer suspeitam (“A mamã não supunha [...] a série de crimes, de coisas monstruosas, que havia em mim.” p. 49). Para além da duplicidade, verificada a nível de analogias entre o sujeito e o espaço ou a figura que esse espaço representa (vendedor ambulante, amigo-duplo que caminha ao lado, um pobre da rua), é possível reparar que a imagem da própria cidade entra em conexão íntima com o narrador-personagem. Neste sentido, podemos detetar dois tipos de representação de Lisboa, dos quais um seria eufórico e estimulante e o outro distópico. O primeiro tipo corresponde ao espaço mais referenciado no romance, a Baixa, que também funciona como o espaço privilegiado de sedução. O narrador, por um lado, sente-se irresistivelmente seduzido por esta parte urbana, por outro, ele próprio adota a sedução como táctica privilegiada no relacionamento com as mulheres.174 O segundo tipo de representação, o distópico, releva-se 173 Existem também analogias com certos poemas presencistas. Por exemplo, num poema introspetivo de José Régio, intitulado “Narciso”, o sujeito lírico experimenta uma vertigem ao penetrar dentro de si, examinando a imagem que o seu eu reflete no poço da sua escuridão. Aquilo que vê não é uma imagem lisonjeira, é antes uma fonte de angústia e náusea. De um modo semelhante, no poema “Descida aos infernos” (Orfeu rebelde, 1958), o sujeito lírico de Miguel Torga mergulha no poço infernal do seu interior para ficar, por fim, consternado e gelado de horror. Estas e outras imagens que proliferam na literatura do início do século XX denunciam uma nova crise gerada no sujeito moderno, instável e fragmentário. Alimentada pelo interesse tanto médico, como artístico, esta crise torna-se, com efeito, um dos sindromas do mundo cada vez mais precipitado e menos transparente. Aquilo que ainda no mundo oitocentista era considerado legível e maneável, é abalado no dealbar do século XX, época de uma cisão profunda, de uma euforia pelo vertiginoso avanço científico-tecnológico e, simultaneamente, de um dos maiores pesadelos de sempre, de holocaustos, câmaras de gás, campos de comcentração e extermínio em massa. 174 Vejam-se os seguintes excertos: “lá fora havia apenas uma possibilidade de mundo, de passeios pela Baixa, de cafés, de cinemas, de mulheres” (p. 28), “(...) depois de estudar para o liceu, esmiuçando matérias de física e naturais, ia desiludir-me correndo a Baixa ou assestando as minhas miras nas lojas de chá, pois, ao supor que descobrira a minha fatal admiradora, ao segui-la, ou pior, ao falar-lhe, deparava sempre com umas atitudes e umas palavras de ofensa, banalíssimas, descoroçoantes.” (p. 36), “durante as melhoras do meu fígado, comecei a passear 173 sobretudo na comparação de Lisboa com outras cidades europeias, com o “claro encanto de Nice e Monte Carlo”, “tumulto libertário e artístico de Paris”, “majestade e delicadeza íntima de Londres”, “solenidade e cultura de Berlim”, “romantismo e jardins de Viena” (pp. 70-71). Esta comparação não é muito vantajosa para a capital portuguesa. Ainda por cima, a Lisboa noturna é descrita pelo narrador como “cidade morta” (p. 51) e “mal iluminada” (p. 71), na qual se encontram recantos que representam o lado sombrio da cidade: Tínhamo-nos então afastado do centro da Baixa por ruas onde não me parecia que morasse alguém, e dessas metemos por outras, que subiam, mesmo se alcançavam por escadinhas, e que eram estreitas, sombrias de pobreza, assim como que se furtando, acanhadas, umas das outras. E na sua sombra, uma sobra que não me pareceu só feita de míngua de luz, mas ainda de qualquer coisa que estava no ambiente e, mesmo, estampada na face, na expressão das casas, talvez até na das gentes – calei-me tomado por uma espécie de respeito, de aflição inconfessável. (p. 162) A sombra vislumbrada pelo narrador funciona como metáfora do espaço sórdido, não só no sentido físico, mas também social. Esta sombra, com efeito, corresponde a um espetro urbano, representação da sua miséria e pobreza, assemelhando-se a outros espetros que assombram grandes cidades, como é por exemplo “smoke ghost” chicaguiano de Fritz Leiber do conto homónimo, publicado em 1941, que encarna um novo tipo de fantasma, moderno e industrial, nascido da sujidade e violência urbana. Com efeito, é esse espetro abstrato em forma de sombra que fornece ao narrador mais uma experiência, já não pessoal, mas coletiva, através da qual António sobe mais um grau no processo do seu amadurecimento. Só nessas circunstâncias se dá conta de que todos os dramas interiores que ele cria artificialmente não são nada em comparação com o verdadeiro drama humano, que é a pobreza: “E ninguém pode calcular quantos dramas vividos eu agora via passar, parado, atento, à esquina de qualquer rua!” (p. 169). Mas o melhor exemplo de como a cidade se projeta na subjetividade do narrador encontra-se na passagem em que António regressa de uma viagem irrefletida a Paris, na companhia de uma senhora mais velha. O narrador tem novamente oportunidade de cotejar o aspeto da capital portuguesa com outra grande cidade e, simultaneamente, refletir sobre a pela Baixa e a sentir as mesmas inquietantes perturbações sexuais” (p. 76), “Depois, ela ainda me encarnou a impressão sentimental que sempre me tinham despertado as empregadas dos estabelecimentos da Baixa. Essa impressão datava já do tempo em que eu andara à procura da minha mulher romanesca, que não seria naturalmente nenhuma daquelas raparigas. E, no entanto, elas tinham algo de estranho, não eram como as pequenas minhas conhecidas ou qualquer das elegantes da Baixa.” (p. 61), “Seguia-a pela Baixa, ela ia entrando em sucessivos estabelecimentos para fazer compras” (p. 106). 174 analogia entre si e Lisboa, cujos destinos se espelham mutuamente, de um modo irracional e oculto: Da minha pobreza compartilhava em volta a própria Lisboa, que antes me parecera, como eu, senão rica, pelo menos satisfeita consigo, com as suas ruas, as suas lojas, o movimentos elegante da Baixa: e agora me surgia estreita, com pouca vida, pouco movimento, sobretudo sem a grande sumptuosidade, o monumental dos boulevards e dos monumentos de Paris, que, ainda quando do passado, respiravam o grande fausto de antanho, digno de si. E errei durante horas por essa Lisboa empobrecida, sem ao menos um passado que lhe dissesse: “Foste grande, admirável!” (talvez que, como ao passado de Lisboa, também um terramoto espantoso tivesse derruído o meu). (p. 196) Nesta íntima comunhão entre o sujeito e o espaço urbano anuncia-se mais uma questão que pode ser analisada na prosa portuguesa da década de 30 do século XX e que corresponde à reflexão sobre o passado catastrófico de Lisboa e o seu simbolismo. Esta questão, de facto, constitui mais uma vertente interpretativa da imagem babilónica projetada à capital portuguesa. 5.2. Os espetros do passado regressam à cidade O tópico da sedução, como ficou estabelecido no imaginário “babilónico”, vem acompanhado sempre pelo seu reverso, a maldição e a conseguinte destruição. Esta segunda face da cidade foi, de acordo com certas interpretações, comprovada pelo Terramoto de 1755 de Lisboa que destruiu uma parte significativa da cidade velha e que se tem conservado no imaginário lisboeta até à atualidade. Comprovam-no alguns títulos de referência, entre os quais novamente domina, em função de um paradigma literário, a poesia de Cesário Verde. Refletindo sobre a composição de “O sentimento dum ocidental”, Annabela Rita acentua a sua “[c]omposição quadripartida”, em que cada secção contém onze versos, “sendo o primeiro decassílabo e os restantes alexandrinos, com rima interpolada (versos 1 e 4) e emparelhada (versos 2 e 3), de ritmo regular”, concluindo que, deste modo, o poema “constitui um conjunto geometrizado que lembra a da própria baixa pombalina, onde a Lisboa moderna se ergueu das ruínas do terramoto” (Rita, 2011, p. 68). Apesar desta reguralidade e harmonia no plano da composição que se ajusta, com efeito, ao iluminismo urbano setecentista, o poema cesariano exprime uma modernidade ao mesclar, a nível temático, várias outras épocas do passado a que o sujeito poético não tem outro acesso senão pela imaginação e sensibilidade. De facto, em concordância com Manuel Gusmão, podemos afirmar que “o poema se vai transformando num feixe temporal que entretece dimensões e operações temporais diversas, bem como joga em diferentes durações” (Gusmão, 2010, p. 206). Em seguida, este cruzamento de vários tempos 175 relaciona-se, também, com determinados elementos espaciais, cuja memória fica assim ressuscitada e ampliada por uma nova experiência subjetiva. Refira-se mais uma vez a opinião de Manuel Gusmão, conforme o qual “[n]a descrição de certos lugares, se condensam a memória, a experiência e as meditações de outros passeios ou percursos, alguns deles, pelo menos, tornados habituais porque repetidos. (Gusmão, 2010, p. 206). Adicionemos que esta “memória do lugar”, ao recuperar o conceito tradicional de genius loci, pode abranger ainda toda a carga emocional que lhe é inerente.175 Vice versa, as impressões que o lugar emana podem adquirir um caráter “somático”, isto é, podem influenciar o estado físico do sujeito. Mesmo a próposito do poema de Cesário, Annabela Rita invoca um exemplo ilustrativo, referindo-se à imagem de “céu baixo e de neblina”, cuja visão provoca, no sujeito lírico, os sintomas de aneurisma (Rita, 2011, p. 68). Estes dois processos de influência recíproca entre um lugar e um sujeito, um coletivo ou uma sociedade evidenciam-se, em maior ou menor grau, na poesia de Cesário Verde e em todas as obras que desenvolvem o imaginário urbano lisboeta. O regresso do passado, sobretudo esse de fundo traumático a nível coletivo, dá origem a uma espécie de hauntology (no sentido derridiano) que influencia poderosamente o imaginário de um determinado povo.176 No que diz respeito ao imaginário português, relacionado com o espaço lisboeta, convém determinar pelo menos dois fenómenos que se impõem, pela sua singularidade e terribilità, nas visões quase alucinatórias dos sujeitos líricos e personagens das narrativas, logo plasmadas em imagens literárias. Trata-se dos fenómenos da inquisição, estabelecida em Portugal em 1536, e do terramoto que assolou a cidade, com consequências catastróficas, em 1755. Os dois fenómenos tornaram-se leitmotivos da literatura portuguesa, em especial – repita-se – da que se centra sobre o imaginário lisboeta. 175 Recorde-se que Cesário Verde era um grande admirador de Baudelaire. E, de facto, podemos encontrar nos versos do poeta francês várias referências a fenómenos semelhantes. O sujeiro lírico baudelairiano, ao passear pela cidade de Paris, ativa a memória emocional, com a qual reage aos sítios percecionados. Por exemplo, no poema “Le cygne”, dedicado a Victor Hugo, há os seguintes versos: “A fécondé soudain ma mémoire fertile,/ Comme je traversais le nouveau Carrousel./ Le vieux Paris nʼest plus (la forme dʼune ville / Change plus vite, hélas! que le coeur dʼun mortel)” (Baudelaire apud Starobinski, 2013, p. 49), ou então : “Paris change! Mais rien dans ma mélancolie/ Nʼa bougé! palais neufs, échafaudages, blocs, / Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie/ Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs.” (Baudelaire apud Starobinski, 2013, p. 50) Sobre esta questão, Starobinski afirma que, nos pensamentos do sujeito que passa pela cidade, surgem de repente ideias e grupos complexos de imagens retidas na memória. O lugar e o momento presente evocam vários filões de lugares e de momentos passados, ou mesmo todas as épocas passadas, apresentadas sob o signo de destruição, tristeza e perda (Starobinski, 2013, p. 54). É óbvio que esta opinião está em plena concordância com os postulados de psicogeografia moderna. 176 Veja-se o exemplo da literatura espanhola, inspirada com muita frequência na época do franquismo e da Guerra Civil (cf. Davis, 2018, p. 84). Nesta perspetiva, Ann Davis invoca as teses de Jo Labanyi acerca da hauntology espanhola, relacionada com o franquismo, argumentando, porém, contra a excessiva ênfase posta na contextualização histórica em detrimento da questão estética. Para o efeito, Davis analisa, entre outros, o romance La sombra del viento (2001) de Carlos Ruiz Zafón e filmes como NO-DO (Elio Quiroga, 2009) e Darkness (Jaume Balagueró, 2002). 176 Manuel Gusmão abriu esta discussão ao afirmar que “a simples determinação de um lugar pode ser a oportunidade para evocar um momento do passado da cidade”, referindo-se às partes II, 4 e II, 8 do poema “O sentimento dum ocidental”, nas quais precisamente esses fenómenos são registados (Gusmão, 2010, p. 223). Observemos, primeiro, a referência à inquisição. A estrofe, em que o sujeito de Cesário Verde se lhe refere, versa o seguinte: Duas igrejas, num saudoso largo, Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero: Nelas esfumo um ermo inquisidor severo, Assim que pela História eu me aventuro e alargo. (Verde, 1999, p. 100). É evidente que a memória do tempo da inquisição é avivada pela determinante espacial (largo, igrejas) que, embora sem concretização, fica implícita aos que conhecem a cidade, em principal a sua parte velha. O principal é, porém, o facto de a referência puramente implícita animar toda a história portuguesa relacionada com a inquisição e, por conseguinte, com vários espaços a ela vinculados. O poema de Cesário, portanto, pode ser visto como um ponto de partida para vários tratamentos literários modernos, nomeadamente narrativos. Com efeito, os processos da inquisição, depositados na memória coletiva como um trauma individual e social, fazem parte da paisagem psicogeográfica lisboeta no sentido mais amplo, o que se verifica não só nas narrativas de tema histórico (como é, por exemplo, O memorial do convento de José Saramago), mas também nalgumas ficções urbanas contemporâneas. Repare-se, por exemplo, como no romance Os jardins secretos de Lisboa (2001) de Manuela Gonzaga, a narradora autodiegética descreve as suas sensações de menina ao passar pela Baixa lisboeta, no pleno século XX: – Hoje cheira a madeira queimada. Cheira a fogo – dizia eu, muitas vezes, ao Pai, quando andávamos pela Baixa, antes ou depois de passar pela loja. Ele farejava o ar e tranquilizava-me: – Impressão tua. Eu apontava para o Palácio D. Maria, que, soube muito mais tarde, se erguera dos escombros do Palácio dos Estaus, onde teve sede o Tribunal da Santa Inquisição, e insistia: – O cheiro vem dali. (Gonzaga, 2006, p. 91) A referência ao fogo pode ter o duplo significado uma vez que se alastra dos lados do Palácio D. Maria, reconstruído no lugar do Palácio dos Estaus que serviu, realmente, como sede do Tribunal da Santa Inquisição, e foi destruído pelo fogo durante o terramoto de 1755. Mesmo 177 que a primeira ideia se possa associar ao incêndio do terramoto, a narradora prossegue com a imagem literária, na qual facilmente se descodifica a memória da inquisição. Veja-se a seguinte imagem fantasista da menina, filtrada pela consciência da mulher adulta, irónica, a qual fornece uma descrição imaginária do processo inquisitorial: E como se tudo estivesse embrulhado no mesmo gigantesco novelo e as imagens que se reacendiam dependessem da ponta por onde se lhes pegasse, eu via reaparecerem as procissões lúgubres que assinalavamos dias de festa do calendário cristão, com os condenados de carocha e sambenito, as vestes tenebrosas com demónios pintados a dançar no meio das chamas, a caminhar por entre as ruas engalanadas, das masmorras do Palácio dos Estaus para a Igreja de São Domingos, onde ouviam o ofício divino que celebrava a sua condenação à morte. E ouvia o seu choro aflito, quando, depois de abençoados na Igreja de São Domingos, seguiam para o Rossio, e do Rossio para o Terreiro do Paço, debaixo dos apupos e dos risos da multidão, acompanhados por padres que rezavam sem parar, e tão enloquecidos de terror que nem percebiam que iam ser resgatados do fogo do Inferno pelas chamas das fogueiras da Sagrada Inquisição. (Gonzaga, 2006, pp. 91-92) Similarmente, a mesma memória coletiva traumática renasce no conto fantástico “O sonho” (Contos de sétima esfera, 1980) de Mário de Carvalho, em que uma jovem americana Margret Robbins repete, de um modo sobrenatural, o destino de uma sua predecessora ou dupla histórica, de mesmo nome, que, vinda da Nova Amesterdão para Lisboa, foi queimada em autode-fé, em 1699. A trama do conto é simples: a outra Margret, do século XX, aceita um convite de um casal de portugueses, instalando-se na sua casa enorme e antiga, onde a seguir passa a sofrer de terríveis pesadelos. Ao contrário do comum, contudo, os pesadelos não se repetem, mas seguem numa sucessão de eventos em série. Nestes sonhos, a jovem vê-se enclausurada e interrogada, sofrendo de uma angústia indescritível, tenebrosa. No último sonho, finalmente, sente algum alívio, ao passar pelas ruas da cidade. No dia a seguir, quando a jovem não aparece ao pequeno-almoço, o casal entra no seu quarto, encontrando lá somente uns restos do corpo completamente queimado. Na véspera da sua morte, Margret sonha com a passagem pelas ruas de Lisboa, cuja imagem, porém, não corresponde ao seu aspeto contemporâneo, sobretudo pelo facto de se ver envolvida por umas pessoas bizarras: Viu-se descalça, a caminhar pelas velhas ruas de Lisboa, de envolto com muita gente, vestida de túnicas bizarras. Ao longo do percurso, alabardeiros sustinham massas compactas de uma multidão garrida e agitada. Em frente, seguia gente a cavalo, sumptuosamente vestida, e extensa teoria de padres com grandes cruzes alçadas. (Carvalho, 1990, p. 189) 178 Margret absorve de facto a atmosfera da Lisboa seiscentista, revivendo os acontecimentos que realmente ocorreram naquela época na capital portuguesa: sua morte no quarto corresponde, evidentemente, à sua sonhada execução em auto-da-fé. Os referidos exemplos da poesia cesariana e da ficção portuguesa contemporânea demonstram, portanto, a coindicente preocupação com as caraterísticas dum determinado espaço, com a manifestação da sua “alma” e atmosfera que esta emana ao seu redor. O espírito do lugar, precisamente, assenta no cruzamento de vários tempos e na capacidade de guardar a memória que pode ser, em certas circunstâncias propícias, transmissível à sensibilidade humana. Por isso, certos lugares proporcionam, ao menos de modo ficcional, uma repetição (interminável?) de certos fenómenos de força que aí ficaram registados como impressões digitais. Para além de este tratamento corresponder às explorações psicogeográficas, é evidente que, ao sublinhar a captação do espaço à base polisensorial (não só a visão, mas também o olfato e audição), as referidas imagens literárias se adequam perfeitamente à pesquisa geocrítica. Outro fenómeno, mencionado já em relação à poesia de Cesário Verde, é o terramoto de 1755. Trata-se da seguinte estrofe do poema “O sentimento dum ocidental”: Na parte que abateu no terremoto, Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas; Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas, E os sinos dum tanger monástico e devoto. (Verde, 1999, p. 100) Se, de facto, não há nesta estrofe nenhuma imagem poética que desenvolva o próprio acontecimento trágico, ao qual uma carga emocional teria que ser, obviamente, inerente (sendo mencionado somente uma das consequências do terramoto – a reconstrução da Baixa), há apesar de tudo uma corrente de associações nos versos que alimenta, indiretamente, todo o complexo imaginário do desastre. Ou, como sustenta Manuel Gusmão, no poema “não encontramos apenas alusões parcelares a uma evolução da cidade, mas um processo mais complexo de temporalização” (Gusmão, 2010, p. 224). Desenvolvendo esta ideia, o contraste entre os eixos horizontal e vertical referente à imagem da parte destruída pelo terramoto, em confronto com a imagem de íngremes subidas evoca, para além da topografia lisboeta, tanto as altas ondas que engoliram a parte baixa da cidade, como as chamas do incêndio que vergastaram os edifícios da parte atingida pela catástrofe. O som de sinos acompanha o sujeito poético na subida à colina e, ao mesmo tempo, impõe à cena uma expressão de impotência frente às forças que ultrapassam o ser humano. A semelhante imagem sonora é também sublinhada no já referido romance de 179 Manuela Gonzaga, em que a narradora, num exercício plenamente psicogeográfico, recupera a memória do terramoto: Então, eu pensava que, se fechássemos os olhos, num exercício de memória, poderíamos ouvir, para sempre, o dobre de sinos ou os uivos das sirenes, os gritos e os gemidos das pessoas, o crepitar das fagulhas e o fragor das vigas que ruíam, arrastando consigo paredes cheias de quadros. (Gonzaga, 2006, p. 92) O som de sinos, com efeito, evoca a angústia dos homens que presenciam a catástrofe e não podem agir, entregues à passividade e à confiança na misericórdia divina. O negativismo cesariano, a sensação da decadência de uma nação, ainda antes do colapso causado pelo Ultimato de 1890, bem como a visão imaginária de um país (e até de uma civilização) em ruínas sintonizam, de facto, com a mundividência finissecular em geral e com as ideias da Geração de 70 (Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queirós etc.) em particular. Mais à frente, ainda, o poema evoca outros aspetos disfóricos que, embora não relacionados estritamente com o terramoto, acentuam a imagem essencialmente distópica da “triste cidade” (II, 9): E eu sonho o Cólera, imagino a Febre, Nesta acumulação de corpos enfezados; Sombrios e espetrais recolhem os soldados; Inflama-se um palácio em face de um casebre. (Verde, 1999, p. 100) A imagem de corpos, acumulados e enfezados por várias pragas em forma de doenças, encontra o seu equivalente no imaginário lisboeta, uma vez que a capital portuguesa assenta precisamente nessa acumulação de vários “corpos” urbanos, sucessivamente destruídos e mortos. Recorde-se, a propósito, o romance A enseada amena (1966) de Augusto Abelaira, em que o narrador diz: – Aqui, debaixo dos nossos pés: ruínas, várias Lisboas mortas. Vamos enterrando as casas, os templos, as ruas, o passado, o presente, o futuro. Vamo-nos enterrando a nós mesmos. É uma cidade soterrada: casas fenícias, templos romanos, visigóticos, mouros, joaninos... Queres abrir um buraco, vamos espreitar lá abaixo? Nem é preciso: já estamos lá em baixo, antes mesmo de lá estarmos, já estamos no buraco. (Abelaira, 1997, p. 64) É claro que a distopia neste romance de Abelaira é motivada ideologicamente como uma oposição ao regime do Estado Novo, sendo a capital portuguesa considerada uma cidade morta não só por haver nela uma sobreposição de várias camadas urbanas, sucessivamente extintas, 180 mas sobretudo por causa da ditadura instalada em 1926.177 A ideia fulcral, contudo, essa que aponta para a existência de vários níveis temporais, à base dos quais a cidade é formada e moldada, pode ser seguida também nalgumas obras contemporâneas, inseridas em diferente âmbito socio-histórico. Veja-se um outro exemplo do romance de Manuela Gonzaga: – Alice, Lisboa é uma cidade antiquíssima. Fazes um buraco no chão e encontras sempre ruínas, vestígios, o que quiseres, de épocas mortas. Debaixo de cada casa, há, inevitavelmente, não sei quantas outras. Às camadas e camadinhas, como o bacalhau de caldeirada. Pré-históricas. Fenícias. Romanas. Visigóticas. Árabes. Portuguesas de todas as dinastias. (Gonzaga, 2006, p. 392) Em ambos os exemplos, curiosamente, encontra-se a imagem dum buraco que pode ser interpretada no sentido literal, arqueológico, mas também no sentido figurativo como metáfora da suspensão temporal, da coexistência de várias culturas no mesmo solo.178 A imaginária descida ao buraco equivaleria, neste sentido, à catábase, à descida ao reino dos mortos, à procura das imagens fantasmáticas provenientes das culturas anteriores. Os vários escalões temporais, que constituem a estrutura urbana lisboeta permitem, assim, a penetração imaginária noutras formas de ser da cidade. Deste modo, a cidade de Lisboa é representada como uma entidade 177 Diz-se claramente no romance: “Nunca vemos Lisboa, mas um monumento funerário. uma lápide: Aqui jaz Lisboa, morta e ressuscitada, definitivamente enterrada em mil novecentos e vinte e seis...” (Abelaira, 1997, p. 111). O imaginário de Lisboa como uma cidade morta é marcante em várias passagens da narrativa, desconstruindo tanto o cliché da retórica salazarista, como o estereótipo fixado por certas perspetivas exógenas: “E agora, lá em baixo, a cidade. Não a Lisboa colorida e luminosa dos dias de sol, uma Lisboa parda e molhada” (Abelaira, 1997, p. 70), “Estrangeiro em Lisboa, descobrir uma cidade cheia de sol e colorida, não ver a realidade essencial: uma cidade morta e enterrada!” (Abelaira, 1997, p. 39). 178 O motivo do buraco que permite a entrada imaginária noutros escalões temporários da existência da cidade econtra-se também no conto “A pele de judeu“ (Contos dá sétima esfera, 1980) de Mário de Carvalho. A trama é simples. Um jovem universitário Rui Telmo, interessado na história dos árabes na Península Ibérica, descobre um dia, na biblioteca, um livro em que se escreve sobre a existência de minas de prata em Lisboa. Junto a esta informação, encontra ainda uma transcrição, feita a lápis, de uns versos do Cancioneiro de Resende. Por baixo da transcrição, há um número de telefone. Intrigado, Rui telefona para o número indicado, conhecendo assim Magda, uma jovem um tanto peculiar, que logo o convida a acompanhá-la a sua casa. Magda, interessada em coisas vetustas, cuja profusão é evidente em toda a casa, retira de uma caixa um objeto estranho que se revelará ser uma pele de judeu. Com ajuda da pigmentação da pele e da posição das estrelas, Magda faz um cálculo que indica o lugar da existência de minas de prata no passado remoto. Os dois combinam em escavar no sítio descoberto. Dentro das minas, contudo, o aspeto de Magda metamorfoseia-se num monstro animal que, em seguida, desaparece. Quando o seu parceiro finalmente dá com a saída das minas, vê-se numa cidade diferente, sendo ele próprio invisível dentro da turba urbana. No dia a seguir, é encontrado morto, meio soterrado, no terreno baldio do Areeiro. Tal como Margret do conto “O sonho” recupera o destino da tal Margret de 1699, a cidade de Lisboa volta a ser Lixbuna muçulmana. O mesmo motivo aparece ainda no romance História do cerco de Lisboa de José Saramago, em que o revisor Raimundo Silva imagina a cidade de Lisboa a partir da perspetiva dos mouros. O romance contém inúmeras páginas que remetem ao conceito da psicogeografia, nas quais o protagonista deambula por vários sítios da cidade velha, dominada na Idade Média pelos mouros, deixando-se absorver pelo seu genius loci. Esta aura encontra-se também nalguns interiores, como é a leitaria, transformada, pela imaginação do revisor, num lugar de confluência de dois tempos, do medieval e contemporâneo. A cidade, portanto, apresenta-se como um conceito mental, em que o material e o psíquico coexistem, operando numa correlação inerente. 181 transtemporal, palimpséstica, estratigráfica, cujos sinais e rastos do passado convidam a um cíclico imaginário de acontecimentos, fenómenos naturais e de experiências humanas. 5.3. Viver na Babilónia: Mónica e Maria Benigna, de Aquilino Ribeiro Embora a obra de Aquilino Ribeiro não mantenha uns laços muito íntimos com o espaço urbano, é evidente que o tópico da cidade desempenha um papel fulcral em alguns romances inseridos no ambiente lisboeta e publicados na década de 30 e 40 do século XX. Este projeto estende-se nos dois romances publicados na década de 30, Maria Benigna (1933) e Mónica (1939), e dois dos anos 40, Lápides Partidas (1945), como continuação de A Via Sinuosa (1918), e O Arcanjo Negro (1947), como a continuação de Mónica. A problemática do espaço nas narrativas Maria Benigna (1933) e Lápides partidas (1945) foi já tratada, entre outros, por António Manuel Ferreira (2013/14), Serafina Martins (1999) e Aquilino Machado, Isabel André e Fernando Moreira (2016). No artigo “Em busca do espaço perdido: o romance Maria Benigna, de Aquilino Ribeiro” (2013/14), António Manuel Ferreira sublinha traços da relação campocidade, avançando a seguir com a análise minuciosa do comportamento bovarista, relacionado com o universo burguês feminino. No artigo intitulado “Percursos literários pelas vias da geografia libertária. Aquilino Ribeiro na Lisboa revolucionária: 1904 – 1908” (2016), os autores (Machado, André, Moreira) traçam, por sua vez, a topografia da Lisboa revolucionária e libertária do início do século XX, comparando a geografia lisboeta não só com as imagens urbanas aquilinianas mas, também, com os biografemas do próprio autor. O mesmo romance foi também analisado, em conjunto com A via sinuosa (1918), por Serafina Martins, com base no antagonismo cidade/campo. No artigo “A cidade e o campo, o futuro e a tradição em obras de Aquilino Ribeiro” (1999), a autora centra-se nas respostas afetivas do protagonista Libório Barradas relativamente aos dois espaços, dos quais o primeiro (a cidade) provoca sensações de tédio, desprezo por si, autocomiseração e de melancolia, enquanto o segundo (o campo) é constituído pelo apego às serras e aos valores tradicionais comunitários (cf. Martins, 1999, p. 64). No que se refere à própria cidade, neste caso Lisboa, Serafina Martins sublinha que o gosto pela cidade avulta em “impressões sensitivas” e que, na sensibilidade do protagonista, “chega a adquirir qualidades de um ser, de uma mulher que o atrai amorosamente” (Martins, 1999, p. 66). Ainda mais concretamente, a ensaísta aduz: “A mistura equívoca típica das grandes urbes aumenta-lhe a sensualidade, dando-lhe um envolvimento pecaminoso que agrada a Libório, rapaz novo, entregue a amores tão interditos e viciosos como a cidade que os propicia.” (Martins, 1999, p. 66). São precisamente estes traços que impõem à cidade o seu caráter de 182 sedução e maldição e que constituem mais uma “face” da capital, revelada na ficção urbana portuguesa. Apesar de Maria Benigna coincidir, pelo seu tema do bovarismo (cf. Ferreira, 2013/14), com o famoso romance queirosiano,179 a axiologia intrínseca à obra aquiliniana não recupera a crítica convencional, mesmo que perspicaz, do autor oitocentista. As personagens aquilinianas, envolvidas na relação amorosa em questão, não só conseguem ultrapassar as suas sombras queirosianas, como também atingem, através da própria escrita terapêutica e recuperadora, uma dimensão muito mais humana e complexa.180 No que diz respeito ao tema da paixão no romance Maria Benigna, reenvio ao referido artigo de António Manuel Ferreira que, entre outros assuntos, discorre sobre a inserção do tema da paixão na tradição ocidental, iniciada na Antiguidade pela poesia de Safo e Catulo, e percorrendo os séculos na expressão de uma paixão como sofrimento, a que o fundo místico-eucarístico propicia um sentido aglutinador. Para argumentar em prol desta interpretação, Ferreira cita as opiniões do já canónico Denis de Rougemont (“O que exalta o lirismo ocidental não é o prazer dos sentidos nem a paz fecunda do casal. É menos o amor realizado que a paixão de amor. E paixão significa sofrimento.” Rougemont, 1989 apud Ferreira, 2013/14, p. 99). Adicione-se, a este respeito, que o protagonismo feminino na expressão escrita da paixão amorosa (desconcertante e desiludida) evoca também, irresistivelmente, as famosíssimas Cartas portuguesas, como já foi observado por Isabel Cristina Pinto Mateus (1999). O tema de Mónica é, por sua vez, bem diferente, uma vez que se preocupa, conforme o autor, com o problema do envelhecimento (cf. Ferreira, 2013/14). Enquanto no primeiro romance seguimos a via crucis amorosa da protagonista feminina, no segundo romance apresenta-se, por certo, um desenvolver de uma relação também amorosa, mas desta vez centrada nos tormentos da personagem masculina. Com efeito, o romance Mónica, embora com o nome feminino no título, é protagonizado pelo personagem de Ricardo Tavarede, em que a mística amorosa revela o lado masculino: a galanteria digna de 179 Convém salientar que ambos os romances aquilinianos, aqui tratados, evocam o universo ficcional de Eça de Queirós. A este respeito, António Manuel Ferreira já observou que a problemática (“o bovarismo”) e personagens femininas de Maria Benigna se assemelham ao romance O primo Basílio. Junte-se, a esta reflexão, mais um paralelo, desta vez entre o romance aquiliniano e o conto queirosiano “No moinho”: no final de dois textos, com efeito, a desiludida (e sensualmente excitada) protagonista opta por um novo amante, o reverso grotesco do seu amado. Curiosamente, até a profissão e nome dos homens fatais destas duas “Marias” (Maria Benigna e Maria da Piedade) é quase idêntico (Adriano/Adrião, os dois sendo autores de prosas com tramas sentimentais). No romance Mónica, um paralelismo com a obra queirosiana poderia ser visto no retrato de personagens secundárias (Basílio, Vítor, mestra alemã), caricaturas da estupidez e hipocrisia. 180 O conceito do “bovarismo” pode ser neste romance problematizado, desde que se leve em consideração a própria condição feminina. Maria Benigna sublinha várias vezes que vive numa relação matrimonial ineficaz, indiferente e até hostil. Por isso, o arrebatamento da personagem, nutrido pelas leituras acríticas, pode parecer um tanto exagerado, mas também não é incompreensível. 183 cavaleiros medievais, olhares, timidez, quixotismo. O erotismo oscila entre a volúpia e excitação amorosa espiritual, a que a referência explícita ao poema “Noche Oscura” de S. Juan de la Cruz dá a expressão.181 A história do romance Mónica passa-se, como já foi referido, em Lisboa, no início do século XX (década de 20), no seio de uma família burguesa. Afonso Ruas, o mestre de obras, que, ao ganhar uma certa fortuna, entra nos meios de pequenos proprietários lisboetas. É uma figura pouco interessante, de mentalidade limitada, pequeno-burguesa, convencional e mesquinha. Junto com a sua mulher Carma, modesta e inexpressiva, tem uma herdeira, Mónica, adolescente em tudo correspondente à imagem de uma menina burguesa normal, sem caraterísticas que a elevassem a uma heroína rara ou extraordinária. Educada de uma forma perfeitamente em sintonia com o seu estatuto, com acento para a música (sabe tocar piano) e línguas, como era de esperar para a posição na sociedade a que se destinava (como menina rica não ambicionava muito mais para além de ser bem casada). A casa de Afonso Ruas é frequentada, em especial, por dois hóspedes assíduos: Basílio, o capitão do Ultramar, figura caricata de um tradicionalista e monárquico obsoleto, e Ricardo Tavarede, advogado, que se torna, de facto, o herói do romance, em vez da figura titular de Mónica. As relações entre as personagens assentam, basicamente, no antagonismo destes dois hóspedes, Basílio e Ricardo, dos quais o primeiro se apresenta como um hipócrita, astuto e calculista, secretamente envolvido na relação íntima com a Fräulein Rottenberg, educadora de Mónica, mulher feia e áspera ao modo da Juliana queirosiana, e o segundo, encarnando próprios ideais de Aquilino, se mostra como um liberal à velha maneira romântica, de caráter e talento.182 O pomo de discórdia entre os dois corresponde à menina de Ruas, Mónica, mimada e abonecada, a qual é 181 Logo após a publicação, a crítica literária/académica da época emitiu opiniões bastante embaraçadas no que diz respeito à trama romanesca, personagens e diálogos que, supostamente, não correspondiam à psicologia que se pretendia para as personagens envolvidas no enredo. João Gaspar Simões, autor e crítico literário pertencente à geração de Presença, condenou explicitamente o romance pela “inverosimilhança da intriga” e “carência de naturalidade” dos diálogos (Ribeiro, s/d, pp. 300-301), a que Aquilino Ribeiro responde, justificando pertinentemente a sua posição. Esta polémica, também já comentada por António Manuel Ferreira (2013/14) e José Carlos Seabra Pereira (2014, p. 211), é registada no volume aquiliniano Abóboras no telhado. Em 1960, contudo, em que se deu a candidatura de Aquilino Ribeiro ao Prémio Nobel, João Gaspar Simões confessa o seu erro cometido “de boa fé”, afirmando a reconquista da amizade perdida e admiração pela obra do autor de Mónica (Simões, 1999, p. 83). 182 Os amores secretos de Fräulein Rottenberg e Basílio evocam aqueles de Dona Felicidade relativamente ao Conselheiro Acácio de O primo Basílio de Eça de Queirós. O envolvimento apaixonado dessas duas figuras, tratadas pelo narrador com a máxima antipatia a sarcasmo, é ainda mais que em Eça descrito de modo grotesco: “O Basílio, pelo contrário, era objecto das graças mais sedutoras da alemã. Com ele derretia-se em sorrisos e amenidades. Ricardo surpreendera-a já a segui-lo de olhos lânguidos, olhos que segredavam uma paixão romanesca e wertheriana. O Basílio tarimbeiro, viúvo e boçal, correspondia-lhe com iguais extremos, em aparência se não em sinceridade. Sentia-se em formação o idílio gramático-militar. Não se opunha o ser ela um patenteadíssimo tanado prussiano, pois que a ele, por sua vez, faltava-lhe muito para apolíneo. Além de fedorento era desdentado, gebo, viloso, mas duma lã de ovelha arruçada e crespa, e tinha mãos torpes e sapudas de batráquio.” (Ribeiro, 1985a, p. 133). 184 preterida por Vítor, filho de Basílio, jovem cadete peralva e estúpido, e o próprio Ricardo que, embora possa brilhar, na sua meia idade, pela inteligência e charme pessoal, não se pode orgulhar da sua fortuna, precária e bastante instável. Apesar disso, a paixão de Ricardo por Mónica é genuína e, ao contrário da opinião geral, não assenta na cobiça de conquistar a rica herdeira, mas, simplesmente, num desejo irracional por uma juventude e beleza primaveril. Assim, por ser um mero objeto de interesse/paixão, Mónica não pode ascender a uma verdadeira heroína. Para isso, falta-lhe a substância e psicologia complexa. Ainda por cima, o narrador nunca entra no seu interior, para seguir os seus sentimenos mais íntimos, apresentando Mónica, de facto, só na sua exterioridade pouco estimulante. O desenvolvimento da trama principal, que se apresenta no romance, consiste na realização de um sonho que, em forma de cliché, animava muitas obras romântico-sentimentais, o rapto da menina. A coragem do autor de inserir na trama um motivo tão esquemático, contudo, demonstra a absoluta liberdade demiúrgica que se contrapõe às escolas literárias e estéticas influenciadoras. O motivo do rapto, que já era idealizado no romantismo e ridicularizado no realismo, em Aquilino Ribeiro é, somente, retratado nas suas consequências previstas, numa desilusão, quando o primeiro encanto do gesto proibido é consumado, e numa histeria que ataca tanto Mónica, por sentir solidão e falta dos pais, como Ricardo, por achar longo o tempo que os pais de Mónica precisam para aceitar o casamento dos dois. No fundo, trata-se de um projeto falhado porque, no século XX, já não é possível reger-se por ideais românticos. Ricardo é um D. Quixote tardio, em ruptura com uma sociedade mais pronta em apostar nos cálculos bancários que num cavaleirismo tresloucado. Aquilino Ribeiro, todavia, não ridiculariza esta personagem, não se situa contra o romantismo como tal, e com esta atitude, afasta-se de facto de tudo o que era considerado moderno na altura, seja do psicologismo freudiano, seja do neorrealismo, entretanto formado e demasiado empenhado nos assuntos sociais.183 5.3.1. O imaginário cataclísmico 183 Os sintomas do romantismo de Ricardo encontram-se dispersos por todo o romance: p.ex. “Seria aquele homem que por duas ou três vezes surpreendera a olhar para ela com olhos fixos, olhos como nunca vira, de fogo e veludo ao mesmo tempo?” (1985a, p. 35), “Era distinto e circunspecto sem perder o vício congénito, romantismo.” (1985a, p. 37), “Íntimo na casa, certo dia declarou Ricardo a Mónica num olhar tímido, quase esquivo, que a amava. (...) Sobretudo era melancólico, compreendendo Mónica que ele a amava com o que de mais caro e religioso havia em sua alma, mas sem coragem.” (1985a, p. 41). É evidente que esta paixão não se baseia nos postulados psicanalíticos ou afins mas, unicamente, numa longa tradição da mística amorosa, conhecida já do trovadorismo medieval e assente, principalmente, nos olhares lânguidos e tímidos. Para além disso, ao longo de toda a intriga, Ricardo oscila entre uma timidez extrema, se bem que terna e amorosa, e uma impetuosidade impositiva, marca da sua vontade, afinal, forte e decisiva. Não me parece, contudo, que esta, por vezes brusca, mudança de gestos e atitudes transmita a sensação de inverosimilhança. Antes pelo contrário, assiste-se a uma personagem, cujas contradições podem traduzir uma certa complexidade humana, e masculina por excelência. 185 O arquétipo da Babilónia, conectado com o imaginário urbano, é na obra aquiliniana evocado com alguma insistência. Repare-se, logo, no título da coletânea de novelas urbanas de 1920 (Filhas da Babilónia), nas quais a invocação à Babilónia constitui-se como um cenário de relações amorosas não resolvidas, quiçá configuradas precisamente pelo espírito da modernidade e o seu impulso para um constante processo de (des)construção. Já no seu volume de contos de estreia (Jardim das tormentas, 1913), Aquilino Ribeiro inseriu o conto “A inversão sentimental” que se passa em Paris, nos cenários típicos, desde Le Quai até Le Jardin du Luxembourg, a que se junta uma quantidade de templos, cuja escolha, apesar de tudo, foge ao estereótipo parisinese (no conto são referidas igrejas menos conhecidas como Saint-Etiennedu-Mont, Saint-Julien-le-Pauvre ou Saint-Séverin etc.). A cidade no seu aspeto “babilónico” é observada pelo narrador a partir da sua janela na Place Sainte-Geneviève, perspetiva que lhe proporciona uma visão panorâmica sobre o Panthéon de “cunhais babilónicos e tiara de colunas” (Ribeiro, 1977, p. 53), a igreja de Saint-Etienne-du-Mont e vários prédios. Esta visão abrangente e sobranceira da cidade, percorrida exaustivamente num impulso involuntário de conquista amorosa, corresponde também à perspetiva masculina que conduz a narrativa do conto. O feminino vinculado à cidade e às suas representantes, Hélia e Ninette, duas raparigas que exercem atração sobre o narrador, é portanto dominado pela força do olhar masculino, admirador e galante.184 Mas a Paris do início do século XX, descrita nas cartas que Aquilino Ribeiro enviava da capital francesa em 1909, aparece também como uma cidade de contrastes que evoca tanto as imagens baudelairianas, como o imaginário lisboeta de Fialho, Brandão e Cesário Verde. Recorde-se, a propósito, que foi sobretudo nos fins de oitocentos, e mais especificamente na obra de Fialho de Almeida (Cidade de vício, 1880), que Lisboa era comparada a uma Babilónia, necrópole, cidade do vício e de uma atração ambígua.185 E apesar de a obra de Aquilino, como 184 Aquilino Ribeiro, como ele próprio elucida, morou na R. Descartes, no mesmo lugar indicado pelo narrador no conto. Também outros sítios aqui referidos eram pessoalmente conhecidos do escritor, como sabemos das suas memórias (veja-se em Abóboras no telhado). Relacionada com este assunto, surge a pergunta em que medida pode ser considerada a própria capital portuguesa como “babilónica”, uma vez que a libertinagem, de corte parisiense, não parece ser um traço que se ajuste à vida lisboeta. Atente-se nas seguintes observações da personagem de António César de Melo de Maria Benigna no que diz respeito às diferenças entre a vida parisiense e lisboeta: “Agora portuguesinha que rompe com a etiqueta do sexo e com a crosta rija dos preconceitos, se não se trata de impostura ou doida varrida, é deusa” (1985b, p. 6) “Em Paris, nos tempos do nosso tempo, sim, eram frequentes os sucessos deste género. (...) Chalrava-se; a parisiense da época era ingénua e curiosa; nós éramos galos doidos e românticos; acabava e recém-vinda por passar ali a noite. Na linguagem dos cacassenos, que viram Paris por um óculo, chamava-se, com intonação babilónica, a episódios destes, irem as raparigas ter com os rapazes à cama.” (1985b, pp. 6-7). 185 Não é sem interesse que Babilónia, tal como Lisboa e Roma, era uma cidade construída em sete colinas. Este atributo, com efeito, ajuda a criar paralelismos entre as três cidades. 186 se sabe, ser aversa a qualquer tipo de crítica moral, distinguindo-se neste aspeto dos autores oitocentistas, a metáfora da cidade babilónica está nela presente, atestando vários significados que lhe possam ser atribuídos.186 Repare-se como o autor beirão descreve a atmosfera parisiense, de telhados e chaminés: “Todas elas, a esta hora com 7 graus abaixo de zero, vomitam cobras negras, cordas de cinza, que se agarram às cornijas, rastejam pelos telhados e tecem sobre Paris uma floresta onde à noite o reverbero do gás se vem projectar como numa abóbada” (Ribeiro, 2004, p. 78)187 . Esta paisagem, com efeito, faz lembrar o espaço urbano, fechado e bloqueado por muros e chaminés, tal como aparece em Os pobres de Raul Brandão. Aqui, mesmo que a atmosfera descrita possa sugerir, inicialmente, a ideia de um calor acolhedor que se imagina dentro das casas aquecidas no inverno, a carta prossegue num tom que não deixa dúvidas acerca da imagem afinal irónica que se pretende comunicar porque assenta na ideia de um “comércio” de misericórdia, assegurada por vários “asilos, casas de correcção, hospícios, o Dépôt preventivo, Saint-Lazare preventivo, a Santé bem mobilada e o Aljube misericordioso” (Ribeiro, 2004, p. 78). Por isso, o autor assume ironicamente: “Em suma, para as misérias de Paris há uma providência pluriforme na ronda heterogénea do Sr. Arcebispo, de Mr. Briand, da baronesa de Rothschild, de Léon Bourgeois, o simpático senador.” (Ribeiro, 2004, p. 78). Portanto, tal como Fialho de Almeida e Raul Brandão apontavam para o monstro urbano, de enfermarias cheias de pobres que poucas vezes acabam por ver o nascer do sol, de passeios cheios de prostitutas forçadas ao ofício por escassez de meios financeiros, de mendigos que rondam a noite lisboeta, Aquilino Ribeiro resume, categoricamente: “Paris suicida-se, morre à fome, prostitui-se, assassina por pão, enquanto as asas do anjo da caridade passam, as damas tocam o cravo em récitas para os pobres, o arcebispo agita a sua campainha pastoral, lá do alto, de onde se vêem na planície infinita das casas as chaminés que estão acesas e as chaminés que estão apagadas.” (Ribeiro, 2004, p. 79). Esta imagem do espaço urbano, assente na hipocrisia, corrupção e ambições desenfreadas, transfere-se também parcialmente para o cenário lisboeta dos anos 20, em que se insere a trama de Mónica. Neste romance, de facto, a referência explícita à Babilónia surge várias vezes, correspondendo o seu significado, em geral, ao tipo de vida urbana levado pela burguesia abastada.188 Em princípio, este estilo de vida “babilónica” prende-se com uma espécie de 186 Embora aqui seja analisado somente o espaço urbano lisboeta, é preciso não esquecer que Aquilino, noutras obras, aborda de preferência o espaço referente à cidade de Viseu. Inclusive, chama este espaço a “Babilónia viseense” (Sousa, 2012, p. 42). Sobre esta questão veja-se o ensaio de Martim de Gouveia e Sousa (2012) que traça um roteiro pelos lugares aquilinianos. 