Fora, som de tiros e gritos de socorro. PADRE Meu Deus, que terá sido isso? BISPO O barulho era de tiro. MULHER, entrando, assombrada. Valha-me Deus! Ai, meu marido de minha alma, vai morrer todo mundo agora. Socorro, Senhor Bispo. BISPO Que há? Que é isso? Que barulho! MULHER É Severino do Aracaju, que entrou na cidade com um cabra e vem para cá roubar a igreja. PADRE Ave-Maria! Valha-me Nossa Senhora! BISPO Quem é Severino do Aracaju? SACRISTÃO Um cangaceiro, um homem horrível. BISPO, à mulher. Chame a polícia. MULHER A polícia correu. BISPO Correu? MULHER E então? Infor maram-se por onde ele vinha e saíram exatamente pelo outro lado. 106 BISPO Ave-Maria! Valha-me Nossa Senhora! MULHER Ai! meu Deus! PADEIRO Ai! meu Deus! PADRE E será verdade mesmo? Onde está Severino? SEVERINO, aparecendo Aqui. BISPO, desmaiando Ai! JOÃO GRILO Que grande administrador! SEVERINO Um momento, ninguém corra. O primeiro que tentar fugir, morre. O que é isso que está aí deitado, é algum cônego? BISPO, abrindo os olhos, cioso do posto Bispo. SEVERINO Ótimo. Nunca tinha matado um bispo, o senhor vai ser o primeiro. 107 BISPO, desmaiando Ai! SEVERINO, dando-lhe um pontapé Levante-se e deixe de chamego. Xilique comigo não pega. (O Bispo levanta-se vagarosamente.) Vossa Reverendíssima vai-me desculpar, mas deixe ver os bolsos. BISPO Não tenho nada, o capitão compreende... SEVERINO, cortante Mesmo assim eu quero ver. E deixe de me chamar de capitão, que eu não gosto. BISPO E como hei de chamá-lo então? SEVERINO Severino, que é meu nome de batismo. PADRE É que nós não temos coragem de chamar uma pessoa tão importante de Severino. SEVERINO Isso tudo é porque quem está com o rifle sou eu. Se fosse qualquer um de vocês, eu era chamado era de Biu. Deixem de conversa, que isso comigo não vai. Mostre os bolsos. (Tirando o dinheiro.) Seis contos! Mas é possível? Já vi que o negócio de reza está prosperando por aqui. 108 JOÃO GRILO Depois que se começou a enterrar cachorro então, faz gosto! SEVERINO E tudo isto foi para se enterrar um cachorro? JOÃO GRILO Foi. SEVERINO Nesse caso o padre deve ter também alguma coisa para seu amigo Severino. PADRE Tenho, não vou negar. Aqui estão dois contos, Senhor Severino. É o que posso lhe dar, no momento. SEVERINO, irônico É mesmo, padre? Não é possível! Numa terra em que o bispo tem seis contos, o padre deve ter no mínimo uns três. (Severo.) Deixe ver os bolsos. Olhe lá, eu não disse? Fazendo jogo sujo, hem, padre? Quem diria, um ministro de Deus! Enfim, isso é um fim de mundo. E o sacristão, que é que me diz disso tudo? 109 SACRISTÃO Só tenho a lamentar minha pobreza, não me permite ajudar os amigos. SEVERINO Mais pobre do que Vossa Senhoria é Severino do Aracaju, que não tem ninguém por ele, a não ser seu velho e pobre papo-amarelo. Mas mesmo assim eu quero ajudá-lo, porque Vossa Senhoria é meu amigo. (Tirando o dinheiro.) Três contos! Estou quase pensando em deixar o cangaço. Eu deixava vocês viverem, o bispo demitia o sacristão e me nomeava no lugar dele. Com mais uns cinqüenta cachorros que se enterrassem, eu me aposentava. (Sonhador.) Podia comprar uma terrinha e ia criar meus bodes. Umas quatro ou cinco cabeças de gado e podia-se viver em paz e morrer em paz, sem nunca mais ouvir falar no velho papo-amarelo. BISPO Mas é uma grande idéia, Severino. SEVERINO É uma grande idéia agora, porque a polícia fugiu. Mas ela volta com mais gente e eu não dava três dias para o senhor bispo fazer o enterro do novo sacristão. 