Ascenso Ferreira (1895 – 1965) NOTURNO Sozinho nas ruas desertas do velho Recife que atrás do arruado moderno ficou... criança de novo eu sinto que sou: — Que diabo tu vieste fazer aqui, Ascenso? O rio soturno, tremendo de frio, com os dentes batendo nas pedras do cais, tomado de susto sem poder falar.. o rio tem coisas para me dontar: — Corrre senão o Pai-do-Poço te pega, condenado! Das casas fechadas e mal-assombradas com as caras tisnadas que o incêndio queimou pelas janelas esburacadas eu sinto, tremendo, que um olho de fogo medonho me olho: – Olha que o Papa-Figo te agarra, desgraçado! Dos brutos guindastes de vultos enormes ainda maiores nessa escuridão... os braços de ferro, pesados e longos, parece quererem suster-me no chão! Ai! Eu tenho medo dos guindastes, Por causa daquele bicão! Sozinho, de noite, nas ruas desertas do velho Recife que atrás do arruado moderno ficou... criança de novo eu sinto que sou: — Larga de ser vagabundo, Ascenso! POEMAS MINUTO Filosofia Hora de comer, —comer! Hora de dormir, — dormir! Hora de vadiar, — vadiar! Hora de trabalhar? — pernas pro ar que ninguém é de ferro! Os engenhos de minha terra Dos engenhos de minha terra Só os nomes fazem sonhar: - Esperança ! - Estrela d'Alva ! - Flôr do Bosque ! - Bom-Mirar ! Um trino… um trinado… um tropel de trovoada… e a tropa e os tropeiros trotando na estrada: - Valo! - Êh Andorinha ! - Ê Ventania ! - Ê... "Meu Alazão é mesmo bom sem conta ! Quando ele aponta tudo tem temor… A vorta é esta: nada me comove ! Trem, outomove, seja lá que for…" "Por isso mesmo o sabiá zangou-se ! Arripiou-se foi cumer melão… Na bananeira ela fazia: piu ! Todo mundo viu, não é mentira não…" - Bom dia, meu branco ! - Deus guarde suasenhoria, Capitão ! ...................................................................... Dos engenhos de minha terra Só os nomes fazem sonhar: - Esperança ! - Estrela d'Alva ! - Flôr do Bosque ! - Bom-Mirar ! Trem de Alagôas O sino bate, o condutor apita o apito, Solta o trem de ferro um grito, põe-se logo a caminhar… - Vou danado pra Catende, vou danado pra Catende, vou danado pra Catende com vontade de chegar... Mergulham mocambos, nos mangues molhados, moleques, mulatos, vêm vê-lo passar. Adeus ! - Adeus ! Mangueiras, coqueiros, cajueiros em flor, cajueiros com frutos já bons de chupar... - Adeus morena do cabelo cacheado ! Mangabas maduras, mamões amarelos, mamões amarelos, que amostram molengos as mamas macias pra a gente mamar - Vou danado pra Catende, vou danado pra Catende, vou danado pra Catende com vontade de chegar... Na boca da mata ha furnas incríveis que em coisas terríveis nos fazem pensar: - Ali dorme o Pai-da-Mata - Ali é a casa das caiporas - Vou danado pra Catende, vou danado pra Catende vou danado pra Catende com vontade de chegar... Meu Deus ! Já deixamos a praia tão longe… No entanto avistamos bem perto outro mar... Danou-se ! Se move, se arqueia, faz onda... Que nada ! É um partido já bom de cortar... - Vou danado pra Catende, vou danado pra Catende vou danado pra Catende com vontade de chegar... Cana caiana, cana rôxa, cana fita, cada qual a mais bonita, todas boas de chupar... - Adeus morena do cabelo cacheado ! - Ali dorme o Pai-da-Matta ! - Ali é a casa das caiporas - Vou danado pra Catende, vou danado pra Catende vou danado pra Catende com vontade de chegar... Minha escola A escola que eu frequentava era cheia de grades como as prisões. E o meu Mestre, carrancudo como um dicionário; Complicado como as Matemáticas; Inacessível como Os Lusíadas de Camões! À sua porta eu estava sempre hesitante... De um lado a vida... — A minha adorável vida de criança: Pinhões... Papagaios... Carreiras ao sol... Vôos de trapézio à sombra da mangueira! Saltos da ingazeira pra dentro do rio... Jogos de castanhas... — O meu engenho de barro de fazer mel! Do outro lado, aquela tortura: "As armas e os barões assinalados!" — Quantas orações? — Qual é o maior rio da China? — A 2 + 2 A B = quanto? — Que é curvilíneo, convexo? — Menino, venha dar sua lição de retórica! — "Eu começo, atenienses, invocando a proteção dos deuses do Olimpo para os destinos da Grécia!" — Muito bem! Isto é do grande Demóstenes! — Agora, a de francês: — "Quand le christianisme avait apparu sur la terre..." — Basta — Hoje temos sabatina... — O argumento é a bolo! — Qual é a distância da Terra ao Sol? — ?!! — Não sabe? Passe a mão à palmatória! — Bem, amanhã quero isso de cor... Felizmente, à boca da noite, eu tinha uma velha que me contava histórias... Lindas histórias do reino da Mãe-d'Água... E me ensinava a tomar a bênção à lua nova. Publicado no livro Catimbó (1927). In: FERREIRA, Ascenso. Poemas: Catimbó, Cana Caiana, Xenhenhém. Il. por 20 artistas plásticos pernambucanos. Recife: Nordestal, 1981