187 A carta de Paris, publicada originalmente em “A Beira”, Viseu, nº 259, 21 de dezembro de 1909. 188 Repare-se, por exemplo, na seguinte ideia no que diz respeito à relação do capitão Basílio, conservador e hipócrita, para com o burguês recém-enriquecido, mestre de obras, Afonso Ruas: “Mediante as suas relações 187 dissimulação, encenada ao modo de um palco teatral, que pode ser desvelada só em raros momentos em que os seus atores saem do palco para os bastidores, tirando as suas máscaras e desnudando-se na sua verdade íntima. É o que pode ser observado num espaço resguardado como é um saguão lisboeta: Ainda havia sol, e sacudindo a sonolência, sentou-se à janela, não tão ostensivamente que desse nas vistas, a estudar o saguão, certo de que algum tempo o teria para pano de fundo no teatro da sua vida. Aquele, entalado na ala oriental do prédio por uma singularidade arquitectónica, pois que o restante das traseiras olhava a céu aberto, era, igual a todos os saguões de Lisboa, um imundo e estreito pulmão de tísico. Mas estava longe, como palco, de poder comparar-se aos outros da Baixa, em cujos balcões ou terraços, empoleirados uns por cima dos outros, se pode abiscoitar a Lisboa sintética das sete colinas, dos sete pecados capitais e das sete virtudes contrárias. (1985a, p. 152) As metáforas relacionadas ao universo teatral (palco, teatro da sua vida, pano de fundo), com efeito, acentuam precisamente essa propensão à representação, agora virada do avesso, já que Ricardo Tavarede, ao observar o saguão como se fosse uma peça da vida lisboeta, penetra com o seu olhar intimidante nos segredos, que se desejam ocultos, não revelados publicamente. Por isso, o saguão é uma parte do espaço urbano que oferece uma outra perspetiva do meio social: O saguão era Lisboa em fralda, sincero como uma floresta à meia-noite. Todos os bichos vinham a campo, autênticos sem natureza própria, como se assim o determinasse um contra-regra, ou então porque tão elementar habitat não suportava o artifício. O careca surgia sem capachinho, a madama sem se pintar, o poeta em meias rotas, o eclesiástico sem cabeção. E todos usavam de linguagem proporcional, sem velaturas a criada do Primeiro que insultava a patroa do Segundo, a patroa do Segundo que falava como qualquer guarda municipal das senhoras do Quarto. Depois nem a miséria, nem o vício se disfarçavam ali. O saguão era mais que um teatro, as entranhas do teatro, babilónia de avesso. (1985a, p. 160, sublinhado meu) Esta “peça” imaginária, representada perante o espetador insuspeitado, Ricardo Tavarede, evoca irresistivelmente Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente, em que os recém-falecidos desvelam a sua própria natureza reles, quando já perderam todas as esperanças de subir a bordo da Barca do Paraíso. Precisamente por isso a revista, na qual Ricardo publica os seus artigos empenhados de crítica político-social, tem o título vicentino Barca do Inferno. Reconhece-se, oficiais pôde resolver um ou outro problema comezinho do Ruas em matéria de inquilinato e ajudá-los na jubilação de ricaços a alterar os hábitos mazombos que haviam trazido de Carvalhal do Pombo e resistiam cascudamente a meio século de Babilónia.” (1985a, p.18, sublinhado meu) 188 portanto, que a verdadeira Lisboa babilónica é essa que se mostra, exibe e ostenta, que vive da pose, aplauso e admiração. Por isso, também, a parte lisboeta mais babilónica corresponde, no imaginário aquiliniano, ao Chiado, sinédoque de uma Lisboa chique e elegante.189 Mas apesar de a metáfora da Babilónia se referir, maliciosamente, ao universo feminino, este não é de todo criticado em Aquilino. Ao contrário, o que parece fustigado nos romances aquilinianos, é aquele universo social que se alimenta da mentira, hipocrisia e/ou corrupção e cujos representantes exemplares são os figurões repelentes como o capitão Basílio, manipulador sem escrúpulos, e o seu filho Vítor, do romance Mónica. Mais um aspeto vinculado ao arquétipo da Babilónia pode ser descoberto no romance Mónica, aquele que se prende à personagem de Afonso Ruas, mestre de obras recémenriquecido, obsessionado pelo espetro do terramoto (“Porque um dos temas constantes da sua emoção consistia no hipotético tremor de terra que havia de subverter a capital, derrubando como castelos de cartas a babilónia dos gaioleiros.”, 1985ª, p. 7, sublinhado meu).190 A alusão ao terramoto evoca, evidentemente, o famoso Terramoto de Lisboa de 1755, mas veicula também, simultaneamente, todo o imaginário cataclísmico da tradição ocidental. Recorde-se que já no século XVIII, a seguir ao terramoto, foi publicado um rico material textual, documentário e reflexivo, que pretendeu esclarecer as causas desse desastre sem precedentes na Europa de então. Teolinda Gersão, ensaísta e escritora fortemente interessada na questão olisipógrafa,191 já em 1989 reuniu vários textos portugueses e alemães da época que glosam os acontecimentos na Lisboa setecentista. Concentrando-se primordialmente nos textos sobre a 189 Também no romance Maria Benigna, António César de Melo refere-se ao Chiado, pensando precisamente nessa Lisboa galante, frequentada pelas mulheres e homens requintados: “estava longe do Chiado como da China (...) uma rapariga loira e alta, segundo é de estilo, espiritual, como convém a escritor, do mais esbelto que pisa no Chiado” (1985b, p. 5), “Esqueceu-se que o Chiado está a muita soma de léguas da sua serra” (1985b, p. 17). Adriano Valadares também afirma: “Gostei de Maria Benigna tanto quanto se pode gostar duma sadia, fresca e esbelta rapariga, das tais que passam e inflamam o Chiado.” (1985b, p. 54). Até Maria Benigna usa a mesma sinédoque: “Começo até a agradar-me de mim e a saborear com prazer a admiração que a minha pessoa desperta nos basbaques do Chiado.” (1985b, p. 127) Ao mesmo tempo, António César de Melo descobre, um tanto misoginamente, que esse espaço exibe caraterísticas teatrais, por ser “feminil” (1985b, p. 127), uma vez que “em geral, às mulheres desagrada verem-se tais quais são em realidade” (1985b, p. 14). 190 Repare-se no termo “gaioleiro” que conforme Infopédia significa, na gíria de arquitetura, um edifício (ou construtor de edifícios) de “fraca qualidade e elevada vulnerabilidade sísmica, caraterística das construções do fim do século XIX e início do século XX, resultante da deturpação do modelo da gaiola pombalina por supressão de certos elementos, utilização de materiais de fraca qualidade etc.” (Infopédia, https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/gaioleiro). Há também referências às gaiolas nos poemas de Cesário Verde, por exemplo, em “O sentimento dum ocidental“: “Semelham-se a gaiolas, com viveiros, / As edificações somente emadeiradas” (Verde, 1999, p. 98) ou no poema “Noite fechada”: “Recolheste-te, pálida e sozinha, / À gaiola do teu terceiro andar” (Verde, 1999, p. 85). É óbvio que a imagem da gaiola, em sentido geral, funciona neste contexto de modo metafórico, muito eficaz sobretudo na relação com a figura feminina. 191 Mencione-se sobretudo o seu romance A cidade de Ulisses (2011), exclusivamente centrado no imaginário urbano lisboeta. Referindo-se a vários mitos e fenómenos típicos da cultura lisboeta antiga e contemporânea, o romance, todavia, e quase “hereticamente”, evita explanações sobre o Terramoto. 189 “cidade imaginada”, caraterizada como “produto de um olhar menos objetivo, que se deixa tocar, ou até dominar, pela emoção – mesmo quando procura canalizá-la para um fim religioso ou moralista”, Gersão enumera, sintetizando, os vários aspetos referidos por autores da época, que confluem nas duas imagens de força, antitéticas: a magnificência e destruição (1989, p. 185).192 Importa referir, neste momento, que quase todos os textos da época, estudados pela ensaísta, coincidem na interpretação da catástrofe em conformidade com “esquema de culpa e castigo” (1989, p. 193), uma vez que “a culpa” da cidade de Lisboa era ter sido demasiado atraente, sensual, voluptuosa e, assim, “pecaminosa” (cf. 1989, p. 193).193 Sendo “comparada às cidades culpadas da Bíblia, Babilónia, Ninive, Sodoma, Gomorra, Jerusalém” (1989, p. 193), opera-se aqui a mesma lógica axiológica, segundo a qual o desastre correspondeu ao castigo divino. Uma outra linha de interpretação, proveniente em grande medida de certos meios filosóficos de origem francesa, afasta-se, contudo, desta imagística apocalíptica moral e religiosa, acentuando os aspetos racionalistas. A este respeito, Zygmunt Bauman refere as sugestões de Susan Neiman e Jean-Pierre Dupuy: Susan Neiman e Jean-Pierre Dupuy recentemente sugeriram que a rápida sucessão de terremoto, incêndio e maremoto que destruiu Lisboa em 1755 assinalou o início da moderna filosofia do mal. Os filósofos modernos separaram os desastres naturais dos males morais – e a diferença tornou-se precisamente a aleatoriedade daqueles (agora reclassificada como cegueira) e a intencionalidade ou premeditação destes. Neiman aponta que “desde Lisboa, os males naturais não têm nenhuma relação aparente com os males morais, já que não possuem mais significado algum” (Bauman, s/d, p. 58) A ideia a reter consiste na conceção da catástrofe como um desastre natural e aleatório, em contradição à opinião anteriormente mencionada, definida como uma punição de Deus. Mas não se fica por aqui, porque esta ideia é ainda desenvolvida noutra direção : Segundo Dupuy, foi paradoxalmente Jean-Jacques Rousseau quem fez soar o acorde mais moderno – ele que, devido a sua celebração da prístina sabedoria de tudo 192 Entre os aspetos da “magnificência” são referidas as seguintes imagens de Lisboa: cidade de origens e atributos míticos (Ulisses, o Tejo com a areia de ouro etc.), Cidade Eleita (a nova Jerusalém), cidade de uma beleza ímpar, com a conotação paradisíaca, cidade-coração-do-mundo (como centro de circulação), Cidade Rainha (com brilho, opulência e esplendor) e cidade como símbolo de totalidade (que reúne o que se encontra em quatro continentes) (Gersão, 1989, pp. 184-191). 193 Teolinda Gersão enumera o conjunto destes “pecados” como “excesso, luxo, impiedade, vaidade, orgulho, lascívia, doença, preguiça, peste, veneno” (1989, p. 193). Sintomaticamente, a cidade de Lisboa é assim, nos textos setecentistas, conotada com o “feminino”, isto é, aparece como “ligada ao campo não racional mas do instinto: prazer sobrepõe-se à utilidade, a fruição à produção, o instinto e a sensualidade à razão, o excesso à medida, o ócio ao trabalho” (1989, p. 193). Conforme a lógica da ordem masculina, portanto, esta “desordem” de teor feminino deve ser punida com a destruição (cf. 1989, p. 193). 190 que é “natural”, tem sido tomado com muita freqüência como um pensador pré e antimoderno. Em sua carta aberta a Voltaire, Rousseau insistiu que, se não o desastre de Lisboa em si, mas certamente suas conseqüências catastróficas e sua escala horripilante resultaram de falhas humanas, não da natureza (observem: falhas, não pecados – diferentemente de Deus, a natureza não tinha a faculdade de julgar a qualidade moral dos feitos humanos): produtos da miopia humana, não da cegueira da natureza; e da ambição terrena do homem, não da indiferença altiva da natureza. Se “os moradores daquela grande cidade tivessem se distribuído de modo mais equilibrado, e construído casas mais leves, os danos teriam sido muito menores, talvez até não ocorressem… E quantos infelizes perderam suas vidas na catástrofe porque quiseram recolher seus pertences – alguns seus documentos, outros seu dinheiro?” (Bauman, s/d, p. 58) A partir desta sugestão pode ser observado que Jean-Jacques Rousseau, já na altura, fez uso de uma inteligência iluminada e pragmática, desviando-se totalmente das discussões teológicas e metafísicas em favor da conceção racionalista, humanista. A acentuação de falhas humanas (e não de pecados, como é justamente sublinhado por Bauman) demonstra claramente que a origem do desastre pode ser (também) atribuída a uma questão puramente urbanística. É, basicamente, esta a linha de várias interpretações do imaginário cataclísmico, embora numa sequência inversa, que pode ser igualmente detetada no romance Mónica, como adiante se verá. A leitura preferida de Afonso Ruas é, por sinal, História universal dos terramotos que tem havido no mundo de Joachim Joseph, obra realmente existente e publicada em 1758, que aborda com um interesse particular as localidades atingidas pelo terramoto de 1755. Submerso na leitura e revivendo na fantasia o desastre, Afonso Ruas fica em todas as atividades a que se entrega dominado pelos receios de ondas sísmicas que possam abalroar a cidade mais uma vez. Por isso, também, seguiu atentamente a construção da sua casa na Avenida Duque de Loulé, assegurando-se especialmente do elevado grau de solidez e resistência dela (“Mas não respirava apenas soberba em seus umbrais, sentia-se em segurança persuadido com havê-la palpado pedra a pedra, tábua a tábua, quando fora construída, que não vinha abaixo com dois safanões.”, 1985a, p. 7). O pragmatismo como a expressão mental da classe pequeno-burguesa lisboeta, cujo representante Afonso Ruas sem dúvida é, incide naturalmente sobre a interpretação do cataclismo do ponto de vista físico-geológico, como um desastre natural. Tal obsessão é substancialmente fomentada pelo panorama da cidade que o mestre-de-obras tem ensejo de observar a partir da varanda da sua nova casa. A vista sobre a cidade, tipo de um postal, enquadra sempre a penha da Madalena e do Limoeiro, vista sobre o casario que desce para as margens do rio Tejo e um fundo verde da Outra Banda. Ocasionalmente, o olhar de Afonso Ruas regista ainda Rilhafoles, a ruína do Carmo, a lomba de S. Pedro de Alcântara ou “mar 191 revolto de telhados, desde Santa Catarina ao Castelo” (1985a, p. 148). Admirando o mesmo panorama da janela da casa do sogro, Ricardo Tavarede “compreendia que o Ruas magicasse quotidianamente no cataclismo ante o espectáculo, trágico e épico ao mesmo tempo, que ofereciam à sua alma simples os bairros marginais da cidade” (1985a, p. 148). Para além disso, os pavores do mestre-de-obras são também alimentados pelo arquiteto Alvarenga, seu amigo, o qual exprime dúvidas em relação à qualidade do trabalho de mestres-de-obras modernos, já esquecidos do desastre de 1755 e talvez já pouco conscientes do facto de Lisboa se encontrar numa zona sensível aos movimentos de terra. Diz Alvarenga ao seu amigo: “Lisboa está na linha de sismos. Mais dia, menos dia, estes bairros levantados pelos teus colegas de Tomar desabam como os castelos que os meninos armam na areia.” (1985a, p. 14). É curioso, porém, que apesar de aderir a esta posição, técnico-urbanista, Afonso Ruas matuta ainda sobre outros sentidos possíveis do desastre. Repare-se que, ao refletir sobre uma passagem do livro de Joachim Joseph que aborda a questão de ladrões e roubos, Afonso Ruas sente alguma perturbação interior, já anteriormente assinalada por um cismar sobre as próprias culpas (“Metendo na consciência a mão de mestre-de-obras, essa mão não lhe saía branca de culpas”, 1985a, p. 15).194 Deduz-se disto que, no fundo, também Afonso Ruas, embora prático e racional, sente de facto um pavor do desastre, como se este fosse a expressão da justiça divina pelos atos nem sempre honestos, decididamente cometidos por muitos novos-ricos aos quais Afonso Ruas pertencia (“vezes amiúde o Afonso se botava a imaginar o que seria a pavorosa catástrofe que lavra nas cidades como o arado de que fala o Profeta e não raro as sepulta tão adentro do coração da terra que só dali a séculos se dá conta delas ...”, 1985a, p. 15). Com efeito, no Apocalipse fala-se, entre outros, da classe de mercadores que enriqueceram à custa do poder de deleites babilónicos (Ap. 18). Nesta perspetiva, a referência a Afonso Ruas como a um “ilustre capitalista da nossa praça” (1985a, p. 45) ganha um significado profundamente irónico, senão mesmo caricatural, tal como se vê no retrato das figuras da Fräulein, Basílio e seu filho Vítor. Para apoiar esta leitura da personagem de Afonso Ruas, pode ser ainda citada uma passagem em que novamente ressoa a fina ironia aquilinina, sem discursos pedantes ou categóricos. Quando Afonso Ruas se dirige à redação da revista Barca de Inferno, dirigida por Ricardo Tavarede, para verificar a sua existência (desmentida por Basílio), oferece-se o seguinte curto diálogo: 194 Não é de menosprezar o facto de Afonso Ruas como mestre-de-obras pertencer ao setor da construção civil que já para Cesário Verde constituía o emblema do crescimento da cidade, junto com todos os seus aspetos negativos (recorde-se o poema cesariano “Desastre” de 1875, em que se refere um acidente de um dos pedreiros na construção dum prédio e o desinteresse da população, sobretudo do patrão e dos mais abastados, perante o ocorrido (cf. Macedo, 1986, pp. 90-94). 192 “– É aqui a Barca do Inferno? A dama não se dignou ouvir, o escriba; sem despegar da tarefa nem erguer a cabeça, ao cabo dum bom momento lá respondeu: – É aqui, sim senhor, que deseja? Pareceu-lhe que ouvira já aquela voz. Mas que raio da pergunta...?” (Ribeiro, 1985a, p. 63-64) A intertextualidade com a peça de Gil Vicente gera, novamente, significados laterais que aprofundam a caraterística da personagem. Involuntariamente, Afonso Ruas assume-se na lista dos passageiros que, na peça vicentina, procuram as barcas e, sendo rejeitadas pelo Anjo da Barca do Paraíso, se dirigem resignadamente para a do Inferno. Afonso Ruas sabe, intuitivamente, que pertence a esta Barca, portanto toda a situação está a repetir aquilo que todos sabem há muito tempo. A ambiguidade da pergunta do escriba, bem como a ativação da memória (“Pareceu-lhe que ouvira já aquela voz. Mas que raio da pergunta...?”) implicam a leitura dúplice (double coding), ao modo da ironia intertextual, formulada por Umberto Eco (2004). A esta luz, Afonso Ruas é focado desde o início como um homem demasiadamente apegado aos bens materiais, cobiçados com demasiada energia e egoísmo, facto que o levará, junto com outros “ladrões”, ao verdadeiro inferno.195 Deste modo, também, Afonso Ruas se enquadra entre as personagens aquilinianas, retratadas pelo autor com a “potência sombria que no fundo essencializa o humano e contra a qual quase nada significam o auto-domínio e a educação”, como diz Serafina Martins (2019, p. 97).196 Na lógica do romance, todavia, o desastre que realmente se abate sem aviso contra a casa do mestre-de-obras corresponde ao rapto de Mónica por Ricardo Tavarede. Este é também o segundo significado de cataclismo, definido como alteração para pior na vida de alguém, a tragédia.197 Talvez, precisamente, por esse espetro do desastre, Afonso Ruas reaja ao caso da sua filha com uma atitude excessivamente hostil, opondo-se categoricamente a qualquer reconciliação. 195 Esta referência intertextual antecipa o suspiro do narrador do romance O Delfim (1968), de José Cardoso Pires, ao observar o casal Palma Bravo: “Sigo-o de perto, atravessando a multidão (...) Só que me demorei demasiado com coisas à margem, fantasmas, questões de café – e, com tudo isto, o nosso homem já está ao volante do carro. A seu lado, Maria das Mercês, jovem esposa; atrás, o criado mestiço entre dois mastins. “A Barca do Inferno” – resumo da minha janela, pensando no triste fim que os espera. (Pires, 1993, p. 43). Também Afonso Ruas pode esperar um triste fim no romance O arcanjo negro, continuação de Mónica, em que Ruas morre devido ao ataque que sofre quando verifica que o dinheiro da sua conta bancária foi roubado. 196 Serafina Martins explica: “O homem ávido por dinheiro, por ouro (Terras do Demo, 1919), por volfrâmio, por um tesouro fabuloso (Batalha sem fim, 1931), por sexo e comida (ainda Terras do Demo), pelo domínio sobre uma mulher (O arcanjo negro, 1947) constituem aquilo a que poderíamos chamar uma arqui-personagem da ficção aquiliniana, toda ela atravessada por personagens fortíssimas e episódios que podem marcar os leitores profundamente.” (2019, p. 97). 197 Definição conforme Dicionário Priberam. 193 Há ainda um terceiro significado de cataclismo, fundamental no romance Mónica, que é compreendido como a modificação significativa na organização de uma sociedade,198 . Situado na cidade de Lisboa dos anos 20, este romance, nas palavras de José Carlos Seabra Pereira, “[t]raça (...) a cartografia da República jacobina (...) em confronto com a expansão do Integralismo neomonárquico e com a nova vaga, autoritária se não fascizante, do Nacionalismo - a vaga do ‘Portugal Maior’ e do discurso ‘lusíada’ doravante sob os ventos da ‘Nova Ordem’ (Pereira, 2014, p. 142). Recorde-se que já no conto “A Revolução”, escrito em França em 1912 e inserido na coletânea de contos de estreia (Jardim das tormentas), Aquilino Ribeiro desenvolveu o tema do cataclismo que destrói a sociedade, enriquecendo, assim, o imaginário tradicional referente ao mito da Atlântida e, simultaneamente, ao tópico da utopia. Neste conto, como já a propósito observei,199 Aquilino opta por uma inovação quanto à abordagem da Atlântida, pois ao contrário do tratamento tradicional, no rasto de Platão, Aquilino apresenta uma ilha após um cataclismo que destruiu parte substancial da terra. Esta ilha, parte serrana da terra submersa que como única conseguiu escapar à catástrofe natural, atualiza a tradição do género utópico, oferecendo um retrato de uma comunidade harmoniosa e fraternal.200 Repercussões desta ideia de teor sócio-político, lançada já em 1913, encontram-se também no romance Mónica.201 Já afirmei que o próprio imaginário cataclísmico, mentalmente 198 Conforme Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa podemos verificar os seguintes significados: 1. Inundação ou dilúvio de grandes proporções, 2. Transformação brusca e violenta de crosta terrestre, convulsão geológica, 3. Desastre de grandes proporções e consequências, 4. Convulsão social, série de transformações sociais bruscas e de grande amplitude. 199 Veja-se o meu ensaio “A imagem da Atlântida no conto ‘A Revolução’, de Aquilino Ribeiro” (2016). 200 Como já observei no artigo referente ao conto “A Revolução”, a comunidade descrita neste conto aquiliniano não precisa de leis nem de hierarquia social para manter uma harmonia intrínseca, sustentando, assim, uma vaga ideia de socialismo (fraternidade, igualdade) e de anarquia (renúncia ao edifício social e à jurisprudência). A comunidade irmanada quanto à sua condição, deixa-se orientar por um instinto que, no ideário aquiliniano, adquire atributos de vitalismo neorromântico. Para além disso, os habitantes da comunidade são bons, porque purificados por um sofrer excessivo. Consequentemente, gera-se uma nova consciência humana, uma nova moral que instaura um novo ciclo civilizacional. Assim, a ilha aquiliniana não corresponde aos tratados inaugurais de visão utópica, escritos no período renascentista, como era Utopia de Thomas More ou Cidade do sol de Tommaso Campanella, mas assenta bem no contexto dos projetos de um socialismo utópico que se expandiram a partir do século XVIII e cujo precursor foi Étienne Gabriel Morelly. Recorde-se que, nos seus tratados publicados anonimamente, Morelly retratava uma comunidade surgida após um terramoto que vitimou quase todos os habitantes da terra, dominados pela inveja e egoísmo. Além disso, Aquilino talvez tenha sido também influenciado pela difusão e popularidade desse tema em França (nas obras de Émile Zola, Anatole Franc etc.), onde viveu aquando da escrita do conto. 201 Muito pervasivas tornam-se estas repercussões também no romance Lápides partidas (1945) que trata sobre as perpécias de Libório Barradas, alter ego do próprio Aquilino enquanto jovem inteletual e revolucionário. É também neste romance que o espaço urbano, não alegórico mas já concreto e bem definido, ganha um papel fundamental. A história passa-se em Lisboa, no início do século XX, onde nos deparamos, conforme Machado, André e Moreira, “com um homem atento aos ventos de mudança que espessavam as latitudes revolucionárias das primeiras décadas do século XX, e que assentavam numa plêiade de ideais utópicos ligados à construção de uma sociedade mais justa e fraterna” (Machado, André, Moreira, 2016, p. 13). Desenvolvendo a cartografia da Lisboa revolucionário-libertária, Machado, André e Moreira põem acento em certos sítios emblemáticos, como alguns cafés “dispostos em torno do Rossio, fervilhantes de visões e simples opiniões utópicas prenunciadoras de intensas 194 ressuscitado por Afonso Ruas, ganha duplo significado como catástrofe natural, aleatória ou suscitada pelos erros urbanísticos, e também como uma punição, regida por uma força superior. Neste sentido, a referência à Babilónia envolve-se num simbolismo bíblico, com base no qual a capital portuguesa ganha o atributo de uma urbe maldita. Mas é sobretudo no olhar de Ricardo Tavarede, e não no de Afonso Ruas, demasiado preocupado consigo próprio, que o simbolismo de Babilónia, cidade condenada, se estende a todos os setores da vida social. Na semântica do romance Mónica, com efeito, a cidade antes de tudo corre o perigo de se tornar realmente degradada, por imposição das forças militares. Precisamente no momento da entrada de elementos militares na cidade, Ricardo percebe que se instaura “uma era nova para a pobre terra governada como nenhum hortelão faria à sua horta nem almocreve à sua besta” (Ribeiro, 1985a, p. 181). Este é o significado do imaginário apocalíptico, com o mal do egotismo, vaidade e cobiça, combatidos por um punhado de idealistas como Ricardo, que se reflete em toda a sociedade urbana e que é retratado no romance. A cidade, por extensão, torna-se não só metonímia de todo o país, mas também da própria República, agora dominada por uma força autoritária. Na história de Mónica, assim, o feminino titular desdobra-se na imagem da cidade e na imagem da República, existindo até um vínculo evidente entre esta e a personagem feminina, uma vez que são ambas retratadas como jovens, inexperientes, necessitadas da liberdade e do tempo suficiente para amadurecer.202 Nesta conjunção de fatores, a degradação total pode ser evitada só por meio da fuga à cidade, no sentido literal e metafórico, procurando os princípios salutares que ainda poderiam animar a vida humana. 5.3.2. Fuga para os jardins do Éden Na novela Páscoa feliz, de José Rodrigues Miguéis, observamos que, no final da história, o protagonista-narrador procura evadir-se da cidade. A vontade de se afastar da cidade é nele instintiva porque os seus pais vieram para Lisboa da província e a sua tragédia, bem como a de Renato, está relacionada com este processo de migração. O desejo do narrador, já mentalmente alienado e entorpecido, parece então consistir no regresso ao campo, à origem, à paz. Neste destino, aproxima-se do protagonista do conto “Anjo” (Caminhos magnéticos) de Branquinho mudanças” (2016, p. 13) e certas zonas urbanas (p. ex. Avenida D. Amélia, Largo do Chile, Arroios etc. cf. 2016, p. 14). 202 Repare-se na seguinte imagem da República/rapariga: “A República era zaragateira, desordenada, impulsiva, fazia e desfazia, dizia e desdizia, queria e não sabia querer, não houvesse dúvida. (...) Porque era menina tinha seiva, energias mal domadas, tontarias. Mas deixassem-na evoluir, limpar-se das impurezas que trouxera da placenta, e seria nela que a raça havia de encontrar os fundamentos bio-sociais e o seu estatuto jurídico.” (Ribeiro, 1985a, p. 171) 195 da Fonseca, que foge da cidade após a evasão da prisão. A este propósito, Marcelo Pacheco Soares, num excelente artigo sobre esta questão, elucida que … no movimento final do personagem, delimitam-se dois espaços bem marcados: enquanto um apresenta como cenário a urbe da qual Amorim escapara, o outro, em que ele se refugiara, revela-se um local mais apartado, ocupado pela natureza e aparentemente sem características citadinas, embora em instante algum a cidade saia do seu ângulo de visão. (Soares, 2017, p. 69) Com efeito, a cidade está sempre presente, mesmo na natureza a que Amorim se refugia. Podemos, portanto, concordar com Marcelo Pacheco Soares em que “tudo que Amorim realmente vê seriam as luzes da cidade que brilhavam ao longe, amontoadas, conforme logo se descreve, as quais funcionam como metonímia do próprio espaço urbano e de seus significados” (2017, p. 69). O seu afastamento da cidade é, assim, apenas ilusório (cf. Soares, 2017, p. 69). Neste sentido, é possível adicionar que a cidade não só está sempre presente, por meio de luzes, na retina do protagonista, mas estabelece com ele um vínculo sombrio, irracional. Este tipo de duplicidade aparece nalgumas histórias, mesmo contemporâneas, que abordam a relação íntima entre o espírito do lugar e a monstruosidade (como se vê, por exemplo, no romance inglês The casebook of Frankenstein de Peter Ackroyd), e aparece também, como vimos, na novela migueisiana, em que a neurose do protagonista se reflete na representação da cidade. Por isso, Renato é, tal como os personagens de Branquinho da Fonseca e Ackroyd, “apanhado” pela cidade, por fazer parte dela. Mas o seu destino não é sórdido porque, como já ficou assinalado, Renato encontra a sua paz dentro de um hospício que ele considera ser prisão. Nem se revolta contra o facto despersonalizador e humilhante de figurar, apenas, como um número. Recorde-se ainda, a este propósito, que na crónica “Vivo ainda” (1891),203 Raul Brandão refletiu sobre os traços distópicos da cidade em contraste com o campo, relevando sobretudo o poder urbano em despersonalizar o ser humano, em privá-lo de tudo que faz dele um indivíduo único e irrepetível. O espaço em que Brandão coloca a sua personagem corresponde ao hospital como um espaço mais degradador possível porque este, na altura, era precisamente um dos lugares mais lúgubres. Funcionando como a metonímia da própria urbe, o hospital destitui o paciente do nome, condenando-o ao anonimato, um mero dado de estatística. Por isso, o personagem brandoniano, identificado com o número 25, ao enfrentar a terrível angústia de ser enterrado vivo, redobra todas as suas forças para que possa ser transladado para a sua casa no campo, no seio da família, onde pode, finalmente, morrer de boa morte, apaziguadora: “Saiu do 203 Texto publicado pela primeira vez em Revista Ilustrada, n.º 19, 15 de Janeiro de 1891, pp. 3-4. 196 hospital e foi para a sua aldeia, com a sua mãe. Morria – mas a morte na sua casinha parecialhe bem-vinda como um repouso.” (Brandão, 2013, p. 279). Este espaço de província assemelha-se também ao refúgio do Renato migueisiano que, voluntariamente “aniquilado” nos seus instintos exacerbados, adora o seu repouso no hospício a lembrar um claustro, espaço para reflexão e meditação. Trata-se de uma espécie de locus amoenus, como diz Teresa Martins Marques, “espaço simbólico de ilha paradisíaca” (Marques, 1974, p. 33), cujas caraterísticas rurais evocam o campo, lugar de origem: Às vezes, vou até junto desse muro, que a hera muito densa envolve de poesia, e, numa sombra repousante e fresca, abandono-me a ouvir os pequenos murmúrios da terra e do ar – uma folha que tomba, um pássaro que trila, um insecto que zumbe, um gorgolejo de água – e assim levo muitas horas do meu dia, meditando e escrevendo, como os frades antigos, até que um toque de sineta me venha chamar para a comida ou para o recolher. (Miguéis, 1974, p. 15) Também o número que o identifica neste espaço recluso traz conotações positivas, em contraste com o número nefasto que a pobre velha lhe augurara. No hospício, Renato é identificado com o número 28, o qual pode ser percebido como a soma de duas cifras, isto é, 10. Por conseguinte, o número 10 corresponde, na simbologia de tarot, à roda de fortuna, a um novo início. O retrato de uma cidade babilónica, retratada como antítese do campo bucólico, pertence a loci communes pelo menos desde a Antiguidade. A este respeito, Raymond Williams afirma o seguinte: The rhetorical contrast between town and country life is indeed traditional: Quintilian makes it his first example of a stock thesis, and conventional contrasts between greed and innocence, in these characteristic locations, are commonplace in later Greek and Latin literature. But it was especially in relation to Rome that the contrast crystallised, at the point where the city could be seen as an independent organism. In the savage satires of Juvenal we find the tone which is more than conventional: a sustained and explicit catalogue of corruption. (…) This teeming life, of flattery and bribery, of organised seduction, of noise and traffic, with the streets unsafe because of robbers, with the crowded rickety houses and the constant dangers of fire, is the city as itself: going its own way. (Williams, 1993, p. 46) Na literatura portuguesa, esta linha do antagonismo cidade/campo, ideologicamente tingida, é iniciada no século XVI com os autores como Sá de Miranda ou António Ferreira, sendo depois reatada por alguns autores do arcadismo, romantismo e épocas seguintes, embora 197 já de tonalidade, estética e mundividência bem diferentes.204 Às vezes, como se vê, por exemplo, na poesia de António Nobre, o tópico clássico de fugere urbem constitui-se como a procura do paraíso perdido da infância e juventude. Noutros casos, como é patente sobretudo em A cidade e a serra de Eça de Queirós, o espaço rural proporciona a regeneração salutar após a experiência urbana. Mas é novamente Cesário Verde que, de melhor forma, exprimiu essa dialética cidade/campo na literatura portuguesa oitocentista, se bem que com as ambiguidades inerentes. Cesário Verde refere-se várias vezes à cidade de Lisboa e, por extensão, a qualquer cidade, como a uma imagem de Babel: Sentado à mesa dum café devasso, Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura, Nesta Babel tão velha e corruptora, Tive tenções de oferecer-te o braço. (Verde, 1999, p. 61, poema “A débil”) Nalguns poemas, a imagem da cidade é explicitamente colocada em contraste com o campo, o qual constitui a sua antítese: Que fugiste comigo da Babel, Mulher como não há nem na Circássia, Que bebemos, nós dois, do mesmo fel, E regámos com prantos uma acácia. (...) E no pomar, nós dois, ombro com ombro, Caminhávamos sós e de mãos dadas, Beijando os nossos rostos sem assombro, E colorindo as faces desbotadas. (Verde, 1999, pp. 38-39, poema “Setentrional) A importância da imagem da cidade babélica na poética cesariana já foi sublinhada, entre outros, por Helder Macedo que, no entanto, não se restringe à objetividade representacional, mas associa o imaginário urbano à dimensão psicológica subjetiva: “ao contrapor cidade e campo, Cesário não está a contrapor duas realidades objetivas, mas duas experiências 204 Sá de Miranda e António Ferreira exprimiram sobretudo a sua rejeição da política da conquista e expansão, regida pela corte portuguesa, apontando para os aspetos negativos que lhe foram inerentes (cobiça, violência das armas etc.). De acordo com o credo horaciano e o seu elogio da vida rural, Sá de Miranda opinava que só no campo o homem pode atingir a liberdade pessoal porque na cidade e na corte se torna dependente das convenções. Repare-se que, no século XIX e inícios do século XX, muitos autores declararam a sua aversão à cidade por meio do retiro à natureza em idade adulta mais avançada, como ficou demonstrado, por exemplo, por Alexandre Herculano que se retirou para Vale de Lobos, para se dedicar à agricultura, à semelhança de Chateaubriand, que se refugiou no seu Vallée-aux-Loups. 198 subjectivas dessas realidades das quais cidade e campo são os significantes: o presente confinado e o seu oposto.” (Macedo, 1986, p. 53).205 É basicamente esta dimensão subjetiva, de teor emocional e às vezes associada à polarização temporal, que se torna paradigmática para certas obras literárias portuguesas novecentistas. Com efeito, na época que aqui interessa, aparecem várias obras em que a dualidade cidade/campo é apresentada em moldes semelhantes à poética de Cesário. Por exemplo no poema “A cena do ódio” (1915) de José de Almada Negreiros, a dialética entre a corrupção da urbe e a pureza do campo é desenvolvida em termos inconformistas: Larga a cidade masturbadora, febril, rabo decepado de lagartixa, labirinto cego de toupeiras, raça de ignóbeis, míopes, tísicos, tarados, anémicos, cancerosos e arseniados! Larga a cidade! Larga a infâmia das ruas e dos boulevards esse vaivém cínico de bandidos mudos esse mexer esponjoso de carne viva (...) Larga a cidade e foge! Larga a cidade! (...) Larga tudo e vai para o campo e larga o campo também, larga tudo! -Põe-te a nascer outra vez! (...) Depois põe-te a viver sem cabeça vê só o que os olhos virem, cheira os cheiros da Terra come o que a Terra der, bebe dos rios e dos mares, - põe-te na Natureza! (Negreiros, 2005, pp. 40-42) Neste poema, o sujeito almadiano não só manifesta a sua escolha ao privilegiar o campo, mas ataca diretamente a vida urbana, representada pelas ruas e boulevards como ícones da cidade moderna. A sua invectiva é, contudo, tão veemente e frenética como a própria urbe 205 Esta problemática é evidentemente muito mais complexa na própria poesia de Cesário Verde. A dicotomia cidade/campo, assente na idealização arcádica do campo em contraste com a cidade corrupta, é reformulada após a experiência pessoal e social das condições da vida rural. Também na literatura portuguesa do século XX, sobretudo a partir dos anos 40, já não era possível exaltar o idílio rural sem o comprometimento político. De facto, a política do Estado Novo implantou, precisamente, o culto da idealização do campo como uma das suas diretrizes, ofuscando conscientemente as verdadeiras condições da vida rural. A necessidade de refletir a objetividade tornouse lema da literatura neorrealista. Mesmo tendo em conta este contexto sócio-político e literário, pretende-se aqui frisar a polaridade cidade/campo que se baseia nas coordenadas afetivas e arquetípicas, no rasto da primeira fase da poesia de Cesário, e não na representação da suposta realidade objetiva. 199 flagelada (atente-se nos atributos masturbadora e febril). Não estranha, portanto, que o mesmo sujeito não se satisfaz nem com o campo porque também este espaço corresponde a um espaço social, em que nenhuma pureza pode ser garantida face às fraquezas e vícios dos seres humanos. A única solução é, naturalmente, invocar a Natureza primordial, paradisíaca, não tocada pela mão humana. Algo semelhante revê-se ainda no poeta um tanto esquecido que era Pedro Homem de Mello (1904-1984), em cuja coletânea Caravela ao Mar (1934) desvela-se também o contraste entre a cidade (lúgubre, negra, pecaminosa) e o campo (representado pela quintaconvento de Cabanas, em Afife, espaço de tranquilidade e paz). Mas em vez das invectivas dirigidas à burguesia, a voz poética de Homem de Mello “adentra-se”. O pecado da cidade é seu, bem como a paz adormecida de Cabanas, em Afife, onde o poeta viveu muitos anos numa tranquilidade horaciana, trasmite não só a atmosfera do ambiente, mas também o estado da própria alma, apaziguada.206 Na prosa do mesmo período, convém recordar o praticamente deconhecido romance À cata do Eldorado de Júlio Brandão, publicado postumamente em 1969, mas escrito entre 1925 e os anos 40, cuja ação decorre nos últimos anos da Monarquia, sendo a intriga desenvolvida entre a cidade (Lisboa, Coimbra) e o campo. Conforme Fernando Guimarães, há uma finalidade neste romance, “a qual se traduz no apego ou na valorização do ‘ambiente grato e consolador’, da vida do campo (...), identificada ao mito do Eldorado. (...) É o regresso à ‘terra mater’ ou – evocando Júlio Brandão expressamente o Virgílio das Geórgicas – à ‘gleba’, onde se pode amar ‘os frutos e as flores’.” (Guimarães, 1999, p. IX). Da mesma época, convém também mencionar a obra de Branquinho da Fonseca que não só demonstra a polaridade entre a cidade e o campo à luz da localização das narrativas (nas iniciais, sobretudo da coletânea Zonas, predomina o espaço urbano, enquanto as prosas tardias, em especial Bandeira preta, são inseridas no ambiente rural), mas no que diz respeito à problematização intrínseca às tramas. Os protagonistas fogem da cidade para o campo que, apesar de lhes ser pouco “legível”, funciona como um regresso a um mundo não corrompido pela civilização, um mundo de valores tradicionais, mesmo que anacrónicos. Nos romances aquilinianos urbanos, o tema de amor/paixão relaciona-se também com a dicotomia cidade-campo, em que o urbano corresponde à capital portuguesa e o rural abrange tanto os arredores lisboetas, como (e 206 A este respeito, Martim de Gouveia e Sousa afirma: “Habitante do dissídio e das tensões em si criadas, um tanto à maneira de Cesário Verde parece sempre que a cidade de nascimento traz o pecado e o remorso (‘Cidade oblíqua. Sexo pesado. / Raio de cinza, lúgubre e lento... / Bandeira negra, barco parado. / Cidade minha, do meu pecado...’), enquanto a quinta-convento de Cabanas, em Afife, convoca desde as primícias o retemperamento e a alegria (‘Meio-dia em Afife. As matas de Cabanas / dormem tranquilamente e dorme toda a quinta. / A luz, bacante, exala ondas mornas, profanas, / Põe beijos sensuais e mel no seu aroma. / Oh! Que profunda paz!’) (in ‘Caravela ao Mar’, 1934)”. (Publicado na página pública de facebook de Martim Sousa a 15/6/2020). 200 principalmente) a província natal do autor, Beira Alta, um espaço íntima e emocionalmente marcado. Por vezes ainda, certas caraterísticas rurais penetram no espaço urbano, moldando-o como um lugar profundamente híbrido, tanto topografica como afetivamente. O espaço rural ou urbano-híbrido, por conseguinte, ganha neste antagonismo atributos de um espaço edénico. Em termos necessariamente simplificados, é possível constatar que o arquétipo “edénico” adquire, na obra romanesca de Aquilino, vários matizes conforme a função do espaço e a relação emocional que lhe é imposta. Um destes matizes assenta na iconografia bíblica tradicional, interpretada em vários textos teológicos, na qual o Éden corresponde a um jardim, ou melhor, ao jardim das delícias.207 Para além de muitas referências metafóricas ao Paraíso, que podem ser encontradas nos romances urbanos aquilinianos e que, em geral, veiculam a imagem de uma natureza amena, agradável à vista, convém referir uma situação particular que se observa no romance Mónica. Quando Mónica foge com Ricardo, estes ficam fechados na Quinta da Gibalta nos arredores de Lisboa, à espera do consenso dos pais da jovem para se poderem casar. Precisamente neste contexto convém recordar novamente o poema “A débil” de Cesário, em que o sujeito viril sente o desejo de proteger a rapariga bela, frágil, assustada e loura como Mónica, perante a chusma ameaçadora de corvos pretos “[n]esta Babel tão velha e corruptora” (Verde, 1999, p. 61). Fugindo da Babel, os dois amantes podem, com efeito, passear de mãos dadas pelos pomares, tal como no poema “Setentrional”. E se essa figura cesariana da jovem frágil, como avisa Óscar Lopes, é uma variante da Cecília Quintino de Júlio Dinis e da Purinha de Só de António Nobre,208 torna-se impossível não lembrar também a outra Cecília, a figura feminina mais marginalizada do romance Maria Benigna de Aquilino, a esposa frágil, meiga e doente de Adriano, adorada por ele como uma santa, a rosa idealizada. Em Mónica, a descrição da quinta é pormenorizada: a zona é delimitada por muros antigos, a própria fazenda atrás do portal do século XVIII é feita de uma “casa apalaçada a respirar quietude no meio de jardins à Le Nôtre” (1985a, p. 78) com uma vista deslumbrante para o Tejo. Pela localização e descrição dos jardins poderíamos até pensar que a sua inspiração tenha sido a Quinta Real de Caxias, com os jardins, de facto, no estilo francês de André Le Nôtre, ou qualquer outra quinta da área.209 E apesar de a quinta proliferar em elementos facilmente 207 Conforme referido por Jean Delumeau, era por exemplo Isidoro de Sevilla quem tentou situar o Paraíso algures no Oriente, no lugar cujo nome é em hebraico Eden, traduzido de grego para o latim como hortus e, em língua de Isidoro, deliciae (Delumeau, 2003, p. 51). 208 Veja-se em Lopes, 1993, p. 106. 209 Durante a escrita do romance Mónica, concretamente entre os anos 1933 e 1949, Aquilino Ribeiro viveu na Quinta de Sta. Catarina, Cruz Quebrada, Linha de Cascais (esta informação foi colhida na exposição Aquilino, anos 20: entre o exílio e as geografias de Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, maio de 2019). Tal localização, com efeito, podia ter inspirado o autor a escolher precisamente esse cenário deslumbrante, descrito em Mónica (e também em O arcanjo negro, onde o espaço da Quinta da Gibalta é retomado). 