110 MULHER sedutora Então venha trabalhar comigo na padaria. Garanto que não se arrepende SEVERINO, severo Mostre a mão esquerda. MULHER, cariciosa Pois não, com muito gosto. SEVERINO É uma aliança? MULHER É, sou casada com essa desgraça aí, mas estou tão arrependida! Só gosto de homens valentes e esse é uma vergonha. SEVERINO Vergonha é uma mulher casada na igreja se oferecer desse jeito. Aliás, já tinha ouvido falar que a senhora enganava seu marido com todo mundo. PADEIRO O quê? É possível? JOÃO GRILO Está aí Chicó que o diga. CHICÓ Eu? 111 SEVERINO A coisa de que eu tenho mais raiva no mundo é de mulher assim. Sabe o que é que eu faço com as que encontro com esse costume? MULHER Não. SEVERINO Ferro na tábua do queixo. MULHER Ai! PADEIRO Não ligue ao que ela diz, mas o senhor podia vir mesmo trabalhar comigo na padaria. Não se ganha muito, mas dá para viver. SEVERINO Então ganha-se pouco na padaria? PADEIRO Muito pouco, eu mesmo não tenho aqui, veja. SEVERINO Não preciso, eu acredito.O que você tinha deixou no cofre e eu tirei tudo, de passagem por lá. 112 PADEIRO Ai! SEVERINO Não vejo motivo para essas agonias. Estou no meu direito, porque a polícia fugiu e eu tomei a cidade. JOÃO GRILO Dou toda a razão a você, Severino, mas está ficando tarde e eu tenho o que fazer. Vamos embora, Chicó. Vocês, até logo e muito boa viagem para todos. SEVERINO Um momento, amarelinho, quero falar com o senhor você (A Chicó.) Você também não se apresse. JOÃO GRILO Homem, eu já sei qual é a conversa que você quer ter comigo. Tome logo meus duzentos e cinqüenta mil-réis e deixe eu ir-me embora. Dê os seus também, Chicó, e vamos sair daqui que o calor está aumentando. SEVERINO Nada disso. Você agora fica e vai morrer com os outros. Está-me chamando de ladrão? Severino do Aracaju pode ser assassino, mas não mata ninguém sem motivo. Até hoje só matei para roubar. É assim que garanto meu sustento. Mas você me chamou de ladrão e vai se arrepender. 113 BISPO Quer dizer que o senhor vai nos matar a todos? SEVERINO Vou, por que não? BISPO Mas você não disse que só mata para garantir seu sustento? SEVERINO E não é o que estou fazendo? BISPO É um louco. Socorro! Socorro! SEVERINO Pode gritar à vontade, garanto que não vem ninguém. Mas somente por causa desse grito, Vossa Excelência vai ser o primeiro. Tenha a bondade de passar para ali, porque Severino do Aracaju não mata ninguém de fronte da igreja. FRADE Severino! SEVERINO Senhor! FRADE Deixe eu confessar esse povo. SEVERINO O senhor frade vai me perdoar, mas não tenho tempo. A polícia pode voltar e tenho que matar vocês de um por um. FRADE Então vou absolver todos condicionalmente, e peço ao padre que faça o mesmo comigo. BISPO Débil mental! (A Severino.) Cavalheiro... SEVERINO, fazendo uma vênia. Senhor Bispo... Não adianta olhar para os lados, porque, se não sair, morre aqui mesmo. Seja homem, dê um exemplo a seus dois secretários que estão em tempo de se acabar de medo. O Padre e o Sacristão começam a rezar. O Bispo ergue a cabeça e quer sair com dignidade, mas as pernas lhe tremem de tal modo que ele vai tropeçando. 