201 reconhecíveis como da estética rococó (as ruas do jardim, as esculturas, o tanque com peixes), há ao mesmo tempo uma vaga reminiscência ao espaço edénico. A respeito deste tópico, Fernando Aínsa afirma: El topos, el locus del jardín se identifica tradicionalmente con un espacio de preservación, cuando no de protección frente al mundo exterior, ámbito donde la naturaleza aparece sometida, seleccionada, ordenada y cercada. (...) Ámbito de connotaciones simbólicas de signo eminentemente femenino, el jardín reproduce en la tierra una forma del paraíso (...). (Aínsa, 2006, p. 179) No jardim de Mónica, há ainda uma profusão de flores, árvores de fruto, cepas de vinho ou pássaros a chilrear que, irremediavelmente, evocam as imagens tradicionais do Éden, um oásis de árvores e água (cf. Frye, 2006, p. 162).210 E como se trata de um jardim fechado, não só literalmente, pelos muros, mas também metaforicamente como um recanto resguardado dos olhares de pessoas alheias, lugar secreto, um oásis de liberdade de dois amantes, podemos associar-lhe um atributo de conclusus. A imagem do Éden como hortus conclusus, por conseguinte, veicula desde a Idade Média o culto mariano, o qual também não falta no romance aquiliniano, uma vez que neste jardim temos igualmente uma donzela, pura, linda e primaveril, estilizada como um ser idílico, uma reencarnação da Virgem (cf. Hodrová, 1994, p. 28).211 O jardim fechado e artificial, todavia, mesmo que de atributos edénicos, não é elevado a um lugar eleito, libertário. Os dois amantes, também, por força do fechamento, acabam por sentir-se exaustos e profundamente melancólicos. A saída deste Éden rococó não é imposta por ninguém, senão por eles próprios, sedentos de ar livre e da companhia humana. Nalgumas situações, nos dois romances urbanos, a imagem edénica é sobreposta a certos lugares dentro da cidade. Recorde-se, a propósito, que foi precisamente num recanto de natureza “à banda dum tufo de pinheiros” (1985b, p. 60), embora dentro da cidade, que Maria Benigna e Adriano Valadares selaram o seu amor. Maria Benigna, de facto, pela atitude ativa nos primeiros momentos da relação entre os dois, pode ser até lida como uma nova Eva, rebelde e sedutora. Por outro lado, muitas descrições da cidade acentuam também a relação urbano-rural, 210 Como Northrop Frye sustenta: “The imagery of the garden of Eden is an oasis imagery of trees and water. For a people who were originally desert dwellers, the oasis is the inevitable image of providential order, a garden directly created and sustained by God, a habitation that makes sense in human terms without human transformation, the visible form of the invisible divine creation.” (Frye, 2006, p. 162) 211 Esta estilização da donzela, seja a Virgem, seja uma deusa grega, funciona até em forma de mise-enabyme, uma vez que a donzela (Mónica) faz também uns desenhos de temas mitológicos: “Foi a um canto e trouxe uma tela, em aparência inacabada. Representava em paisagem de cedros e ciprestes um centauro derretido diante duma mulher nua que, de pé na penha, estendia para ele braços em lira, impacientes. Os cabelos loiros, desgrenhados e longos, cabelos do princípio do século, figuravam pela projecção de planos as cordas da mesma lira.” (Ribeiro, 1985a, p. 83). 202 a qual, conforme Machado, André e Moreira, “atravessa grande parte dos recortes geográficos utópicos, desde a obra de Thomas More às cidades jardins de Ebenezer Howard ou mais recentemente os ‘telhados verdes’ que brotaram nas cidades alemãs desde os anos 70 do século XX.“ (Machado et alii, 2016, p. 16). Neste sentido podemos também afirmar, de acordo com António Manuel Ferreira, de que a cidade adquire um caráter híbrido “composto pela mistura de urbanismo e natureza campestre” (Ferreira, 2013/14, pp. 90-91).212 A Lisboa de Aquilino, com efeito, é muitas vezes descrita por meio de expressões que sugerem a paisagem rural213 ou, pelo menos, algo ameno e delicioso (“Há menos de quinze dias, por uma tarde tão doce e deslumbrada que sugeria a ideia do Paraíso”, 1985b, p. 58). Há, por exemplo, muitas visões panorâmicas que alcançam o horizonte da cidade e que são avaliadas pelo narrador como paradisíacas (“Mas para lá da zona convulsa e da planície dormente das águas, a terra tinha aspecto tão ameno e variado de contornos, exalava-se tal embevecimento de suas chapadas de verde, que o primeiro homem que a divisasse daquela assomada ficaria a sonhar com o Paraíso”, 1985a, p. 148), ou então há referências a vários elementos da natureza que são revestidos de uma atmosfera vagamente edénica, bucólica (p. ex. “Que as mansas águas jamais sejam refrigério para desesperados, mas antes palco de bucólica e de amor para toda a gente!”, 1985b, p. 121). Vê-se bem que o urbano, nestas circunstâncias, perde tudo do seu caráter potencialmente degradado e ameaçador, participando numa comunhão com a natureza. Por conseguinte, as fronteiras tradicionais entre o urbano e o rural ficam, até certo ponto, abolidas, transformando a Babel-Babilónia num espaço senão mesmo edénico, então pelo menos natural, primordial. É o que testemunham, para além das zonas de verde, em princípio da periferia, muitas expressões 212 António Manuel Ferreira estende este dualismo a um nível “mental” da cidade, apontando para um “provincianismo” da vida lisboeta em comparação com o cosmopolitismo parisiense, presentes sobretudo no romance Maria Benigna (Ferreira, 2013/14, pp. 90-91). Um outro exemplo do hibridismo urbano-rural pode ser encontrado também no referido romance Bússola doida de Aleixo Ribeiro, sobretudo no espaço da linha de Cascais. A própria casa de Efigénia (uma das amantes do protagonista) que se encontra nesse espaço entre cidade e campo atesta também essa mistura de traços urbano-rurais (“Lá dentro havia salas novas, com mobiliário novo, desmentindo, com o seu ar de cidade, o aspecto campesino, embora asseado, do exterior do prédio. Nós vimos tôdas aquelas salas, que eram poucas e como as das outras casas de luxo, até que Efigénia abriu uma janela, para que, enfim, a paisagem entrasse e desse um pouco de carácter àquele interior, àquela ‘natureza-morta’.” (Ribeiro Júnior, 1938, p. 12). 213 No romance Maria Benigna, por exemplo: “Para esses encontros, tomávamos o carro eléctrico do Dafundo e descíamos na Praça de Belém, de sabor tão rural” (1985b, p. 57), “Havíamos apeado do eléctrico adiante do Calvário e subido par a par, como matrimónio que anda em busca de casa, a Rua Luís de Camões, ‘rua muito de cidade de província que vai dar à estação’, com a sua amplitude de circunstância, o seu sossego, duas ou três ourivesarias, pequeninas e luzentes, e talhos e padarias, vastos e às moscas. A meio de caminho cortámos para o square que ali desafia, com seus bancos pintados de fresco, acácias, aroeiras e duas ameixoeiras da Pérsia, os marçanos a depor o cabaz das compras e a jogar o botão ou descasar.” (1985b, p. 37). A irrupção imaginária do espaço rural no centro da cidade pode ser detetada também no romance O arcanjo negro (p. ex. “Minutos andados, subiam de golpe a Rua Garrett, não tão ràpidamente como Mónica aspirava. A placidez das aldeias sertanejas invadira a rua elegante”, 1960, p. 216). 203 do universo rural, em especial zoográficas, que são trazidas para o espaço citadino e que são relacionadas, em princípio, com a isotopia de caça, neste caso de caça amorosa (“tal galgo na cola duma lebre”, 1985b, p. 23, “meter-me dentro era cair na boca do lobo, 1985b, p. 39, “mais serpente que a serpente”, 1985b, p. 50, “a mais perfeita garça-real que esvoaça no Chiado”, 1985b, p. 52 etc.). O exemplo mais flagrante desta simbiose, contudo, pode ser verificado na passagem em que os amantes do romance Maria Benigna consomem os seus amores dentro do Mosteiro de Jerónimos, o qual é transfigurado, pela visão apaixonada, num espaço de natureza: “Aquelas colunas e aquele céu alto não falam de Deus, a alma sente, não o calcanhar de mistério, mas não sei que exaltação da vida. Podiam cantar ali dentro mondadeiras que não destoava na folhagem branca dos capitéis.” (1985b, p. 56, sublinhado meu). Nesta perspetiva de Adriano Valadares, o templo é comparado a um bosque, num hibridismo do artificial e natural, a que o estilo manuelino dá, evidentemente, expressão. Para além desta evidência arquitetónica, contudo, há ainda uma atmosfera, na qual o sagrado religioso é substituído pela sacralização da vida e dos instintos naturais, salutares. Assim, o templo de Deus transfigura-se, pelo poder do erotismo, num “bosque de amor” (1985b, p. 56), num templo à medida humana. Toda a construção, com efeito, começa a falar em linguagem erótica, de mesmo modo como a Catedral de Córdova no conto homónimo aquiliniano: “Os génios eróticos que se desprendiam das urnas tristonhas instigavam a esquecermo-nos do mundo.” (1985b, p. 57).214 A esta voz de Adriano assemelha-se a de Maria Benigna, igualmente sensível à transfiguração do espaço do templo (“Estávamos na casa de S. Jerónimo ou em palácio encantado?” 1985b, pp. 158-159), capaz de reagir aos mais íntimos movimentos de luz e ar, imaginados ou percebidos na realidade215 e, em sintonia com Adriano, atenta à simbiose do urbano (monumento arquitetónico) e do natural, desta vez não só imaginada ou esculpida na pedra, mas plenamente real (“A criptogâmica pendia da pedra como podia fazê-lo um insecto. Não se via terra de que comesse, não se via fenda, erosão, sequer, na abóbada a que se agarasse. E era tão viçosa que nem de jardinagem, tão estranha que só por sortilégio.”, 1985b, p. 191).216 Este tipo de transfiguração demonstra também claramente qual 214 Além disso, a Catedral dos Jerónimos é, tal como a antiga mesquita de Córdova, assemelhada a uma mulher. Mas enquanto esta imagem feminizada da igreja é comum na tradição literária, em especial romântica (Herculano, Hugo etc.), a recriação de Aquilino Ribeiro prima, no conto e no romance, pela exuberância da voluptuosidade: “Da bela catedral tão feminina nos colunelos, nos silhares cor de odalisca, na graça alada dos arcos, deve ter-se-nos propagado o frémito lúbrico.” (1985b, p. 43). 215 “Aquela comparsaria silenciosa, virgens, doutores, rostos marcados do sinete gótico da luxúria e da dor, silfos e dragões alados, sob o frémito do sol, estremecia também. Eu fechava os olhos e ao reabri-los via-a estremecer. E ainda me dava a impressão de sussurrar à aragem a ramaria exuberante dos muros.” (1985b, p. 159). 216 Vendo a planta, Adriano observa: “Dá-se aqui o milagre de Pigmalião, a obra de arte é tão formosa, a floresta de pedra tão digna de viver que um almejo enverdeceu e vive.” (1985b, p. 161). Mais uma vez, este suposto milagre evoca a semelhante situação no conto “A Catedral de Córdova”, em que o “milagre” se dá no gesto 204 o vetor axiológico que Aquilino expõe na recriação do Éden. O hortus conclusus, de tradição judaico-cristã, converte-se plenamente num bosque de amor, aberto e luminoso, em que todos os elementos da natureza e todos os sentidos incitam ao amor. A certa altura, Maria Benigna diz: “Em nossa alma habitava, porém, Apolo e não o nazareno mirrado de S. Jerónimo” (1985b, pp. 158-159). É, portanto, evidente que ao “nazareno mirrado” sobrepõem-se os deuses da família greco-romana com a sua vitalidade e arte solar. E, embora os temas bíblicos constituam, ao lado da herança greco-romana, “uma das recorrências mais profícuas da obra de Aquilino Ribeiro” (Ferreira, 2013, p. 31), como afirma António Manuel Ferreira a propósito da narrativa aquiliniana As três mulheres de Sansão, a sua sobreposição, a favor da cultura greco-romana, exprime “a recusa fortemente religiosa da tradição judaico-cristã, que vai do Génesis até ao Apocalipse, isto é, toda a leitura da Bíblia, formatada pela vontade de construção do culto monoteísta” (Ferreira, 2013, p. 44).217 Na verdade, assiste-se aqui a uma das essenciais coordenadas éticas de toda a obra aquiliniana, comprovada por várias narrativas que, desde a sua estreia com Jardim das tormentas, afirma o potencial do amor (humano, erótico, corporal) sem abnegar de todo de um filão profundo de religiosidade que, sobretudo nas suas versões populares, não se opõe em nada ao projeto do amor terrestre e consumado.218 Com a invocação de deuses pagãos, dentro do espaço pertencente à cultura religiosa cristã, descortina-se mais um tipo de representação edénica, essa que se vincula ao campo. E embora este já não esteja relacionado diretamente com o espaço urbano, merece certa atenção por constituir a antítese da cidade, ou seja, sem o confronto com o urbano, o espaço rural não adquiriria, na obra aquiliniana, caraterísticas tão fortemente estilizadas e carregadas de significados simbólicos que apresenta. Deste modo, nos dois romances urbanos aqui abordados, pigmaleónico do bispo que, incitado pelo genius loci da antiga mesquita, faz amor com a estátua de Santa Inês. Também neste caso, a luz (curiosamente em forma fálica de um raio) constitui o fator essencial de transfiguração, fazendo com que a estátua pareça ganhar vida (“Um raio de sol atravessava a janela como um dardo e vinha banhar o grupo inebriado duma atmosfera irreal. Sob o oiro da luz, a tez fria da imagem coloriu-se, as pregas da túnica desembrulharam-se numa assunção de vida e de movimento” (Ribeiro, 1961, p. 44). 217 A opinião de Manuel António Ferreira acima mencionada, relativamente à recusa da tradição judaicocristão, refere-se precisamente ao romance Maria Benigna, em que “o desafecto à cantilena semita, textualizado por Adriano Valadares, a personagem-escritor do romance Maria Benigna, faz parte do substrato ético-religioso de uma mundividência autoral, cujos sinais se dispersam por várias obras”. (Ferreira, 2013, p. 44). 218 Repare-se, por exemplo, na afirmação do amor nos contos “Sam Gonçalo casamenteiro”, “A tentação de sátiro” e, sobretudo, “Triunfal” de Jardim das tormentas, uma versão do mito genesíaco conduzido, como diz António Manuel Ferreira, do ponto de vista da hermenêutica antropocêntrica” (Ferreira, 2012c, p. 72). Neste sentido, também Serafina Martins afirma, a propósito do conto “A catedral de Córdova”, o escritor se inspirar “na ideia de que importa romper com a regra cristã para instaurar uma nova moral, contrária a essa regra” (Martins, 2019, p. 106). O facto de se tratar de uma caraterística comum a todo o conjunto literário aquiliniano pode ser provado ainda pela asserção de Isabel Cristina Mateus que se refere, em termos muito semelhantes, ao romance A Casa Grande de Romarigães: “Com efeito, se no primeiro Livro do Pentateuco a criação do Universo e do homem é essencialmente obra divina, aquilo que se salienta em A Casa Grande de Romarigães é o desaparecimento da divindade e a emergência da própria força genesíaca, criadora, da Natureza de que o Homem se torna partícipe”. (Mateus, 1995, p. 11). 205 o campo corresponde a um espaço de evasão, recriando assim o tópico clássico fugere urbem, acima mencionado. É sobretudo a serra, em contraste com a cidade, que corresponde ao verdadeiro paraíso para Adriano Valadares no romance Maria Benigna,219 porque o espaço rural assenta num cosmos legível, sem dissimulações e subterfúgios de qualquer ordem. As relações no campo são ditadas pela natureza, opondo-se à necessidade de representar constantemente um determinante papel social na cidade:220 Mas os amores de Lisboa, com o seu melaço ou o seu cerebral, o seu pó de arroz, o afrodisíaco do vinhinho de Málaga, o quarto de porta para a escada, sebento e de persianas rotas, cheiram mal entre tojos. Aí, como ordena a madre-natureza, começam pela luta corpo a corpo, com os faunos gaiteiros a espreitar pelas fisgas das paredes e do coruto dos bosques. (1985b, p. 50)221 Outro caso encontra-se no romance Mónica, cujo fim atesta não só um contraponto brusco e surpreendente à trama desenvolvida, mas também constitui o exemplo ilustrativo do espaço edénico par excellence. Embora desta vez raptada por força, Mónica rapidamente absorve o ambiente puro e fresco da Terra da Beira, lugar da família Tavarede, a que preside o seu velho solar, abrigado num renque de árvores e de verdura. Aqui, o espaço edénico contém com todos os elementos imprescindíveis: há profusão de flores (glicínias, buganvílias, rosas etc.), pinheiros, árvores de frutos (macieiras, pereiras, pessegueiros), pássaros (cuco, rola, papa-figo) e, até, um pequeno sátiro a gorgolejar água debaixo da figueira.222 Todo este espaço deslumbrante, cheio de luz e perfumes inebriantes, faz lembrar tanto a Quinta de Gibalta, como a Quinta de Piedras Rojas do conto “A Tentação de Sátiro”. Desta vez, porém, todos os artifícios e objetos de arte humana são substituídos pelos encantos da própria natureza: “saíram com Ricardo a passear pela quinta que, à falta de estátuas pelas aleias, ostentava esplêndida feira de flores, as inúmeras árvores de fruto em inflorescência triunfal” (1985a, p. 208). 219 Escreve Adriano ao seu amigo: “Como o António César calcula, não posso aceitar de ânimo prazenteiro que a minha amante vá com um fatacaz, que me enternece mas não lhe agradeço, com vício sábio e subtil, lábios pintados, mais serpente que a serpente, roubar-me ao paraíso.” (Ribeiro, 1985b, p. 50) 220 A estes papéis pertence também o do amante romântico que deve ser representado por homens galantes no palco lisboeta, desde que pretendam avançar nas aventuras com as mulheres, como é divertidamente expresso na carta de António César de Melo, dirigida a Adriano: “Terá de falar com ela como um Chateaubriand, envidraçar, talvez, o olho como Oscar Wilde, pôr a cintura de Garrett, maçada.” (Ribeiro, 1985b, p. 12) 221 Apesar disso, como o caçador Adriano ironicamente confessa, é impossível, depois da experiência urbana, resistir às tentações da conquista amorosa também no espaço rural: “O meu interesse, ao contrário dos tempos em que era poeta, não estava em admirar-lhes os motetes e voos pairados, mas em plantar bem o meu tiro. A cidade corrompeu-me. Não há dúvida que onde o homem não transporte a farsa ou a tragédia do eu, brota o carapateiro do tédio.” (Ribeiro, 1985b, p. 103). 222 Repare-se que o sátiro (ou o fauno) constitui um motivo-símbolo-arquétipo fundamental na poética aquiliniana que, conforme José Carlos Seabra Pereira, funciona como um macrossigno do vitalismo e fruição dionisíaca e, simultaneamente, como um dos “veículos de uma sub-reptícia nostalgia da religiosidade ancestral” (Pereira, 1992, p. 28). 206 Curiosamente, também este jardim das delícias contém certas ressonâncias do culto mariano, a que não falta sequer a figura da mulher delicada, de vestido branco (“O imaginário do Castelo não arranjaria figura mais bonita para Nossa Senhora da Graça”, diz uma camponesa do sítio, 1985a, p. 208). Além disso, o presente retrato edénico é enriquecido por um filão semântico, pertencente, tal como no caso do Mosteiro dos Jerónimos de Maria Benigna, à cultura grecoromana, ao imaginário bucólico, sereno e ameno, de recorte vergiliano: “Mónica folgou muito com o estratagema dos rústicos, de que Virgílio deve falar algures, e de olhos embevecidos na veiga em que a vaca turina derramava celestial serenidade, foram ver a coelheira” (1985a, p. 209). De acordo com a tradição, em que o próprio jardim do Éden tem sido frequentemente sobreposto ao imaginário rústico, de pastorícia,223 os recursos retórico-estilísticos, bem como a atmosfera de paz e harmonia, evocam tanto a alegria franciscana e amenidade do presépio cristão, como o idílio de linha helénica e romana.224 Em suma, este campo bucólico corresponde ao cosmos em contraste com o caos urbano, cidade babilónica, povoada pelos fantasmas do terramoto.225 Repare-se, contudo, que este antagonismo entra em correlação com o tema do erotismo/paixão e com as personagens, cujos caráteres e modos de ser estabelecem, no mapa humano do romance, relações de contiguidade e oposição. A este respeito, nomeadamente no que se refere ao par Maria Benigna e Adriano Valadares, Maria Alice Dias da Silva observa: Na realidade (...) tudo ou quase tudo se opõe entre Maria Benigna e Adriano Valadares: ela, puro produto citadino, e a braços com o problema de preencher o ócio da sua vida esterilmente mundana: ele, fiel ao enraizamento no seu húmus natal e, por outro lado, particularmente absorvido na realização da sua obra como escritor. Quanto às raízes telúricas da personalidade de Adriano Valadares, bastará recordar o espaço que ocupam, na estrutura do romance, a descrição e a narração das férias serranas que a si próprio concede e a que de modo algum pareceria capaz de renunciar. Dentro do 223 Como diz Northrop Frye: “This paradisal imagery overlaps to some degree, as it does all through later literature, with idealised pastoral imagery. (Frye, 2006, p. 162) 224 Conforme Seabra Pereira, o espírito franciscano constitui uma das linhas importantes da mundividência e axiologia aquiliniana em geral (cf. Pereira, 1992, p. 31). É preciso não esquecer, contudo, que mesmo este espaço edénico não é livre de conflitualidade interior e de ambivalência. Como diz Óscar Lopes, “[m]esmo o tema tão insistente em Aquilino do éden natural, do jardim paradisíaco e afrodisíaco, desde o conto ‘Triunfal’ do Jardim das Tormentas até à bucólica com Ermelinda em Maria Benigna, ou à ilha afortunada de Banaboião e Iluminata – mesmo esse tema do horto amatório bem-aventurado contrasta com a persistência de um sofrimento ou de uma desgraça sempre à vista” (Lopes, 1992, p. 13). Com efeito, tanto o Éden urbano-rural de Maria Benigna, como o horto de amores em Mónica podem ser retrospetivamente filtrados como irónicos porque os dois terminam numa desilusão e separação: a história de amor de Maria Benigna acaba no fim do livro, a história de Mónica prossegue no romance O arcanjo negro, em que já claramente todas doçuras e idílios de amor revelam a sua face escondida de horrores, ciúmes e incapacidade de superar o destino atroz. 225 Repare-se, a propósito, que no romance O arcanjo negro, Ricardo Tavarede exprime tal ideia nos seguintes termos: “Mas o que perdi, e com isso não contaste tu, foi a alegria, aquela sacratíssima alegria franciscana que varre da alma o vício babilónico da confusão, gerador duma ferrugem que só se limpa à força de lágrimas.” (Ribeiro, 1960, p. 123). 207 episódio de tais férias, o surgimento de uma figura como a de Ermelinda reveste-se de um valor sobretudo simbólico; ela não constitui apenas um devaneio momentâneo desse homem “feito de carne e de sentidos” como diria Camões, mas representa também uma encarnação daquela mesma terra a que se sente preso. (Silva, 1998, pp. 60-61) Temos, portanto, a figura feminina, distinguida como pertencente, pelo seu comportamento e modo de agir/pensar, ao espaço urbano, que entra em oposição, no que se refere ao espaço, à personagem masculina de Adriano Valadares e, também, à outra figura feminina, representante do meio rural. Repare-se que semelhante oposição das personagens femininas pode ser encontrada também noutras obras da mesma época (de Branquinho da Fonseca, entre outros) e noutros títulos de Aquilino Ribeiro. No conto “A minha inimiga”, de Branquinho da Fonseca, como já escrevi noutro lugar (cf. Špánková, 2020, p. 113), o protagonista vacila, tal como no romance A porta de Minerva, entre duas mulheres “complementares”, por oposição, pelo seu físico (loira/morena), caráter (frágil e ingénua/expansiva e experiente) e pela sua relação para com o protagonista (primeiro apaixona-se pela menina dócil, mas é pela segunda que se sente atraído instintivamente). Situação análoga verifica-se também no primeiro romance de Aquilino, A via sinuosa (1918), como já foi observado por Serafina Martins: “Assim, a ‘doce amiguinha’ de Libório vincula-se à face positiva do mundo, enquanto Estefânia, moderna (anda de automóvel), urbana, mulher de um deputado realista endinheirado, mas sem carácter nem honra, pertence ao mundo novo, de ares e costumes viciosos, disruptor da ordem e artificial.” (Martins, 1995, p. 48). Também aqui, portanto, evidencia-se já o antagonismo tradicional entre o campo e a cidade, ou Éden e Babilónia, representado pelas figuras femininas, em que a primeira imagem corresponde à pureza/inocência e a segunda ao vício e sedução tentadora. Semelhante oposição desenha-se, já sem contornos tão precisos, nos romances Mónica e Maria Benigna. Repare-se que, nos dois casos, as titulares figuras femininas representam um estilo de vida urbano, um tanto ocioso, de gozo refinado em atrair os olhares masculinos, aperfeiçoando os truques de sedução. Em contrapartida, as mulheres vinculadas ao campo apresentam-se na sua pureza não necessariamente casta ou púdica, como o mostra o caso de jovem “faunesa” Ermelinda, mas de qualquer modo sincera e livre de máscaras ou jogos às escondidas. Ao mesmo tempo, é também Cecília (em Maria Benigna) e Maria Angélica (em Mónica) que correspondem ao modelo da pura campesina, a singela flor de prado em contraste com a orquídea de estufa. Estamos, portanto, nos mesmos vetores axiológicos, estabelecidos por Eduardo Lourenço ao refletir sobre o conjunto da obra de Aquilino Ribeiro e também sobre o romance supra mencionado, A via sinuosa: 208 Todas as novelas ou romances de intenção erótica (...) se articulam em torno destes dois amores que recorrem, em parte,a antítese representada pela verdade do mundo primitivo e original da serra e a mentira representada pela cidade-Babilónia, antítese que pode tomar também a forma mais genérica de uma oposição entre mundo antigo e mundo moderno. (Lourenço, 1993, p. 232) Tais ideias têm consequências muito mais graves do que poderia parecer à primeira vista. Aquilino, na verdade, acaba por ouvir, tal como Branquinho da Fonseca de O Barão e outras narrativas de ambiente rural, esse mesmo substrato antigo, “mítico”, de um inconsciente coletivo em termos junguianos, ameaçado de desaparecer em prol de uma vaga ideia de progresso moderno. Repare-se que, neste sentido, os dois autores da Beira não estão longe da mundividência de um Garrett dʼAs viagens na minha terra e, embora Aquilino não tenha sentido nenhuma afinidade com o “janota” lisboeta, há alguns pontos em comum entre os dois (ou três com Branquinho) que vale a pena reter.226 É precisamente esse conflito entre o mundo supostamente moderno, mas assente na hipocrisia, ambição e ganância, e o mundo antigo de certos valores considerados atemporais e, curiosamente, representados pela figura de um eclesiástico (Frei Dinis garrettiano e Padre Ambrósio aquiliniano). Não interessa, neste momento, que Frei Dinis seja uma figura controversa, em expiação de seus pecados do passado, e que Padre Ambrósio seja mais que compreensivo para com certos ímpetos do seu jovem iniciando. Importa, sim, que “[n]o mais profundo da sua alma, da sua memória e da sua escrita, o complexo autor de O Malhadinhas e de Andam Faunos pelso Bosques tanto como o da Casa Grande de Romarigães, ficou homem d´ancien régime, de um tempo arcaico e imóvel na sua estrutura de tempo mais natural que histórico” (Lourenço, 1993, p. 233). É neste sentido que se opera, em Aquilino, mais uma fuga da Babel para os jardins do Éden, fuga essa que, aberta em leque de diversas significações e significados, ressoa em vários outros autores, entre os quais, por exemplo, Sophia de Mello Breyner Andresen227 e Jorge de Sena. É sobretudo com este segundo autor (por intermédio de Camões) que a imagem da BabelBabilónia portuguesa vem ganhando uma densidade circunscrita à vida do país em termos sociais, políticos e éticos. Convém ainda referir, a este respeito, o segundo significado do arquétipo da Babel-Babilónia, esse que se vincula ao tema do exílio. Com efeito, no poema 226 Para perceber as opiniões de Aquilino relativas à obra de Garrett, veja-se o artigo “A Linhagem das Viagens na Minha Terra” de Enesto Rodrigues (2000, pp. 9-18). 227 Veja-se por exemplo o poema “Cidade” de Poesia (1944), em que há versos como “Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas, / Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta / Saber que existe o mar e as praias nuas, / Montanhas sem nome e planícies mais vastas / Que o mais vasto desejo, / E eu estou em ti fechada e apenas vejo / Os muros e as paredes, e não vejo / Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.” (1999, p. 27). A representação disfórica da cidade encontra-se, também, no poema “Cidade suja” da mesma coletânea (“Cidade suja, restos de vozes e ruídos, / Rua triste à luz do candeeiro / Que nem a própria noite resgatou.” (1999, p. 29). 209 seniano “Sobre esta praia” (escrito em 1972 e publicado na coletânea Sobre esta praia ... Oito meditações à beira do Pacífico de 1977), intertextualmente relacionado com o famoso poema camoniano “Sôbolos rios que vão” e, simultaneamente, com o Salmo 137, lê-se a dicotomia de Babilónia/Sião como o confronto do espaço-tempo do exílio angustioso/passado feliz. É evidente que este antagonismo de um simbolismo facilmente legível, refere-se também a esse outro confronto que vimos na relação entre a cidade e o campo, e que não precisa de ser tratada só em termos espaciais, como ocorre em Aquilino Ribeiro, mas também em termos temporais. Nesta dialética, a meu ver, consiste uma das linhas semânticas mais poderosas na literatura portuguesa de todo o século XX. A terminar, dois exemplos poderiam ilustrar este fenómeno. Em 2010, durante a reconvalescência após uma intervenção cirúrgica, António Lobo Antunes publicou o romance Sôbolos rios que vão que, aludindo também aos versos camonianos/salmos bíblicos, descortina dois espaços-tempos, ambos imbuídos de forte afetividade, em que o primeiro corresponde ao presente lisboeta, degradado, hospitalar, despido de seiva de prazer e o segundo diz respeito ao passado na província, reconstruído pela memória afetiva. Algo semelhante observa-se na poesia de Joaquim Manuel Magalhães porque, de acordo com António Manuel Ferreira, “é na geografia da infância, nos seus espaços povoados, que existe o lugar onde a felicidade poderia ser possível; fora desse lugar (físico, cordial, ético), o sujeito encontra-se em exílio permanente, em acelerado estado de ruína” (Ferreira, 2012a, p. 267). Sintomaticamente, é precisamente esse “estado de ruína” que se inscreve no corpo urbano de “necrotério dos andares”, cuja salvação estará só, talvez, na imagem da avó a “ir deitar-se com botijas a ferver” ou na “poeira levada pelo vento”.228 5.3.3. A cidade aquiliniana: um mundo remitificado Regressando ao universo aquiliniano que ocupou parte substancial deste capítulo, convém ainda referir que a conjunção de dois arquétipos, observada nos romances urbanos aqui analisados, é ainda acompanhada por certas imagens que evocam, irresistivelmente, as vozes desses autores portugueses que dedicaram à cidade de Lisboa algumas das suas melhores páginas. A cidade aquiliniana entra, deste modo, numa rede intertextual que constantemente recria o seu espaço ao modo de palimpsesto e, simultaneamente, acentua o seu caráter enquanto uma cidade mítica. Assim, as descrições das ruas lisboetas com os seus passeios, luzes, sons e 228 Citações da poesia de Joaquim Manuel Magalhães, utilizadas no ensaio de A. M. Ferreira (2012a). 210 quadros populares evocam os poemas cesarianos229 , e a visão do Tejo, com a sua coloração impressionista, sempre instável ao sabor das condições meteorológicas, faz lembrar fragmentos pessoanos, especialmente os do diário de Bernardo Soares, anteriormente referidos.230 Os dois autores lisboetas, Cesário Verde e Fernando Pessoa, coincidem com Aquilino Ribeiro, também, no uso de certos recursos estilísticos, em especial metáforas e sinestesias que revelam a aura mágica da cidade e, simultaneamente, sublinham as sensações que na cidade podem ser experimentadas.231 Em certos momentos, até, a cidade surge transfigurada, não só pela ação da luz e atmosfera, mas também pelo estímulo emocional. É sobretudo no olhar apaixonado de Maria Benigna que Lisboa adquire marcas da cidade mitificada, recuperando em primeiro lugar o imaginário camoniano. Assim, por exemplo, o Tejo torna-se novamente habitado por vários seres mitológicos, ninfas, nereidas ou Tágides camonianas (“Que alegria me dá a madrugada! Olho para o rio, e as águas azuis estão cheias de Tágides, de dorsos cor de creme.” 1985b, p. 26)232 e tudo ao redor ganha a cor verde, cor dos olhos de Adriano e da amada cantada nos sonetos de Camões (“Mudou a cor que os meus olhos projectavam sobre as coisas. Tudo é verde, o bonito verde dos olhos dele”, 1985b, p. 26). Os areais do Tejo, em seguida, ganham novamente o esplendor do ouro que, conforme a lenda, abundava nas margens do rio (“avistámos o Tejo até a barra com a sua lisura argêntea, imareada, os areais de oiro”, 1985b, p. 60).233 229 No romance Mónica, por exemplo: “A outra janela dava para a avenida com o passeio central sombreado por ailantos e acácias mal copadas, a mole do Liceu Camões acachapada branca e linear no tope do aclive. (...) Vendedores ambulantes lá iam levados no badanal, cantarolando a veniaga aos andares altos. As porteiras varriam as testadas dos prédios, de xaile de malha pelos ombros, muito dobradas para o chão, a reler nas pedras o folhetim do Notícias ou a contar os tostões que custavam há um ano e lhe custavam agora as batatas na praça e à porta. (1985a, p. 147) 230 Por exemplo, em Mónica: “o rio em segundo plano e a jusante, para sul, a esfumar-se em tons de bronze, a margem do Tejo (1985a, p. 147). Ou, então, em Maria Benigna: “Para lá da restinga da Trafaria, velas mais pequenas que gaivotas e fumos de transatlântico esvaíam-se na esflocada brancura dos longes. Mas para as bandas de sudeste, rósea neblina diluía os contornos da costa, a curva dos montes, o vulto claro dos casais, deixando caprichosamente ao alto, suspenso entre céu e terra, como fanal, o campanário de Almada.” (...) Embora deslumbrantíssimo, o panorama que dali se desfruta não é estático. Basta que passe nuvem, destas nuvens cinzentas, tão do sul, enormes como bairros, e o cenário vai mudando gradualmente, como sob rolo de estampar. A água torna-se violeta e, beliscada não sei por que frémito, coberta de lumaréus de neve; são as arestas das ondas, ou os lenços que caíram ao mar nas despedidas?” (1985b, p. 59) 231 Repare-se na seguinte passagem, em que se verifica a síntese de sensações olfativas, visuais e tácteis, ao mesmo tempo que todas elas aparecem em forma de metáforas: “A campainha da Carris percutia: trelim! E eu estacava. O punhado de sons dava-me a impressão de pétalas vermelhas, pétalas pequeninas de trepadeira, que enchessem o ar. Um segundo... dois segundos, e quase sempre se tornava a coser o descosido e espesso silêncio da cidade adormecida.” (1985b, p. 171). 232 Por vezes, mesmo que as ninfas estejam ausentes por causa da tristeza de quem as procura, a sua presença imaginária e textual é conservada: “Ponho-me à janela de olhos fitos para o Tejo, tão branco e alegre que admira não se verem as Tágides brincar ao lume de água.” (1985b, p. 26) ou “Aqui na capital, a luz do sol tem durezas que não deixam ver as nereidas desatar os cabelos à corrente. Muitas vezes me debruço à janela que abarca o rio até a Torre de Belém, mas não as avisto.” (1985b, p. 68). 233 Esta lenda foi retomada, entre outros, por Byron em Childe Haroldʼs Pilgrimage (“And Tagus dashing onward to the Deep, / His fabled golden tribute bent to pay”, Byron, 1956, p. 54). 211 Estas referências ao mito inserem-se perfeitamente no imaginário que Aquilino, mais emotiva que sistematicamente, (re)cria nos seus romances urbanos. Ao lado dos arquétipos de tradição bíblica, portanto, ressuscitam na urbe aquiliniana os mitos helénicos que, junto com outros elementos de cultura greco-romana, aprofundam a imagem de Lisboa como uma cidade antiga, composta de vários filões temporais que emergem do magma histórico. Convém referir, a propósito, que Aquilino Ribeiro sempre se interessou pelos assuntos urbanísticos. Neste sentido, por exemplo, reagiu aos projetos do arquiteto paisagista francês Jean Claude Nicolas Forestier para o prolongamento da Avenida de Liberdade e a urbanização de Lisboa, em 1927, com o texto “A modernização de Lisboa”, em que acentua o caráter específico, velho e labiríntico, da velha cidade de Lisboa, pouco prestável a uma modernização em grande escala: Modernizar Lisboa é uma tarefa gigantesca; torná-la salubre, bela e confortável, com timbre próprio e ao mesmo tempo capaz de competir com outras capitais, empresa mais difícil que construir uma cidade nova. Há nela vícios originais, irremediáveis, que uma engenharia inteligente e ortopédica poderá atenuar, mas nunca resolver. A sua extirpação equivaleria a demolir bairros após bairros, começando por uma ponta e acabando por outra. […] O que há diante de nós é um dédalo, com duas ou três portas para o mar e saídas tortuosas, furtivas, com seu ar de azinhagas, para os campos. Nisto, ainda, perdura a Lisboa velha, com a sua feição exclusivamente marítima, as suas hortas interiores, separada do resto do país e com vida própria. (Ribeiro, 1927).234 A cidade velha, de facto, perdura na sensibilidade de quem a quiser sentir na sua profundidade temporal, junto com os seus mitos e lendas. Mas estas podem ser também criadas à base de acontecimentos verdadeiros, ou pelo menos perto da realidade. Ao analisar a novela migueisiana, referi-me a um tipo de lendas urbanas que revelam a face sombria da cidade, essas de vários criminosos, cuja fama tem perdurado através de décadas e séculos, inscrevendo-se nos lugares de crimes como sinais de um genius loci macabro. Assim, tal como o bairro de Whitechapel londrino será sempre recordado pelos assassínios de Jack o Estripador, impondose à sua atmosfera um ar de locus horrendus cheio de perigo, outros lugares, noutras cidades, viverão para sempre através de horrores que entraram no “livro” da cidade. Em Lisboa, este lugar corresponde ao espaço de Aqueduto de Águas Livres, onde foram cometidos roubos e assassínios em série, entre 1836 e 1839, por Diogo Alves (1810-1841), galego radicado em Portugal, condenado pelos seus crimes à forca. A aura nefasta do lugar, alimentada da história mais que sombria, é também recuperada, embora só em parte e de uma forma subtilmente implícita, em Mónica de Aquilino Ribeiro: 234 Transcrição do autógrafo, BNP Esp. D11/cx. 94, exposto na exposição Aquilino, anos 20: entre o exílio e as geografias de Lisboa, 2019. 212 Aquela noite Ricardo Tavares deixou mais tarde a casa de Alvarenga, às Amoreiras, descuidado das horas a trocar impressões acerca da audiência da véspera , de que falava Lisboa inteira. Viera a pé, não passava táxi nem carro eléctrico, e foi descendo devagar em direcção ao Rato. A alturas do último arco das Águas Livres, um homem alto, de bengalão pendurado do ombro, gola do sobretudo erguida para as mandíbulas, atravessou a rua a passos largos de modo a cortar-lhe o caminho: – Pst, pst, o cavalheiro dá-me lume...? Estacando, reparou Tavarede em quatro homens mais que se descosiam da sombra dos pilares e caminhavam ronceiramente para ele. Pelo jeito, pelos bordos, lembravam uma quadrilha de moços-de-forcado atrás do seu capitão.” (1985a, p. 173) Esta passagem do romance aquiliniano não perdia nada da sua força, se não fosse conhecida a história de Diogo Alves. A sugestão dos horrores do passado, contudo, aprofunda tanto a plasticidade da cena narrada, como o mal-estar da personagem que sente um receio alarmante ao ser abordado por um homem surgido das trevas. Deste modo, Ricardo Tavares, intuitivamente, não tira um esqueiro, mas uma pistola, irrefletidamente apontada para o intruso incómodo. É destes impulsos e reações psíquicas que os lugares se alimentam, para manterem a sua aura, o espírito. Neste sentido, poderíamos até falar de uma específica psicogeografia aquiliniana, de acordo com a qual a cidade não funciona somente a nível físico, mas também como um conceito mental, em que o material e o psíquico sempre coexistem e operam numa correlação inerente: os sítios conhecidos transformam-se numa cidade interior, enquanto as personagens habitam a cidade pela sensibilidade, ficando conscientes do seu caráter transtemporal, da fusão do presente e do passado, numa experiência coletiva (cf. Chalupský, 2016, p. 155). Vimos bem que as personagens aquilinianas exprimem várias emoções relativamente à cidade: desde os medos de desastres que poderiam repetir-se (Afonso Ruas) até ao amor que se estende da pessoa amada para o espaço circundante, transfigurado pela euforia (Maria Benigna). A Lisboa aquiliniana, portanto, torna-se ambígua, variando conforme a perspetiva de quem a observa e sente. E, deste modo, Aquilino, embora primordialmente ligado à Beira, conseguiu legar à posteridade uns belos romances urbanos que sem dúvida pertencem ao melhor da olisipografia literária. 213 6. A cidade da solidão feminina A minha vontade é de atravessar silenciosa as vagas multidões das ruas, ainda mais despercebida que até aqui. De me ir mumificando, sem dor. O que não quero é que me acordem, que haja gente interessante a passar ao pé de mim e a dar claridade ao mundo. Irene Lisboa: Solidão Seria incompleto analisar o imaginário urbano na prosa dos anos 30 sem abordar uma questão muito acutilante que é a das mulheres. O meio social lisboeta, sobretudo o burguês que me interessa neste estudo, mantinha um caráter bastante conservador no que diz respeito ao estatuto da mulher na sociedade e dentro das estruturas familiares. No modelo vigente da altura, a mulher burguesa devia ser esposa e mãe virtuosa. Esta cultura tradicional era também sustentada por uma certa literatura, tanto portuguesa, como estrangeira, que glorificava precisamente estas virtudes.235 Conforme observado por Cecília Barreira, “[o] papel da mulher nos romances estrangeiros de maior divulgação em Portugal e junto da população feminina alfabetizada é sempre enaltecido como fada do lar, amante fidelíssima, esposa exemplar.” (1994, p. 22). Outros tipos femininos eram subjugados à crítica ou pelo menos ironia. Assim, a “mulher independente e masculinizada que invariavelmente é infeliz por ter tomado essa opção na vida” (Barreira, 1994, p. 22).236 Apesar disso, com o início do século XX surgiram, paralelamente, outros padrões femininos, emancipados, que pelo seu elogio da “nova mulher” escandalizaram as águas pacatas portuguesas. Como afirma Cecília Barreira, “[a] novidade encontra-se no modo como se desculpabiliza a mulher” (1994, p. 27). Novas possibilidades de se ser mulher vinham sobretudo da França, por intermédio das artes e modas,237 e América, 235 Recordem-se os famosos textos de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão dʼAs Farpas, em que os autores condenam a educação tradicional das meninas lisboetas, centrada exclusivamente no alvo de arranjar um bom casamento. 236 A este respeito, Cecília Barreira refere-se ao romance O Caminho em declive (1928) de Henri Ardel. Menciona ainda outros títulos, por exemplo, O Baile dos Bastinhos (1935) da série Lisboa sem camisa de Armando Ferreira, em que aparece mais um tipo feminino criticado e ridicularizado, que é a mulher erudita (cf. Barreira, 1994, pp. 22-23). Os esquemas semelhantes vigoram também noutras obras do início do século XX. A mulher emancipada é nelas retratada como “fútil , imoral, desligada do lar e da família”, “perdida”, “esvaziada de objetivos espirituais”, em oposição ao “caminho da dignidade identificado com o papel tradicional” (Barreira, 1994, p. 24). 237 Diz Cecília Barreira sobre o início do século XX: “A moda é francesa, como de resto os costumes, o modo de falar, o modo de cozinhar, as expressões.” (1994, p. 28) Portanto, na cultura portuguesa imperava o fascínio por tudo que era francês. Dão nos conta disso vários periódicos femininos, como A Rainha da Moda (1922-23), Eva (a partir de 1925), Revista Feminina (1926), Vida Elegante (1926), A Mulher (1927), Voga (a partir de 1927), Ilustração Portuguesa etc. (cf. ibid. 27). França também constituía um destino privilegiado de viagens (o que se reflete, entre outros, nas viagens a Paris, referidas nos romances Bússola doida de Aleixo Ribeiro e Mónica de Aquilino Ribeiro). 214 graças ao cinema. Além disso, os padrões de comportamento feminino concebiam também preceitos de educação. Até aos anos 20 do século XX, a educação feminina burguesa era feita maioritariamente em casa. De acordo com os esquemas prevalecentes, as meninas, educadas por uma preceptora ou fräulein, aprendiam francês, tocar piano, normas de civilidade e alguns rudimentos de português e aritmética (cf. Barreira, 1994, p. 35). Com efeito, todos estes aspetos podem ser detetados nas obras literárias, como é Mónica de Aquilino Ribeiro. Contudo, o interesse de analisar as representações do urbano em relação ao universo feminino não é regido pela imagem da mulher urbana, cujo comportamento segue os modelos prescritos. O caso paradigmático corresponde, neste sentido, à figura da prostituta, sobre a qual Pierre Sansot, citado por La Salette Loureiro, diz “devient un personnage obsessionnel de la ville, le seul qui put sʼégaler aux cours, aux escaliers, aux immeubles, aux quartiers de toute une cité, parce que son nom y était clamé et hurlé” (Sansot apud Loureiro, 1996, p. 363). A figura da prostituta, contudo, não é uniforme, uma vez que “[d]a cortesã regularmente mantida à call-girl moderna alugada por uma noite, ou à prostituta paga ao acto, existem diferentes estados de prostituição, desigualmente representados na ficção” (Heinich, 1998, p. 262). Ao mesmo tempo, também a perspetiva de próprios autores diverge em vários sentidos. Um dos autores que se afasta da atitude comum de considerar a prostituta uma mulher amoral e caída por causa de seus próprios vícios, é Raul Brandão, em cuja obra a figura da prostituta adquire um valor de arquétipo da marginalidade urbana. Mais concretamente, Brandão exprime a sua atitude relativamente à prostituição na crónica “As rusgas”, publicada a 25 de dezembro de 1893 no Correio da Manhã, na qual é apresentado um testemunho de um boémio chamado Conceição que desvela as verdadeiras causas da prostituição: Escutei então o Conceição. Foi assim que eu soube que as mulheres se recrutavam entre as criadas de servir, as aldeãs com faltas e até nas honestas. Pormenor curioso, tocante ignomínia: raparigas partiam das suas aldeias para se entregarem à prostituição, com o intuito de resgatarem as casas de seus pais empenhadas. Vendiam-se umas para arranjarem um dote para o seu noivado! (...) Há ainda outra maneira de fornecer as casas de prostituição: (...) Trazem-se as raparigas enganadas, diz-se-lhes que vêm servir para a cidade, e logo que encafuadas nos covis, de rico vestidas para as seduzir – entram em cena os ricaços. (Brandão, 2013, pp. 324-325). Deste modo, as rusgas, mencionadas também (sem essa compaixão brandoniana) na novela “A ruiva” (Contos, 1881) de Fialho de Almeida, parecem totalmente insensatas e desumanas. Brandão percebe que a sociedade burguesa lisboeta funciona de um modo hipócrita, condenando e perseguindo as pobres raparigas de rua, entregues à miséria do ganho de um 215 tostão por noite para poderem comer, enquanto as meninas prostituídas dentro das casas burguesas não sofrem dano algum. “A polícia conhece bem que canalhice e que miséria vão por essa cidade,” diz Brandão, adicionando: “e mesmo a sua missão é escondê-la, para que não nos incomode, como um pobre à porta, à hora do jantar...” (Brandão, 2013, p. 325). Focada como um ente individualizado, aparece mais tarde a figura da prostituta no romance O nome de guerra. Mas o “mergulho na multidão tumultuosa” desta mulher, de nome falso Judite, é, como diz La Salette Loureiro, “o único modo de encontrar a paz que deseja e não encontra sozinha consigo própria” (Loureiro, 1996, p. 366), porque o “tédio esmag[a]-a na solidão”: “E ela fugia horrorizada dos lugares pacíficos que lhe negavam a paz e ia misturar-se na multidão para não se ver, para não se sentir (Negreiros, 2001, p. 49)”. Noutra passagem, explica-se ainda mais o seu medo pânico da solidão involuntária: “O horror de estar só no mundo apenas o podem sentir aqueles que, como a Judite, já perderam o melhor que tinham e não conseguem a certeza de nada.” (Negreiros, 2001, p. 83). Por outro lado, não é necessário de a mulher ser prostituta para se sentir completamente abandonada e só. É o caso da mulher seduzida e rejeitada que é uma outra figura retratada sobretudo na prosa oitocentista. É o que acontece no conto “Três cadáveres” (O país das uvas, 1893) de Fialho de Almeida. Neste texto, a protagonista é primeiro seduzida e rejeitada por um homem pelo qual ela se apaixonara e em seguida é expulsa da casa pelo pai. A pobre não aguenta as condições miseráveis nas quais se vê forçada a viver, acabando por entrar num hospital onde morre. O espaço lisboeta, ao que a sua existência é limitada, é apresentado em cores cinzentas, soturnas: “Havia ratos. Uma chuva antipática, muito fina, descia calada sobre os lamaçais da rua; e ao fundo dum boqueirão soturno ouvia-se o rio mugir, e chamarem para os barcos as vozes prolongadas dos barqueiros.” (Almeida, 1987, p. 213). A degradação do espaço que se estende da casa até ao hospital, em que a protagonista morre, reflete assim a própria degradação do corpo feminino e da sua existência enquanto ser humano. O que, portanto, interessa neste contexto, são aqueles espaços femininos à sombra da sociedade fútil e mundana, espaços fechados, nos quais muitas vezes se trava um drama de existência. Se pensarmos novamente na poesia de Cesário Verde, verificamos que nem todas as suas figuras femininas urbanas são aristocratas frias e inacessíveis. Há também aquelas que, pela sua pobreza e fragilidade, provocam no sujeito lírico um sentimento de piedade. São, em princípio, mulheres solitárias, muitas vezes enfraquecidas devido às condições precárias da vida, que devem trabalhar para se poderem alimentar. Por isso, os retratos de engomadeiras lisboetas e outras raparigas pobres pertencem também ao imaginário da capital portuguesa, ao seu lado obscuro. É o que se verifica, por exemplo, no poema “Contrariedades”: 216 Sentei-me à secretária. Ali defronte mora Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes; Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes E engoma para fora. Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas! Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica. Lidando sempre! E deve a conta à botica! Mal ganha para sopas... (Verde, 1999, pp. 57-58) A engomadeira cesariana é retratada à base de um rol de atributos disfóricos que acentuam a sua situação existencial (vive sozinha, não tem parentes) e fraca saúde que a faz assemelharse a um ser insólito e horripilante (pulmões doentes, faltas de ar, esqueleto branco, lívida). Mas apesar de estar sempre fechada numa casa humedecida pela roupa estendida, a trabalhar com ferro aceso cuja combustão a asfixia, esta pobre é ainda capaz, ao contrário do sujeito lírico, de se alegrar com umas banalidades, como é uma canção de opereta. É esta caraterística que lhe impresta uma forte humanidade e humildade ao mesmo tempo. Há porém ainda outras figuras femininas na prosa urbana, situada em Lisboa e publicada na primeira metade do século XX, cuja asfixia já não se relaciona com a doença, nem propriamente com as condições de vida, mas com um estado psicológico defluente do espaço urbano sentido como limitador. Neste sentido, poderíamos mencionar novamente o conto “Mefistófeles e Margarida” de Fialho de Almeida, em que a figura feminina, a florista Clara, vive com o seu filho num apartamento subterrâneo semelhante a um sepulcro. É, de facto, a sua condição de “viva-morta” que se encaixa dentro do contexto literário do século XIX e início do século XX como uma imagem paradigmática para ilustrar a situação das mulheres urbanas em geral. 6.1. A “enterrada viva”: condição feminina na urbe moderna Embora o motivo terrífico de viva-morta (ou enterrada viva) não se possa restringir, obviamente, à questão da mulher urbana, é bastante curioso observar que a condição feminina, em princípio urbana, convida a esta comparação de um modo bastante espontâneo. Podemos mencionar alguns exemplos. Na peça Frei Luís de Sousa (1843), de Almeida Garrett, a figura de D. Madalena, trágica e sublime no seu amor, entra num convento, “duplicando a emblemática D. Joana de Castro, condessa de Vimioso, amortalhada em vida” (Rita, 2018, p. 217 26). Maria da Piedade, protagonista do conto “No moinho” (1978), de Eça de Queirós, vive na sua casa como se estivesse morta, aniquilada fisicamente, dedicada ao marido e filhos doentes. O espaço fechado da casa, com efeito, é análogo a um hospital, de ar pesado e sem alegria, a que corresponde a paisagem circundante, vista da janela. E embora o propósito de Eça de Queirós tenha sido o de sublimar a condição da mulher-fada do lar, angélica e abdicada qual uma santa, em contraste à mulher-Vénus apaixonada e demoníaca, é indubitável que a descrição do espaço dicotómico casa-hospital/natureza viva e sã aponte para uma problemática que vai para além da primeira leitura ideológica dum conto de tese. Ultrapassando os esquemas patriarcais queirosianos, Aquilino Ribeiro cria uma outra situação no romance Maria Benigna, anteriormente analisado. Apesar de a protagonista pertencer à burguesia lisboeta abastada, ela própria não se sente bem dentro da sua relação matrimonial, em que as emoções e interesse recíproco já se extinguiram. A experiência do amor-paixão fornece-lhe a possibilidade de sentir a vida; perdendo o amor recairia “no frio e desolado vácuo” da sua “primeira, inútil e sepulcral existência” (Ribeiro, 1985b, p. 126). Nestas circunstâncias, Maria Benigna sem amor encarna mais um tipo feminino de viva-morta, esse que está vinculado à paixão amorosa. Também na obra de Branquinho da Fonseca há um conto que desenvolve a questão feminina, tributária da metáfora de viva-morta, mas de um outro ponto de vista. Trata-se do conto “As mãos frias” (Rio turvo, 1945) que foi já com muita empatia e sensibilidade interpretado pelo especialista fonsequiano, António Manuel Ferreira. O conto é protagonizado por Virgínia, a jovem que vive num prédio supostamente urbano. Uma vez, ao regressar a casa após um dia de trabalho, depara-se com uma situação invulgar: a vizinha informa-a que morreu um dos vizinhos, senhor Pedro, com o qual, porém, a jovem não tinha o mínimo relacionamento. Apesar disso, é convidada para entrar dentro da casa do senhor Pedro, para assistir ao velório. Uma vez dentro, a jovem fica incompreensivelmente atraída pelas mãos do morto, acabando por tocar levemente nos seus dedos: Estava a pensar nas mãos do morto. Olhou-as outra vez. Pareciam de cera. Estendeu o braço e como uma sonâmbula, quase sem querer, poisou a ponta dos dedos sobre a mão do defunto. Sentiu uma frieza de gelo e um arrepio percorreu-lhe o corpo todo. Recuou e sentou-se, atónita, na mesma cadeira onde há pouco tinha estado. Olhou a ponta dos dedos onde a sensação de frio tinha ficado pegada, e passou a mão sobre a saia como quem a limpa de alguma coisa. (Fonseca, 1997, pp. 92-93) Porém, o frio gélido sentido ao tocar no morto transfere-se para as mãos de Virgínia, resistindo a qualquer possibilidade de lavagem (“Parecia-lhe que tinha as duas mãos geladas, que o frio subia das pontas dos dedos pelo braço acima e lhe invadia o corpo todo.” Fonseca, 218 1997, p. 95). É precisamente este motivo do frio que, afinal, constitui o verdadeiro, mesmo que íntimo drama da protagonista. Ao analisar o conto, António Manuel Ferreira intitulou o seu ensaio “As mãos frias da solidão”, argumentando que “[a] curiosidade que Virgínia vai sentindo pelo caso do senhor Pedro (...) vai proporcionar-lhe um contacto álgido com a solidão mais profunda”, desvelando a sua verdadeira situação que é a da “enterrada viva” (Ferreira, 2012d, p. 400).238 Podemos também dizer, por outras palavras, que o senhor Pedro figura no conto como um duplo da jovem, numa condição análoga, mas inversa. O senhor Pedro “morreu, mas viveu”, enquanto Virgínia vive como uma morta, apertada pelas necessidades materiais quotidianas que não a deixam sentir a plenitude, muito menos a felicidade. O conhecimento desta situação é transmitido, para além do motivo do frio, pelo cenário, em que a história é inserida. António Manuel Ferreira observou muito bem que o drama da jovem é meticulosamente preparado desde os primeiros parágrafos, mesmo a partir da primeira frase, de alto teor sugestivo (cf. Ferreira, 2012d, p. 399),239 salientando também o facto de toda a acção decorrer em “espaços interiores, comuns e privados: a escada, o patamar, a cozinha, os quartos” (Ferreira, 2012d, p. 399). O espaço reduzido e delimitado pelos muros transporta, com efeito, uma ideia de bloqueamento, de asfixia, como se o leito do morto ocupasse todo o espaço, sórdido e sepulcral. É óbvio que este espaço fechado, sem ar livre, aponta para as condições da vida urbana. A situação torna-se mais perniciosa quando se trata de uma mulher jovem, sem grandes expetativas para o futuro. Neste sentido, a “gaiola” que em certos contextos exprime os prédios de fraca qualidade, como foi referido na análise do romance Mónica de Aquilino Ribeiro, estende o seu significado em termos de sugerir uma ideia de prisão. Por isso, a gaiola no outro conto fonsequiano, “A prova de força”, também já anteriormente mencionado, deve ser interpretada com duas chaves, primeiro como um espaço para pássaros, depois como uma alusão ao espaço aprisionador da esposa que tinha demonstrado uma vontade dissimulada de se evadir, e por isso foi assassinada.240 Também no poema “Noite fechada” de Cesário Verde, os versos finais sugerem uma situação pouco vantajosa para a jovem namoradeira: E tu que não serás somente minha, 238 Seguindo a argumentação de António Manuel Ferreira: “Virgínia responde à revelação ‘com indiferença’, mas a indiferença é apenas o primeiro momento de um processo gradativo em que, através do contacto com a morte real, a protagonista vai sentir, no corpo e na alma, a sua própria situação de ‘enterrada viva’.” (Ferreira, 2012d, pp. 399-400). 239 “Ao entrar a porta da rua olhou para cima e viu que estavam três pessoas na escada, a conversar em voz baixa. Eram sombras: tinha começado a anoitecer.” (Fonseca, 1997, p. 85) 240 Diz o louco: “Também tenho pássaros. Andam pela casa toda. Sempre é uma gaiola maior. Pus redes nas janelas. (...) Tenho as minhas coisas guardadas nuns armários. E o resto é todos os dias limpo como uma boa gaiola.” (Fonseca, 1997, p. 132) 219 Às carícias leitosas do luar, Recolheste-te, pálida e sozinha, À gaiola do teu terceiro andar! (Verde, 1999, p. 85) A solidão e o espaço reduzido evocam, tanto em Cesário, como em Branquinho da Fonseca, uma condição feminina desfavorável, fonte de angústia.241 Por conseguinte, a solidão como fator degradador da vida de uma jovem solteira é, na perspetiva fonsequiana, correlacionada com a ideia da morte. Assim, as três sombras vislumbradas à entrada do prédio, logo no início do conto, representam, conforme António Manuel Ferreira, as três Parcas que indicam a “presença da morte” (Ferreira, 2012d, p. 399). A referência às Parcas parece-me justíssima, mas não só por evocar a morte. As três Parcas da mitologia romana correspondem às três Moiras gregas, deusas que costumam ser representadas como fiandeiras ou costureiras e que controlam o destino e vida dos mortais. Ora, as sombras-Parcas à entrada do prédio não só antecipam a presença da morte (do senhor Pedro), mas também prefiguram o destino de Virgínia, ou pelo menos o modo como Virgínia percebe o seu próprio destino, o qual a enche de profunda melancolia. Essas mulheres-Parcas, em vez de velar o falecido, embebedam-se e divertem-se com conversas obscenas. É precisamente neste ambiente grotesco que Virgínia se apercebe, por efeito vampiresco do morto, da sua “morte em vida” e também da mesquinhez e ordinarice da vida que lhe é indiretamente vaticinada pelas Parcas nojentas: Era a sua vida abafada, subterrada debaixo de tanta mesquinhez, deste aperto das necessidades do dia-a-dia, do emprego onde não ganhava que chegasse, do vstido coçado, das outras que vivem, que respiram ao sol, que têm sol! E ela a ver a vida passar. Viver tinha de ser hoje. E hoje não a deixavam. Subiu para o seu quarto, atirou-se sobre a cama, a soluçar baixinho. Aquele morreu, mas viveu... E sentiu outra vez, mais nítida na ponta dos dedos, a sensação do frio. (Fonseca, 1997, p. 96) Pelo contato com as Parcas, Virgínia não só compreende a profundidade da sua angústia, como é ainda ferida na sua sensibilidade de jovem pouco experiente (embora não se diga nada a respeito, o nome da rapariga conota a sua virgindade). Por isso, quando se dirige ao seu namorado que a costuma visitar, não sabe ainda formular bem o choque emocional que viveu, desculpando-se com as evasivas incompreensíveis para o rapaz: – Morreu o senhor Pedro... 241 Pode ser aqui mencionada uma coincidência curiosa: no mesmo ano da publicação do conto fonsequiano (1945) sai também, entre outros títulos, um volume de contos Um filho mais e outras histórias de Manuela Porto sobre as mulheres em “situações de solidão não superáveis, pois prisioneiras dos códigos de dominação masculina que interiorizaram e dos quais são incapazes de se libertar”, como diz Vítor Viçoso (2011, p. 250). 220 (...) – Que Pedro? –O que morava aqui por baixo... E eu fui lá e fez-me impressão. A criada estava bêbeda, insultou-me... Mas amanhã te conto, amanhã!... – Amanhã, para quê? A tua cara explica tudo, as tuas lágrimas... São tão sentidas que qualquer te perdoa. (Fonseca, 1997, pp. 98-99) O equívoco que se estabelece entre a jovem e o rapaz faz ainda lembrar contos de uma autora contemporânea, Teresa Veiga (1945), talvez a melhor continuadora do legado contístico de Branquinho da Fonseca na atualidade. O primeiro laço entre os dois contistas corresponde ao conto “As Parcas” (Uma aventura secreta do Marquês de Bradomín, 2008), situado na Lisboa da (provavelmente) primeira metade do século XX, que aborda o relacionamento difícil entre a mãe (Francisca Arroyo) e filha (Rita); difícil não por causa da falta de compreensão entre as duas, mas por causa da forte inter-dependência que inibe a filha de agir livremente, conforme a sua própria vontade. A filha adapta-se inteiramente aos gostos e projetos da mãe, acompanhando-a inclusive nas viagens, nas quais, curiosamente, é a mãe quem arranja outros relacionamentos afetivos, e não a filha. Só por causa da mãe, a filha corta relações com um jovem que a atraía. E mesmo que o procedimento da mãe seja unicamente orientado pelo amor à filha e desejo da sua boa sorte, a filha acaba por cair numa abulia e paralisia emocional, incapaz de defender o seu direito à vida por ela desejada. Só no fim, antes de morrer de um acidente vascular, a mãe se apercebe do seu autoritarismo, ao mesmo tempo que descodifica, nas duas criadas que vivem com a sua família, uma encarnação das Parcas. Apercebe-se que talvez tenham sido elas, mais a porteira, que espalhavam boatos sobre o namorado da filha. Com efeito, as três mulheres têm nomes (Clotilde, Lucinda, Albina) que evocam as Parcas míticas (Clotho, Lachesis, Atropos), sendo também elas costureiras aficionadas e, tal como as Parcas fonsequianas, feias e ordinárias.242 A este propósito, Teresa Veiga invoca a pintura Atropos de Goya, da série de pinturas negras, que representa as Parcas terríveis e grotescas, representadas pelas criadas-irmãs (Albina com a tesoura, Lucinda com o espelho). A mesma pintura, com efeito, poderia servir de modelo 242 “Como sempre, estariam sentadas nas camas que o excesso de almofadas e os colchões sobrepostos assemelhavam a tronos, viradas para a porta como guardiãs do templo, entretidas com os seus trabalhos de mãos, mãos que pareciam agir sozinhas, em movimentos independentes, enquanto os olhos e as cabeças giravam como ventoinhas numa espécie de permanente vigilância e apropriação do espaço que tinham usurpado e sentiam como seu.” (Veiga, 2015, p. 38). “Tal como calculava, as duas irmãs faziam o serão entronizadas nas altas camas. Albina, com uma tesoura do tamanho de uma tenaz, cortava os fios soltos do reverso de um pano que estivera a bordar, uma tesoura que os anos tinham enegrecido e afiado e cujo clique-clique soava com uma precisão alegre e brutal, manobrada pelos dedos destros da dona. Lucinda pusera de lado o tricô e arrancava os pêlos do queixo, olhandose no pequeno espelho redondo (...)” (Veiga, 2015, p. 39) 221 às criadas ordinárias de Branquinho da Fonseca que “insultam” a jovem Virgínia com alusões obscenas, para as quais a rapariga ainda não está preparada. Nos dois contos, portanto, as “Parcas” apontam para a mesquinhez e esvaziamento que espera as duas jovens, não no sentido da sua condição económica, que é diferente nos dois contos, mas no sentido de perda de ideais e de sonhos íntimos. A perceção do fosso que existe entre os sonhos e a realidade que esses sonhos inviabiliza, invoca o tópico clássico do desconcerto do mundo, da impossibilidade de mudar o “destino”. Por isso, antes da morte, a mãe tenta explicar, numa nota, que a filha deveria casar com o rapaz amado, tentando a sua sorte sem dar ouvidos aos boatos que correm a seu respeito. Consegue, porém, escrever só a palavra “Não” que é interpretada pela filha como “Não cases”. Rita, portanto, “[n]ão casou e partilhou a sua casa com as Parcas até à morte delas, vivendo sozinha o resto dos dias com o apoio e a amizade dos irmãos.” (Veiga, 2015, p. 45). Quanto à protagonista fonsequiana, esta também não escapa ao poder do vaticínio das Parcas, facto que é sugerido, no final, pela presença reiterada das criadas: O vento vinha da escada, frio, e a porta lá em baixo ficou a bater. Então viu sair do vão negro uma mulher – a senhora Clara – que veio até ao pé dela e lhe pôs a mão na testa. Mas tudo longínquo e nebuloso. Nitidamente só ouvia que no andar de baixo, a outra, bêbeda, andava a cantar ao pé do morto. (Fonseca, 1997, p. 99)243 Outro laço entre o conto fonsequiano e a obra de Teresa Veiga pode ser observado na narrativa “A morte de um jardineiro” (As enganadas, 2003). Trata-se da história de Rosalía Pérez, de origem humilde, casada com o dr. Paulo Guerra, governador civil, rico e com fama de sedutor. O nó dramático concentra-se no dia da festa de anos do marido, em que, por um acidente trágico, morre o jardineiro da casa. Ao saber desta notícia, Rosalía fica de tal modo emocionalmente transida que o governador acaba por se convencer de que a sua mulher, pelos 243 Pode verificar-se também um paralelo entre os contos de Branquinho da Fonseca e os modernistas estrangeiros. Em geral, indica-se certa similaridade com Katherine Mansfield (Ferreira, 2012d, p. 400). Mas há também proximidade com D. H. Lawrence e James Joyce. Repare-se, por exemplo, que James Joyce na sua coletânea The Dubliners (1914) tece também histórias íntimas de personagens-habitantes da capital irlandesa. Nas narrativas, que em vários aspetos retratam a sociedade paralizada, as personagens dão-se conta de alguma revelação (epifania) íntima que pode modificar as suas vidas. Um certo paralelo com o conto fonsequiano pode ser visto na narrativa “Eveline” de Joyce sobre uma jovem que podia dar um passo em frente com um rapaz que gosta dela, libertando-se assim da sua dependência do pai e das lembranças sombrias da sua mãe moribunda (“She trembled as she heard again her mother´s voice saying constantly with foolish insistence: ‘Derevaun Seraun! Derevaun Seraun!’. She stood up in a sudden impulse of terror. Escape! She must escape!” Joyce, 2019 [2001]). Porém, no final, quando combina partir com o seu rapaz para a Argentina, a jovem vacila, irracionalmente, acabando por ser subjugada por uma estranha paralisia que, apesar de tudo, explica toda a sua vida, a impossibilidade de romper com as cordas que a ela a atam (“Her eyes gave him no sign of love or farewell or recognition.” Joyce, 2019 [2001]). Também a heroína de Branquinho da Fonseca fica imobilizada, paralisada emocionalmente, quando vê o rapaz amado desaparecer para sempre (“Virgínia ficou atónita a olhar para o buraco escuro da porta, para aquele poço da escada, por onde se afundava e desaparecia o homem que ela amava. (...) Ficou imóvel, sem conseguir pensar, sentindo um turbilhão na cabeça vazia.”, Fonseca, 1997, p. 99). 222 vistos apaixonada pelo jardineiro, lhe era infiel. O final do conto, porém, não corroborando nem contestando esta suposição do governador, aponta para uma problemática parecida com o conto fonsequiano no que diz respeito à sondagem de várias nuances de relacionamentos humanos, nem sempre facilmente legíveis. O facto de a sociedade se orientar, na maioria, por esquemas tradicionais pouco variáveis, pode gerar alguns equívocos. A amizade terna ou talvez amorosa que Rosalía sentia para com o jardineiro é, com efeito, incompreendida pelo marido, em cujo ideário patriarcal não cabe outro tipo de relacionamento entre homem e mulher para além da ligação sexual, ao passo que o mesmo relacionamento é sem reservas aceite pela viúva do jardineiro. O conto de Teresa Veiga, portanto, mostra uma solução para a solidão feminina, tão dramatizada em Branquinho da Fonseca: a amizade e cumplicidade entre as mulheres.244 O tema da amizade feminina na literatura mereceria um estudo à parte. Fique registado, pelo menos, que esta questão pode ser analisada na interseção do discurso masculino e feminino. Um exemplo: a narrativa “Insaciada” (Satânia, 1927), de Judith Teixeira (1888-1959) foca a amizade harmoniosa de duas mulheres, a etérea Clara e a pragmática Maria Eduarda, que é “perturbada” pelo amor platónico de um admirador apaixonado por Clara. Esta também não se lhe mostra indiferente. Recorde-se, à guisa de comparação, uma outra novela, desta vez de proveniência inglesa, que também apresenta duas mulheres-amigas, cujo lar é “invadido” por um homem-forasteiro. Trata-se da famosa novela The fox (1922) de D. H. Lawrence, já mencionada por Pam Morris no seu estudo sobre a crítica feminista (Literature and feminism. An introduction, 1993). A diferença é evidente: enquanto na novela inglesa, o homem também se apaixona por uma das mulheres, aquela que é mais “feminina” e doce, sendo a outra destinada à morte por um “acidente” (sintomaticamente, é uma árvore como símbolo fálico que mata a mulher), na narrativa de Judith Teixeira é, ao contrário, o homem quem morre, por suicídio, relevando a sua paixão ao domínio da eternidade, nunca esgotada. O pacto feminino é, assim, mantido. Mais ou menos na mesma época (1928) foi na Inglaterra publicado o romance The well of loneliness, de Radcliffe Hall, sobre Stephen Gordon, auto-chamado “congenital invert”, que também aposta na amizade feminina, desta vez mesmo assente no amor lésbico. E, embora não seja obviamente adequado timbrar todas as obras focadas na amizade feminina de lésbicas, é indubitável que, mesmo não se tratando de uma relação sexual, a forte amizade entre mulheres 244 O tema da amizade feminina, às vezes em alusões sáficas, é também uma das constantes na obra veiguiana. Recorde-se, a título exemplar, o conto “A minha vida com Bela” (O último amante, 2017) sobre o relacionamento da narradora autodiegética com Florbela Espanca. 223 constituía um tema provocador e incómodo tanto para os conservadores ingleses, como para os tradicionalistas lusitanos.245 Ao questionar as convenções de género, sexualidade e identidade do ponto de vista feminino, a obra de Irene Lisboa segue certos caminhos abertos por Judith Teixeira. Nas palavras de Sara Marina Barbosa, estudiosa da poesia ireniana, a proposta de Irene Lisboa, apesar de não se restringir à expressão feminista de escola, é “demolidora em relação ao poder simbólico masculino” (Barbosa, 2019, p. 70), sobretudo pelo facto de não se limitar à exposição de temas considerados naturais para mulheres (paixão amorosa, dor etc.), mas, através de uma reflexão inteletual bem ponderada, demonstrar preocupações de ordem artística, comparáveis às de poetas da modernidade, sem contudo prescindir da sua identidade feminina (o sujeito da sua poesia e de alguma prosa assume-se explicitamente como “mulher”). Apesar disso, opta por publicar alguns dos seus títulos com os pseudónimos masculinos (João Falco, Manuel Soares), instalando no seu discurso literário uma certa ambiguidade genérica.246 Mas enquanto Judith Teixeira assinou a sua obra com o seu nome feminino, exibindo, um olhar de género ambíguo,247 Irene Lisboa opta pelo nome masculino, manifestando quase sempre um olhar feminino. Só num poema, intitulado “Afrodite”, Irene Lisboa se aproxima das deusas esculturais de Judith Teixeira, elogiando a sua beleza sensual, física (“Formosa / Esses peitos pequenos, cheios. / Esse ventre da cinta, o gracioso umbigo, o escorrido das ancas, o púbis 245 Neste sentido, é preciso notar que a época do início do século XX tornou-se também palco de um escândalo literário em Portugal, nomeado “Literatura de Sodoma” em 1923, relacionado com a obra de Judith Teixeira, António Botto e Raul Leal. Os poemas de Judith Teixera foram considerados provocadores pelo seu cariz lésbico. Sobre Judith Teixeira e o seu lugar na literatura portuguesa veja-se sobretudo a pesquisa de Martim de Gouveia e Sousa (Judith Teixeira e o lugar: uma “irmã de Shakespeare” no modernismo literário português. Coimbra: Areias do Tempo, 2009, “Decadência, o primeiro livro de Judith Teixeira”, Viseu: Instituto Superior Politécnico de Viseu, 2002, prefácio a Obras Completas. Lírica. Viseu: Edições Esgotadas, 2016, 2019, “Lesbianismo e interditos em Judith Teixeira”, Forma Breve nº 7, Aveiro: Universidade de Aveiro, 2014, “Judith Teixeira: Lirismo e perturbação nas novelas de Satânia”, Forma Breve nº 2, Aveiro: Universidade de Aveiro, 2004), “Judith Teixeira: o corpo insólito” in Judith Teixeira: ensaios críticos. No centenário do Modernismo. Viseu: Edições Esgotadas, 2017 . Convém também mencionar a pesquisa de René P. Garay (Judith Teixeira, O Modernismo sáfico português (Estudo e textos). Lisboa: Universitária Editora, 2002), Cláudia Pazos Alonso (“Judith Teixeira: um caso modernista insólito” In Judith Teixeira, Poesia e prosa. Lisboa: Dom Quixote, 2015), e de outros pesquisadores, cujos trabalhos foram reunidos no referido volume Judith Teixeira: ensaios críticos. No centenário do Modernismo. O facto de Judith Teixeira constituir uma referência contextual para quem estuda a obra de Irene Lisboa é provado, entre outros, pela seguinte afirmação: “Judith Teixeira é uma poetisa viseense que cruzou pela revolução modernista sem que verdadeiramente o soubéssemos. Só factores exógenos ao rigor analítico puderam fazer desta mulher um objecto de arqueologia literária. E, pensando bem, a injustiça é enorme, uma vez que se trata de uma voz original – um misto de Mário de Sá-Carneiro, Florbela Espanca e Irene Lisboa, com mais ousadia e maior força assertiva” (Sousa, 2002, p. 4). 246 Sobre este aspeto escreve Sara Marina Barbosa no seu excelente ensaio dedicado à obra poética de Irene Lisboa, indicando que, tanto na colaboração com a Seara Nova (1926-1955), como nos textos publicados na revista presença – Folha de arte e crítica (1931-1938), Irene Lisboa usava os pseudónimos masculinos de João Falco, Manuel Soares ou um pseudónimo feminino de Maria Moira, ao lado de assinatura de “Irene Lisboa”, ou somente “Irene”, ou apenas “I.L.” (Barbosa, 2019, p. 44). 247 Ao lado de poemas assinados pelo seu nome (poemas ortónimos), há também um conjunto de poemas publicados em Diário de Lisboa em 1921 sob o pseudónimo Lena de Valois (cf. Teixeira, 2019, pp. 193-199). 224 discreto...”, Lisboa, 1991, p. 314).248 Noutros casos, o sujeito poético de Irene Lisboa recusa excentricidades e excessos sensuais, virando o seu olhar para os recantos da banalidade e do quotidiano, em que se movem mulheres (ou raparigas) sem qualquer beleza especial (“É interessante a Belena!/ Mas ontem achei-a feia”), e apesar disso (ou por isso mesmo) interessantíssimas (“Pareceu-me a mais simpática, / a mais afável / e interessante / de todas as raparigas...”, Lisboa, 1991, pp. 83-85).249 São estas mulheres que, no rasto das engomadeiras e varinas de Cesário Verde, povoam as páginas da obra ireniana. 6.2. A observadora do mundo urbano: Solidão, de Irene Lisboa Irene Lisboa pode ser considerada a primeira escritora modernista portuguesa visceralmente vinculada ao espaço urbano lisboeta. É também esta autora que, ao contrário de outras modernistas como Judith Teixeira e Florbela Espanca, eleva o espaço ao lugar cimeiro da sua poética. Este facto é também comprovado pelos títulos de algumas das suas obras, sobretudo de crónicas, como Esta cidade! (crónica lisboeta) (1942), O pouco e o muito – crónica urbana (1956) ou Crónicas da serra (1958). Pelo rigor e mestria que a autora lisboeta conseguiu alcançar precisamente neste género de formato breve, pode ser considerada uma das melhores vozes da crónica lisboeta do século XX, precursora de José Ferreira Gomes, José Cardoso Pires, Baptista-Bastos ou António Lobo Antunes. Restringindo-nos, no entanto, à época em que Irene Lisboa viveu e escreveu, é necessário apontar mais uma vez a poética de Cesário Verde como a mais importante na abordagem do urbano, à qual a autora lisboeta se dedicou na sua obra. A este propósito, Paula Morão diz o seguinte: Como em Cesário Verde, também aqui a narradora, em monólogo interior, se coloca numa posição de observadora privilegiada de um mundo multifacetado, também ela dá conta da cidade em movimento, e nela recorta cenas e pormenores, com cambiantes de luz e cor de tal modo intensos que a fazem, por vezes, perguntar-se se está a escrever ou a pintar. (Morão, 1993, p. 37) Na sua leitura da obra ireniana, Paula Morão salienta o facto de se tratar de um discurso não puramente registador (como poderia parecer à primeira vista), mas sobretudo emocional 248 Trata-se do poema de Outono havias de vir. Tal como na poesia de Judith Teixeira, encontram-se, na obra ireniana, alusões a um latente safismo, por exemplo quando o sujeito poético feminino se refere ao coração que queria oferecer à sua amiga porque “os homens o não querem” (Lisboa, 1991, p. 178). Curiosamente, a questão da amizade feminina não se restringe, no caso de Irene Lisboa, à literatura, uma vez que a autora lisboeta manteve uma relação pessoal com Ilda Moreira Hespanha, com quem viveu no período de 1916 – 1929 e depois a partir de 1936 até à sua morte (cf. Lopes, 1994, p. 15). 249 Trata-se da citação do poema “Outro dia” da coletânea Um dia e outro dia..., de 1936. 225 (cf. 1993, p. 37). Com efeito, a narradora ireniana não mantém uma distância fria e racional perante o observado, envolvendo-se sempre afetivamente no que vê ao seu redor. Além disso, a bem dirigida atenção aos pormenores da vida quotidiana, sejam objetos, partes do cenário exterior ou gestos entrevistos na rua, sublinha o facto de a existência humana ser composta principalmente de uns pequenos “nadas” que, se forem devidamente valorizados, ganham importância primordial na construção da vida emocional de cada um e na perceção do que é a humanidade. No espetro da obra ireniana, tanto poética como narrativa, a presença da cidade de Lisboa é um facto e uma dimensão marcante em termos de imaginário e sistema axiológico, estabelecidos a partir dos fins dos anos 30 com Solidão (1939). Neste texto, inaugural e fulcral para a compreensão de toda a obra ireniana, a perspetiva feminina aborda a cidade não só do lado exterior, como era costume, mas também do lado interior, privado e intimista.250 Tratandose de um diário (fictício, mas com vários traços autobiográficos), é curioso notar que este texto prosaico é acompanhado, ainda na mesma década, de dois volumes de poesia intitulados Um dia e outro dia (1936) e Outono havias de vir (1937), publicados inicialmente sob o pseudónimo masculino de João Falco, dos quais o primeiro é explicitamente subtitulado diário de uma mulher. Com efeito, nas duas obras “diarísticas”, em prosa e em verso,251 apresentam-se temas até então não conhecidos na poesia de autoria feminina. A mundividência expressa na poesia e na prosa coincide porque tanto a prosa, como a poesia, exprimem o mesmo olhar sobre a cidade que deu apelido a Irene, mulher insubmissa e das mais originais nas letras portuguesas. 6.2.1. A room of oneʼs own Para a mulher se poder dedicar à escrita, precisa de dinheiro e de um quarto seu, avisou Virginia Woolf num dos seus ensaios mais citados, de 1929. Este pressuposto foi cumprido no caso de Irene Lisboa, mulher bastante independente para a época em que viveu. O problema, com o qual Virginia Woolf não contou, é que o próprio quarto, muito mais se servir de habitação a uma mulher, pode tornar-se o seu oposto e, em vez de expressão de liberdade ou de felicidade 250 Como já foi observado por Paula Morão (1994), houve várias tentativas de encontrar afinidades para a escrita de Irene Lisboa fora do âmbito da literatura portuguesa, sendo mais frequentemente mencionada Katherine Mansfield (cf. Castelo Branco Chaves, 1936, Gaspar Simões, 1936, Vitorino Nemésio, 1937, Pierre Hourcade, 1940). Seguem-se, no entanto, outros autores, entre os quais Virginia Woolf, Colette, Amiel, Kierkegaard etc.. Para mais referências no que diz respeito à primeira receção e crítica da obra de Irene Lisboa, veja-se P. Morão (1994). 251 É preciso advertir que Irene Lisboa não se preocupava com as fronteiras genológicas, sabendo perfeitamente que a sua poesia evitava os moldes de uma lírica tradicional, podendo ser até percecionada como um discurso prosaico dividido ritmicamente em versos sincopados. 226 na esteira de Gaston Bachelard, pode transformar-se numa prisão.252 É o que acontece no conto “As mãos frias”, acima comentado, e noutras narrativas de Branquinho da Fonseca, nas quais, conforme António Manuel Ferreira, “não existe uma casa, existe apenas um quarto, habitado normalmente por personagens jovens, que não fazem corpo com o mundo circundante, e no insulamento de um espaço redutor remoem as suas angústias.” (Ferreira, 2004, p. 215). As personagens fonsequianas, portanto, sentem muitas vezes não somente a solidão, mas também a clausura e constrangimento a que esse espaço reduzido de um quarto as obriga. Recorde-se que não só Virgínia do conto acima mencionado, mas também Teresa de “O involuntário”, Leonor de “Rio turvo” ou Maria Celeste de “A única estrela” (Caminhos magnéticos) são obrigadas a uma existência sombria dentro de um quarto, fechadas e guardadas. E mesmo que Virgínia constitua um tipo feminino que deveria corresponde à mulher “moderna” e independente, capaz de ganhar o seu pão, o seu quarto alugado não lhe proporciona grandes expetativas de um futuro feliz e sonhado. Neste sentido podemos mais uma vez concordar com António Manuel Ferreira ao afirmar que “[o] quarto alugado funciona assim como ilha cercada de silêncio, como metáfora da solidão existencial e metonímia do corpo enclausurado” (Ferreira, 2004, p. 215). Tal como Virgínia, de “As mãos frias”, que se sente aprisionada no quarto por falta de recursos que a pudessem resgatar da mesquinhez, uma outra personagem feminina, desta vez do conto “Tempo de solidão” (1969) de Manuel da Fonseca, é forçada a viver, junto com a sua família, num apartamento reles da periferia lisboeta. A espécie de solidão que ela sente, porém, concentra-se toda numa muda acusação do seu marido, por ele não ser capaz de ganhar o suficiente para a família viver de modo decente. A sensação que é salientada no conto corresponde, assim, à frustração de Sílvia por não poder cumprir o seu papel de mãe, como ela desejaria, dedicando-se aos seus filhos e ao lar, porque é forçada a sair, diariamente, para o trabalho em Lisboa: Mas o sono não vem, foge-lhe, deixa-a sozinha diante da vida que leva. Levantarse às seis da manhã. Viajar no comboio apinhado e perigoso. Pôr o filho na creche. Ir para o escritório. Chegar a casa às nove da noite. Assim sempre. O dia inteiro, o filho 252 Bachelard concebe o espaço da felicidade doméstica como a imagem de um ninho (cf. 1957). Esta concepção tem sido frequentemente revisada por vários autores desde os primórdios da literatura moderna. Vejase, por exemplo, a ironização da metáfora de ninho em Eça de Queirós nas prosas “No moinho” ou O primo Basílio que, apesar de criticarem o comportamento feminino arrasado pelas influências nefastas de uma má literatura (sentimental) e de um cinismo calculador masculino, apontam também, implicitamente, para a clausura feminina. Repare-se que no romance O primo Basílio, a ironia queirosiana, veiculada pela metáfora de ninho, neste caso de um ninho burguês, repleto de sofás cómodos, com todas as máscaras que esta imagem contém, é acompanhada pela imagem da gaiola, na qual está fechado um canário. A referência a Luísa como a um passarinho dentro do seu ninho é assim ambígua porque o ninho pode ser visto precisamente como a analogia da gaiola. É basicamente neste motivo da gaiola, em tudo lateral, que podemos ler também o aviso do autor acerca da condição feminina. 227 na creche. E o outro, o outro filho, depois de nascer, também irá para creche o dia inteiro. (Fonseca, 1985, p. 34) Aqui, as frases curtas e sincopadas transmitem a limitação de todas as ações que a personagem executa todos os dias, invariavelmente. Os dias, sempre os mesmos, repetitivos, obsessivos e monótonos, não oferecem, com efeito, nenhum espaço para sair da rotina diária. A falta de quaisquer perspetivas para o futuro torna a frustração ainda mais intensa e demolidora mentalmente. Este exemplo prova que uma pessoa não precisa ser necessariamente sozinha para sentir a solidão porque esta sensação provém muitas vezes da falta de uma comunicação afetiva.253 Uma nova perspetiva abre-se numa narrativa de Irene Lisboa, da coletânea Esta cidade! (1942), intitulada “O amante”. A protagonista Helena é uma mulher instruída e independente que vive sozinha e, para além do trabalho e viagens temporárias ao campo, não tem muitas outras diversões. É talvez para quebrar a rotina que arranja um amante snob que lhe oferece, com uma condescendência frívola, poucas horas diárias para um sexo sem ternura nem empenho afetivo. Helena aguenta este relacionamento, mesmo que se sinta permanentemente humilhada. Contudo, a efémera relação com um amante não parece ser o seu maior problema, até porque narrada retrospetivamente (a uma distância de dez anos), pode ser analisada com um raciocínio isento de emoção; aquilo que se impõe em primeiro plano é a relação de Helena consigo própria, essa que se projeta no tópico da casa. A heroína ireniana é construída como uma mulher deprimida, triste e solitária, precisamente como o sítio onde arranjou a casa, na periferia lisboeta (“Na segunda casa que alugou e onde finalmente se instalou tudo se lhe afigurava doloroso e incómodo. As suas horas de solidão eram o seu grande tormento.”, Lisboa, 1995, p. 183). O caráter híbrido urbano-rural, patente na descrição do sítio, não fornece nenhuma sensação de fruição, de um bucolismo campesino refrescante, tal como nos romances de Aquilino Ribeiro, antes pelo contrário, desenha-se como um espaço deprimente (“Aquele sítio onde tinha ido arranjar casa era tristíssimo, muito arredio e pobre, com terras de entulho à frente. Velho arrabalde de cidade!”, Lisboa, 1995, p. 185).254 E embora as vistas para o Tejo 253 Vejam-se a este respeito excelentes contos de Maria Judite de Carvalho que se centram precisamente neste aspeto, na problemática da solidão da mulher urbana no século XX. As condições materiais, no entanto, não são sempre as mais determinantes porque também as mulheres materialmente asseguradas podem sentir uma espécie de solidão. Esta situação pode ser observada, por exemplo, no conto “George” (Seta despedida, 1995), em que a protagonista observa as imagens fantasmáticas de si própria enquanto nova e velha, apercebendo-se do facto de que, apesar do seu sucesso no trabalho, falta à sua vida uma outra dimensão, uma certa âncora afetiva. 254 “A rua ainda não tinha canalização” (Lisboa, 1995, p. 189), “Quando seguia das suas janelas sem prédios à frente o deambular dos magalas com as sopeiras, achava aquilo fatal e sem era. (...) Tudo cabia em cima de um burro ... um homem puxava-o e duas mulheres seguiam-no.” (Lisboa, 1995, p. 192). 228 possam garantir certa recuperação, ao admirar a paisagem, a protagonista acaba por ser sempre dominada pela mesma depressão: “O Tejo lá em baixo, na sua parte mais estreita, oferecia-lhe de longe uma miragem fantástica, admirável e desesperadora.” (Lisboa, 1995, p. 185), “Quando punha os olhos nos belos barcos iluminados que demandavam a barra ainda maior opressão sentia. Um desamparo mortal!” (Lisboa, 1995, p. 192). Helena é ainda particularmente sensível às sensações auditivas, pois são sobretudo vários sons, degradantes, que aprofundam o seu estado atormentado. Deste modo, o som de corneta, vinda dos quartéis, salienta a sua sensação de reclusa (“Mas as cornetas dos quartéis próximos, renitentes de manhã e à boca da noite irritavam-na. Saía e entrava e nunca se via livre da sua prisão.” Lisboa, 1995, p. 193), bem como os sons ouvidos dentro do prédio à noite põem a nu a sua solidão: Porém, hoje na sua casa isolada, acompanhada apenas dos ruídos da vizinhança, Helena sentia-se moída, cheia de inquietação e de tristeza; só, terrivelmente só. (Lisboa, 1995, p. 192) Esta promiscuidade de sons, que o sossego da noite dilatava, tornava-a ainda mais solitária. Fincava então os cotovelos no parapeito e olhava para longe como se se quisessse atirar ao mar. (Lisboa, 1995, p. 194) O sentimento de estar só dentro da própria casa impõe-se também como dominante nos fragmentos de Solidão, tornando-se a experiência de se sentir “só” próxima da melancolia, tristeza e, até, da morte: “Estar só cria uma melancolia tão profunda” (p. 15), “viver só é triste, morto” (p. 20).255 É um viver asfixiado (“É este viver à parte, este viver sufocado”, p. 16) que leva o sujeito feminino a comparar-se com os presos, não por causa da redução espacial do quarto/casa, mas devido a um aprisionamento dentro do próprio ser: “O mundo, este parco mundo em que me movo, é a minha verdadeira prisão, mas escancarada e vazia... Sinto que vivo nele incomunicável e limitada, como os presos, apertada em mim mesma!” (p. 26). Por extensão, esta sensação disfórica é veiculada pela imagem da casa, seja a sua (“Minha casa fria, minha casa fria...”, p. 15), seja uma qualquer, indeferenciada, símbolo de habitação humana (“Olho-me como a uma casa escura”, p. 15). A casa corresponde também a um espaço – mesmo que personificado – frio e indiferente que inspira um vago desejo de se evadir (“Olho para o que me rodeia, para esta casa, estes bocados de parede tão indiferentes e pergunto-me que é que tenho aqui feito, se isto é viver?”, p. 16). Portanto, a casa exprime o eu do sujeito feminino, 255 Todas as citações de Solidão são da edição de 1992 (Lisboa: Editorial Presença) e, para evitar a redundância, serão identificadas só pelo número de página. 229 como já foi observado por Paula Morão.256 Assim, a casa adquire um estatuto ambíguo, podendo ser “cúmplice e confidente”, mas também “agressora” (Morão, 1989, p. 205).257 Por outro lado, o sujeito ireniano consegue ultrapassar todos os males a que sucumbe a personagem fonsequiana, pelo ato de refletir sobre os seus pensamentos e emoções. Há só raros momentos, nos quais a mulher ireniana considera a sua solidão como algo benéfico, mas há-os, o que é fundamental: “Apesar de tudo, há momentos da minha solidão em que me sinto ultrapassando todos os ordinários interesses, desgarrada deles e dominando-os. E isto sem correr mundo nem ver gente... Será uma força da sublimação da abstinência?” (p. 20). Esta ideia, com efeito, a que a lição de Virgínia Woolf não é alheia, declara a vocação do sujeito feminino como pensadora e escritora. Além disso, o quarto fornece à mulher a intimidade necessária para se poder entregar aos devaneios mentais, sonhos acordados e, também, a um benéfico narcisismo em frente do espelho.258 Os melhores exemplos destas situações encontram-se nos poemas, nos quais o motivo do espelho veicula um prazer de autocontemplação que é saudavelmente feminino ao reforçar certos elementos do corpo e vestuário e, simultaneamente, ao convidar a uma interrogação identitária, como se vê no seguinte poema, intitulado “outro dia” (como outros poemas da coletânea Um dia e outro dia...): Estou só. Vejo-me ao espelho E acho que o calor me aformoseia... Tenho posto aquele vestido amarelo, de uma cor esquisita... Ser outra! Ter vivido, ou ainda viver uma outra vida... Ter mais alma, ser mais profunda, não balbuciar só... gritar! (Lisboa, 1991, p. 105) 256 Paula Morão diz explicitamente que, em Solidão, “[u]ma das extensões do tema da solidão conduz ao relacionamento com o espaço, exterior e interior, transformando-o num espelho reflector dos sentimentos do ‘eu’” (Morão, 1989, pp. 204-205). 257 Quanto à cumplicidade, registe-se, por exemplo, o facto de o sujeito feminino fazer “confidências” às suas paredes, como a suas companheiras. Por outro lado, as conotações de frieza e escuridão apontam para a profunda melancolia, salientada ainda por uma espécie de pesadelo “diurno”, ou seja, a sensação de peso no peito que é normalmente sentido, fisicamente, durante os pesadelos noturnos (“Lembro-me de que ontem a esta hora sentia o peito esmagado. E ainda hoje me sinto cansada.”, Lisboa, 1992, p. 16). 258 Repare-se na importância do espelho também na poesia de Judith Teixeira. Por exemplo, no poema “Os meus cabelos”: “Doirado, fulvo, desmaiado / e vermelho, / tem reflexos de fogo o meu cabelo! / Neste conjunto diverso, / quando me vejo assim, ao espelho, encontro no meu todo, um ar perverso...” (Teixeira, 2002, p. 43). 230 Neste e noutros poemas de Irene Lisboa, o narcisismo e o desejo de ser outra devem ser compreendidos com a subtil ironia que está quase sempre presente na obra de Irene Lisboa. O espaço íntimo do quarto torna-se, assim, um resquício de cumplicidade feminina porque é evidente que a auto-imagem, como esta no excerto citado, corresponde ironicamente a uma imagem de mulher tingida de uma perspetiva masculina. Nesta ironia feita com armas femininas, sem violência nas palavras, consiste também a subversão ireniana. Enfim, talvez a profunda ambiguidade deste espaço íntimo como expressão da subjetividade da mulher/escritora, tão repudiada, como sensualmente cultivada, seja análoga à do quarto do Barba Azul, espaço secreto, mistura de horrores e prazeres supremos. 6.2.2. A janela: espaço de fronteira Num interessantíssimo ensaio “Mirando a través de la ventana” (Desde la ventana, 1987), Carmen Martín Gaite relaciona intimamente a mulher e a janela, afirmando que para a mulher [l]a ventana es el punto de referencia de que dispone para soñar desde dentro el mundo que bulle de fuera, es el punto tendido entre las orillas de lo conocido y lo desconocido, la única brecha por donde puede echar a volar sus ojos, en busca de otra luz y otros perfiles que no sean los del interior, que contrasten con estos. (Gaite, 1999, p. 51) Esta relação íntima entre a mulher e a janela, documentada em inúmeras pinturas dos séculos XIX e XX, é, como sustenta Carmen Martín Gaite, condicionada pelas circunstâncias sociais, em conformidade com as quais aos homens era destinado o espaço público e às mulheres, o espaço fechado da casa. A este propósito, Martín Gaite cita uma afirmação do famoso Frei Luis de León: “Como los hombres son para lo público, así las mujeres para el encerramiento” (León apud Martín Gaite, 1999, p. 49). O castelhano, inclusive, adotou uma palavra que designa a mulher demasiado afeita ao prazer de ficar à janela, a “ventanera”. O discurso masculino, obviamente, considera estas “ventaneras” como algo indecente ou mesmo perigoso, dado que as mulheres, na ótica masculina, só se chegam à janela para serem vistas e admiradas. Cite-se, mais uma vez, a opinião de Martín Gaite: La interpretación de la conducta femenina se establecía com arreglo a cánones tan estrechos como para suponer que, cuando una mujer se asomaba a la ventana, no podía ser más que por mero reclamo erótico, por afán de exhibir la propia imagen para encandilar a un hombre. (Gaite, 1999, p. 50) 231 Conhecemos muito bem esta situação na sociedade e cultura portuguesa, vigente até aos fins do século XIX. Recorde-se o conhecido conto “Singularidades de uma rapariga loira” (1878) de Eça de Queirós. Neste texto, Macário apaixona-se por Luísa, rapariga que aparece sempre à janela em frente, mexendo o seu esquisito leque. É evidente que Eça de Queirós critica neste gesto amoroso tanto o efeito de uma paixão romântica, considerada por ele maligna, cega e irrefletida,259 como o comportamento “inadequado” da jovem, exposta à janela como num quadro para ser admirada e adorada.260 Em conexão a tais ideias, há ainda uma curiosa distinção no que diz respeito à perspetivação visual do espaço através da janela, que divide o interior do exterior. Conforme Emma Martinell Gifre, a janela vincula a mulher ao exterior, ao mesmo tempo que a mantém atada ao interior (Gifre, 1999, p. 11). Como podemos verificar na literatura portuguesa, muitos personagens masculinos ficam seduzidos por uma janela, na qual de fora sonham com um aparecimento de uma mulher jovem e bonita. É o que podemos observar, por exemplo, em As viagens na minha terra de Almeida Garrett ou no anteriormente referido conto “A única estrela” de Branquinho da Fonseca. As mulheres, por outro lado, sonham com o seu príncipe e aventuras a partir de dentro.261 Mas a demarcação da janela como um elemento espacial de fronteira pode ser percebida também no sentido inverso, visto que a janela proporciona a invasão do exterior dentro da casa, a entrada da luz.262 Há muitos fragmentos em Solidão que registam precisamente este efeito visual do jogo de luz e sombra, registados na casa por um olhar atento: Entrei de fora há bocado. O sol era o rei da casa, um sol de Inverno, radioso. Como de costume, deixei que as lágrimas me molhassem os olhos, destas lágrimas que não 259 Eça de Queirós ataca ironicamente a posição dos autores românticos (Camilo Castelo Branco etc.), cujas paixões cultivadas à janela podem levar a vários equívocos, pelo menos por não se chegar a conhecer a verdadeira pessoa, desde que adorada somente à distância. Por isso, só no fim Macário percebe a sua cegueira em se ter apaixonado por uma “ladra”. 260 Conforme Cecília Barreira, o leque pertence aos objetos que eram utilizados na comunicação não verbal entre os amantes: “O leque delimitava um espaço de privacidade com o olhar de um outro, apesar de se exibir em lugares públicos: no camarote ou na plateia de uma sala de espectáculos, nas avenidas ou nos bailes. É nesta ambivalência entre o domínio da privacidade e o território do público que se elege o leque como um elemento fundamental na sedução.” (Barreira, 1994: 75). 261 Vejam-se, por exemplo, as novelas de Domingos Monteiro ou o romance O dia dos prodígios (1980) de Lídia Jorge, em que a cena introdutória apresenta a menina Carminda a lavar a janela e, ao mesmo tempo, a entregar-se aos vagos devaneios e seduções imaginárias (“Apetece-lhe estender-se. Mostrar-se e sacudir o pólen da sua meninice. Abrir a blusa, desapertar os atilhos que lhe seguram os seios. Adejar as ancas e dizer aqui aqui. Mas isso dentro do seu casulo de pedra, telha, tijolo e uma janela de vidro.” Jorge, 2002, p. 14). 262 Numerosos exemplos deste motivo aparecem na poesia ireniana, como se vê nos poemas “um dia” e “outro dia”: “Há pouco, / de pé no meu quarto, / um quarto enorme,/ calado e tranquilo,/ com formosas janelas / por onde a luz entra...” (Lisboa, 1991, p. 42), “arredei a cortina fina / da minha janela da cozinha / e senti o fresco nos olhos...” (Lisboa, 1991, p. 45), “Cerram-se as janelas, / escurece-se a casa. / Umas rodas de luz / lá conseguem escapar / e poisar, / vaguear por onde calha...” (Lisboa, 1991, p. 142). 232 caem. O sol, extremamente plácido e colorido, poisava nas paredes e no chão, derramava-se por toda a parte. (p. 22) Noutras situações, o jogo de luz/sombra entra em diálogo com efeitos sonoros, dado que, conforme apontado por Paula Morão (1989) e Isabel Allegro de Magalhães (1995),263 as sensações visuais e auditivas predominam em toda a obra ireniana. Curiosamente, porém, não encontramos em Irene Lisboa tantas sinestesias como, por exemplo, em Pessoa ou Cesário, porque em vez de adensar o significado de uma sensação numa figura de estilo, o sujeito feminino de Solidão deixa-se flutuar à flor de sensações, dispersar-se, registando uns sons e sombras aqui e acolá, como é possível ler no seguinte fragmento, localizado e datado “Lisboa, 1936”: O movimento do sol, na verdade, é de abrir e fechar. Abriu! (claridade). Fechou! (sombra). Coisa que se furta, que se fecha. Há nuvens. Abriu, de novo. Vejo a sombra do lápis no papel, pegada ao que escrevo. Lá fechou! Coisa estranha é a luz. E o som. Música, na casa das minhas vizinhas... (Lisboa, 1992, p. 83)264 Para além da entrada de luz, portanto, a janela cede a passagem aos vários sons que se transferem da rua para dentro do quarto. Consequentemente, por meio do registo de sons vindos da rua, é a própria cidade como totalidade que penetra no espaço íntimo do sujeito, oferecendose a um tipo de comunhão. Vê-se claramente este fenómeno no seguinte fragmento: Há bocado ouvia sentada, como tantas vezes, o passar dos automóveis. Impressionava-me molemente aquele seu raspar violento, que lembra um sopro rijo contra o chão. Este passar dos automóveis e este som são um sinal de época. O nosso 263 Paula Morão afirma que, em Irene Lisboa, a “percepção do mundo faz-se pela visão, criadora de ‘imagens’ e ‘quadros’, palavras constantemente presentes a propósito da descrição de personagens e de situações” (Morão, 1989, p. 225) e Isabel Allegro de Magalhães adiciona que “[t]al como em Fernando Pessoa/Bernardo Soares, a vista e o ouvido são os sentidos preferenciais na percepção do mundo” (Magalhães, 1995, p. 58). 264 Solidão de Irene Lisboa carateriza-se por um tom altamente coloquial e natural, livre de artifícios, sendo este estilo explicitamente comentado no texto (“Eu bem sei que ora pretendo isto, ora aquilo... Mas há ocasiões em que me parece que só o perfeiro desartifício da língua e a sua espontaneidade podem servir o espírito... pensamento desprevenido, límpido. Que a língua afectada e escrupulosa pesa de mais sobre ele, chega a deformálo.” (Lisboa, 1992, p. 86). Tal estilo, com efeito, poderia ser considerado como um traço da escrita feminina. A própria narradora, todavia, aceita “só” a possibilidade de existir a diferença mental entre o feminino e masculino, recusando a distinção genérica da arte (“Distinguir, como se tem pretendido, arte feminina de arte masculina, parece-me coisa bem temerária e difícil. Eu sei que há gente que empiricamente resolveria a questão: dividindo, por exemplo, o mundo entre pensantes e não pensantes. Não pensantes seriam os espíritos e conformação solta e divagante, filósofos ou artistas. Os outros seriam os racionalistas, ou pensantes. E assim teríamos intelectualmente dividido o mundo em feminino e masculino. Não seria a ordem fisiológica sexual que dividiria, porque muitos homens entrariam na categoria de femininos mentais. Seria a própria qualidade da mente, ou a sua forma típica, de exercício. (...) Mas existirá uma arte que se possa caracteristicamente apodar de feminina ou de masculina? Lisboa, 1992, pp. 136-137). A mesma ideia constitui, de facto, a base da teoria do “sexo dos textos” de Isabel Allegro de Magalhães (1995). 233 tempo já não é caracterizado pelo apito das fábricas, é-o por esta correria dos automóveis. (...) Aqui continuo a ouvir o mesmo som. E não deixo de achar que nele se encerra toda uma poesia nova. Mas não é ver automóveis que mais me impressiona, é ouvi-los. (Lisboa, 1992, p. 27) Num tom completamente civil, sem artifícios, figuras de estilo, nem quaisquer exageros, o sujeito elogia decentemente a nova era marcada pelo sinal de automóvel, aproximando-se assim de weltanschauung tipicamente urbano e modernista. Um paralelo que de repente se oferece neste contexto é, obviamente, Álvaro de Campos, o mais moderno de heterónimos pessoanos, que também exaltou a modernidade, por via sensacionista. Irene Lisboa conhecia a obra de Fernando Pessoa, a quem dedicou algumas reflexões, sobretudo em Apontamentos (cf. Morão, 1989, pp. 226-229); mas as afinidades mais próximas que surgem entre Pessoa e Irene Lisboa baseiam-se, a meu ver, numa sensibilidade comum com que o sujeito regista o quotidiano lisboeta a partir do seu centro íntimo, correspondente a um quarto. Neste sentido, como já foi anotado por Paula Morão (1989, p. 206), convém mencionar um paralelo com o semiheterónimo pessoano Bernardo Soares e o seu Livro do Desassossego, que se assemelha a Solidão também do ponto de vista formal (nos dois casos trata-se de uma espécie de diário fictício, assente na sequência de fragmentos só esporadicamente datados). Um elo de ligação constituem, a priori, as referências ao desassossego, que é em Solidão, tal como em Bernardo Soares, fonte de inquietação, introspeção e estímulo à escrita.265 Além disso, é impossível não reparar nas afinidades no que diz respeito à poética de sentidos, sobretudo no som de carros que é ouvido no fragmento ireniano acima referido, o som que domina no mapa sensorial da cidade, junto com todos os ruídos, vozes e sons mecânicos. A propósito de Bernardo Soares, La Salette Loureiro afirma: “Os ruídos da cidade, dos carros, dos eléctricos, das carroças, dos cauteleiros, das varinas, da chuva, da trovoada, ora soam indistintos, formando um todo, ora se individualizam, destacando-se desse todo.” (Loureiro, 1996, p. 217). A própria Irene Lisboa é 265 Seguem alguns exemplos: “Ontem, dia de festa, esteve aqui a J. Não sabia o que é que eu tinha, mas viame inquieta. Abri quase a boca para me queixar. Mas queixar-me de quê, ou de quem, contar o quê? Nunca fui confidente nem desbocada. Não tinha nada de lhe contar! Bastava-me aquele desassossego, aquela austeridade irritada... Mas se ela me tivesse dito uma só palavra mais, eu chorava.” (p. 17). “Um pequeno alvoroço da minha sensualidade, um alvoroço fruste, inconsequente e inútil, cerebral!, abandona-me, decai. Mas deixa-me o desassossego.” (p. 19), “Há gente que me ofende, realmente. Ofendo-me eu, só de lhes devassar a alma... De lhes surpreender toda a vulgaridade, todo o arrivismo! Mas nem só isso me desassossega. Há em mim um estado latente de desassossego, de perturbação.” (p. 117), “É a hora de passarem os carros no tal desatino, uma das horas da minha solidão desassossegada.” (p. 30). Também neste sentido podem ser observadas algumas semelhanças entre a poesia ireniana e de Judith Teixeira, ambas evocando o vento como um elemento sensual, erotizado (vejam-se, por exemplo, os poemas “Insónias” [2002, pp. 63-65] de Judith Teixeira e “outro dia” de Irene Lisboa [1991, pp. 110-112]) 234 bem consciente deste fenómeno, observando que “[u]ma cidade – uma rua da cidade é audível, é soante” e adicionando: “Estamos na cidade, é a cidade... motores, obras em prédio, aviões...” (Lisboa, 1999, p. 208).266 A janela simboliza a passagem entre dois mundos conforme o eixo interior/exterior, que não exprime somente a divisão física (quarto/rua), mas também – e sobretudo – a distinção psíquica. Sintomaticamente, o mundo interior aparece como o de sofrimento, de dor imprescindível à criação: “Aquela janela que às vezes quero abrir para o ar, logo desastradamente se cerra.” (Lisboa, 1992, p. 15).267 Por isso, nem a visão alegre do céu e dos becos da cidade anulam os sentimentos negativos do sujeito,268 nem a visão deliciosa do rio Tejo, a brilhar, mantém o sujeito feminino numa euforia, dado que esta desaparece no mesmo momento em que se fecha a janela: Que dia tão bonito, tão bonito! Até me parece que vejo a água do Tejo correr e brilhar... Os barcos pequenos cruzam-se uns com os outros. Tudo se move para aqueles alegres lados. Era interessante poder reter o que vejo e o que sinto: a fulgência da manhã, a vibração das coisas, aquela palpitação da água... Ora me parece que despede faíscas, ora que está cheia de malhas brancas que nos iluminam. (...) Tudo tem a sua animação, tudo é engraçado. Mas basta-me fechar a janela e pôr-me a escrever para logo tudo se desanimar. (p. 46) O dom de observação e captação de impressões da paisagem urbana e da sua vida aproxima Irene Lisboa também de Cesário Verde. Retome-se, portanto, a inicial referência às pobres engomadeiras lisboetas, que enchem o sujeito cesariano de compaixão, e compare-se com uma cena descrita num fragmento de Solidão: Começa a anoitecer. 266 Trata-se da citação que pertence já ao segundo volume, Solidão II. A seguir, a narradora enumera mais sons da cidade, esses que se relacionam com as atividades humanas (“E as pessoas, os habitantes da cidade, mesmo parados, inertes ou confusos, gente sem determinação até, sem emprego nem obrigações [...] ouve a trepidação, o arranque dos motores, e escuta o velho serra de tábuas, e umas marteladas antiquíssimas, irregulares, e as vozes amortecidas e casuais dos operários, enfim, toda uma variação atropelada e natural do trabalho em mil épocas...”, Lisboa, 1999, p. 208). Outras vezes, os dois sujeitos desassossegados, de Pessoa e Irene Lisboa, deixam-se seduzir pelos sons da natureza, especialmente pelo som da chuva, vento e trovoada. Dentro deste quadro, contudo, tornase interessante que o sujeito ireniano, num fragmento de Solidão II, capta a radical diferença entre a perceção emocional feminina e masculina. Numa ocasião, andando à noite com um homem pelas ruas de Lisboa, o sujeito feminino registra o som de vento, o qual é descrito como “um apelo”, “um chamamento”, “um clamor”, ao passo que o seu companheiro o define como “um som bruto” (Lisboa, 1999, p. 51). É evidente que este fragmento podia apoiar as teses sobre os laços que vigoram entre o feminino e a natureza. 267 Curiosamente, não estamos muito longe do estilo de um outro autor modernista, Mário de Sá-Carneiro, e de suas antíteses como “as janelas abertas continuam cerradas” do conto “Eu-próprio o Outro” (Céu em fogo) que é também escrito em forma de um diário fictício. 268 “Abro a janela, como há pouco, e este brando céu do cair da tarde enche-me toda a casa. O céu é meu, o céu, estas vistas e até as dos becos todos da cidade! Mas não deixo de me sentir miserável.” (Lisboa, 1992, p. 26). 235 Que tarde! Cheguei há pouco a casa com uma angústia!... Uma angústia sem explicação. Uma lembrança de felicidades perdidas, de bens por lograr... (...) Pus a água ao lume e fui para a minha janela da cozinha. Enquanto esperava que a água fervesse ia olhando. (...) Parecia-me ver um braço nu, com pulseiras. Um braço que fizesse um movimento de acariciar ou de pentear. (...) Tomo o meu chá. Volto de novo à janela, mas já sem curiosidade. A tarde parece que não acaba. Uma ideal tarde... Que dias! Tão bonitos! Mas dolorosos, desperdiçados... (...) Estou encostada à janela. Noto que se ilumina uma janela da tal casa, a que fica exactamente por baixo da trapeirita. (...) Um rapaz muito novo, de cabeça lustrosa e fina, come ao canto de uma mesa. Uma mulher magra e quase velha passa a ferro sobre a mesma mesa, de lado. (...) Retiro-me da janela. Que fique tudo em paz! (Lisboa, 1992, p. 32) Tanto em Solidão, como em “Contrariedades” de Cesário Verde, a cena passa-se ao anoitecer (à noite no caso de Cesário), numa intimidade da casa, quando o sujeito olha da sua janela para a janela da casa em frente. Este prazer de observação involuntária, a que o impulso do olhar repetitivamente dá um certo toque de voyeurismo, é acompanhado de sensações desagradáveis. Ao “desespero mudo” cesariano assemelha-se a “angústia” ireniana, salientada pelas “lembranças de felicidades passadas” que evocam o clássico “nessun maggior dolore che ricordarsi del tempo felice ne la miseria” de Inferno de Dante (2004, p. 64). A janela como um elemento espacial que proporciona uma visão por enquadramento, isolando a cena parcial de todo o ambiente circundante é explicitamente mencionada no fragmento ireniano (quatro vezes), em contraste com o poema cesariano que só acentua a ação de olhar, sem detalhes espaciais concretos. Um pararelo, contudo, existe na alusão à iluminação do espaço observado que assim se oferece ao olhar intrusor. Segue-se, nos dois textos, a alternância de situações do sujeito e da personagem (entre)vista na janela em frente. Quanto ao sujeito, os seus gestos, banais e quotidianos, são mencionados de uma forma circunstacial e lacónica (em Cesário: “Já fumei três maços de cigarros”, “Sentei-me à secretária”, “E estou melhor; passou-me a cólera.” etc., [Verde, 1999, pp. 57-60], em Irene: “Pus a água ao lume”, “Tomo o meu chá.”, “Estou encostada à janela.”, “Retiro-me da janela.” etc. [Lisboa, 1992, p. 32]). A personagem observada é, nos dois casos, uma mulher magra que passa a ferro (no texto de Irene Lisboa há ainda um rapaz, provavelmente filho dela). A diferença, porém, institui-se nos pormenores de sensibilidade expressa. Embora os dois sujeitos exprimam, implicitamente, a compaixão para com a pobre figura feminina, o sujeito lírico de Cesário Verde, fortemente masculino, centrase nos traços pouco atraentes do físico da mulher (neste caso nova), enquanto o sujeito ireniano, 236 feminino, não adianta nada sobre o aspeto da mulher (neste caso “quase velha”), frisando o seu gesto de ternura com que acaricia ou penteia o rapaz. É precisamente nesta sensibilidade que se estabelece a diferença entre o olhar masculino (objetivizado, distante) e feminino (cúmplice, terno), sem o sujeito de narração se dar conta disso.269 Por último, a janela que serve de espaço intermédio, entre o interior e o exterior, pode ainda funcionar como um elemento “dramático”, por mais que esquemático, que impõe ao texto literário uma certa atmosfera sinistra. É costume, por exemplo, existir nas histórias de terror o motivo da janela que ajuda a criar a sensação de medo, ou pelo menos de alguma inquietação irracional. Nestas situações, em princípio, costuma haver uma trovoada ou forte chuva que bate nas vidraças, há golpes de vento nos estores e o ambiente escurece, irradiando uma ameaça indefinida. Repare-se como este motivo é trabalhado num dos contos fantásticos de Florbela Espanca: “A chuva tinha parado; em compensação, o vento redobrava de violência, gemia, assobiava, cantarolava, rugia. Nunca ouvi um vento assim. Encostei-me a uma das janelas desconjuntadas que o vento abanava furiosamente, e olhei.” (Espanca, 2000, p. 261).270 Numa outra perspetiva, muito mais “feminina” e intimista, Branquinho da Fonseca usou o motivo da janela à chuva no conto “A gémea” (Zonas), em que a protagonista, Leonor Carma, frustrada pela morte da sua gémea, da qual se tornou “sucessora” involuntária, observa a janela durante a chuva, desta vez dentro de um ambiente urbano disfórico: (no início) O céu escuro parecia encostado à vidraça... (...) A chuva na vidraça dava um ruído distante e dormente... (...) Em todo o mundo não havia sol, não havia ninguém, e o amolecer, aquele moer da chuva era dentro dela, dentro duma vida vazia, a repassá-la, a desfazer-se desde a alma até às casas duma cidade escura, mole (...) (Fonseca, 2010a, p. 347) (no fim) 269 É evidente que também aqui poderíamos detetar afinidades com as poesia de Álvaro de Campos porque este, à semelhança de Cesário Verde e Irene Lisboa, sublinha nalguns poemas o motivo da janela como mediador entre si e o mundo dos outros, vistos a partir do espaço íntimo do próprio quarto. Assim, por exemplo, podemos ler os versos como “Na casa defronte de mim e dos meus sonhos, / Que felicidade há sempre!” (Pessoa, s/d, p. 56), “Há um som de abir uma janela, / (...) Olho pela janela entreaberta: / A rapariga do segundo-andar de defronte / Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.” (Pessoa, s/d, p. 83). Também não faltam, na sua poesia, versos que captam a vida na rua, acompanhada dos seus sons: “A mulher que chora baixinho / Entre o ruído da mutidão em vivas.../ O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito (...)” (Pessoa, s/d, p. 100). 270 Trata-se do conto “O sobrenatural” (Máscaras do destino), escrito em 1928. O motivo da janela serve no conto para intensificar a atmosfera de terror e, simultaneamente, cria as condições para o aparecimento dum fenómeno insólito (pancadas nas portas que dão para o subterrâneo, um som de tecido a ser arrastado pelo chão no quarto às escuras). É também o mesmo motivo da janela, durante a trovoada, que juntamente com o som do tecido salienta o paralelismo entre a história inserida, contada pelo protagonista, e a própria narrativa (no início: “Deixou a janela, onde o frio, a chuva e a escuridão carregavam como um exército...” [Espanca, 2000, p. 258], e no fim: “A chuva continuava a fustigar implacavelmente as vidraças.” [Espanca, 2000, p. 264]). 237 Agora, com a chuva a bater na vidraça, como a chamar de longe, Leonor estava a lembrar-se de tudo... Era uma angústia que a esmagava. (...) Continuava a chover, a chover, e na janela cheia de água, o céu escuro parecia um mar... (Fonseca, 2010a, p. 354) Repare-se que a janela serve à protagonista para observar a cidade que, debaixo de chuva, parece escura e mole como a sua alma sofrida. Não surpreende, portanto, que a jovem se sente no fim do conto impelida a suicidar-se, identificando-se com a cidade mole não só devido ao efeito de saltar da janela, mas também pela proximidade fónica das expressões “amolecer” (“O calor da febre amolecia-lhe o corpo...”, Fonseca, 2010a, p. 355) e de “imolar” como gesto de suprema angústia, definitiva. A abordagem ireniana diverge naturalmente do tratamento tanto de Florbela Espanca, como de Branquinho da Fonseca, já pelo facto de se tratar só de um fragmento sem desenvolvimento da trama dramática. Apesar disso, o motivo da janela batida pela chuva, com a qual o sujeito interiormente sintoniza, provoca, mesmo neste texto reflexivo de Irene Lisboa, uma sensação perturbante: É uma hora, cai uma chuva brutal. Chove em todas as direcções, com violência. Olho para a chuva, de pé junto de uma janela, e acho que tudo pode entreter o espírito, o melancólico espírito... Vejo chover, a cidade a escurecer, velar-se o rio; lembro-me de gente desagradável e mentalmente falo. (...) O vento deu-me um sobressalto. Até as portas fechadas tremem. Lá para dentro está uma janela a bater, deve chover dentro da casa. Levanto-me e vou fechá-la. Mas sinto-me sempre, sempre tão cansada. (p. 99) Vê-se claramente que a chuva enche o sujeito feminino de um cansaço, intensificado pela leitura de Pages choisies de Vinet e uma frase sobre a morte (Ce grand mystère, avec cet appareil sinistre...), registada ocasionalmente pela leitora. Esta alusão merece-lhe um breve comentário, imbuído de profunda melancolia (“Por estas palavras, que já não são muito do nosso tempo, não se vê morrer, agonizar? Sofrer e deixar a vida contra vontade?”, p. 100). Deste modo, os motivos de chuva, cidade e morte entram em correlação, pela qual a cidade adquire o aspeto de urbe submersa, semelhante à imagem parisiense de Baudelaire (cf. Benjamin, 1979). A mesma atmosfera determina também o final brusco do fragmento, em que as impressões visuais cedem lugar a uma sensação auditiva, sem desenvolvimento (“A chuva! Sempre a chuva... Uma carroça, as patas de um cavalo, o som de uns tamancos... tudo destes dias!”, p. 101). O inacabado deste quadro minimalista, com efeito, exprime a mesma falta de solução para 238 as reflexões do sujeito, sinalizando também a impossibilidade de penetrar no mistério da morte. A reiteração do motivo da chuva, contudo, sugere, tal como nos contos fonsequianos, um certo bloqueamento, um impasse mental e afetivo, a experiência de sofrer que é tão familiar a uma mulher solitária no meio urbano.271 6.2.3. A flâneuse lisboeta “I love walking in London”, diz Mrs. Dalloway, a famosa personagem do romance homónimo (1925) de Virginia Woolf (2003, p. 5). A sua autora também gostava de andar pelas ruas da cidade, para captar a inspiração. Em 1927, Virginia Woolf escreveu o ensaio intitulado Street haunting: A London adventure (publicado em 1930), em que confirma a sua paixão de deambular pelas ruas londrinas, nas tardes de inverno: The hour should be the evening and the season winter, for in winter the champagne brightness of the air and the sociability of the streets are grateful. We are not then taunted as in the summer by the longing for shade and solitude and sweet airs from the hayfields. The evening hour, too, gives us the irresponsibility which darkness and lamplight bestow. We are no longer quite ourselves, As we step out of the house on a fine evening between four and six, we shed the self our friends know us by and become part of that vast republican army of anonymous trampers, whose society is so agreeable after the solitude of oneʼs own room. (Woolf apud Nordquist, 2017, s/p) Os passeios pelas ruas da cidade serviram a Virginia Woolf como uma espécie de pesquisa sobre o povo e a sua vida. A autora inglesa, contudo, especifica que esta deambulação deve ocorrer em certas circunstâncias propícias: no inverno, devido à luz opaca e ao frio que faz as pessoas agruparem-se na urbe, em vez de procurarem sombra e solidão no campo; e à tarde entre as quatro e seis horas, quando a escuridão e a luz das lanternas emprestam ao deambulador um anonimato e liberdade de passear pelas ruas sem ser notado nem reconhecido. O ambiente urbano enche o sujeito woolfiano de um prazer quase sensual, todas as impressões – especialmente visuais e auditivas – são registadas com a sensibilidade de quem se deixa absorver pelo espaço circundante, esquecendo-se temporariamente de si próprio: How beautiful a London street is then, with its islands of light, and its long groves of darkness, and on one side of it perhaps some tree-sprinkled, grass-grown space where 271 Irene Lisboa reitera esta visão disfórica da realidade feminina em Solidão II, em que o sujeito afirma: “Corpo morto, corpo indiferente. É o que se chama talvez pureza, castidade, em gíria moral de todos os tempos. Calma absoluta, ausência do sentido físico. Assim se passa a maior parte da vida; em lutas e ânsias morais, sufocados, anulados os sentidos.” (Lisboa, 1999, p. 94). 239 night is folding herself to sleep naturally and, as one passes the iron railing, one hears those little cracklings and stirrings of leaf and twig which seem to suppose the silence of fields all round them, an owl hooting, and far away the rattle of a train in the valley. (Woolf apud Nordquist, 2017, s/p) Em Solidão de Irene Lisboa, curiosamente, não encontramos cenas de deambulação noturna. Todas as suas impressões visuais e auditivas se restringem a horas de dia porque, tal como dentro do quarto, o sujeito ireniano fica sobremaneira sensível ao sol, à luz e seus efeitos. Um dos excertos caraterísticos em que se detetam as impressões visuais, as quais servem de reflexão sobre as idiossincrasias de observação individual, oferece-se no seguinte fragmento: Estávamos as três a olhar o rio. Delas duas, a mais velha pinta. Bonito quadro! – digo-lhe eu. – Tudo cor de chumbo, não vê? Pesado! E seria fácil de pintar? Eu chego a distinguir lilás, responde-me ela. Olhe ali para aquela nevoazinha entre a lua e a água. (...) De facto, para o meu objectivismo não podia haver mais que um tom de chumbo, um tom geral. Mas o meu objectivismo deve diferir do de um pintor. Devemos ver as coisas diferentemente. Nesta paisagem o que eu via era um não sei quê de dramático, que nem cor nem forma traduziriam bem. (p. 94) Fica patente, neste excerto, que dois tipos de observação, uma de poeta/escritora e a outra de pintora, focam um mesmo elemento espacial (o rio com o céu) de modo divergente. Enquanto a pintora vê as cores pitorescas, convidativas à pintura, a poeta/escritora vê “somente” a cor escura que dificilmente poderia ser levada à tela. Isso tudo devido ao facto de a pintora ver a realidade circundante em cores (“Tudo é cor, graduações de cor, diria em síntese a minha companheira”, p. 94), enquanto a mesma realidade é pela poeta/escritora transfigurada numa objetividade subjetivizada, dotada de valores emocionais (“Este tom de chumbo é essencialmente dramático.”, p. 94). Portanto, embora o sujeito ireniano se sinta como observadora passiva, sem impulsos interiores que lhe proporcionem uma vida mais plena (“Que vida estúpida se tem! Que eu tenho. Uma vida que me contraria, que me torna um ser dependente, passivo. De olhos totalmente postos no espectáculo dos outros e no meu vazio próprio.”, p. 150), o seu papel é obviamente ativo porque a literatura alimenta-se precisamente dessa “passividade”, por meio da qual o sujeito pode, até certo ponto, esquecer-se de si próprio a favor do palco da vida observado e artisticamente transfigurado. Em frente dos olhos do observador sensível abre-se, assim, um universo composto de várias cores e formas, através das quais o sujeito pode penetrar debaixo da superfície dos fenómenos, conhecendo a sua essência que é, também, a essência daquele que observa. 240 Nas suas deambulações pelas ruas de Lisboa, portanto, a flâneuse ireniana capta especialmente várias figuras humanas anónimas que fazem parte da paisagem social urbana,272 outras vezes, o sujeito (per)segue, secretamente, certos alvos de interesse, refletindo principalmente sobre o seu estado social.273 É basicamente neste tipo de observação que também surgem mencionados lugares concretos lisboetas, através dos quais seria possível traçar um mapa da Lisboa literária de Irene Lisboa: Olhei descansadamente do carro para aquela mulher vestida de veludo preto, alta, de boina desabada, de boca vermelhíssima, que atravessava o Largo do Corpo Santo (...) Ainda lhe estou a ver o pôr do pé, a elegância... Do lado de trás, encostado a uma camioneta, um belo homem novo, de fato de ganga, sorria. (...) E eu pensei nas desfigurações sociais que faziam com que aquele homem se não achasse digno daquela mulher. (pp. 129-130) É já a segunda ou terceira vez que estas mulheres entram no meu carro, de manhãzinha. Apeiam-se no Campo Grande e eu sigo até Lumiar. Ainda são novas, mas vestem-se com uma bizzaria soturna e pobre, a bizzaria das monjas à secular. Nesta modéstia propositada tudo tem um ar aparente e triste. São as saias muito compridas e rodadas, os chapéus de sino, enterrados, os sapatos rasos e grossos... E a esquivânca! As duas apeiam-se sem nunca olhar para qualquer lado e a andar não mexem os braços. Dão-me uma impressão de absoluta reserva e de abstinência. Dispensam-se de nós...(p. 92) É curioso observar que, mesmo referindo lugares concretos, o sujeito de Irene Lisboa não se deixa atrair pelo “espírito do lugar”.274 Toda a sua atenção é centrada na paisagem humana, dentro da qual um interesse particular recai sobre as figuras femininas e seu comportamento 272 Por exemplo: “Estar como ontem estive, dentro de uma loja de músicas em que se experimenta discos, a reparar nas caras dos que estacionam à porta a ouvir... (...) Mas estar então dentro da loja, e ver aquelas caras abstractas e atentas! Pitorescas...” (p. 144). Em princípio, vigora na flânerie um código do género, conforme o qual o flâneur admira uma mulher anónima que passa ao lado, cultivando deste modo um amor “à última vista”, caraterístico para o espaço urbano sempre em movimento. A flâneuse ireniana inverte este código, entregando-se, por sua vez, à admiração de um homem desconhecido, apenas entrevisto “Ontem no carro, meu teatro de todos os dias, olhava para uma fina cara de homem que só me parecia de estrangeiro. (...) Que graça pode ter uma cabeça que já branqueia e ainda se mostra jovem! Interessante, sem nada de menineira. Cabeça de gaulês. Um olhar tão fino! Os olhos, que se viam redondos e fundos, nada à flor, eram cobertos por delicadas pálpebras e moviam-se discretamente na perfeita cova das órbitas. O nariz era elegante. (...) Este homem não devia desejar parecer mais novo; para quê?” (p. 113). 273 Às vezes, trata-se só de uma perseguição mental imaginada que funciona como um impulso para o sujeito refletir sobre certos aspetos de natureza humana (p. ex. “Estranha mulher! (...) Ponho-me a persegui-la em mente, a vê-la num lugar e noutro, mas ela vira-se sempre de súbito... (...) Ela, sim, é um caleidoscópio! Por isso, pelas suas mudanças de aspecto e de superfície me parece quase impossível tocar-lhe nos traços vivos.”, pp. 123-124). 274 Também na poesia ireniana encontram-se várias passagens, em que o sujeito poético deambula pelas ruas. O melhor exemplo corresponde ao primeiro poema da coletânea Um dia e outro dia, intitulado “um dia”, onde há referências às velhas ruas da cidade e a alguns lugares concretos (Largo do Chão do Loureiro, Baixa, Rossio). Mesmo neste deambular, o olhar poético não regista nenhuns pormenores pitorescos e, numa linguagem sempre direta, objetiva e despojada, assume o espaço urbano como um meio de viver, sem grandes sobressaltos. Por isso, o sujeito poético é capaz de terminar o seu percurso com a constatação de que “faz frio”, dirigindo-se indiferentemente para casa, sem entusiasmos ou qualquer espécie de absorção pelo que vê ou sente na ruas da cidade. 241 meticulosamente observado.275 Mas o melhor exemplo da flânerie ireniana encontra-se num fragmento em que há uma localização topográfica um pouco mais desenvolvida, à qual se junta a observação de tipos humanos: Sigo atrás de duas mulheres novas mal vestidas, por acaso. (...) Na rua, a passo calmo e indiferente, vou pelo mesmo passeio destas duas mulheres. Acho-as disparatadas e comuns, penso que são coristas. (...) Perco-as de vista. Já na Rua do Ouro, nos quarteirões onde ela é menos elegante e menos passeada, vejo uma antiga conhecida minha. Já nem lhe sei o nome! (...) Mas que ancas tão largas ela já tem! O andar pesa-lhe. (...) Continuo. Oiço agora um rapaz de figura gentil e de espírito incompleto. (...) Desço uma rua miserável e estreita da Esperança. Aquela mesma, que nestes últimos tempos mais me tem feito pensar na arte dos romancistas... (pp. 107-108) O sujeito feminino deambulador comporta-se perfeitamente como um flâneur “clássico”, dos tempos de Baudelaire, passeando pela cidade e reparando só por mero acaso em certas figuras que momentaneamente captam a sua atenção. Já em relação à poesia ireniana, Óscar Lopes realçou precisamente este aspeto, ao afirmar que “[n]ão lê jornais, mas refere-se a peixeiras, garotos, uma velha, uma regateira, um cauteleiro, vendedores de pobres coisas feitas numa escada, uma mulher de fava-rica, costureiras, as flores feitas pelo calceteiro, etc. (...)” (Lopes, 1994, p. 13). O espaço exterior, concretizado em Solidão, corresponde também à rua lisboeta, portanto o espaço urbano destinado ao movimento contínuo. Sendo assim, o sujeito peripatético muda os seus objetos de atenção, volatilmente, sem sentir pena do inacabado da sua observação. O que deste modo Irene Lisboa cria é um caleidoscópio lisboeta, momentâneo, muito parecido com as imagens urbanas cesarianas. O acima citado fragmento ireniano, com efeito, continua na observação da “paisagem humana” da Rua da Esperança, com as suas “mulheres pobres”, “raparigas descalças” ou “lojistas com sotaque provinciano” (p. 108), formando assim um quadro popular que se aproxima muito de cenas bairristas de uma Lisboa 275 Os seus juízos respeito às mulheres podem parecer surpreendentes porque é evidente que as simpatias do sujeito feminino aderem também às mulheres elegantes, bonitas, mesmo que um tanto fúteis. Porém, esta expressão do feminino, abstratamente sensual e profundamente humana, compreensiva, pode constituir o nível supremo do feminismo, a capacidade feminina de reconhecer, valorizar e amar tudo o que é instintivamente feminino, e não moldeado pelo olhar masculino, como em princípio alguns julgam. A este propósito, repare-se ainda no seguinte excerto: “Preciosas pode ser a designação de uma qualidade comum de mulheres. Uma qualidade amável. (...) Não são desinteressadas, estas mulheres! São até cheias de pequenos interesses e de preocupações. E através deles, que só injustamente podemos condenar, quando não passa e se não mostra do mais profundo humano? Daquilo que tão sem razão nós queremos sufocar e deprezar, tantas vezes!”, p. 158). 242 popular, não só ao gosto desta época.276 A Rua da Esperança, descrita lapidarmente só como “íngreme e encurvada” (p. 108), assemelha-se a um palco que é, conforme a sua vida interna, ora vazio, desprovido de seus atores, ora cheio de “povo e falatório” (p. 108). Curiosa é a menção sobre as soleiras das portas que, neste mundo popular, ganham uma importância especial por assegurarem a ligação permanente com a vida da rua. Supõe-se obviamente que as soleiras na rua “popular” lisboeta estejam quase sempre abertas, por questões culturais, em contraste com as culturas do norte europeu, individualistas e fechadas. É, pois, o espírito comunitário que respira mesmo neste pequeno quadro ireniano, em que há “raparigas curiosas”, mulheres e homens que “tão depressa se ocupam como se desinteressam de quem passa”, velhas que “vêm nas suas cadeirinhas à busca de um sol” ou barbeiros que “nos disparam umas brejeirices” (p. 108). Mas todas estas figuras são tratadas com uma simpatia de quem olha ao seu redor com interesse e calor humano. Mais ainda, a inteligência social e emotiva do sujeito ireniano é tão subtil e evoluída que a perceção de que é feita a essência humana nunca pode ser equivocada. Por isso, também, e com um à-vontade espontâneo, o sujeito ireniano identifica-se decididamente mais com os pobres “ignorantes”, do que com os inteletuais elitistas, em princípio, desdenhosos da sua companheira de ofício: “E mais uma vez... ainda mais uma vez, por uma espécie de solidariedade moral me apeteceu enfileirar com os ignorantes. Penso que com eles resolveria muitos casos do nosso comum interesse, que os sábios nunca me deixaram abordar, sequer.” (p. 162). 6.2.4. A cidade ireniana: pelas ruas da solidão Em 1931, Virginia Woolf publicou o texto “The docks of London”, em que, num registo descritivo, apresenta a parte ribeirinha de Londres. As docas londrinas correspondem a um lugar de duro trabalho que se torna, à noite, num espaço pouco aconselhável a visitar por causa de alta taxa de criminalidade. Uma localidade concreta, Limehouse, situada na margem setentrional do rio Tamisa, em East London, que na Idade Média funcionou como um porto importante com várias docas extensas e com várias espécies de indústria naval, ganhou no século XIX uma notoriedade nefasta devido ao comércio de ópio e imigração. Foi também nessa zona que se registou o primeiro caso de cólera em Londres, em 1832. Um paralelo às docas londrinas pode ser também visto nas docas lisboetas, Alcântara. Também esta parte lisboeta costuma ser descrita como uma das localidades mais perigosas devido à elevada criminalidade. 276 Os quadros da Lisboa popular, sobretudo de bairros pobres, aparecem, por exemplo, em António Botto (na peça Alfama, 1933) ou em Aleixo Ribeiro (no romance Bairro Excêntrico, 1946). 243 Recorde-se que Branquinho da Fonseca deixou um dos melhores retratos desta parte lisboeta no conto “Jack” (Rio turvo), onde desenvolve, sintomaticamente, uma trama de teor policial. As docas lisboetas são aqui apresentadas como um espaço sujo, degradante, mole, abandonado e cheio de barracões e caixotes que se transfigura, à noite, num lugar fantasmagórico de “monstros adormecidos”, navios atracados à margem, aos quais “um hálito” exalado das sombras dá “uma dupla presença” como “fantasmas envolventes” (Fonseca, 1997, p. 73).277 Num dos seus fragmentos, o sujeito de Solidão também se refere, laconicamente, às docas lisboetas, focando, porém, em vez do espaço, as figuras humanas que lá trabalham: Aqueles homens da doca, por exemplo. Nota-se-lhes o esforço e o cansaço? Julgo eu que não. Vão e vêm, descalços, serenos, carregados... Vão e vêm como uns autómatos, debaixo sempre de um sol persistente, de um sol fatigante, que torna esta terra e este Inverno agradáveis para estrangeiros, mas enfadonhos para nós. Por debaixo deste sol impávido lembram-me aqueles pobres homens simples figuras de um drama, sem lances, indiferente e contínuo... (p. 30) Nesta prosa ritmizada e melódica, assente na repetição, aponta-se para um drama oculto que só um observador atento poderia descobrir. Com efeito, se se tratasse de uma cena noturna, a cena ganharia em dramatismo sinistro, no qual poderiam explodir os potenciais significados da exploração social. Nas circunstâncias apresentadas por Irene Lisboa, contudo, os aspetos negativos do drama social podem passar facilmente despercebidos. A ideia central desnuda-se na acentuação de duas perspetivas relativamente ao efeito do sol: o sol e o calor pode ser agradável e estimulante para os estrangeiros, mas não para os habitantes locais, e muito menos para os que devem trabalhar assiduamente sem descanso. Neste sentido, os raios solares em princípio benéficos tornam-se instrumento de tortura. Os homens da doca, no entanto, dão impressão de uns seres completamente alienados que se mexem por força alheia, automatizados. Não têm tempo (e nem lhes passa pela cabeça) de se queixarem, é lhes retirado qualquer direito de refletirem sobre a sua situação, privilégio dos burgueses e inteletuais. Por este traço de solidariedade, o fragmento ireniano aproxima-se de certos versos cesarianos que transmitem a problemática social. Os paralelos são evidentes: homens da doca equivalem, artistica e socialmente, à varinas (“Descalças! Nas descargas de carvão,/ Desde manhã à noite, a bordo 277 Há muitos excertos descritivos das docas, p. ex.: “O sol alto fazia as sombras pequenas e do pavimento de pedras escuras, ligadas pela massa negra do pó de carvão, vinha um bafo que cheirava a sujo. No ar adormecido e mole pairava um rumor difuso como se fosse longínquo, em que só era nítido e próximo, sem se saber donde, mas a bater dentro da cabeça, um martelar em chapa de ferro, compassado, lento, vibrante, num duro contraste com o torpor do ambiente.” (Fonseca, 1997, p. 65). 244 das fragatas”, Verde, 1999, p. 99) e aos cavadores (“Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!/ Que vida tão custosa! Que diabo!”, Verde, 1999, p. 72). Semelhantemente, poderíamos até falar de uma capacidade de compaixão, presente também em Raul Brandão, que impele o sujeito ireniano a preocupar-se afetivamente também com os pobres.278 Em Irene Lisboa, todavia, não existe só uma solidariedade benévola de um inteletual em relação a um trabalhador manual ou a um pedinte, há uma afinidade muito mais interiorizada. Isabel Allegro de Magalhães notou já que as figuras observadas e descritas na obra de Irene Lisboa funcionam como projeções do sujeito (cf. 1995, p. 60).279 Por isso, o sujeito ireniano identifica-se com a situação dos pobres trabalhadores, numa comunhão afetiva e existencial, não vendo, de facto, nenhuma diferença entre si e eles. Na sua vida, como na vida deles, não há lances dramáticos, nem acontecimentos extraordinários, são todos os mesmos peões no xadres urbano da vida banal, perpétua, sem aventuras, com um destino vulgar traçado desde sempre (“E como eles, eu! Também vou e venho, serena, regular. Teimo em ir e em vir como se tivesse de cumprir um destino sensaborão, como se tivesse o meu lugar marcado numa peça clássica. E sinto-me como eles a mim me parecem, insubsistente...”, p. 30). Podemos assim concordar com Silvina Rodrigues Lopes de que existe uma simbiose entre o sujeito e a cidade, por força da qual os elementos espaciais “traçam o campo de uma reciprocidade em que não há anulação de singularidades mas a sua reunião numa memória, uma assinatura – Lisboa” (Lopes, 1994, p. 95).280 Com efeito, esta relação simbiótica evidencia-se também a nível simbólico no que se refere ao próprio conceito de solidão, radicalizado no sujeito feminino como a sua expressão vital. Deste modo, a solidão é simbolicamente inscrita não só no sujeito observador, como no espaço observado: “Que solidão constante, constante, a das ruas, dos lugares públicos, do tempo, de tudo! Entrar e sair... falar e não achar os espíritos ... nunca os compreender nem 278 Com efeito, a figura do pobre (inclusive do pedinte) faz parte do universo social urbano e embora a sua presença real e literária tenha sido sempre bastante incómoda ao mundo burguês, cada vez maior quantidade de autores portugueses sentiu, no decorrer do século XX, a necessidade de registar a sua existência. Veja-se, por exemplo, o seguinte extrato de Solidão: “Um homem novo, muito novo, andrajoso, descalço, de barba comprida, bate-me à porta e pede-me sopa. (...) Dei-lhe dinheiro. Mas ele torna-me a pedir sopa. (...) Agora é uma velha, com uma feíssima cara de pevide, amarela e gretada, e que me pede uma esmolinha pelo Santíssimo Sacramento! (...) Triste mundo de pedintes!” (p. 160) 279 Isabel Allegro de Magalhães argumenta de modo seguinte: “Perante esse assim percepcionado, Irene Lisboa cria em si dois movimentos: o de uma projecção sua no que observa e o de uma interpretação de si através do que lhe é exterior.” (1995, p. 60). 280 Silvina Rodrigues Lopes argumenta à base de outro texto, concretamente do excerto do poema “De uma cidade”: “Por aqui e por ali / o rio a aparecer / sempre a aparecer / a entristecer / com a sua beleza (...) / Eu sou desta cidade... / Tantas ruas dela conheço / de tantos passos seus me lembro!” (Lisboa apud Lopes, 1994, p. 95). 245 interessar...” (p. 43).281 É esse mundo da solidão, o da cidade e o da autora, que é, afinal, tão inspirador. 281 Outro exemplo marcante: “Ia pelas ruas sentindo-me delas, inseparável delas e preocupada com a ideia de as perder, de que tudo deixasse de ser como era...” (p. 93) 246 7. O Cais de Lisboa: geocrítica de um lugar mitificado Estava realmente uma noite magnífica, de lua cheia, quente e mole, com alguma coisa de sensual e de mágico, na praça quase não havia carros, a cidade estava como que parada, as pessoas deviam ter-se demorado nas praias e só voltariam mais tarde, o Terreiro do Paço estava solitário, um cacilheiro apitou antes de partir, as únicas luzes que se viam no Tejo eram as suas, tudo estava imóvel como num encantamento... Antonio Tabucchi: Requiem Em Lisboa não se mora. Lisboa é um lugar de partida. Fernando Lemos282 Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações! O Grande Cais Anterior, eterno e divino! De que porto? Em que águas? E porque penso eu isto? Grandes Cais como os outros cais, mas o Único. Álvaro de Campos: Ode marítima “Lisboa nasceu do rio”, afirma José-Augusto França, “do largo estuário do Tejo que nos princípios do Quaternário se sabe estar unido ao Sado na grande ‘depressão hispano-lusitânia’ na qual emergia como ilha a serra da Arrábida.” (França, 1989, p. 9). Com o rio está também ligado o nome da cidade: Alis ubbo fenícia significa enseada amena. Lisboa, nos tempos dos Romanos chamada Olisipo, era cidade integrada na província da Lusitânia e constituía-se como um “ancoradouro comercial importante” (França, 1989, p. 11). Nesse tempo, “[a]s águas do rio enchiam ainda parte do vale largo da Baixa, e tinham braços por Valverde e pelo vale da Mouraria, até Arroios, separados pela colina de SantʼAna, recolhendo águas das encostas, em cursos que o tempo diminuiria, por razões naturais ou provocadas” (França, 1989, p. 11). A seguir, na Lixbuna dos Mouros, havia no interior da alcáçova um palácio do alcaide e uma mesquita, fortaleza de onde desciam muralhas pelo declive do morro até à orla do Tejo (cf. França, 1989, p. 13). Em 1373, o rei D. Fernando deixou construir uma nova muralha que deixava fora as praias do futuro Terreiro do Paço. Só no século XVI, D. Manuel I abandonava o castelo medieval e “descia ao Tejo de que mais uma vez dependia o destino da sua capital” (França, 1989, p. 19). Após o Terramoto de 1755 ter destruído o Paço real, a reconstrução da cidade, conforme a nova planta da cidade feita por Eugénio dos Santos, acentuou a parte principal agora definida entre o Terreiro do Paço e o Rossio. O próprio Terreiro do Paço (nomeado Praça do Comércio), também projetado por Eugénio dos Santos, apresentava um espaço com arcarias regulares, o arco de triunfo e a estátua equestre do rei D. José, de Machado 282 Da entrevista com Fernando Lemos, Expresso 17/12/2019. https://expresso.pt/cultura/2019-12-17-A- criatividade-e-uma-grande-cura-uma-farmacia-entrevista-a-um-mito--Fernando-Lemos 247 de Castro (1775). Esta é também a imagem da parte ribeirinha da cidade de Lisboa que, ainda hoje, atrai o olhar de qualquer um que visite a capital portuguesa. O cais do rio, com efeito, corresponde a um dos símbolos lisboetas, sendo um espaço de fronteira natural da cidade e sendo também a fronteira entre dois espaços elementares – terra e água. Não é, pois, de estranhar que o cais pertence aos lugares definidores da identidade lisboeta, e também da identidade portuguesa. As implicações deste tipo são importantes, se tomarmos em conta, de acordo com Eduardo Lourenço, de que os dois maiores poetas portugueses, Camões e Pessoa, “viram Portugal como uma praia e um cais”: praia que, do fundo dos tempos, incitava os marinheiros audaciosos e ávidos à descoberta daquilo que o oceano desconhecido ocultava; e cais virado não apenas para o mar cruel e visível deste mundo, mas também para o Infinito e Indefinido evocados por Fernando Pessoa na Ode Marítima. (Lourenço, 1999, p. 58) O cais do Tejo, com efeito, constitui um elemento espacial que se encontra em todas as obras aqui analisadas. O conto fonsequiano “A tragédia de D. Ramón” e a novela Páscoa feliz de José Rodrigues Miguéis podem ser, pelo sua tonalidade disfórica, associados ao imaginário do cais cesariano. Embora na poesia de Cesário Verde, este elemento espacial apareça esporadicamente, a sua abordagem ganha em relevo pela sua carga afetiva. Segundo JoséAugusto França, a Lisboa cesariana “não tem Tejo”, porque só uma vez o rio é nomeado em “O sentimento dum ocidental”, e “não é um Tejo de água e luz, mutante de cor a cada minuto do dia, espelho de ouro ou mar de palha baça” (França, 1993, p. 65). Efetivamente, no poema “Noite fechada”, o rio recebe os atributos “lodoso” e “glacial” e ainda que não seja referido o nome concreto do rio, supõe-se tratar do Tejo, tal como em “O sentimento dum ocidental”. Semelhante tratamento do cais pode ser encontrado também no romance A capital de Eça de Queirós, em que Artur, após perder todas as ilusões quanto à vida na capital, regressa ao espaço da província. Num momento de máxima depressão, Artur dirige-se ao cais e, fitando as águas sombrias do rio, sente um vago desejo de se suicidar a fim de acabar com o seu sofrimento: O rio agitado, na maré crescente, batia tristemente na escuridão, contra as escadas do cais; entre os botes amarrados, a água tinha tenebrosidades frias; vultos de navios faziam na noite escura redobramentos de sombras, e aqui, além, num mastro, tremulava um fanal mortiço. – Era só subir ao parapeito, saltar, estava livre… (Queirós, 2015, p. 395) Como já foi observado nos capítulos anteriores, tanto em Branquinho da Fonseca, como em Rodrigues Miguéis, a água do rio apresenta-se como “viscosa e turva”, “grossa e parada” 248 ou “negra”. Mas os sentimentos dos homens ocidentais não se refletem somente no espelho das águas sombrias e suicidárias porque há ainda uma outra vertente que une os dois textos e, com eles, o imaginário arquetípico do povo marítimo. Os dois protagonistas dos textos fonsequiano e migueisiano, pois, desejam partir, e não importa se por razões diferentes. Por isso, o cais funciona como um imã, um espaço a partir do qual se abre o mundo almejado. O cais sempre aponta para um outro espaço, para além do mar, e a esse espaço, indefinido, liga-se a saudade, não a saudade do que não há e existia, mas o desejo daquilo que está longe, um espírito de aventura que exprime a mentalidade portuguesa. Contudo, não se trata somente de um sonho de terras longínquas que anima este lugar porque também o próprio mar, com a sua poderosa simbologia, se inscreve no imaginário do cais. Embora à primeira vista, o mar possa corresponder a limes, a linha de fronteira que proíbe a passagem, os portugueses fizeram dela limen, a fronteira porosa, que teria de ser transposta.283 Neste sentido é também ativado o simbolismo de transgressão, conceito que logicamente subentende a existência de alguma norma que é ultrapassada ou violada. É precisamente este espírito da transgressão que anima Os Lusíadas de Camões: tanto a figura do Velho de Restelo, no cais, como o Adamastor no Cabo da Boa Esperança, avisam que a aventura marítima assenta profundamente num ato de transgressão porque só desta forma a gesta lusíada pode ganhar um sentido transcendental. Nos séculos posteriores, esta mesma imagética de transgressão articula o genius loci do cais como um lugar de evasão e de realização de sonhos secretos. Daí o seu fascínio, tão vivo em muitas obras literárias. Estes sonhos costumam ser frequentemente concretizados no motivo de navios porque só graças a eles os sonhos poderiam ser realizados. Recordem-se os “couraçados” britânicos que exerceram um fascínio ambíguo no sujeito de “O sentimento dum ocidental”. Semelhantemente, os navios, em especial os transatlânticos, hipnotizam o olhar dos sujeitos fonsequiano, migueisiano e pessoano. No que respeita a este último, La Salette Loureiro aponta para as potencialidades simbólicas do cais em Álvaro de Campos e Bernardo Soares: “A Cidade de Campos não é concebível sem o Cais. Cais da chegada, cais da partida, cais do porto, cais da ‘gare’, cais de pedra ou Cais arquetipal, ele prolifera na poesia de Álvaro de Campos, articulando-se naturalmente com o tema da Viagem.” (Loureiro, 1996, pp. 88-89). Além disso, a pesquisadora assinala a importância fulcral do cais durante o processo de (auto)conhecimento, citando os versos “Quero partir e encontrar-me,/ Quero voltar a saber de onde” (Loureiro, 1996, 283 Sobre a distinção entre limes e limen vide Westphal (2011, p. 42) 249 p. 90).284 Muitas vezes, o sujeito lírico de Álvaro de Campos exprime as angústias e perplexidades de quem deseja partir, querendo ficar, vibrando num eclodir de todos os sonhos de mar e seduções pelo distante, anseios arquetípicos do povo que habita os confins da terra (e não só deste povo, visto que tais sonhos pertencem ao arquétipo universal de um desejo de aventura, podendo este recobrir outros imaginários que não só o marítimo – a floresta, as serras ou o deserto).O tópico da viagem, portanto, associa-se a um dos mitos mais revisitados na mitologia lisboeta, o mito de Ulisses. 7.1. O mito de Ulisses – um dos fundamentos do imaginário coletivo Tal como a geocrítica de Lisboa não poderia funcionar sem a referência ao cais, o mito de Ulisses, fundador do imaginário da cidade, é imprescindível para a mitografia lisbonense. A lenda origina no nome da cidade, Olisipo e Olisipone, como lhe chamaram os Romanos, o que “por confusão com Odysseia, que Estrabão situa na Andaluzia, dizendo-a fundada por UlissesOdysseus por este se supôs fundada, numa lenda adoptada por Damião de Góis e de persistente memória” (França, 1989, p. 10). Desde essa altura, a lenda faz parte do imaginário lisboeta, sendo várias vezes explicitamente referida, desde Camões, Jorge Ferreira de Vasconcelos (Comédia Ulissipo) até José Cardoso Pires ou Teolinda Gersão. A força mitificadora a que é submetida a cidade de Lisboa, revela-se também no romance Maria Benigna de Aquilino Ribeiro: [estes amores de Lisboa] São a silva adequada àquela pasmaceira e clima, sem igual no mundo, que levam a crer que Ulisses, sibarita do fino, ali desembarcasse da sua nau côncava e, armando tenda e filando para lá a primeira cachopa indígena, lançasse os fundamentos da urbe. (Ribeiro, 1985b, p. 50) Volvendo olhos, em baixo, para lá da selva de flechas e florões do mosteiro, o rio mostrava-se de alvaiade puro, muito manso e branco, com rugas tão ténues que só podiam ser a esteira inextinta de navios que se não viam já. E recortado pelo ocre e cinábrio de areias e arribas, com as plagas desertas e o seu dormente de lago, devia oferecer, salvo os gasómetros de Pedrouços, a telha de Marselha, a pedra de lavor, salvo o efémero em suma, o mesmíssimo panorama que se deparou à nau desgarrada de Ulisses. (Ribeiro, 1985b, p. 59) 284 Por exemplo nos versos do poema “Passagem das horas”: “Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir, / E fica sempre, fica sempre, fica sempre, / Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...” (Pessoa, s/d, 219) 250 A estória de Ulisses pertence aos mitos prediletos da modernidade. O motivo para esta universalidade intemporal consiste no facto de “[a] figura do homem errante – peregrino de si mesmo, andarilho do mundo ou vagabundo de Deus – é uma das reificações mais autênticas e profundas da condição humana”, como diz António Manuel Ferreira a propósito da poesia de Rui Knopfli (Ferreira, 2012b, p. 471). O mito de Ulisses, porém, conjuga dois mitemas – a viagem e o desejo de regressar a casa – que criam a verdadeira tensão, nunca pacificamente resolvida. Por extensão, o regresso de Ulisses sintoniza-se com o regresso a Ulisses, e isto não só em termos explícitos, como se vê no famoso romance de James Joyce, mas em função de um substrato mítico que assenta na base de muitas narrativas do século XX. O mesmo é válido para o tópico urbano, visto que a cidade na modernidade está intimamente ligada com a viagem e, por extensão, com o mito de Ulisses ou argonautas gregos. Ao falar sobre a poética da cidade na ficção pós-moderna, Maria Alzira Seixo afirma: A cidade deixa de ser uma paragem no percurso do herói, uma «estação» no seu trânsito determinado pelas circunstâncias do acontecer efabulativo, para ser ela também um local de deslocação, de viagem, eventualmente de perda ou de encontro (como acontece em romances de Vergílio Ferreira ou de Augusto Abelaira, como acontece também em Thomas Bernhard ou Jean Echenoz), configurando assim uma poética do romance em termos que a crítica actual não pode ignorar. (Seixo, 1998, p. 166) Noutras obras aqui analisadas ou referidas, o gesto de Ulisses – a viagem de regresso até a Ítaca natal, anima os comportamentos das personagens. Assim, Ramón fonsequiano está toda a noite a percorrer a cidade, recuperando a epopeia à avessas, até porque sentindo enormes saudades da sua Ítaca (Buenos Aires), sabe que tem os caminhos bloqueados; a viagem por mar já não é possível. Renato migueisiano também percorre a cidade que, nas suas voltas e reviravoltas, ganha um desenho labiríntico. Na sua casa, uma Ítaca de paz e amor altruísta, a mulher fiel o espera, paciente e dedicada. Mas Renato já está perdido e não pode ficar em casa. Após o regresso e o choque psíquico, devido à suposta morte do seu filho, continua a viagem desesperada cheia de fracassos, sendo seu destino uma forma de suicídio cerebral, a perda da memória. Uma estrutura mítica diferente pode ser observada nos romances aquilinianos. A cidade lança muitas armadilhas aos personagens, Ricardo Tavarede e Adriano Valadares. Mas enquanto estas armadilhas são fáceis de ultrapassar para Adriano, para Ricardo tornam-se fatais. Os dois sabem intuitivamente que a sua Ítaca não está dentro da cidade babilónica, mas num espaço livre e aberto da natureza, nas serras da Beira. O destino trágico de Ricardo, a sua incapacidade de lidar com o papel de herói vencedor que ele impôs a si próprio, ao se apaixonar 251 por uma menina bonita, rica e muito mais nova, verifica-se no romance O arcanjo negro que deve ser lido como continuação de Mónica. A melancolia negra, terrível e auto-destrutiva apodera-se dele, tal como de Renato migueisiano. O único caminho a seguir é, de facto, a aniquilação. Diferentemente, Adriano consegue ficar imune às teias amorosas graças ao seu estoicismo e distância emocional. Por outro lado, à medida que ele próprio evita quaisquer feridas afetivas, destrói, pela sua frieza, todas as sereias que, de início só sedutoras, se apaixonam quase perdidamente por ele. Nesta versão, a lição de Ulisses e Circe está bem patente. O pior é que a sua esposa, a sua fiel e terna Penélope, morre devido a uma doença grave e também, talvez, devido à indiferença por parte de Adriano. Similarmente, António, do romance Bússola doida de Aleixo Ribeiro, é mais um Ulisses a tentar salvar-se às ciladas de Circe. Tal como Adriano, consegue com sucesso destruir todas as relações emocionais com as mulheres que lhe dedicaram a sua paixão ou ternura amorosa, para se dar conta, no fim da viagem, da sua tremenda solidão e egoísmo. Uma das melhores recriações contemporâneas do mito de Ulisses, concebida um pouco à maneira de James Joyce, encontra-se num romance já pós-revolucionário, Memória de elefante, de António Lobo Antunes. Neste romance, o protagonista reitera a viagem de regresso de Ulisses para Ítaca, durante a qual tem de enfrentar imensos perigos para provar a sua qualidade de herói que é, neste caso, um anti-herói. A versão (cripto)mítica, apresentada no romance antuniano, é, no entanto, burlesca e irreverente. É uma versão carnavalizada tanto do mito clássico, como de suas reescritas modernas. Assim, hipoteticamente, o hospital poderia representar o campo de batalha, a Tróia da morte e alienação, o consultório do dentista com o som da broca ameaçadora poderia ser a cova do Polifemo, o Casino a ilha de Circe, os semas da morte, dispersos no romance, aludiriam à descida ao reino de Hades e as mulheres dos bares às sereias. A mulher, na verdade, aciona a problemática do Outro, legível no motivo da mulher em geral e, especialmente, na mulher do protagonista, da qual este se divorciou apesar de nutrir por ela amor e apesar de ela significar para ele um objeto erótico por excelência. O regresso a casa seria assim um cúmulo de auto-ironia: o psiquiatra afinal regressa não para se reencontrar com a mulher, tantas vezes mencionada, desejada e idolatrada no texto, mas para passar uma noite insignificante com uma mulher igualmente insignificante e desconhecida.285 Nos inícios do século XXI, este trabalho de releitura/reescrita foi também empreendido por Teolinda Gersão em A cidade de Ulisses (2011) e por Gonçalo M. Tavares em Viagem à Índia (2010). Conforme Annabela Rita, a cidade de Lisboa é, para estes dois autores, o lugar 285 Esta leitura inspira-se na interpretação do mito de Ulisses no romance de James Joyce, feita por Meletinskij (1989, pp. 307-348). 252 onde estes se “encontram e se desencontram operaticamente através dos fantasmas do nosso imaginário colectivo nacional e do das suas ficções” (Rita, 2014, p. 284). No romance de Teolinda Gersão, o mito de Ulisses espelha-se em forma de mise en abyme no nível diegético: o título do romance A cidade de Ulisses alude tanto ao projeto artístico homónimo, empreendido pelo protagonista, Paulo Vaz, como ao facto de este herói encarnar, pelo seu caráter, comportamento e peripécias vitais, a figura mítica de Ulisses (com algumas repercussões camonianas pelo seu apelido). Por isso, todas as suas pinturas que fazem parte do projeto por repercutirem o mito ulisseiano, partem de uma inspiração pessoal, de uma emoção realmente experienciada. Assim, por exemplo, tanto a pintura Em Tróia com Helena, como A Manhã de Nausica, exprimem o erotismo de Ulisses e dele próprio. Toda a cidade de Lisboa é portanto conscientemente recriada como um duplo das personagens e, simultaneamente, como um “receptáculo” de imagens fundadoras da identidade portuguesa, uma vez que o tópico da viagem, lucidamente relacionado neste romance com o sexo, arte, conhecimento e ânsia de liberdade,286 é uma forma de “dizer” a cultura portuguesa colonial e pós-colonial que abrange todo o território, não só Lisboa e portos marítimos, mas também as localidades como Montemor-o-Velho (lugar de nascimento de Fernão Mendes Pinto), Aveiro (lugar de origem de Frei Pantaleão de Aveiro) e várias outras. 7.2. As fronteiras: colonial vs. pós-colonial A releitura do mito de Ulisses insere-se numa linha singular da ficção portuguesa moderna e pós-moderna, essa que pretende revisitar os textos/mitos fundadores da cultura ocidental e portuguesa a fim de reconstruir, problematizando, o imaginário coletivo (cf. Rita, 2014, 284). Por tradição, como vimos, o mito de Ulisses faz parte da olisipografia e, atualizando a mitologia marítima, acentua também o imaginário (pós-)colonial. É já nʼOs Lusíadas de Camões que se encontra uma das imagens mais ambíguas da era colonial, posteriormente revisitada nas leituras pós-coloniais, que é conectada precisamente com o espaço do cais: E já no porto da ínclita Ulisseia, C´um alvoroço nobre e c´um desejo (Onde o licor mistura e branca areia Co´o salgado Neptuno o doce Tejo) 286 Repare-se na seguinte ideia: “A história de Ulisses falava do amor dos homens e das mulheres, da casa que constroem, da aventura arriscada de viverem juntos. Dos álibis que os homens inventam para recuperarem a sua liberdade por inteiro.” (Gersão, 2013, p. 45) 253 As naus prestes estão; e não refreia Temor nenhum o juvenil despejo, Porque a gente marítima e a de Marte Estão para seguir-me a toda parte. (...) A gente da cidade, aquele dia, (Uns por amigos, outros por parentes, Outros por ver somente) concorria, Saudosos na vista e descontentes. E nós, co ´a virtuosa companhia De mil Religiosos diligentes, Em procissão solene, a Deus orando, Para os batéis viemos caminhando. Em tão longo caminho e duvidoso Por perdidos as gentes nos julgavam, As mulheres c´um choro piedoso, Os homens com suspiros que arrancavam. Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso Amor mais desconfia, acrescentavam A desesperação e frio medo De já nos não tornar a ver tão cedo. (Camões, s/d, pp. 193-194) Nesta imagem feita ao modo de câmara cinematográfica, por meio de sucessivas focagens aproximativas que sugerem a técnica de close up, o cais é vislumbrado primeiro na sua totalidade, dentro da qual umas figuras individuais são relevadas. A atmosfera é lúgubre, plena de tristeza pouco dissimulada, de lágrimas a correr de saudade e medo. Dentro da multidão, salienta-se, logo a seguir a figura trágica do velho do Restelo que, num discurso interiormente problemático e paradoxal, aponta para os aspetos negativos da empresa marítima. Pelo tom disfórico, de facto, este discurso pertence às partes antologiadas que, junto com a História trágico-marítima veicula a perspetiva crítica em respeito à aventura expansionista e colonizadora. Não supreende, portanto, que esta imagem poderosa se tornou numa das referências imprescindíveis para as obras novecentistas de temática (pós-)colonial.287 287 O termo “pós-colonial” entende-se aqui, na senda das teorias pós-coloniais (Said, Spivak, Bhabha etc.), como uma reação ao colonialismo, essa que cria um distanciamento crítico e que é encaminhada para uma eliminação da herança colonial. Num sentido mais amplo, o prefixo “pós-“ exprime o processo que começou já na época do colonialismo, fruto de um permanente confronto com a constelação colonial. No sentido mais estrito, relaciona-se com o período da independência das colónias, sendo contudo vinculado a uma fase tardia do colonialismo e/ou às suas formas renovadas (cf. Nünning, 2006, pp. 618-621). 254 Álvaro de Campos pode ser considerado o heterónimo pessoano que melhor encarnou este legado camoniano, lançando-lhe uma réplica, numa situação inversa, já não de partida, mas de chegada: “Vai pelo cais fora um bulício de chegada próxima,/Começam chegando os primitivos da espera,/ Já ao longe o paquete de África se avoluma e esclarece.”288 Vimos bem que semelhantes imagens, carregadas de emoção, de saudade e frustração, animam as páginas dos textos fonsequiano e migueisiano. A década de 30 do século XX, com efeito, com o estabelecimento da ideologia nacionalista do Estado Novo, orientada para a ideia do Ultramar, constitui a pedra basilar no tratamento da questão, abordada posteriormente do ponto de vista pós-colonial. Repare-se, a propósito, na abordagem, mesmo que só secundária, desta questão no romance Mónica de Aquilino Ribeiro. De entre as obras aqui analisadas, é só este romance que apresenta uma crítica explícita à ideologia colonial. Não importa, neste momento, que a trama romanesca se passa ainda antes do estabelecimento do Estado Novo, porque mais importante é a altura em que o texto foi escrito, por poder conter já algumas opiniões atualizadas, construídas à base da sensibilidade dominante no momento da escrita. Ora, o romance foi escrito após a consolidação do Estado Novo, e publicado em 1939, como sabemos. Todas as críticas ao abuso nas então colónias, portanto, podem ser lidas como crítica ao sistema em vigor nos anos 30. A denúncia do mal é veiculada pela figura do capitão Basílio, cuja carreira se resume num parágrafo, conforme a perspetiva do protagonista, Ricardo Tavarede: Fez a carreira no Ultramar, para onde foi soldado raso. Até pôs a mochila, foi moço de cego. Em África casou com a filha dum cabo-verdiano que amealhou bons cobres, se não enriqueceu, vender aos indígenas chapéus velhos que os agentes lhe expediam da metrópole. Organizou-se a expedição ao sertão e aí vai o homem. Aconteceu um preto disparar sobre ele à queima-roupa e a pólvora, não a bala, chamuscar-lhe as pestanas, tanto bastou para o poltranaz se tornar em fera. Foi ele quem, a título de represálias, começou a suspender pelos galhos das árvores a chouriçada de pretos que ficou proverbial naquela campanha. Mas a crónica do patife tem outros capítulos não menos ascorosos, como a violação de miudinhas negras e de moleques, a cobrança duas vezes do imposto de cubata, etc. (Ribeiro, 1985b, p. 124) É evidente que as atrocidades cometidas por um Basílio aquiliniano no início do século XX assemelham-se em muito àquelas cometidas durante a ditadura do Estado Novo e das quais 288 A primeira estrofe do poema continua com os versos que ilustram perfeitamente a situação de D. Ramón fonsequiano: “Vim aqui para não esperar ninguém, / Para ver os outros esperar, / Para ser os outros todos a esperar, / Para ser a esperança de todos os outros.” (Pessoa, s/d, p. 125). Mas é sobretudo a magnífica “Ode marítima” que exprime todas as inquietações vinculadas ao lugar e símbolo do Cais (“Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material, / Real, visível como cais, cais realmente, / O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente imitado, / Insensivelmente evocado, / Nós os homens construímos / Os nossos cais de pedra actual sobre água verdadeira (...)” (Pessoa, s/d, p. 164). 255 falariam livros publicados só após 25 de abril. E mesmo que a crítica parta de uma personagem em relação à outra, sem vislumbres de um ataque ao sistema político, a posição da personagem, e com ela do escritor, é bem clara. É neste sentido que o cais, agora tornado um portão para o inferno bélico, figura em toda a literatura que aborda criticamente a guerra colonial dos anos 60 e 70. Um dos casos exemplares pode ser encontrado no romance Jornada de África (1989), de Manuel Alegre, cujo diálogo intertextual se baseia na apopriação da cena camoniana do cais, transladada para o século XX. A atualização, neste sentido, não diz respeito somente à alteração temporal, mas também à mudança do lugar de partida. Em vez do cais em função de um lugar de partida para a guerra que aparece por exemplo nos romances de António Lobo Antunes, os personagens de Manuel Alegre vão à guerra de avião: Já o avião vai no ar, agora toma altura, pode ver-se o casario, o Tejo, a Torre de Belém mais um velho meneando três vezes a cabeça descontente. O melhor é não ligar, senão começa a assobiar em decassílabos. É o ritmo da partida, quer se queira quer não. A que novos desastres, ai que gaita, a que novos desastres determinas de levar este reino e estas gentes. Não há nada a fazer, esta é a métrica, de nau ou de avião é a mesma coisa. (Alegre, 1989, p. 26). Apesar da modificação do navio em avião, o sentimento provocado pela partida, a que um novo velho do Restelo acrescenta a tonalidade particularmente sombria, corresponde à cena camoniana. O aeroporto, portanto, funciona como um símile do cais, como um espaço de fronteira entre o aqui e o “lá”, agora já não indefinido e desconhecido, mas um “lá” dolorosamente concreto. O espaço do cais, substituído por aeroporto, ganha neste sentido um significado atualizado, eminentemente distópico. Por conseguinte, o mesmo cais torna-se também cenário do movimento inverso, da viagem de regresso. Fernando Pessoa, na persona de Álvaro de Campos, pode ser considerado um dos primeiros poetas que melhor encarnaram o legado camoniano, lançando-lhe uma réplica, numa situação inversa, já não de partida, mas de chegada: “Vai pelo cais fora um bulício de chegada próxima,/Começam chegando os primitivos da espera,/ Já ao longe o paquete de África se avoluma e esclarece.”289 Outros significados da chegada, contudo, aparecem na literatura da segunda metade do século XX, em que, de acordo com a dualidade colonial/pós-colonial, o 289 A primeira estrofe do poema continua com os versos que ilustram perfeitamente a situação de D. Ramón fonsequiano: “Vim aqui para não esperar ninguém, / Para ver os outros esperar, / Para ser os outros todos a esperar, / Para ser a esperança de todos os outros.” (Pessoa, s/d, p. 125). Mas é sobretudo a magnífica “Ode marítima” que exprime todas as inquietações vinculadas ao lugar e símbolo do Cais (“Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material, / Real, visível como cais, cais realmente, / O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente imitado, / Insensivelmente evocado, / Nós os homens construímos / Os nossos cais de pedra actual sobre água verdadeira (...)” (Pessoa, s/d, p. 164). 256 regresso à ex-metrópole ganha um caráter fortemente disfórico. Neste contexto, sobressai a enorme obra de António Lobo Antunes, um dos autores mais iconoclastas na literatura portuguesa que, ao subverter o discurso do poder autoritário e colonial, junto com todos os seus mitos e “narrativas” oficiais, abre caminho a um processo de desterritorialização, não isento de dor e angústia, mas consciente da necessidade de auto-reflexão e crítica. Entre outras obras, o romance As naus (1988) marca a nova cartografia do eixo colonial/pós-colonial, abrangendo as duas “eras” portuguesas do sonho da grandeza transcontinental, as duas faces da moeda, a partida no século XVI e o regresso no século XX. No centro do romance, ergue-se a figura mítica e fabulosa de Luís de Camões, transposta, junto com os outros “protagonistas” da empresa portuguesa ultramarina, para o século XX dos anos setenta. Convém recordar que já Aquilino Ribeiro, em Luís de Camões. Fabuloso Verdadeiro (1950), em pleno auge do discurso nacionalista, promovido pelo poder em vigor na altura, ousa apresentar um Camões sem essa aura de herói, sedimentada pela tradição literária e animada pelo oficial discurso político dos anos 50. O texto de Aquilino Ribeiro afirma-se, portanto, contra a manipulação com o grande Poeta por parte do regime autoritário, contra o seu aproveitamento para fins ideológicos, imprimindo à figura de Camões, inversamente, traços desheroizantes, de fraquezas e vícios humanos. Apesar desta desterritorialização do mito camoniano, continuada e desenvolvida por Lobo Antunes em As naus, o texto de Aquilino, bem como o de Lobo Antunes, não pretende diminuir a importância do Poeta, mas humanizá-la. A esta luz, Serafina Martins diz em respeito à obra de Aquilino Ribeiro o mesmo que poderia ser dito também sobre o romance antuniano: “A ‘humanização’ de Luís de Camões que ele pretendeu realizar vai mais longe do que a mera provocação da fixidez ideológica (nos campos literário e político); significa um tributo ao poeta, à condição de um homem que era também um génio...” (Martins, 2007, p. 864). O Camões humanizado, torna-se protagonista da contra-epopeia antuniana em que as maiores figuras do Mar Português regressam a uma Lisboa sórdida e, na deambulação pela cidade “revela o perfil dum flaneur pós-moderno a deixar atrás de si o Terreiro do Paço, espaço simbólico da representação do poder imperial”, como diz Bálint Urbán, misturando-se “com os ressuscitados que povoam as trevas de Lisboa” (Urbán, 2016, 116).290 Após o fim da guerra colonial, o cais transforma-se num depósito do que restou do antigo império: umas centenas de contentores deixados à margem do rio. Muitas obras que abordam a 290 A citação, feita por Bálint Urbán, é de As naus (1988), Lisboa: Dom Quixote. Além disso, encontram-se no romance antuniano muitas imagens da Lisboa distópica que, norteadas pela abjeção e negativismo, sintonizam com o gesto iconoclasta do texto (p. ex. “Cada vez mais Lixboa se lhe afigurava um rodopio de casas sem destino, uma cavalgada de algerozes, de tapumes, de flechas de igreja e de ruas a quem as obras camarárias expunham as tripas dos esgotos sob um céu rebentado de pústulas de nuvens”, Antunes, 2006, p. 182). 257 problemática da era pós-colonial referem-se a esta imagem pungente. Um exemplo: o jovem protagonista do romance O retorno (2012) de Dulce Maria Cardoso, pertencente a uma família recém-chegada de Angola em 1975, matuta sobre a possibilidade de roubar os contentores das pessoas supostamente falecidas, para ajudar a mãe, sem recursos, com dois filhos: Ao princípio também me fez impressão a ideia de roubar os contentores, até houve noites em que sonhei que os mortos de Sanza Pombo estavam zangados comigo, a perguntarem-me, como é que tens coragem de roubar as nossas coisas depois de tudo o que nos aconteceu, mas depois pensei, os contentores vão acabar por apodrecer, as coisas vão todas estragar-se no cais ou então vão ser roubadas por outros. (Cardoso, 2012, p. 197) A imagem dos contentores a apodrecer no cais, símbolo da queda do “império”, acompanha o imaginário distópico da pós-colonialidade portuguesa. De uma forma ainda mais sugestiva, a mesma imagem regressa no romance Jardins secretos de Lisboa de Manuela Gonzaga. A protagonista, jovem fotógrafa, tira imagens dos contentores para o seu projeto intitulado As sobras do império: Centenas, milhares de caixotes. Contentores em pau-santo, pau-rosa, pau-ferro, pau-preto. Madeiras preciosas, arrancadas do chão africano, onde morrera, ao cabo de séculos, o velho sonho colonial português. Um sonho assombrado de saudades, guardado aos pedaços pelo Cais da Junqueira, pela Gare de Belém, desde os pilares da Ponte até Xabregas, desde a Dioca do Espanhol até Pátio do Carvão. (Gonzaga, 2006, p. 163) Além da imagem obsessiva dos contentores, a pós-colonialidade deixou ainda outros traços no corpo da cidade. Vimos que a Lisboa de Aquilino Ribeiro manifesta o caráter híbrido, urbano-rural. A Lisboa dos autores pós-25 de abril apresenta-se também como híbrida, mas desta vez de uma hibridez que trai a presença portuguesa em África. Bertrand Westphal afirma que Lisboa corresponde a um espaço múltiplo que é fortemente atingido pelo fenómeno de desterritorialização (2006, pp. 16-18). Por um lado, em Lisboa inicia-se uma deriva oceânica que faz dela um ponto de partida de todas as navegações reais ou imaginárias em direção das Américas e África (2006, p. 17), por outro lado, a própria África aflora no imaginário lisboeta (2006, p. 18). Tal aspeto pode ser observado, conforme Westphal, no livro Dans la ville noire (2003) de Jean-Yves Loude que, do ponto de vista exógeno (autor é lyonense de origem caboverdiana), expõe traços de presença africana na profundidade temporal e espiritual dos lugares (2006, p. 13). Neste sentido Westphal acentua um específico caráter sensorial da Lisboa de Loude, baseado na cor negra em vez de branca, tradicionalmente relacionada com a capital 258 portuguesa, apontando também para o facto de Loude reintroduzir na cidade aquilo que desapareceu das metrópoles europeias, ou seja, os odores (2006, p. 13). É também evidente que a amálgama das cores (por exemplo nos panos africanos), cheiros e perfumes (de peixe, flores, fruta etc.) ou sons (ritmos africanos para além do fado) sublinha o caráter polisensorial da Lisboa na fronteira de mundos e continentes.291 Este hibridismo euro-africano pode ser verificado também em várias obras literárias da era pós-colonial, na qual se atesta o movimento inverso das antigas viagens-aventuras coloniais. É bem natural que África, após séculos de presença forçada de europeus no seu solo, se começa a impor, reciprocamente, no espaço da ex-metrópole. Assim, por exemplo, no romance Memória de elefante de Lobo Antunes, o protagonista, ao conduzir o carro pelas ruas lisboetas, empreende uma nova aventura de (re)descoberta das terras e gentes: Girando o volante, para um e outro lado, como uma roda de leme, furtou-se aos hipopótamos adormecidos das stations a erguerem do rio do asfalto os olhos preguiçosos dos faróis, mamíferos tripulados por caixeiros-viajantes loquazes que percorriam a província em safaris em as que as aldeias indígenas cediam lugar a coretos afligidos por psoríases de ferrugem. (Antunes, 2004, pp. 69-70)292 A Lisboa pós-colonial, enriquecida pela imagística africanista (motivos de hipopótamos, safaris etc.) adquire caraterísticas de uma cidade em que desaparecem os limites entre as categorias do próprio e do outro, neste caso ultramarino, para se tornar num palco de uma nova aventura às avessas. Tal configuração urbana, veiculada pelo tópico da viagem (real e imaginária), é também essencialmente ligada à questão da identidade coletiva, à reflexão sobre o destino português que deve ser perspetivado dentro de um contexto literário mais vasto. Num ensaio publicado em 1986, Eduardo Lourenço invoca propriamente a figura de Fernão Mendes Pinto, contrapondo-o a Camões, como um símbolo de uma nova aventura cultural portuguesa 291 Neste âmbito continuam a aparecer vários projetos de repercussão em grande escala, como é por exemplo o caso de cinema e música popular. Refira-se, à guisa de ilustração, o projeto de Madonna que, ao viver temporariamente em Lisboa, conseguiu absorver várias inspirações culturais e musicais, levando a cabo algumas composições de perfeita síncrese de elementos de música popular ocidental, fado português e ritmos africanos/brasileiros. Veja, por exemplo, a composição Batuque. Acessível em https://www.youtube.com/watch?v=nU2eApGw_TU (Cit. 12.8.2019). 292 De mesma forma, no espaço são introduzidos os atributos marítimos ou, pelo menos, os elementos espaciais que apontam para o mar como se indicassem um rumo a seguir (“Todas as estátuas apontavam o dedo na direcção do mar, convidando à Índia ou a um suicídio discreto,” [Antunes, 2004, p. 81], “O edifício maciço do Arsenal enverdecia de musgos marinhos, saudoso de impossíveis naufrágios.” [Antunes, 2004, p. 86]). O tom melancólico deste tipo de imagens talvez denucie o facto de que a partir de agora (se não teria sido sempre assim), a única aventura possível é só aquela sonhada e imaginada. Repare-se, a propósito, que imagética semelhante é delineada, entre outros, nos romances O homem suspenso (1996) de João de Melo e Manual de pintura e caligrafia (1977) de José Saramago. Nestes romances, o protagonista que é igualmente um homem preso na teia conflituosa da relação com a mulher, empreende também uma viagem noturna de carro pela cidade, revisitando alguns lugares centrais da mitologia pessoal e coletiva e, simultaneamente, refletindo sobre a sua condição humana. 259 que se desvia da “aventura imperial” (Lourenço, 1986). Neste sentido, a viagem noturna pela cidade, empreendida pelo protagonista antuniano, pode ser também lida, a nível simbólico, como uma viagem picaresca que ressuscita o mito de Mendes Pinto. Duas décadas após a publicação de Memória de elefante, em 1996, João de Melo recriou este mesmo mito na figura dum outro navegador solitário, o narrador do romance O homem suspenso. Só com a diferença de que nos anos noventa a discussão já não se centra tanto na relação de Portugal a África, mas na relação à União Europeia, e, consequentemente, na ameaça de a cidade de Lisboa se tornar numa cidade esvaziada, em “sítio nenhum” (Melo, 1996, p. 66).293 Recentemente, no início do novo milénio, a problemática da Lisboa pós-colonial ganha em visibilidade com as narrativas protagonizadas pelos (i)migrantes provenientes das antigas colónias africanas e seus descendentes. Trata-se por exemplo dos romances O vento assobiando nas gruas (2002) de Lídia Jorge, O meu nome é Legião (2007) de António Lobo Antunes, Os pretos de Pousaflores (2011) de Aida Gomes ou Luanda, Lisboa, Paraíso (2018) de Djaimilia Pereira de Almeida. É neste último romance, história de pai e filho deslocados de Luanda para Lisboa, que que se projetam várias imagens da urbe cesariana. Como ilegais, os dois homens são obrigados a viver à margem, tanto material, como existencialmente, ocupando assim um lugar de “fronteira” identitária. Não sendo portugueses, nem angolanos, mas antes “almas mortas” sem domicílio oficial, vagueiam solitários e “invisíveis” pelas ruas lisboetas de amargura. É sobretudo o filho, Aquiles, que costuma sair à noite, aproveitando-se da escuridão, ao abrigo da qual passa despercebido, uma vez que a noite sintoniza com a sua pele preta e com a sua miséria material: “Aquiles tem a cor da noite e não carrega aos ombros o fardo de ser quem é.” (Almeida, 2018, p. 170). Aos motivos coincidentes deste romance e da poesia de Cesário Verde pertence a solidão como a situação de partida, o crepúsculo lisboeta que adquire tons melancólicos, acentuados pelo gás, provocador de uma sensação de asfixia294 , a janela/vitrina acesa que convida a um olhar ora perspicaz, ora magoado de quem espreita a 293 No romance antuniano fala-se também de uma “certeza de vazio” (2004, p. 75) ou de uma “cidade deserta” (2004, p. 75). 294 . “O gás extravasado enjoa-me, perturba” (Verde, 1999, p. 97). “Agora, ao crepúsculo, a forma esbate-se e a cidade é um gás irrespirável.” (Almeida, 2018, p. 168) 260 mesquinhez e felicidade de outros,295 as prostitutas no passeio296 , a morbidez da cidade297 . Apesar de um imaginário urbano em vários aspetos semelhante, porém, os dois textos divergem na posição e formação das figuras peripatéticas. Enquanto o sujeito cesariano é principalmente observador da miséria dos outros, Aquiles experimenta-a por dentro, na própria pele, através da voz narrativa tingida de cumplicidade para com a personagem. Deste modo, o vaguear de Aquiles assemelha-se mais às figuras de Fialho de Almeida, Raul Brandão e Branquinho da Fonseca. Nesta última analogia observa-se ainda a semelhante problemática da deslocação transcontinental, fonte de desespero e angústia. É também o motivo da deslocação que acentua o significado do cais como fronteira entre dois espaços, dos quais já nenhum funciona como a âncora emocional. 7.3. Regressos Entre os autores da década de 30 do século XX que se referiram com frequência ao cais lisboeta pertence Fernando Pessoa, sobretudo nas suas personas de Álvaro de Campos e Bernardo Soares. Ao mesmo tempo, é precisamente este autor lisboeta cuja figura e legado literário é perpetuado na literatura da segunda metade do século XX e mesmo na atualidade. José Cardoso Pires, por exemplo, refere-se intertextualmente aos poemas de Álvaro de Campos tanto em Lisboa, livro de bordo (1997), como em “Lisbon Revisited” (A cavalo no diabo, 1984). Neste segundo texto, efetivamente, Cardoso Pires anima a persona de Álvaro de Campos ao regressar, de avião, para Lisboa, onde passeia junto com a Daisy dos seus poemas. No poema homónimo (versão de 1926) de Álvaro de Campos, o heterónimo pessoano revê a cidade e o rio através de um filtro de saudade (“Cidade da minha infância pavorosamente perdida”, Campos, s/d, p. 250), com uma mistura de melancolia sombria: Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo –, Transeunte inútil de ti e de mim, Estrangeiro aqui como em toda a parte, Casual na vida como na alma, 295 “Que grande cobra, a lúbrica pessoa / Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo! / Sua excelência atrai, magnética, entre luxo / Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.” (Verde, 1999, p. 102), “Do outro lado das cortinas, nas janelas que vê da rua, famílias jantam dentro de casa, televisões ressonam em salas quentes, velhos amarelos contemplam a avenida com olhos mortos.” (Almeida, 2018, p. 169) 296 “E saio. A noite pesa, esmaga. Nos / Passeios de lajedo arrastam-se as impuras” (Verde, 1999, p. 101), “Tem a cor dos pombos, dos vagabundos, dos gatos, das putas do Cais do Sodré, cuja cara não distingue vendo-as de passagem, os seus cabelos caju lambidos, os lábios gastos” (Almeida, 2018, p. 169) 297 “Triste cidade! Eu temo que me avives / Uma paixão defunta!” (Verde, 1999, p. 100), “A cidade morreu e ele é o último homem vivo” (Almeida, 2018, p. 169) 261 Fantasma a errar em salas de recordações, Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem No castelo maldito de ter que viver... (Campos, s/d, p. 251) O texto de Cardoso Pires retoma a ideia dessa existência fantasmática do sujeito que sugere o facto de Álvaro de Campos ser precisamente um dos “fantasmas” da imaginação poética pessoana. Deste modo, Álvaro de Campos e Daisy que no fim verificam que não passam de dois fantasmas,298 dirigem-se ao rio (“Depois, era infalível, desciam ao Cais das Colunas e sentavam-se quase em cima do rio, num banco da muralha de pedra, a olhar o bailado das gaivotas.”, Pires, 1994, p. 23), contemplando as águas ancestrais, povoadas de figuras de mito (“Horas felizes também quando lá no antigo mundo, à distância dos séculos e dos mitos, aquelas águas eram povoadas por ninfas prateadas e por tritões cantadores, sabia disso?, perguntava Álvaro de Campos,voltado para lá das gaivotas.” Pires, 1994, p. 23). Mas enquanto as ninfas do Tejo, Tágides na expressão camoniana, ressuscitam o imaginário épico de mares a “conquistar”, mesmo que só por via onírica, tipicamente pessoana, assiste-se noutras obras a um fim do épico, à sua negação. É o que se verifica no romance O ano de morte de Ricardo Reis (1984) de José Saramago que, como já foi observado por Tatiana Antolini-Dumas, começa com a inversão da famosa frase camoniana “Onde a terra se acaba e o mar começa”, transposta para o discurso saramaguiano como “Aqui o mar acaba e a terra principia” (Antolini-Dumas, 2006, p. 250). A própria existência do poeta, enquanto heterónimo Ricardo Reis que ganha corpo e vida, é fantasmática. Este regressa a Lisboa em 1935 logo após o falecimento do seu criador. Porém, a cena do regresso e do atracar no cais é neste caso sombria, em tudo condicente com o teor fantástico da narrativa e com o espetro da ditadura do Estado Novo, recentemente estabelecida em Portugal: Ao comprido do cais, outros barcos atracados luzem mortiçamente por trás das vigias baças, os paus-de-carga são ramos esgalhados de árvores, negros, os guindastes estão quietos. É domingo. Para além dos barracões do cais começa a cidade sombria, recolhida em frontarias em muros, por enquanto ainda defendida da chuva, acaso movendo uma cortina triste e bordada, olhando para fora com olhos vagos, ouvindo gorgolhar a água dos telhados, algeroz abaixo, até ao basalto das valetas, ao calcário nítido dos passeios, às sarjetas pletóricas, levantadas algumas, se houve inundação. (Saramago, 1993, p. 13) 298 Os dois tiram uma fotografia com a estátua de Pessoa no Chiado, como quase todos os turistas. Quando, porém, levantam a fotografia, verificam que “o rolo, quase em branco, apenas registara a estátua do Pessoa” (Pires, 1994, p. 24). 262 A distopia relacionada com o cais como a porta simbólica da cidade assenta sobretudo nas imagens impressionistas da chuva e de seus efeitos, bem como no imaginário algo fúnebre (cidade silenciosa, sombria e deserta, barcos atracados que luzem mortiçamente, cortina triste etc.). Esta imagem do cais, contudo, assemelha-se mais ao espaço disfórico de Branquinho da Fonseca, sobretudo do conto “Jack”, em que o cais, metonímia da cidade, aparece também adormecido, como se toda a urbe monstruosa, de chaminés “numa fila imóvel que se perdia ao longe, por detrás de outros telhados de outros barracões” (Fonseca, 1997, p. 65), estivesse também morta, junto com os seus habitantes (“Na estreita faixa de sombra de um armazém, dormiam três homens estendidos no chão, como mortos atirados para a valeta.” Fonseca, 1997, p. 65). Semelhantemente, os traços distópicos prevalecem também no romance Sostiene Pereira (1994) de António Tabucchi, cuja história recua ao ano de 1938. Este caso é importante não só por se tratar de um regresso literário à Lisboa da época abordada, mas também por ser aqui veiculado um olhar do outro. A partir desta perspetiva, duplamente exógena pelo distanciamento temporal e cultural,299 é narrada a história do jornalista Pereira, viúvo, sedentário e de hábitos rígidos, cuja vida fica virada às avessas quando conhece um jovem italiano Monteiro Rossi e sua namorada, ambos militantes contra fascismo. Graças a este encontro, Pereira apercebe-se não só da sua própria cobardia, medo de expor verdades sobre os regimes autoritários que emergem na Europa, mas também do sem-sentido da sua própria existência mole e insonsa. Após tal revelação, a sua alma purifica-se, ganhando forças a enfrentar a ditadura, revelando publicamente o abuso do poder, o horror que ele próprio testemunha enquanto amigo do jovem antifascista. Além disso, o autor do romance, confesso amante da obra de Fernando Pessoa, não podia omitir algumas interseções com o autor preferido. Por isso, como afirma Ernesto Rodrigues, “entrevemos Pessoa na actividade de Marta (...) e seus disfarces”, no “engenheiro naval pai de Monteiro”, no “Chevrolet do professor universitário Silva” etc. (Rodrigues, 2019, p. 129). E ao falar de Pessoa, desdobra-se a referência à cidade como um cenário da trama romanesca e como um espaço cultural. A Lisboa de Pereira restringe-se a um percurso sem desvios desde a sua casa na Rua da Saudade nº 22 e o escritório na Rua Rodrigo da Fonseca nº 66, passando sempre pelo Terreiro do Paço, onde de vez em quando descansa e contempla as águas do rio. O cais, portanto, tornase um lugar estratégico porque constitui um ponto de bifurcação de caminhos. Destes caminhos, 299 Embora Tabucchi tenha sido estritamente ligado a Portugal e à cultura portuguesa, tendo escrito, até, algumas obras em português, continua a tratar-se de um escritor italiano, cuja perspetiva, por mais sintonizada com a alma lusitana que seja, é inevitavelmente exógena. 263 um corresponde ao do Inferno, simbolicamente marcado pelo número inacabado da Besta (666), porque dirigido pela censura (escritório de redação), e o outro ao do Limbo,300 lugar do retrato da esposa morta (embora sempre presente nos pensamentos do viúvo) e do cadáver de Rossi. Neste romance é, portanto, claro, que a atmosfera densa e sufocante, seja de neblina, seja de calor, que reina na cidade e que se alastra a partir do Cais (“Allʼimprovviso la brezza atlantica cessò, dallʼoceano arrivò una spessa cortina di nebbia e la città si trovò avvolta in un sudario di calura”, Tabucchi, 2012, p. 13) exprime literalmente a náusea em que vive o país, bem como o bloqueio emocional do protagonista (“E pensò: questa città puzza di morte, tutta lʼEuropa puzza di morte”, Tabucchi, 2012, p. 14).301 Como a cidade adquire para o herói uma forma de labirinto imaginário, de corredores escuros da política de terror, é preciso encontrar qualquer saída eficaz. É por isso que, no fim, opta pela única possibilidade de se evadir do labirinto pelos ares, voando como um Daidalo. Neste contexto, o Cais torna-se, para além de central e estratégico, também simbólico, como lugar de evasão não só do herói, mas também da judia conhecida no comboio, e de todos os que tiveram que fugir da Europa fascista rumo à outra margem do Atlântico.302 Contrariamente a este imaginário distópico, o semi-heterónimo pessoano mais ligado à cidade de Lisboa pela sua vida e pelos seus afetos, Bernardo Soares, consegue ver sobretudo os aspetos favorecedores da cidade. Várias vezes Soares se refere ao cais e ao rio Tejo como a um lugar cuja atmosfera influencia todo o espaço urbano, por via de impressões fortemente cromáticas (“O céu negro ao fundo do sul do Tejo era sinistramente negro contra as asas, por contraste, vividamente brancas das gaivotas em voo inquieto.” [Pessoa, 2006, p. 75], “O Tejo ao fundo é um lago azul”, [Pessoa, 2006, p. 94], “Leve, como uma coisa que começasse, a maresia da brisa pairou de sobre o Tejo e espalhou-se sujamente pelos princípios da Baixa”, [Pessoa, 2006, p. 99] etc.). Algo deste espírito da cidade e, sobretudo, do cais e do rio, ficou também guardado na novela Boa noite, senhor Soares (2008), de Mário Cláudio, em que se 300 Enquanto a inscrição simbólica do número 66 é clara, no caso de 22 é um pouco ambivalente, uma vez que se trata da duplicação de um número que exprime a duplicidade. Em princípio, porém, não se trata de um número negativo: “Il rapelle les deux Testaments, les deux poissons que le Christ a multipliés (Mt 14, 17), les deux dignités (royale et sacerdotale), les deux colonnes du Temple...” (Bologne, 2004, p. 26). 301 Explicitamente, o caráter da cidade policial é referido na seguinte passagem do romance: “Pereira sostiene che la città sembrava in mano alla polizia, quella sera. Ne trovò dappertutto. Prese un taxi fino al Terreiro do Paço e sotto i portici ci erano camionette e agenti con i moschetti. Forse avevano paura di manifestazioni o di concentrazioni di piazza, e per questo presidiavano i punto strategici della città. Lui avrebbe voluto proseguire a piedi, perché il cardiologo gli aveva detto che gli ci voleva del moto, ma non ebbe il coraggio di passare davanti a quei militari sinistri, e cosi prese il tram che percorreva Rua dos Fanqueiros e che finiva in Praça da Figueira. Qui scese, sostiene, e trovò altra polizia. Questa volta dovette passare di fronte ai drappelli, e questo gli procurò un leggero malessere.” (Tabucchi, 2012, p. 19). 302 Há uma vasta literatura sobre o assunto, dos quais talvez o mais conhecido é romance Die nacht von Lissabon (1962) de Erich Maria Remarque. 264 recupera a personagem de António, moço-ajudante do escritório, só ocasionalmente mencionada em Livro do Desassossego. Neste texto, António é elevado a primeiro plano na estrutura narrativa, ganhando o papel de narrador que, fascinado pela figura do Sr. Soares, várias vezes o segue nas suas deambulações pelas ruas lisboetas. Também aqui, a direção ao cais torna-se inevitável, como se Bernardo Soares fosse atraído por alguma força invisível: “Pela madrugada da Rua Augusta, inteiramente deserta, segue o senhor Soares em direcção ao Tejo, e não acerto em saber se o frio que me bate nas costas vem das bandas de Sintra, ou do rosto do poeta onde a lua se espelha.” (Cláudio, 2008, p. 49). A figura de Bernardo Soares, espetral, à imagem da persona fictícia que era, prossegue o seu percurso eterno pelas ruas de Lisboa como um ahasver ou “the man of the crowd” de Edgar Allan Poe, metáfora do homem urbano, anónimo e peripatético, que atravessa os séculos e páginas de livros. 7.4. Onde a terra se acaba e o mar começa Em Lisboa, livro de bordo: vozes, olhares, memorações (1997) de José Cardoso Pires, obra especialmente dedicada a Lisboa e talvez a maior prova de amor à cidade que, após o Livro do Desassossego de Pessoa foi deveras escrito, o caráter da capital portuguesa é, desde o início, percebido dentro da isotopia marítima: “Logo a abrir, apareces-me pousada sobre o Tejo como uma cidade de navegar” (Pires, 1997, p. 9). O autor, no entanto, desenvolve esta imagística num sentido mais concreto, aproximando a cidade a um barco: Não me admiro: sempre que me sinto em alturas de abranger o mundo, no pico dum miradouro ou sentado numa nuvem, vejo-te em cidade-nave, barca com ruas e jardins de dentro, e até a brisa que corre me sabe a sal. Há ondas de mar aberto desenhadas nas tuas calçadas; há âncoras, há sereias. O convés, em praça larga com uma rosa-dos-ventos bordada no empedrado, tem a comandá-lo duas colunas saídas das águas que fazem guarda de honra à partida para os oceanos. Ladeiam a proa ou figuram como tal, é a ideia que dão; um pouco atrás, está um rei-menino montado num cavalo verde a olhar, por entre elas, para o outro lado da Terra e a seus pés vêem-se nomes de navegadores e datas de descobrimentos anotados a basalto no terreiro batido pelo sol. (Pires, 1997, p. 9). A citação é longa, porém necessária pela sua exemplaridade da imagem sobreposta urbano-marítima, do meu ponto de vista até agora não superada. Cardoso Pires, com efeito, acentua na sua visão precisamente esse aspeto que, por tão evidente, ficou negligenciado. E basta descer com o olhar para o chão, para descobrir todo um imaginário mítico-marítimo desenhado na calçada, na qual, por ser tão normal e tão exposta, já poucos reparam. 265 A cidade de Lisboa é, com efeito, desde os tempos remotos considerada um dos portos mais importantes da Europa, a linha divisória entre a terra e o mar. Nas épocas mais gloriosas da navegação portuguesa, nos séculos XV e XVI, muitos marinheiros confiantes nos seus capitães e na sua boa estrela, puseram-se nas naus, nesse território de Lisboa e sítios adjacentes, para se lançar numa aventura precária de fim incerto. É também nessa altura que o caráter geosocial da cidade Lisboa surge detalhadamente descrito em vários tratados, crónicas e obras ficcionais, de autores celebérrimos como Zurara, Damião de Góis, Fernão Mendes Pinto, Jorge Ferreira de Vasconcelos ou João de Barros. O tratamento do cais será, por isso, na literatura portuguesa, sempre dotado de ambiguidade: um desejo saudoso por um lado, a desilusão deprimente por outro. Ou, como diz Baptista-Bastos numa das suas crónicas dedicadas à cidade e intitulada “Lisboa contada pelos dedos”: O rio murmura-nos que o sonho é possível, que podemos estar noutros sítios, nas angolas, nos cabo-verdes, nos brasis, no frio, no tépido, no calor, se assim desejarmos: basta desejar. (...) Mas quando Lisboa é o cais de chegada, a chegada traz consigo o drama e a tragédia: as caravelas destroçadas, os torna-viagens da miséria, os soldados estropiados, os corpos dos mortos, o fim do império. (Baptista-Bastos, 2006, p. 18) Além disso, a presença iminente das águas imprime à cidade o caráter líquido. Como Paula Morão observou, já na poesia de Cesário Verde aparecem com frequência os motivos de vidros, montras e águas paradas que funcionam como “espelhos multifacetados” (Morão, 1993, p. 36). Neste sentido, a cidade personifica-se, adquirindo um caráter narcísico: não só devolve a imagem fragmentada de quem a vê, mas ela própria se olha no seu espelho aquático como que a indagar-se sobre o seu ser. Também Bernardo Soares pessoano fica sensível ao caráter fluido em que a cidade submerge: Remoinhos, redemoinhos, na futilidade fluidada vida! Na grande praça ao centro da cidade, a água sobriamente multicolorda gente passa., desvia-se, faz poças, abre-se em riachos, junta-se em ribeiros. Os meus olhos vêem desatentamente, e construo em mim essa imagem áquea que, melhor que qualquer outra, e porque pensei que viria a chuva, se ajusta a este incerto movimento. (Pessoa, 2006, p. 102) A especificidade na recriação do espaço lisboeta em Bernardo Soares consiste, portanto, no facto de esta não se apresentar essencialmente mediterrânica, de uma luz já quase africana, deslumbrante, mas ao contrário como uma cidade atlântica, ensombrada pelas nuvens, não raro chuvosa e com trovoada. Como informa Myriam Boucharenc, este aspeto “fluido” de Lisboa é também apreendido por Philippe Soupault (1897-1990), escritor e poeta francês, fundador do surrealismo junto com André Breton, que eternizou a cidade de Lisboa em Carte postale (1926). 266 (cf. 2006, p. 76). Neste texto consta: “On entend lʼeau, on aperçoit à travers un arc de triomphe la mer qui est un fleuve et un fleuve qui est dejà la mer.” (Soupault apud Boucharenc, 2006, p. 79). O caráter ambíguo das águas fluviais ou marítimas não é, porém, importante, uma vez que toda a cidade se “fluidifica”, como diz Myriam Boucharenc, tornando-se “líquida” (“Les drapeaux flottent, les rues se font rivières, le ciel étang” etc., 2006, p. 79). As águas, contudo, podem funcionar também como um elemento natural relacionado com a morte. Neste sentido, convém recordar mais uma vez o romance O ano da morte de Ricardo Reis de Saramago em que, conforme Antolini-Dumas, “[l]ʼomnipresence de la pluie, lʼinondation fréquente des quais rendent compte dʼune étonnante absence de maîtrise de lʼélément liquide” (2006, p. 251). Estas montantes de água, como observa a mesma pesquisadora, tornam-se mais inquietantes à medida que transformam Lisboa numa cidade confusa, disfórica (cf. Antolini-Dumas, 2006). Um dos efeitos da humidade consiste na formação de névoa. Ora, é precisamente a névoa simbólica que em Fernando Pessoa alude ao mito sebastianista, à necessidade de renovação (ou reconstrução) do país e, em Saramago, indicia um estado letal, o obscurecimento do país sob o governo ditatorial. Na mesma linha de leitura, em que o elemento aquático concita ao imaginário da morte, portanto, a própria travessia do rio Tejo recria a passagem por Styx (cf. Antolini-Dumas, 2006) a caminho do reino dos mortos, da “cidade morta”: Juntam-se no alto da escada os viajantes, hesitando, como se duvidassem de ter sido autorizado o desembarque, se haverá quarentena, ou temessem os degraus escorregadios, mas é a cidade silenciosa que os assusta, porventura morreu a gente nela e a chuva só está caindo para diluir em lama o que ainda ficou de pé. (Saramago, 1993, p. 13) 7.5. Descida ao subterrâneo: da catábase à reconstrução identitária A recriação do cais e de toda a urbe como um espaço distópico, simbolicamente infernal e labiríntico, sugere mais um tipo de representação da cidade, desta vez mesmo concentrada naquilo que está escondido e inacessível. É evidente, a partir dos significados do cais acima abordados, que o cais funciona como um exemplo ilustrativo do espaço fronteiriço, o qual pode ser denominado como um espaço in-between. Vimos que o caráter limítrofe deste espaço, dotado de uma poderosa simbologia, assenta tanto na divisão geográfica (a fronteira entre a terra e o mar que evoca a mitologia da viagem marítima, “odisseia”), como na divisão temporal (confronto entre a mitologia colonial e a pós-colonial). A este aspeto fronteiriço podemos 267 adicionar mais um que se rege pela divisão topográfico-simbólica da verticalidade. Este caráter da cidade pode ser verificado no romance Jardins secretos de Lisboa, em que podemos, a partir do Terreiro do Paço, simbolicamente descer ao subterrâneo da cidade, a fim de enveredar por um percurso da redescoberta da mitologia urbana. A trama do romance corresponde a dois níveis temporais: atualidade (fim do século XX e início do século XXI) e o passado (a época do Estado Novo). A deambulação pela cidade de Lisboa deve ser aqui interpretada como parte do processo de iniciação da protagonista que num sucessivo descobrir de segredos da cidade descobre também a solução para os vários problemas que a atormentam. A parte final, decisiva, passa-se precisamente no subterrâneo, cuja existência é frisada logo no início da narrativa e que funciona como um engodo para a protagonista iniciar a catábase interior. Neste sentido, o romance de Gonzaga empreende também um regresso aos tempos que aqui interessam, desta vez por via da dimensão de mito. Era precisamente em 1934 que Fernando Pessoa publicou o seu livro Mensagem, em que “resumiu” poeticamente as linhas fundamentais da sua ideia do Quinto Império, o qual não tem nada a ver com as conquistas territoriais, mas com um império espiritual.303 Neste propósito, como é lembrado por Margarida Calafate Ribeiro, Pessoa segue a intuição mística já expressa por Pe. António Vieira de que “por trás da realidade, há uma realidade encoberta, ou seja, que a aparência de um facto pode significar o seu oposto” (Ribeiro, 2004, p. 108). É precisamente esta visão inversa da realidade que é veiculada pelo motivo do subterrâneo, por meio do qual Manuela Gonzaga reflete sobre as verdades profundas tanto a nível coletivo, como no domínio privado e íntimo. Na literatura em geral, o subterrâneo urbano como uma heterotopia exemplar adquire muitas vezes caraterísticas que o moldam como um espaço de teor mítico. Assim, qualquer descida ao subterrâneo pode equivaler à descida mítica ao espaço dos mortos, tal como era conhecido na Antiguidade. Simultaneamente, o imaginário ocidental dota sempre o subterrâneo de um caráter infernal. Refletindo sobre o subterrâneo londrino, Peter Ackroyd diz: It can be a vision of hell itself. In all representations of supernatural justice, heaven is above and hell is below. The topography is as fixed as east and west for the rising and setting of the sun. order and harmony are the properties of the lighted world. All bellow is shapeless, formless, void. Forgotten things, discarded things, secret things, are to be found deep bellow. (Ackroyd, 2012, p. 13) 303 Este império de Pessoa é, como afirma Margarida Calafate Ribeiro, “inteiramente sediado no domínio espiritual e Portugal poderá realizá-lo exactamente porque já tinha tido impérios, celebrados epitaficamente em Mensagem, não como a epopeia a refazer, mas como sinal de um império futuro”. (Ribeiro, 2004, p. 109) 268 A descida da protagonista de Gonzaga, junto com o seu guia à maneira de Vergílio dantesco, recebe estas caraterísticas porque se trata de um percurso instrutivo e iniciático, e as personagens o sabem muito bem: – A porta infer – disse ele. – Não percebi. – Latim. Das portas do inferno. – Desculpa? – Onde estamos. Na antecâmara, antes de descermos ao reino dos mortos. Deixame guiar-te, amor. É uma viagem de ida-e-volta, não tenhas medo. Vale a pena, mesmo que não queiras fotografar, porque é uma experiência única. Depois, quando andares lá em cima, vais sentir-te como se tivesses nascido outra vez. (Gonzaga, 2006, p. 490) O simbolismo infernal é acentuado pela iconografia do prédio de entrada, encimado por um leão, símile zoomórfico dos cães que guardam a entrada no subterrâneo mítico (Cerberos) e cristão (dantesco). Ultrapassando mais uma zona limítrofe (a porta de grades dentro do prédio) entra-se dentro das caves em que reina a eterna escuridão, tenebrosa porque, ainda conforme Acroyd, “[t]here is no darkness like the darkness under the ground” e porque “no night is as black as subterranean blackness” (Ackroyd, 2012, p. 12-13). Uma vez dentro do subterrâneo, ao passar pelos corredores estreitos e húmidos, Alice deve combater o terror que a assalta, irracionalmente, e que nasce do escuro, da incerteza e da infamiliaridade do lugar: “Agora voltava a sentir a aspereza das paredes contra os braços e contra os ombros, o calor opressivo do meu medo gelado, o ar pesado de bolor, de onde parecia quase impossível extrair o oxigénio necessário para continuarmos vivos.” (Gonzaga, 2006, p. 483). O espaço reduzido e escuro gera uma sensação claustrofóbica de aperto e, além disso, estimula um medo antiquíssimo, impresso no nosso ADN desde as eras pré-históricas quando o homem ainda não sabia explicar vários fenómenos naturais e sofria do medo do escuro. Ou, como escreveu Tobias Hill no romance Underground (1999), “[t]he Underground closes around him. Its dark presses agains his face. It is sfe as a locked room, it is terrifiying as a locked door” (Hill, 2000, p. 162 apud Pleβke, 2016, p. 165) O medo do escuro evidencia-se ainda hoje em dia nas crianças, como alega o mestre de terror, Lovecraft, o qual também sabia aproveitar esta constante antropológica nas suas próprias prosas (cf. 1973). A propósito, não é de estranhar que seja possível encontrar, nas narrativas de Lovecraft, o tópico da descida ao subterrâneo cavernoso, abrigo de seres monstruosos, pertencentes a outras eras históricas. Ao explorar os corredores subterrâneos, com efeito, Alice simbolicamente desvela as várias camadas históricas que apontam para a existência de várias cidades (romana, fenícia, árabe, cristã) dentro de uma só. Deste modo, a cidade de Lisboa, sobretudo a zona do cais, reforçam ainda mais o seu caráter mitificante, de 269 resquícios homéricos: “Escondida sob pedras e ruínas do que podemos imaginar, até ao tempo, improvável de datar e impossível de encontrar, (...) em que o Rio, no seu leito de areias de ouro, recebera o barco de Ulisses, e a rainha das serpentes se apaixonara pelo herói.” (Gonzaga, 2006, p. 491). A cidade subterrânea transforma-se, assim, num depósito de memória coletiva, numa memory foam da história. E além deste aspeto mítico, a Lisboa subterrânea, composta de vários filões temporais, corresponde a uma necrópole, cidade de mortos, em cujas veias, escavadas pelos rios, ribeiras e homens, circula a vida dos que “não queriam ser mortos” (Gonzaga, 2006, p. 491). Essa cidade que se esconde por baixo da terra, a cidade subterrânea, de eterna escuridão, torna-se o inverso da cidade de cima. Neste sentido, à maneira de Alice de Lewis Carrol, esta Alice empreende também uma viagem insólita para o outro lado da existência urbana, a que é invisível e que funciona como o reflexo da cidade de cá. Tudo o que está em cima existe também abaixo (“Agora, as paredes tinham letreiros e setas: Rua Capelo, Rua Paiva de Andrade, Rua Garrett. Por cima de nós – a quantos metros? – estava a cidade viva.”, Gonzaga, 2006, p. 483). O caso exemplar desta réplica diz respeito às caves do São Carlos, a “necrópole de fantasia”, onde, de um modo semelhante à galeria subterrânea de manequins em Kara kitap (Livro negro, 1990) de Orham Pamuk, os objetos acumulados sinalizam a possibilidade de uma vida eterna, a congelação do tempo através de gestos humanos. Por último, o subterrâneo simboliza o inconsciente humano, as profundidades do eu. Conforme Nora Pleβke, precisamente, “[b]uried personal memories and traumas are likely to re-emerge when the subject is underground” (Pleβke, 2016, p. 164). A procura dos segredos urbanos, portanto, viabiliza também a demanda de si próprio. Alice perde os seus medos que a têm atormentado há anos e passa a enfrentar a vida como uma mulher adulta e interiormente equilibrada: “Está um dia lindíssimo, e eu estou a abraçar-me a mim própria, à luz deslumbrante do Sol. Estou grávida, Carlota. E já não tenho medo nenhum.” (Gonzaga, 2006, p. 509). Deste modo, enfim, Alice corresponde à nossa própria inquietação e procura da essência da cidade. A ideia do Quinto Império, no sentido mais lato e transferido para a esfera do quotidiano, não se relaciona já, portanto, com algo exterior, mas com o interior, com as imagens matriciais. É por isso que uma possível descoberta da cidade decorre paralelamente com a engendração. Tratase, de facto, de mais um significado de um porvir, avisado pelo mito do Quinto Império e transposto para a condição feminina. Uma outra formulação das mesmas questões inquietantes encontra-se no ciclo de quatro poemas intitulados “lisboa”, seguido de numeração de 1 até 4, da coletânea Horto de incêndio de (1997) Al Berto. Também aqui o sujeito deambula pela cidade que adquire caraterísticas de um espaço subterrâneo, infernal, mesmo que de um modo divergente do romance de Gonzaga. 270 Desde o primeiros versos, o espaço urbano é traçado por certos atributos que sublinham o seu caráter heterotópico: trata-se de uma cidade fechada, noturna e vazia, sinédoque de um país paralisado (“este país nocturno que geme contra a solidão do corpo”, lisboa [2], Al Berto, 2000, p. 43), enterrada sob os sucessivos filões de pedra e tempo (“que cidade / de areia construída grão a grão aparecerá? / quantas lisboas estão enterradas? ou submersas?”, lisboa [2], Al Berto, 2000, p. 43). É precisamente este aspeto de uma cidade submersa, sucessivamente reconstruída por novas camadas sobrepostas, que corresponde à imagem da cidade em Manuela Gonzaga ou Augusto Abelaira, adequando-se deste modo à visão estratigráfica de Bertrand Westphal. O seu caráter antigo, dir-se-ia vetusto, com o qual a cidade adere ao imaginário urbano, perpetuado por uma certa tradição da cultura europeia, é redefinido pela presença do rio, anunciadora da vastidão marítima (“da escrita dos inumeráveis povos quase / nada resta – deitas-te exausto na lâmina da lua / sem saberes que o tejo te corrói e te suprime / de todas as idades da europa”, lisboa [1], Al Berto, 2000, p. 41). O cais do Tejo, por conseguinte, articula toda a isotopia das viagens marítimas, dos continentes longínquos, que passaram a fazer parte do espaço lisboeta. É em especial por via de estímulos sensoriais olfativos que o espaço lisboeta adquire traços de um exotismo tropical, misturado com uma sensibilidade suburbana ou rural (“o vento traz-te o aroma dos trópicos / dos tamarindos floridos das avenidas e dos fenos / primaveris das planícies – o vento / protege-te – leva-te no alado ácido / das geadas e das incertezas”, lisboa [3], Al Berto, 2000, p. 45). O hibridismo criado pela inclusão de elementos exógenos ao espaço lisboeta reforça a construção mental urbana assente na ideia de caos, ou seja na diversificação, fragmentação da memória coletiva. A vertigem com a qual se ressentem certas feridas do passado projeta-se na imagem da verticalidade espacial, abismal, de um inferno arquetípico (“por trás dos muros da cidade / no seu coração profundo de alicerces / de argilas e de sísmicos arroios – cresce uma voz / que sobe e fende a brandura das casas”, lisboa [1], Al Berto, 2000, p. 41), mas espalha-se, curiosamente, numa curva horizontal, talvez por sugerir uma continuidade do passado no presente, a sua coexistência dolorosa (“imaginaste um país imóvel devorado pelo sol / e o arrepio do canto espalhou-se pelas ruas / onde o tempo passa lento e branco em direcção / a outro tempo igual”, lisboa [3], Al Berto, 2000, p. 45). É neste desdobrar do tempo que entra, por fim, a evocação de uma guerra absurda por manter um império anacrónico, revestido de existência fantasmática: imaginaste que em ti permaneceria esse barulho metálico de continentes abandonados enfim ontem foi o último dia 271 em que conseguiste calçar-te – essa guerra que te deixou por sarar um túnel de veludo ensanguentado na cabeça (lisboa [3], Al Berto, 2000, p. 45) A contra-epopeia lusitana, contudo, prossegue, ecoando no vazio presente. O regresso simbólico do império para casa costuma ser, como vimos, ilustrado pela imagem de contentores no cais, agora desheroizado e sórdido. As imagens de Al Berto são ainda mais sofridas: o retorno significa destruição de um grande sonho, esvaziamento do significado da aventura, tanto do passado, como do presente: vieste dos remotos desertos africanos onde semeaste tormentos e filhos negros enrolas-te agora no pano ardido do tempo de lisboa – rasgas em tiras dolorosas o sonho e tentas navegar pelos socalcos dos mares mas a saudade pelos que partiram e agora se aproximam desta voz – vêem um império de navios vazios (lisboa [3], Al Berto, 2000, p. 45) Face a esta destruição do sonho, Lisboa acentua o seu caráter de um espaço infernal, em que um “tu” vagueia como num reino de Hades, à procura de “um rosto que imite a felicidade da voz perdida” (lisboa [4], Al Berto, 2000, p. 46). Mas como o mito de Orfeu e Eurídice informa, olhar para trás significa a perda total, para sempre. A cidade é, assim, invadida pela melancolia, sincronizada com um “céu plúmbeo” a recordar “A lua de Londres” (1848),304 de João de Lemos, que “ensombra os jardins de estátuas partidas” (lisboa [4], Al Berto, 2000, p. 47). Ao contrário da protagonista do romance de Gonzaga, o sujeito lírico do poema de Al Berto não encontra nenhuma solução eufórica, não se assiste a nenhuma comunhão com o espaço, mas a uma resignação lenta e irremediável: há um pressentimento de sono sem fim refugias-te num quarto de pensão e dormitas o dia todo – para que lisboa te esqueça (lisboa [3], Al Berto, 2000, p. 47) 304 Refiro-me aos versos iniciais do poema: “É noite; o astro saudoso / Rompe a custo o plúmbeo céu” (Lemos apud Moisés, 1999, p. 291) 272 Este pendor para a resignação melancólica, quando os velhos sonhos já ficaram esvaziados de sentido, entra também em sintonia com as reflexões de Eduardo Lourenço acerca do imaginário português, designado como o tempo português, sua construção e suas ruínas. Notese o que Eduardo Lourenço escreveu nos fins do século XX: Navegando no mar de uma memória, tornada conto de fadas, sairemos sem nos ferirmos de um século implacável para os que julgam contornar a realidade sonhandose, por conta do passado, os seus senhores. Enquanto o tempo da realidade se nos impõe e nos arrasta sem contemplações, o nosso tempo simbólico converte-o – e não só na ficção – em fantasmagoria virtual. (Lourenço, 1991, p. 109) É basicamente esta dicotomia, exemplificada pelo romance de Gonzaga e pelos poemas de Al Berto, a que assistimos na revisitação do mito do Quinto Império e de todos os outros mitemas relacionados com esta problemática.305 É uma fantasmagoria virtual que porventura possa ainda engendrar alguns desejos de reviver um sonho antigo, embora já lucidamente anacrónico e irónico, tingido do sentimento de decadência e da saudade. A este respeito, convém mais uma vez citar Eduardo Lourenço: Mas, uma vez terminada a aventura, desfeito o império da história, transformado numa mera carga de sonhos o precioso comércio do Oriente, restava-nos como herança um Portugal pequeno e um imenso cais, onde durante séculos relembrámos a nossa aventura, numa mistura inextricável de autoglorificação e de profundo sentimento de decadência e de saudade (Lourenço, 1999, p. 58) De qualquer forma, trata-se de uma questão que continua a estimular variadíssimas leituras, não faltando obras que demonstram o impacto do mito do Quinto Império na reflexão cultural e identitária. Deste modo, os exemplos aqui apresentados enquadram-se numa linha de abordagens que continuam incompletas e sempre abertas a novas interpretações. 7.6. Um tópos átopos ? 305 A melancolia aliada a uma questionação do destino do país aparece também noutros poetas da mesma geração de Al Berto, por exemplo na poesia de José Agostinho Baptista: “A tua sina é um país proibido. / Naus carcomidas apodrecendo na história, encerradas nos / sótãos e nas celebrações” (Baptista, 1989, p. 63). Noutros casos, o mito sebastiano é jocosamente subvertido, como se lê, por exemplo, no poema “COMO DOM JOHAM, FILHO DELREI DOM PEDRO DE PORTUGAL, FOI FEITO MEESTRE DAVIS” (Crónica, 1977), de João Miguel Fernandes Jorge: “Pretende-se contactar com rapaz, cerca / 20 anos, que no dia 22 de dezembro tomou / comboio 17.34, Cais do Sodré. Vestia blue / jeans, sapatos brancos desporto. Será fu- / turo rei”. (Jorge, 1991, p. 71) 273 As observações do micro-espaço do Cais lisboeta, perspetivado por meio de um imaginário tanto estereotipado e tradicional (p. ex. o mito de Ulisses), como iconoclasta (p. ex. imagens de descolonização) reconduzem à concepção de um espaço fundamentalmente heterogéneo. De certo modo, a presente leitura do Cais revela um caráter espiral e abismal, correspondente ao caráter do próprio lugar. Não só que certas épocas e os imaginários por elas veiculados são substituídos por outras épocas e outros imaginários, mas certas épocas/imaginários refletem-se noutras épocas/imaginários, assimetricamente, como se fossem reveladas em espelho convexo. Neste sentido, o Cais pode ser assemelhado a um tópos átopos, conceito que Massimo Cacciari cunhou em Geo-filosofia dellʼEuropa (1994) para identificar Europa como “elusive homeland of the Athenian ἄοικος (without fixed home), spiritual heirs of the man from Ithaca, subject to the whims of winds and gods” (Westphal, 2015, p. 55). Portanto, o Cais podia ajustar-se a este conceito devido às forças tanto mitificadoras, como demitificadoras e remitificadoras, porque cada estímulo eufórico converte-se logo em disfórico, numa luta eterna de utopia e distopia. O movimento é incessante, aproximando-se imaginariamente a um lugar corrente, líquido. Neste sentido, poder-se-ia falar também de uma “Torre de Babel” do Cais lisboeta, perpetuamente construída, desconstruída e reconstruída, como um território, em termos usados por Deleuze e Guattari, signo de poder centralizado (veiculado pelo poder autoritário e mito colonial), constantemente deterritorializado (imaginário de-colonizador e pós-colonial) e, em seguida, reterritorializado (com ressuscitação de mitos). Cada sujeito, como Westphal recorda, é inscrito numa cultura que associa a focalização com a lógica auto-centrada. Na ótica geocrítica, contudo, o foco de interesse assenta no cruzamento de vários olhares. Assim, a desterritorialização amacia a rigidez dos padrões tradicionais, estimulando a proliferação de centros de focalização, bem como a oscilação do sistema referencial (Westphal, 2015, pp. 137-138). Recorde-se mais uma vez que os anos 30 do século XX são de uma importância fulcral nos estudos culturais e literários portugueses por se tratar da época do estabelecimento do regime autoritário, cuja retórica nacionalista visava precisamente esse aspeto de territorialização, centralização de poder. Em 1938, na antevéspera da organização da Exposição do Mundo Português, Salazar proclamou uma nota oficiosa, na qual (como sempre) frisava esses “serviços” prestados por Portugal à “civilização”.306 E se, por um lado, houve muitos que 306 A este respeito, Margarida Calafate Ribeiro comenta: “Nesta nota oficiosa, Salazar assinalava como objectivos primordiais do evento ‘dar ao povo português um tónico de alegria e confiança em si próprio, através da evocação de oito séculos da sua História, que foram simultaneamente oito séculos da sua História do Mundo’”. (Ribeiro, 2004, p. 127). 274 aderiram a esta retórica, houve também aqueles que se opuseram, como bem demonstra o estudo de Margarida Calafate Ribeiro (2004). Assim, aos glorificadores dessa “missão” portuguesa pertencem todos aqueles que enveredaram para a literatura chamada “colonial”, fortalecida precisamente nos anos 30. Trata-se de obras de fraca qualidade literária, de autores em geral desconhecidos, cujo propósito era “fazer o país ver e sentir as colónias” como afirma Julião Quintinha no prefácio de Novela Africana (1933), “um verdadeiro manifesto por uma literatura colonial” (Ribeiro, 2004, p. 138).307 Entre estes convém mencionar, mais uma vez, Fernando Pessoa, cuja inteligência descaminhou as interpretações de vários exegetas do patriotismo português. Neste sentido, Calafate Ribeiro já comentou os ensaios de Maria Irene Ramalho sobre a ideologia imperial de Pessoa, afirmando que “o poeta reinventou a ideia de Império (...) e, ao fazê-lo, reinventou a própria ideia do centro (este já não seria “territorializado, político e económico, à maneira das grandes metrópoles europeias, mas desterritorializado”, 2004, p. 115). A seguir, pela reflexão sobre os mitos portugueses e, obviamente, pela sugestão do Quinto Império, Pessoa avança no sentido de um desejo de reterritorialização, a qual, porém, não se coaduna com imperialismos de qualquer espécie, mas pura e simplesmente, como diz Calafate Ribeiro, com um “espírito universalista” (2004, p. 107). Este caminho tem sido também percorrido por vários autores contemporâneos, como o romance de Manuela Gonzaga demonstra. Com efeito, a desterritorialização recobre várias facetas, correspondendo uma delas à transferência de África para Lisboa. Os discursos que esta mudança traz afastam-se já consideravelmente da perspetiva na qual Lisboa mantinha um estatuto de um centro homogéneo, gerando discursos condizentes com esta posição. Por isso ouvem-se também vários discursos “periféricos” dos que vieram de outros lugares para viver numa Lisboa já despida da sua beleza sublime e tornada quotidiana, “normal”. Estes discursos, junto com aqueles que se desviam voluntariamente do imaginário mitificador da grandeza e luminosidade lisboeta, captando as suas sombras intrínsecas, funcionam como um reflexo da imagem urbana num espelho esférico e, deste modo, desconstroem os esterótipos vigentes. Com efeito, onde ainda Bertrand Westphal queria ver a cidade “pessoana”, pela aura do poeta modernista (agora reduzido pelo turismo em massa a um artigo e souvenir de Lisboa), ou então “africana”, pela profusão vital de cores, cheiros e sons africanos, vê-se, em certos discursos, uma cidade tão 307 Margarida Calafate Ribeiro menciona outras obras deste tipo publicadas e/ou premiadas (Prémio Literário da Agência Geral das Colónias) nos anos 30, p. ex. África – da vida e do amor na selva, de João Santos Silva, ou O Vélo D´Oiro, de Henrique Galvão. 275 comercial e cansada como qualquer outra metrópole europeia, em que há vidas reduzidas a um vazio ou a uma existência rasteira, sem dignidade. Um outro sentido relacionado com esta perspetiva delineia-se na reflexão sobre o Cais lisboeta como um dos lugares de porta de entrada para a Europa. Deste modo, o Cais ultrapassa, simbolicamente, as fronteiras do país, adquirindo uma dimensão universal e, hoje em dia, dolorosamente acutilante. As áreas urbanas densamente habitadas geram, como diz Zygmunt Bauman, os sentimentos contraditórios de “mixofilia” (prazer em heterogeneidade que propociona novas experiências) e “mixofobia” (medo do desconhecido, indomável e incontrolável), sendo este segundo, naturalmente, indício de um problema mais vasto e perigoso de xenofobia, racismo e nacionalismo (cf. Bauman, 2017, p. 16). Em vez de os europeus reclamarem para si uma das melhores intuições do mundo grego antigo, onde xenos podia ser revelado como theos, recolhem-se em receios infundados e absurdos, trocando o princípio de hospitalidade pela hostilidade.308 É também esta dimensão, relacionada com a figura de migrante, que encontramos na ficção portuguesa. Devido a tudo que foi exposto, a imagem do Cais lisboeta é regida pela lógica de palimpsesto, segundo a qual o lugar é incessavelmente reescrito, apesar de os discursos anteriores não serem eliminados, continuando lá em forma de sombras do passado, ou mesmo espetros que assombram o lugar supostamente ameno e benigno. A este respeito, poder-se-ia invocar a imagem de origem bíblica que Prigogine e Stengers recordam numa situação semelhante: “‘Letʼs hope it works’ (Halway Sheyaamod), exclaimed God as he created a World, and this hope which has accompanied all the subsequent history of the world and mankind, has emphasized right from the outset that this history is branded with the mark of radical uncertainty.” (Prigogine, Stengers 1984 apud Westphal, 2015, p. 38). O caráter de incerteza tanto ontológica, como gnoseológica ou mesmo axiológica do lugar, conduz à heterogeneidade, tanto de imagens, como de significados e interpretações. A esta luz, o Cais corresponde a um espaço inconcluído, tal como todas as leituras, não só acerca deste lugar, ficam sempre inconcluídas, por completar. 308 É evidente que este binómio assenta na proximidade das palavras latinas hospes e hostis, a partir da qual Kant incentivou a hospitalidade em vez da hostilidade. A este respeito Bauman explica que Kant não pretendia a aniquilação de diferenças entre os países, mas o direito de se juntar (comunicar e interagir, criando a amizade) (cf. Bauman, 2017, p. 57). 276 Conclusão Dionysus embodies the disruptive force in the city; his spirit is later embodied by the carnival, still later by the mysterious stranger and the man in the crowd, and again by Freudʼs theory of the uncanny as the return of the repressed. Natural disasters also threatened the city. And lastly, what the city cast off became another force that challenged it from within. The major writers and thinkers of the Western world have had to come to terms with the city, each era offering us an urban identity that reveals our secret cultural values. (Lehan, 1998, p. 6) Como alega Richard Lehan, cada época proporciona outras imagens da cidade, à base das quais é moldado o seu espírito, identidade e valores culturais. Pode ser em forma de carnaval, estrangeiro misterioso, homem da multidão, regresso fantasmático do passado reprimido, desastres naturais... Tudo isso, conforme Lehan, ameaça a cidade que, em reação, estimula vários mecanismos de defesa. Mas é também tudo isso que faz parte do legado urbano, apreendido pela sensibilidade de artistas, poetas e escritores. Devido às circunstâncias sóciopolíticas, a década de 30 do século XX trouxe também mudanças significativas na representação da cidade. Esteticamente, as imagens do espaço urbano foram desenvolvendo as conquistas da modernidade literária, seja em forma de introspecção psicológica, seja a nível da expressão literária que se foi refletindo sobretudo na fragmentação, nexos intertextuais, alienação do discurso. De facto, dentro do corpus dos textos literários que serviram de base ao presente estudo, só os de Aquilino Ribeiro são de extensão longa, de género romanesco que proporciona uma visão “épica”, ampla, multifacetada e interiormente multifocalizada da sociedade lisboeta do primeiro quartel do século XX. Outros textos são narrativas curtas, contos ou novelas, ou – no caso de Irene Lisboa – prosa fragmentada em forma de um diário íntimo. Despeito estas e outras diferenças de índole intrínseca às obras, é possível observar em todos os textos estudados vários traços típicos de uma cidade moderna e modernista. A verificação destes aspetos, elaborada a partir da teoria geocrítica, constituiu um objetivo que revelou uma caraterística fundamental em comum: a tonalidade sombria e predominantemente pessimista da cidade, ou seja, a representação herdada da sensibilidade finissecular, enriquecida pelo cepticismo realista e alienação modernista. Portanto, a hipótese levantada no início, formulada em termos de examinar o caráter supostamente distópico da representação urbana, pode ser considerada como defendida e suportada pelas análises. A cidade mostra-se como transfigurada, infernal e circense, em que os desadaptados clowns exercitam as suas cambalhotas para divertir 277 o público impiedoso (“A tragédia de D. Ramón”), escura, insólita e psiquedélica, em que o “eu” adere ao Id urbano por meio de uma cisão interior (“Páscoa feliz”), assombrada pela constante ameaça do desastre (“Mónica”), solitária, quotidiana e banal (“Solidão”). A única exceção é constituída pelo romance Maria Benigna, em que o espaço urbano reflete maioritariamente o nome da personagem feminina, apaixonada, evocando o substrato mítico relacionado com a cidade de baía amena. Mas até neste romance, o final tem um sabor a deceção e bloqueamento devido ao fim de uma relação amorosa e clandestina. Para analisar o espaço urbano nas narrativas escolhidas, optou-se, como foi referido, pelo método geocrítico de Bertrand Westphal, de acordo com o qual foi feita uma escolha de obras representativas publicadas na década de 30 do século XX, tendo sido levados em consideração quatro aspetos fundamentais geocríticos: multifocalização, polisensorialidade, visão estratigráfica e intertextualidade. Como, porém, me interessava compreender as obras, sem me limitar a uma descrição tecnicista, o método geocrítico serviu-me somente como um ponto de arranque que não se esgota em si. Por isso, a análise e interpretação do tema urbano nas respetivas obras tinha que abranger um mais alargado leque de inspirações teóricas, a fim de se poder demonstrar a plasticidade e riqueza das imagens do urbano a nível mais profundo que só descritivo. Todos os pontos indicados pela geocrítica foram, portanto, inseridos numa rede de motivos, arquétipos e topoi vinculados ao tema da modernidade urbana. Quanto à multifocalização, o critério estabelecido foi a decisão de estudar cinco textos narrativos, de quatro autores, aos quais se juntam várias outras perspetivas em função do contexto literário diacrónico. Para tal, todas as narrativas do corpus básico correspondem a um ponto de vista endógeno, precisamente para se ajustarem ao objetivo do trabalho que consiste no estudo da ficção portuguesa de uma época estritamente definida. Um pequeno desvio diz respeito ao romance Maria Benigna de Aquilino Ribeiro, em que um dos narradores homodiegéticos, Adriano Valadares, exprime um ponto de vista alógeno de homem emocionalmente ligado à sua região de origem, Beira Alta, crítico em relação ao espaço ubano, bem como ao conto de Branquinho da Fonseca, em que a personagem de D. Ramón exprime também um ponto de vista alógeno, desta vez de um estrangeiro radicado em Lisboa, mas proveniente de Buenos Aires. É evidente que precisamente neste caso, a representação do espaço urbano sofre o maior grau de transfiguração, povoando-se de sombras e monstros que, embora apenas imaginados, não são menos assustadores que os reais. Esta situação demonstra como D. Ramón não se sente inteiramente assimilado pelo espaço já há muito tempo habitado e como, afinal, permanece sempre um estrangeiro ou, pelo menos, marginalizado, no solo que adotou. O olhar alógeno do protagonista, portanto, insinua já a problemática que se tornará uma 278 das mais dolorosas na literatura portuguesa do século XX, com muitas implicações ainda na contemporaneidade, que é a questão de migração (abordada como tema de emigração, regresso de emigrantes, “retorno” de ex-colonos de países africanos etc.), cuja atualidade é igualmente verificada no último capítulo do trabalho em que é analisado o micro-espaço do Cais lisboeta, lugar de partida e chegada, cruzamento de viagens tanto reais, como imaginárias e simbólicas. A pertença afetiva do protagonista a um espaço diferente faz com que D. Ramón se sinta em Lisboa sempre um estranho, como alguém que na verdade não conta, que vive à margem. A visão perturbada de D. Ramón assume também o “diagrama” da cidade como um labirinto, em que o sujeito deambula perdido, à procura de alguma corda de salvação. Semelhante “desenho” labiríntico, com efeito, aparece sempre nas prosas urbanas que abordam a questão da procura de identidade e do “eu”. Nestas narrativas, o sujeito vagueia pelas ruas ziguezagueando, desorientado, projetando-se nos seus duplos e nas sombras da cidade, também sucessivamente desdobradas. Além do conto fonsequiano, é sobretudo na novela de Rodrigues Miguéis que esta situação aparece com maior fulgor e detalhe de análise intrínseca. O princípio de polisensorialidade não pode ser muito observado na literatura porque todas as sensações passam necessariamente pela linguagem estética e, dentro deste plano, plasmamse essencialmente a nível visual. Embora haja possibilidade de registar a presença, nas narrativas estudadas, de outros sentidos, tais como o tato (p. ex. quando D. Ramón tropeça nas escadas na escuridão, tentando orientar-se às apalpadelas) ou ouvido (p. ex. vários ruídos na novela migueisiana), a importância fundamental da visão é pela natureza dos textos analisados indiscutível. Nesta área, contudo, pode ser observada uma curiosa desconstrução do estereótipo (imagotipo) que atribui, à cidade de Lisboa, a cor primordialmente branca (a citada “cidade de mármore” de Baudelaire e também, por exemplo, de António Nobre do curto poema “À Lisboa das naus cheia de glória”). Fernando Pessoa, no rasto da poesia de Cesário Verde, invoca um rico espetro das cores da cidade, cambiantes de acordo com as condições meteorológicas, que privilegiam as cores entre azul, amarelo, cinzento e plúmbeo. Nesta paleta assenta também o cromatismo migueisiano, em que sobretudo o amarelo ganha um significado simbólico de loucura e, se ligado à luz intermitente, de psiquedelismo. O seguinte critério, da visão estratigráfica, relaciona-se com a dimensão diacrónica da literatura e da cidade. O estrato de suporte é sobreposto por vários outros estratos que participam na construção de um eixo transtemporal, permitindo passar, em forma espiral, de um período para outro, sem delimitações restritivas. Deste modo, cada período é continuamente enriquecido pelos outros. É evidente que este princípio constitui a base do palimpsesto, em que a camada anterior fica em parte e em fragmentos visível na camada posterior. Tal como a cidade passa 279 arquitetonicamente por vários períodos, sendo identificável nos seus estratos romano, gótico, barroco etc., a literatura também baseia o seu status ontológico nos discursos precedentes. Neste caso é mais próprio falar de um processo intertextual, concebido transtemporalmente como um diálogo de textos não determinado rigidamente pela época da sua produção. Neste ângulo, um texto pode ser até lido e interpretado à luz daquilo que ainda não existia à altura em que foi escrito. Esta conceção pode parecer, à primeira vista, alógica. Mas não é bem assim quando se leva em consideração o facto de podermos, em princípio, apreender todas as obras escritas, no decorrer de vários séculos, de acordo com o potencial da sua eloquência, pelo viés da sua capacidade de “falar” às gerações posteriores que, dotadas de enciclopédias de leitura diferentes, sentem as obras antigas como modernas e atuais na época contemporânea. Não é nada estranho, pois, considerar um poeta antigo como Camões um autor moderníssimo, capaz de ser abordado, em cisão com a leitura hermenêutica do dado período, à luz de teorias póscoloniais. À base da mesma reflexão, podemos considerar também Sá de Miranda como nosso contemporâneo, por ter expresso, na sua poesia, valores universais e perturbações atemporais. Deste facto apercebeu-se Alexandre OʼNeill, ao justapor a poesia de Sá de Miranda e Mário de Sá-Carneiro para mostrar a pouca diferença entre o sentir dos dois.309 Assim, os textos entram em vários tipos de relacionamentos, iluminando-se reciprocamente e participando na construção do edifício literário de todas as épocas, uma Torre de Babel das belas letras. Só que esta ideia de os textos não se dirigirem só para trás, mas também para frente, contesta o princípio do palimpsesto. Assim, tal como a cidade é um compósito heteróclito com a existência simultânea de vários elementos, e não “só” uma transcrição do estrato anterior, a literatura existe na simultaneidade de épocas divergentes, projetando-se em fracções para o passado ou para o futuro conforme a própria natureza de textos. É o que possibilita análises comparatistas, a procura de paralelos temáticos que justifiquem parentescos literários. Para demonstrar este pressuposto, optou-se no trabalho por uma divisão do material por capítulos conforme tópicos de suporte: a cidade de sombras, a cidade de pesadelos, a cidade de maldição e a cidade de solidão feminina, variando em cada tópico os textos de base e de contexto ilustrativo. Em relação aos princípios estratigráfico e intertextual, foi também verificado que a ficção dos anos 30, aqui estudada e centrada no espaço lisboeta, tem um denominador comum que funciona como um paradigma do discurso urbano na moderna literatura portuguesa. Trata-se da poesia de Cesário Verde, cuja presença tutelar funciona como âncora de todos os tópicos 309 Refiro-me à famosa quadra construída a partir dos versos intercalados de ambos os poetas: “Eu não sou eu nem sou o outro / sou qualquer coisa de intermédio / sou posto em cada perigo / sou qualquer coisa de intermédio”. 280 abordados. Com efeito, a poesia de Cesário Verde, em especial o seu longo poema “O sentimento dum ocidental”, apresenta todos os temas aqui debatidos, esses que em conjunto formam a base do imaginário urbano não só da época modernista como também não só restrita ao espaço lisboeta, elevando-se a questões atemporais e universais. O tema da deambulação pela cidade noturna e/ou sombria constitui-se como o tópico de primeira linha nas narrativas de Branquinho da Fonseca, Fialho de Almeida, Raul Brandão ou António Lobo Antunes. Alusões a crimes, aljubes, misérias e injustiças sociais orientam a leitura de José Rodrigues Miguéis, Fialho de Almeida e Branquinho da Fonseca. Muitas referências à figura feminina, urbana e sedutora, convidam a um retrato da cidade maldita em Aleixo Ribeiro e Aquilino Ribeiro. E, por fim, as notas sobre a clausura e solidão feminina encontram um reflexo nos textos de Branquinho da Fonseca, Teresa Veiga e Irene Lisboa. Pode afirmar-se, portanto, que a poética de Cesário Verde penetra explicita ou implicitamente na ficção da década de 30 do século XX, prestando-se os seus temas a uma vasta abordagem por parte de vários autores que naquele período começavam a vingar. Por outro lado, a adoção do legado cesariano mantém viva a sua presença nas letras portuguesas, homenageando Cesário Verde como um autor moderníssimo, de larga repercussão que não cessa com o período estudado, mas continua até à contemporaneidade. Os conceitos da geocrítica de Bertrand Westphal foram aplicados no presente trabalho com vista a uma construção do imaginário urbano na década de 30 do século passado, portanto na época em que se começa a estabelecer o significado da estética modernista em Portugal. A geração de Presença, além de divulgar os conhecimentos sobre o modernismo europeu em geral, contribuiu muito para a receção do grupo de Orpheu em Portugal. Em termos literários mais vastos, porém, os alicerces do imaginário urbano moderno não se coadunam somente com os autores do início do século XX, embora as relações sejam múltiplas, mas recuam ao século XIX. A esta luz, portanto, convém sempre revisitar a obra de autores portugueses como, além do referido Cesário Verde, Eça de Queirós ou Fialho de Almeida, não esquecendo também os grandes autores franceses e ingleses. Entre eles, Baudelaire mantém a posição de um propulsor da poética urbana por excelência. Vários assuntos por ele tratados, e mais tarde apropriados por autores de diversos contextos culturais, compõem um inventário da cidade moderna literariamente trabalhada. Entre tais assuntos pertence sobretudo a famosíssima figura de flâneur, encarnação do espírito urbano, da rua e deambulação. E embora a figura peripatética, como é aclamado pelos psicogeográficos ingleses, possa ser encontrada já nos textos anteriores a Baudelaire, nomeadamente em Daniel Defoe, é precisamente o flâneur francês que ganha merecidamente a fama por estar vinculado ao espaço parisiense, considerado como a capital da 281 cultura no século XIX. É também muito mais este flâneur, admirador de galerias, montras e damas elegantes, que migra das páginas do poeta maldito francês para outras obras, inclusive para os poemas de Cesário Verde. Em contrapartida, a versão precedente poeana com o não menos famoso homem da multidão faz a sua entrada na poética urbana sempre que haja vontade de abandonar as luzes em favor das sombras da cidade, junto com os seus bas-fonds, pobreza, eventualmente vícios e crimes. Mesmo neste aspeto, no entanto, os crimes mais hediondos que podemos observar nos textos do século XIX e do início do século XX cingem-se aos meios sociais burgueses, em que nasce mais uma figura importante para o imaginário urbano – o funcionário público/privado, um homem simples, desinteressante, que se torna um “epítome” da monstruosidade urbana. Com base na centralidade deste novo monstro, coevo da modernidade, a cidade, cujo desenho corresponde a priori à forma concêntrica conforme a concepção de S. Allen, pode assumir o caráter excêntrico: “Eccentric literature recalculates modernist time and place (history) and structure (chronotope and consciousness), through the narrators who playfully and perversely cast themselves as deviants and their works as paradoxically authentic, authoritative and even ethical deviations.” (Allen, 2013, p. 16). A subversão de princípios éticos a que se assiste na novela migueisiana imprime à obra o caráter excêntrico, esse que se reflete também no cenário, insólito e fantasmagórico. Com este gesto, o narrador da novela de Rodrigues Miguéis assemelha-se aos narradores alienados de Gogol, Dostoievski, Machado de Assis e Lima Barreto os quais, conforme Allen, “recover ground in the city and gain footing in cultural consciousness through partial representation, problematized recollection, paranoid projection and schizophrenic response, corresponding to their respective cityʼs eccentric modes as cultural conception” (Allen, 2013, p. 18). Com efeito, o espaço urbano na novela migueisiana não sublinha a sua historicidade ou legado lendário, reduzindo-se a certos lugares heterotópicos, fechados, tais como o escritório, a casa de família em dissolução ou bar noturno, nos quais se projetam os micro-espaços fantasmagóricos de cofre, barco naufragado e caixão. Também o cais e o rio não propõem uma solução, uma possibilidade de evasão, porque conduzem ao bloqueamento ou fecho definitivo pelo espetro de afogamento, motivo recorrente na novela. O movimento da personagem no espaço urbano, como já foi referido, inscreve-se em sucessivos círculos, tal como no caso de D. Ramón migueisiano. Além de este desenho circular evocar os círculos dantescos e, com isso, a construção da cidade como a Torre de Babel no sentido inverso, abismal, é possível invocar também a metáfora do círculo de Georges Poulet, interpretada por Allen como a sugestão de interioridade e subjetividade (“circling towards a centre reconfigured in modernity as interiority, which supplants external authority and 282 objectivity”, Allen, 2013, p. 18). Em suma, portanto, a cidade de Lisboa, embora essencialmente concêntrica devido ao seu caráter estratigraficamente histórico, oferece nas narrativas de Branquinho da Fonseca e Rodrigues Miguéis o seu duplo em forma de urbe excêntrica, regida pela consciência auto-reflexiva e alienada. Nos dois casos, a cidade apresenta um certo grau de “mania” ou “paranóia”, alinhável entre as outras prosas de cunho modernista. Enquanto na prosa de Aquilino Ribeiro, sobretudo em Mónica, a mania explorada pela ficção assenta no assombramento histórico que leva a uma revisão tanto do passado, como do presente, na prosa excêntrica de Branquinho da Fonseca e José Rodrigues Miguéis, a paranóia já não se apoia em estruturas histórico-sociais, de hierarquia autoritária, mas no caráter individual de um homem “subterrâneo”. Deste ponto de vista, as figuras de D. Ramón (de Branquinho da Fonseca) e Renato (de Rodrigues Miguéis) têm muito em comum, sendo os dois de mesma forma desenraizados, inadaptados e (auto-)marginalizados. Um outro desenho da cidade, embora em certos aspetos semelhante, revela-se na prosa de Irene Lisboa que também participa na abertura de novos caminhos estéticos, não só pelo facto de mudar de personas, à maneira de outros modernistas órficos e presencistas, variando de nomes com os quais assinava as suas obras, mas também porque não se deixou limitar pelos preceitos literários canonizados, optando pelos trilhos inconformistas e iconoclastas, desde a desconstrução de géneros literários, fragmentação do discurso convencional até à subversão do imaginário tradicionalmente adscrito às mulheres. Irene Lisboa não se preocupa com a elegância, mas com a veemência do que diz. Além de uma grande ousadia, necessária para projetar o seu eu na escrita, a autora lisboeta é também dotada de uma grande dose de autoironia que lhe fornece a liberdade de se abrir e revelar. A sua escrita que privilegia o quotidiano sem grandes epifanias reflete a própria cidade, em que a narradora de Solidão se move, “aromática e normal”, como diria Cesário Verde. Embora a cidade de Lisboa não guarde muitas surpresas para a autora homónima, o dia-a-dia sempre igual enche a sensibilidade da escritora de um certo encanto, pelos pequenos nadas que constroem o nosso viver. A minuciosidade da observação deteta várias figuras, femininas e masculinas, burguesas e populares, que habitam a cidade junto com a autora e, apesar de a solidão apertar com frequência o seu corpo/alma desassossegado/a, a capacidade de penetrar nesse estrato do humanamente humano, solidariamente, proporciona-lhe, afinal, uma grande aventura, de reflexão, compreensão e compaixão. É evidente que o imaginário urbano, na perspetiva feminina de Irene Lisboa, privilegia um olhar, dir-se-ia, civil, deterritorializado, livre de mitologias pátrias e ulisseias. Neste sentido, a narradora ireniana empreende uma procura de si e da cidade numa direção que se afasta da tradição olisipógrafa, concêntrica, enveredando também pelos trilhos mais 283 próximos de excentricidade. A modernidade da sua visão e discurso literário constituem, deste modo, uma via de libertação das amarras das convenções. E mesmo que esta libertação seja sempre ambivalente – porque ninguém vive num vácuo desligado da comunidade e dos valores por ela aceites e porque a narradora, tal como o sujeito migueisiano, acaba por se sentir “prisioneira da liberdade”310 – é pelo menos uma oportunidade para visibilizar a voz feminina, até essa altura quase sistematicamente silenciada. O último caso, o de Aquilino Ribeiro, é um pouco mais complicado devido à tendência do cânone académico de não incluir a sua obra na estética modernista e devido, também, a uma outra forma de discurso narrativo, mais épico e com maior número de personagens. Abrem-se, contudo, novas perspetivas na mais recente pesquisa aquilininana que vem demonstrando a importância de Aquilino na cena modernista que não lhe pode ser negada. Entre eles, Martim de Gouveia e Sousa, um dos arautos desta revalorização do autor no quadro modernista português, levanta um precioso material a mostrar que Aquilino Ribeiro se mantinha tangencial às novas correntes.311 Ao mesmo tempo é sabido que o escritor beirão nunca adotou nenhuma corrente como um programa ou dogma artístico, exigindo para si autonomia total, o direito de ser rebelde, seguindo o seu próprio caminho.312 Em consequência, o retrato da cidade que Aquilino propõe nos seus romances diverge na abordagem da “paisagem” humana, refletida e criada com uma maior distância e objetividade que nos textos de Branquinho da Fonseca, Rodrigues Miguéis e Irene Lisboa. É também sem discussão que o formato romanesco fornece muito maior espaço para o tratamento de grande variedade de temas e assuntos, o que é inconcebível tanto no género contístico-novelístico, como no formato (ficticiamente) diarístico. A amplitude do cenário lisboeta adequa-se, assim, mais à poética de um Eça de Queirós, e menos à de um Fialho, Raul Brandão ou Fernando Pessoa, cuja ressonância é marcante nas 310 Curiosamente, os dois acabam por proferir este mesmo oxímoro (Lisboa, 1992, p. 26, Miguéis, 1974, p. 94). 311 Martim de Gouveia e Sousa afirma: “Por mais que reducionistas do fenómeno literário o queiram, tornase impossível negar esta presença de Ribeiro no modernismo português, salientando eu o empolgamento do estro do escritor e, claro está, uma clara influência de estilemas e particularidades do movimento advindas de informações que o nosso ainda incipiente criador pôde colher na publicação Les peintres futuristes italiens que contextualizava a exposição de 1912, em Paris” (Sousa, 2013, p. 58). O ensaísta viseense ainda sublinha outras ocorrências, o facto de Aquilino ser conhecido de Pessoa (que se referiu à sua obra nas cartas), de ele conhecer a obra de Mário de Sá-Carneiro, de ele participar no escândalo de “literatura de Sodoma”, defendendo a liberdade artística e como um dos poucos, a tomar partido de Judith Teixeira, a ser-lhe feita a dedicatória no único romance surrealista português (Apenas uma narrativa, 1942), de António Pedro etc. (cf. Sousa, 2013, pp. 57-61). 312 Aqui e acolá, no volume Abóboras no telhado, o autor semeia algumas reflexões a este assunto, por exemplo: “Cada homem é um mundo. Por isso mesmo, cada homem que se sabe contar é um livro nunca igual a outro livro.” (Ribeiro, s/d, p. 30), “Sempre me esforcei em não me parecer com os demais. (...) Eu, antes de mais nada. Eu, ainda que tivesse de viver e morrer singularmente a rufar um arrebentado tambor. E o segredo da minha perpétua rebeldia está nisto.” (Ribeiro, s/d, p. 14). Estas afirmações são, de facto, expressão de um credo modernista – autónomo, sedento de liberdade artística e de originalidade. 284 narrativas dos restantes autores aqui estudados. A presença tutelar de Cesário Verde faz-se sentir, porém, aqui também, sobretudo na reflexão sobre assuntos de caráter sócio-histórico. Entre eles sublinhe-se, sobretudo em Mónica, o assobramento pelos desastres antigos que se poderiam repetir, tal como na casa assombrada repete-se sempre uma história sombria passada dentro de seus muros, a história, cuja aura persiste no espaço através de gerações e séculos. Assim, por ironia, é este autor tão racionalista que melhor recorre ao tratamento da cidade como um espaço insólito, não-controlado racionalmente. É por mesma via que, na cidade de Lisboa, agora transfigurada numa casa assombrada, irrrompem outros fenómenos mais ou menos sombrios, em especial a paixão fatal e romântica de Ricardo Tavarede por uma Lolita avant la lettre, bem como a agonia da República, subjugada pelas forças monárquicas. No romance Maria Benigna, por outro lado, releve-se mormente o caráter mitificante da cidade, reterritorializado. O espaço urbano surge novamente povoado de vários mitos, lendas e vozes de autores antigos que também, mesmo que diferentemente, atualizam o passado junto com o seu imaginário canonizado (mito de Ulisses, rio de ouro, ninfas do Tejo, amor camoniano). Tendo em conta todos estes aspetos, o aspeto da cidade ajusta-se, nos dois romances aquilinianos, à perspetiva estratigráfica, espaço nivelado e composto de vários estratos históricos que se espelham mutuamente. O outro aspeto comum aos dois romances é o motivo de fugere urbem, também muito presente na poesia cesariana. As personagens masculinas de ambas as narrativas provêm da Beira como o autor e, tal como este, Ricardo Tavarede e Adriano Valadares consideram a sua quinta beirã um oásis de paz e liberdade aonde se refugiam quando desejam fugir ao caos urbano. Esta recriação do espaço edénico, arquetípico, ajusta-se ao velho antagonismo cidade/campo, de cunho horaciano, que se ajusta às considerações de Raymond Williams e que está de facto presente, em maior ou menor grau, em todos os autores aqui abordados: com maior ênfase em Aquilino Ribeiro, naturalmente, mas também em Branquinho da Fonseca de Bandeira preta e alguns contos de coletâneas anteriores, em Irene Lisboa, nos contos como “O amante” (Esta cidade!), em José Rodrigues Miguéis de Páscoa feliz aqui analisada. Em certas situações, contudo, alguns traços do rural penetram nos interstícios do espaço urbano que se hibridiza e metamorfoseia. Este aspeto é justamente mais evidente no caso lisboeta que noutras grandes cidades europeias que não têm mantido um caráter tão “provinciano”. Tendo em conta que a cidade de modernidade acusa certo grau de hibridismo, esta situação não surpreende por si, mas pelas idiossincrasias lisboetas porque, na década de 30 do século passado, era ainda possível ver na capital muitos animais, cuja presença seria mais esperada no campo (burros, muares etc.) ou noutras latitudes do globo (macacos etc.). 285 Em princípio, o elemento aglutinador das narrativas aqui analisadas consiste na ideia do progresso, a força motriz da cidade moderna/modernista. A vertigem que se vivia no início do século XX baseava-se na concepção eufórica do progresso como uma forma de salvação do mundo ocidental em crise, desprovido de certezas que até essa altura orientavam a vida dos mortais. A mesma ideia do progresso, contudo, gera simultaneamente certas reações psíquicas que demonstram o grau de incapacidade dos seres humanos de aceitarem esse progresso sem perturbações íntimas ou pelo menos algum tipo de reserva mental. Por isso, o progresso pode até paradoxalmente estimular forças regressivas, tais como atomização da sociedade e do “eu”, alienação, solidão, psicose, neurose ou qualquer espécie de paranóia/patologia, sendo estas as formas que se delineiam também com alguma acutilância nas nossas narrativas. Na reposta subjetiva aos vários fenómenos alienantes que a cidade moderna gera no seu seio, pode ser vista uma continuação do processo até à contemporaneidade. A cidade pós-moderna, de facto, complica ainda mais a posição do sujeito no espaço antigamente familiar, no espaço que perde a densidade, tornando-se “antiantropomórfico” (antianthropomorphic) (cf. Westphal, 2015, p. 161). É neste sentido que Celeste Olalquiaga, em Megalopolis: Contemporary Cultral Sensibilities (título referido por Westphal), denuncia a “psicastenia” (psychasthenia) urbana, cujos sintomas se manifestam pela cisão entre o sujeito e o ambiente (cf. Westphal, 2015, p. 161), problema que começou a delinear-se já desde os fins de oitocentos, que teve uma eclosão no início do século XX e vem sendo radicalizado na contemporaneidade. Hoje em dia, portanto, como é advogado por Westphal na esteira do pensamento de Olalquiaga, a história é substituída pela geografia, histórias pelos mapas, memórias pelos cenários, tudo ligado com a topografia de ecrã de computador e movimentos de vídeo (cf. Westphal, 2015, p. 161). Outro motivo fundamental e importante não só para todos os autores aqui representados é o rio. Trata-se de um motivo presente com frequência nas narrativas urbanas que, para além de muitas outras ocorrências literárias, não raro apresenta uma dimensão mítica. Em princípio, o tratamento deste motivo fluvial corresponde às coordenadas estéticas que vigoram em determinadas épocas históricas. Assim, por exemplo, o tratamento do rio praguense Moldava exibe semelhantes caraterísticas com a abordagem do mesmo motivo na literatura portuguesa: enquanto que na poesia do século XVIII aparecem areias de ouro e águas argênteas e majestosas, a partir do romantismo oitocentista, o rio começa a adquirir feições sombrias (p. ex. na obra de Karel Hynek Mácha) e, na primeira metade do século XX, é mesmo tratado como um rio tenebroso, em que domina também o motivo de mulher afogada (p. ex. na obra de Josef Čapek e nas pinturas de Vlasta Vostřebalová, dos anos 30, com o título Afogada I e Afogada II). Semelhantemente, o rio Tejo que, nas épocas de influência do classicismo, aparece 286 sorridente, brilhante de ouro de areia e povoado de ninfas, começa a enturvar-se nos oitocentos e novecentos, especialmente nos períodos de perturbações histórico-sociais mais sensíveis. Embora todas as abordagens do motivo fluvial nas obras aqui trabalhadas dependam do modo de representação realista, é possível detetar certas ambiguidades que impõem a este tópico um caráter insólito. Por conseguinte, o tratamento predominantemente eufórico em Maria Benigna de Aquilino Ribeiro que se vincula à perspetiva de uma mulher apaixonada, cede lugar ao tratamento distópico em Branquinho da Fonseca e José Rodrigues Miguéis. Nestes dois casos, o rio como um espaço sonhado de evasão altera com o aspeto tenebroso das águas profundas que, como um monstro fluvial de Rio turvo fonsequiano, ficam à espera de vítimas que possam ser devoradas. É também este atributo vampiresco do rio que se delineia nas narrativas “A tragédia de D. Ramón”, “A prova de força” ou Páscoa feliz. Em seguida, nestas e noutras obras focadas no cenário lisboeta, o tópico do rio apresenta-se como espaço alternadamente territorializado, deterritorializado e reterritorializado. Enquanto a primeira vertente é concebível como a expressão de uma ideologia oficial do sistema de poder em vigor no decorrer de séculos, como celebração da entrada nas rotas marítimas e, simultaneamente, celebração de mitos fundatórios da cidade, as outras vertentes aplicam-se em desconstruir os mitos que foram ilegitimamente subvertidos no intuito de apoiar os regimes autoritários. A parte dedicada a este tópico espacial de forte implicação simbólica consiste no levantamento geocrítico de obras ilustrativas sobre a problemática em questão, centrando-se em vários níveis de representação para demonstrar os processos de subversão de discursos de poder em vias de desterritorialização. Se em Cesário, Pessoa, Branquinho da Fonseca e José Rodrigues Miguéis, o Cais ainda se mostra como o espaço sonhado, lugar de evasão que possibilita viagem para um destino melhor, na segunda metade do século XX, o Cais revela-se como um lugar de passagem, de partida dolorosa ou, inversamente, de regresso sofrido, de desilusão. Resumindo, todas as análises concretas, oferecidas neste trabalho, compõem um mosaico do retrato literário de Lisboa na época que foi um período-charneira do ponto de vista políticosocial e estético. Ficou demonstrado que, embora o mosaico seja composto de várias partes muito diferentes entre si, a imagem total desse mesmo mosaico começa a adquirir tonalidades bastante sombrias, em reação implícita e talvez também inconsciente a todas as atrocidades que iriam acometer o país até à sua libertação em 1974. O levantamento de tópicos caraterísticos para a dada altura na ficção portuguesa pode ser também uma via de como encarar a cidade nos períodos posteriores ao que foi aqui tratado, uma vez que se trata de constantes atemporais, com paradigmas que recuam às épocas anteriores, percorrendo a história da literatura urbana em qualquer contexto cultural. É também por esta via que podemos rastear um certo parentesco 287 entre os nossos autores e os que lemos no século XXI. O espaço sombrio, porventura dotado de uma aura de mistério não resolvido, eventualemente a sua aberração em forma de uma cidade infecta, reflete-se hoje em dia na ficção de Teresa Veiga, exemplo de uma das melhores continuadoras da prosa atmosférica de Branquinho da Fonseca, da sua arte de sugestão. Refirase, a propósito, o seu último romance Cidade infecta (2020). A mesma autora, curiosamente, mantém também um parentesco com Aquilino Ribeiro, presente de uma forma subtil, em vários contos da autora. Até o romance Maria Benigna, aqui abordado, merece uma referência, em tudo eloquente, na obra veiguiana. Citem-se, a este propósito, as palavras de Martim de Gouveia e Sousa, ensaísta e especialista não só em Judith Teixeira e Aquilino Ribeiro, sendo ele próprio também “homem das letras”, poeta, e um parente da autora: Já o referi há dias e não tem mal que exemplifique de novo, partindo da ideia, agora alargada, de que o nome de Aquilino e a sua obra são inscrição funda, não havendo escritor rumando ao centro canónico que os não visite e deles colha a influência, sem angústia. “A amante de Kropotchine” é mais um conto extraordinário de Teresa Veiga. A dado passo, a personagem de primeira pessoa, também voz da narrativa, caracteriza seminalmente a sua amiga Cecília do seguinte modo: “Eu conhecia bem Cecília e julgava-me capaz de emitir juízos de valor sobre ela com fraca margem de erro. Não era uma intelectual, nem sequer medianamente culta, apesar de ter sempre um livro ao alcance da mão. (O último era Maria Benigna, do Aquilino, que Kropotchine lhe emprestara para que ela chegasse sozinha à conclusão de que encontrara o seu Adriano Valadares.)” (Teresa Veiga, “História da bela fria”, 1992.) Ambos no melhor centro, saiba-se que aquele “do Aquilino” é símil de transmissão. E assim os dois escritores continuarão, com as suas idiossincrasias, verdadeiras centrais de energia. (Sousa, 2020).313 Ainda outros autores surgem logo que se abra um leque da ficção urbana lisboeta posterior aos nossos autores: José Gomes Ferreira, José Cardoso Pires (não só de Lisboa. Livro de bordo. Vozes, Olhares, Memorações, aqui mencionado), Fernando Namora, Maria Judite de Carvalho, António Lobo Antunes (não só da sua estreia Memória de Elefante, aqui referida), Mário de Carvalho ou Lídia Jorge. A lista seria longa e, basicamente, inútil. Fique-se com este sabor, para as novas viagens ao fundo da noite lisboeta, ou então ao centro da luz, cores e vozes da cidade que sempre dizem mais e melhor que qualquer tese académica. 313 Publicado na página de facebook do Centro de Estudos Aquilino Ribeiro a 28 de agosto de 2020. 288 Referências bibliográficas (obras citadas) Obras literárias Abelaira, A. (1994). Enseada amena. Lisboa: Editorial Presença. Al Berto (2000). Horto de incêndio. Lisboa: Assírio & Alvim. Alegre, M. (1989). Jornada de África. Lisboa: Dom Quixote. Almeida, D. Pereira de (2018). Luanda, Lisboa, Paraíso. Lisboa: Penguin Random House Grupo Editorial Unipessoal, Lda. Almeida, Fialho de (1987). O país das uvas. Lisboa: Ulisseia. Almeida, Fialho de (1994). Lisboa galante. Episódios e aspectos da cidade. Lisabon: Vega. Almeida Fialho de (1996). Contos. Mem Martins: Publicações Europa-América. Almeida, Fialho de (2010-1012). A cidade do vício. Braga: Edições Vercial. Kindle Edition. Almeida, Fialho de (1967-1972). 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Páginas públicas de facebook Centro de Estudos Aquilino Ribeiro: https://www.facebook.com/pages/category/Nonprofit-Organization/Centro-de-Estudos- Aquilino-Ribeiro-356605458038731/ Prof. Dr. Martim de Gouveia e Sousa: https://www.facebook.com/martim.sousa.9 As referências bibliográficas na tese seguem a norma da APA Citation Style, recomendada em muitas revistas académicas do espaço lusófono. 303 ANEXO 304 A Torre de Babel é talvez o símbolo mais eficaz da cidade. A sua construção equivale a uma confiança no progresso vertiginoso que, porém, pode ser revestido de forças antagónicas, propulsoras do movimento destrutivo. Por isso, o símbolo da Torre de Babel continua a ser explorado em vários domínios, nas artes plásticas, na literatura, no cinema... Interessante é também a sua projeção nos cones verticais dantescos, seja na imagem do Inferno (a Torre de Babel inversa, de aspeto abismal), seja do Paraíso (construção tradicionalmente concebida como crescente rumo à luz). Pieter Brueghel, o Velho: A Torre de Babel (1563) Acessível em https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Torre_de_Babel_(Bruegel) (Cit. 7. 4. 2020) Sandro Botticelli: Mappa dellʼInferno (1480-1495) Acessível em https://cs.wikipedia.org/wiki/Soubor:Sandro_Botticelli_-_The_Abyss_of_Hell__WGA02853.jpg (Cit. 20. 9. 2020) Fritz Lang: Metropolis (1927) Acessível em https://festival-aix.com/en/blog/news/miseries-and-splendors-metropolis (Cit. 21.9.2020) 305 O génio maneirista (pinturas de artistas – François de Nomé e Didier Barra – que assinavam as obras com o pseudónimo “Desiderio Monsù”) concebeu o espaço como intrinsecamente heterogéneo, composto de vários elementos heteróclitos. Este inventário bricabraquista parece-me mais condicente com o simbolismo da cidade do que o tradicional palimpsesto. Para além da famosa Torre de Babel, como uma imagem urbana, convém também reparar nas pinturas que mostram, simultaneamente, o ideal de construção e o caos de destruição. Le Roi Asa de Juda détruisant les idoles (ou Explosion dʼune Cathédral) Acessível em https://en.wikipedia.org/wiki/Fran%C3%A7ois_de_Nom%C3%A9. (Cit 21.9.2020) La Tour de Babel. Acessível em https://tout-metz.com/personnages/monsu-desiderio (Cit. 21.9.2020) 306 As ilustrações de Gustave Doré (1832 – 83), do livro London A Pilgrimage 1872, redigido com Blachard Jerold, evocam também os versos de Cesário: “Eu não receio, todavia, os roubos;/ Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;/ E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,/ Amareladamente, os cães parecem lobos.“ (Verde, 1999, p. 104). Ou então: “E os guardas, que revistam as escadas, Caminham de lanterna e servem de chaveiros;/ Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,/ Tossem, fumando, sobre a pedra das sacadas.” (Verde, 1999, p. 105) London A Pilgrimage 1872, Gustave Doré, Blachard Jerold. The Docks — Night Scene. Acessível em http://www.victorianweb.org/art/illustration/dore/london/18.html. (Cit. 21.9.2020) Acessível em https://spartacus-educational.com/Jdore.htm (Cit. 21.9.2020) 307 D. Ramón de Branquinho da Fonseca deambula pela cidade de Lisboa, pensando sempre na sua cidade natal, Buenos Aires. Curiosamente, a sua desorientação em Lisboa pode ser lida não só como a metáfora da sua alienação e desenraizamento, mas também de um modo topográfico. Observando os mapas das duas cidades, vê-se imediatamente que a planta lisboeta, composta de ruas ziguezagueando a sugerir a forma labiríntica, contrasta com a geometria regular de Buenos Aires. Plano: Lisboa (Google Maps) Plano: Buenos Aires (Google Maps) Agradeço esta observação a Marcelo Pacheco Soares. 308 No início do século XX, as ruas da Baixa e do Chiado continuam a figurar como um verdadeiro palco de sedução, onde muitos se passeiam só para serem vistos e admirados e, simultaneamente, para verem e admirarem os outros. Este fenómeno está também, até certo ponto, relacionado com o aparecimento de uma “nova” mulher, moderna, elegante e independente, que não receia atrair os olhares maculinos. Veja-se o desenho, de leve teor caricatural, de um dos maiores artistas portugueses modernistas, Jorge Barradas (1894-1971). Jorge Barradas. Outros Tempos, publicado em O Riso da Vitória, 15 de Setembro de 1919, Acessível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Barradas_Outros_Tempos_1919.jpg (Cit. 21.9.2020) 309 O Bristol Club era um local de diversão nocturna existente nas primeiras décadas do século XX em Lisboa, no cruzamento da Rua Jardim do Regedor com a das Portas de Santo Antão. Uma das portas da casa, na Rua do Jardim do Regedor, ainda lá está, igual, com a sua decoração arte nova em latão. O Bristol era famoso pela música ao vivo, jazz e novas danças. Pode dizerse que o Bristol era também um indicador de moda feminina, impondo o cabelo à garçonne, saia curta e maquilhagem. Fonte: http://malomil.blogspot.com/2012/12/o-fado-do-bristol-club.html (Cit. 15.6.2019) Capa da Revista Portuguesa. Publicidade de Bristol Club. Ilustrações de Jorge Barradas. ABC 353, 21 Abril 1927. ABC 358, 26 Maio 1927 ABC 362, 23 Junho 1927 Fonte: https://almanaquesilva.wordpress.com/tag/bristol-club/ (Cit. 15.6.2019) 310 O panorama da urbe babilónica que, passado um século, poderia ser visto pelos protagonistas do romance Mónica de Aquilino Ribeiro, da mesma rua em Lisboa, onde eles viveram (Avenida Duque de Loulé), antes de partirem para as terras paradisíacas da Beira Alta. “E nada mais estranho que o mar revolto de telhados, desde Santa Catarina ao Castelo, picando em plano inclinado para o Tejo, esse tão manso e azul que parecia ali estar para dar o contraste da casaria, atormentada e baralhada pelo acaso como pelo mais terrível dos terramotos.” “... à roda dela, no pátio encantado ao sol, o silêncio e a serenidade pareciam revestir forma, serem como que pessoas a recebê-la com cortesia. Luz muito branca, oxigénio, o hausto da altitude, e Mónica estava inebriada.” Fotografias de Lisboa e de Soutosa (Moimenta da Beira) foram tiradas em maio de 2019 por ocasião da 1ª Jornada Internacional Aquiliniana (27.5.2019) 311 Recentemente, Aquilino Ribeiro tem sido “recuperado” como autor que, apesar de nunca pertencer a nenhuma escola ou corrente estética, acusa certa convergência com o modernismo português, pelo interesse em novidades estéticas (aproximação ao grupo de Orpheu), pela vertente psicológica em algumas obras (aproximação ao grupo de Presença) ou pelo enfoque regionalista (aproximação ao neorrealismo, às vezes também chamado como o terceiro modernismo). Esta convergência foi selada pela inclusão do verbete sobre Aquilino Ribeiro, de autoria de Serafina Martins, no Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português (ed. Fernando Cabral Martins), em que a especialista aquiliniana reflete sobre as possibilidades de encontro entre Aquilino e Mário de Sá-Carneiro, afirmando: A contiguidade geográfica, a nacionalidade, a proximidade etária poderiam ter feito cruzar Aquilino e Sá-Carneiro, contando ainda o facto de ambos terem sido estudantes na Sorbonne (...). Não sendo desejável forçar a nota de circunstâncias que poderiam ter propiciado eventuais cruzamentos, convém ainda lembrar, contudo, que tanto Aquilino como Sá-Carneiro foram, a partir de Paris e em períodos nalguns casos coincidentes, colaboradores da Ilustração Portuguesa (...) Apesar dos factos aqui mencionados, o mais provável é que os dois escritores não se tenham encontrado, pelo menos de forma que justificasse qualquer menção por parte de um ou de outro. (Martins, 2008, p. 732). Mas fica sem solução um “mistério” que é a posse do bilhete de identidade de Sá-Carneiro por Aquilino, guardado na sua casa. Que caso insólito e/ou policial poderia ser inventado a partir desta circunstância...! Foto tirada na Casa-Museu de Aquilino Ribeiro, Soutosa, 2019. 312 Muito interessante é esta pequena nota de Alice Moderno, publicada em Correio dos Açores, 10 de Junho de 1933, sobre o tratamento dos animais nos postos veterinários de Lisboa, que atesta que a capital portuguesa não só era bem dotada de serviços veterinários, mas mostra também o caráter híbrido urbano-rural da cidade na década de 30 do século XX, em que era possível deparar com uma quantidade elevada de burros, cavalares e muares. Curiosa é também a menção aos macacos e saguins que manifestam ainda outro tipo de hibridismo, relacionado com o caráter “tropical” da baía amena portuguesa. https://alicemoderno.blogspot.com/2015/01/postos- veterinarios.html?fbclid=IwAR0SwqceFpfjsQbljMpVcRGhy69XJLR2qVOoCnKZuqZp2Wr7_3z1m MdBts0 (cit. 25/5/2020). Agradeço referência a Anna Klobucka. 313 As Parcas na pintura de Goya podem ser consideradas como o melhor retrato das Parcas de Branquinho da Fonseca (“As mãos frias”) e de Teresa Veiga (“As Parcas”). Em todos os três casos, trata-se de mulheres grotescas e ordinárias que tecem o destino dos pobres mortais. Goya: Atropos (1819-1823) https://www.wikiart.org/en/francisco-goya/atropos-the-fates-1823 (Cit. 17.8. 2019) 314 “[l]a ventana es el punto de referencia de que dispone para soñar desde dentro el mundo que bulle de fuera, es el punto tendido entre las orillas de lo conocido y lo desconocido, la única brecha por donde puede echar a volar sus ojos, en busca de otra luz y otros perfiles que no sean los del interior, que contrasten con estos.” (Gaite, 1999, p. 51) A simbiose da mulher e da janela é manifestada em inúmeras pinturas, nas quais, invariavelmente, a mulher olha para fora com um ar sonhador e melancólico. Gustave Caillebotte: Interior, 1880 Acessível em https://www.wikiart.org/en/gustave-caillebotte/interior-woman-at-the-window- 1880. (Cit. 16.8.2019) Walter Langley: Reverie Acessível em https://www.reproduction-gallery.com/oil-painting/1534932324/a-reverie-bywalter-langley/ (Cit. 16.8.2019) William Orpen: The window seat, 1901 Acessível em https://www.cutlermiles.com/the-window-seat-sir-william-orpen/ (Cit. 16.8.2019) 315 Em 1931, Virginia Woolf publicou o texto “The docks of London”, em que, num registo descritivo, apresenta a parte ribeirinha de Londres. As docas londrinas correspondem a um lugar de duro trabalho que se torna, à noite, num espaço pouco aconselhável a visitar por causa da alta taxa de criminalidade. Um paralelo às docas londrinas pode ser também visto nas docas lisboetas, Alcântara. Também esta parte lisboeta costumava ser vista à altura como um dos locais mais perigosos devido à sua elevada taxa de criminalidade. Virginia Woof: The Docks of London. The London Scene essays. Good housekeeping, 1931-32, London. In Bradshaw, D. (2016). Virginia Woolf´s London , Discovering Literature 20th century. British Library. Acessível em https://www.bl.uk/20th-century-literature/articles/virginia-woolfs-london (Cit. 26.8.2019)