115 SEVERINO Sustente as pernas, Senhor Bispo! Que vergonha, chega dá desgosto se matar um homem desse! Vá, vá logo!! O Bispo sai pela esquerda. Severino faz um aceno para o Cangaceiro. Este sai, atrás do Bispo. Um tiro. Severino baixa a cabeça afirmativamente, sorrindo com a eficiência da execução.O Cangaceiro reaparece, fazendo um gesto horizontal e cortante com a mão. SEVERINO Senhor Padre, pela ordem, é a sua vez. PADRE, descobrindo o rosto. Pode cuidar logo do sacristão. SACRISTÃO Nada disso, a vez é do Senhor. SEVERINO Para não haver discussão, vão os dois de uma vez. PADRE, a João Grilo. Tudo isso por sua culpa, com suas histórias de cachorro bento e cachorro enterrado! 116 JOÃO GRILO Cachorro bento é você. Eu não digo que sou sem sorte mesmo? Aqui desgraçado, aperreado, me preparando para morrer, ainda aparece Padre João para me chamar de cachorro! Cachorro é você! Com a raiva, Padre João se esquece do medo e sai rapidamente, mas o Sacristão fica. SEVERINO Que é isso, quer deixar o padre sem poder rezar o ofício? SACRISTÃO O ofício? Que ofício, o dos mortos? SEVERINO Nada, o do casamento. Vou casar vocês dois com a morte. Ra, ra, essa foi boa! SACRISTÃO, sem gosto. Foi ótima! SEVERINO Vá atrás de seu patrão e nunca mais se esqueça aqui do padre que os casou. CANGACEIRO E nem do sacristão. 117 O Sacristão sai. Dois tiros, mesma cena entre Severino e o Cangaceiro. FRADE Agora, eu? SEVERINO Não, não gosto de matar frade que dá azar. Vá embora. (O Frade sai.) E chega agora a vez do excelentíssimo senhor padeiro desta cidade de Taperoá, que terá a subida satisfação de morrer ao lado de sua excelentíssima mulher safada. PADEIRO Antes de morrer, tenho um pedido a fazer. SEVERINO Ai, ai, ai! O que é? PADEIRO Quero que ela morra primeiro, para eu ver. SEVERINO Concedido. Mate a mulher primeiro. MULHER Ah desgraçado! PADEIRO Desgraçada é você que me desgraçava a testa sem eu saber. E se ao menos fosse com uma pessoa de respeito! Mas até Chicó. 118 CHICÓ Até Chicó o quê? Eu fui que corri o perigo de ficar falado, andando com essa mulher pra cima e pra baixo. PADEIRO Eu não digo! Você me desgraçou. Caminhe na frente! Faço questão de ver essa desgraça morrer! MULHER E então? Pensa que vou fazer cara feia? Está muito enganado, tenho mais coragem do que muito homem safado. Você, sim, está aí em tempo de se acabar. Pensa que não vi as pernas de sua calça tremendo, desde que ele entrou? Frouxo safado, não lhe dou o gosto de me queixar de jeito nenhum. (Ao Cangaceiro.) Está pronto? CANGACEIRO Estou. MULHER Pois vamos. (Sai firmemente, acompanhada pelo marido, que cambaleia.) Eu não disse? Segure aqui, que eu ajudo. O padeiro se apóia na mulher e saem os dois abraçados. JOÃO GRILO E é assim que serão dois numa só carne. 119 CHICÓ Não mangue não, João. Mulher valente! Safada mas valente. JOÃO GRILO Você que diz isso é porque sabe. Um só tiro. Ficam todos em expectativa e o Cangaceiro volta. SEVERINO Que foi isso? Só matou um? CANGACEIRO Não, os dois. SEVERINO Só ouvi um tiro. CANGACEIRO Ia matar a mulher primeiro, como o senhor mandou, mas no momento em que ia puxar o gatilho, o homem correu, abraçou-se com a mulher e morreram juntos. SEVERINO Muito bem. Como é o nome de Vossa Senhoria? JOÃO GRILO Minha Senhoria não tem nome nenhum, porque não existe. Pobre tem lá senhoria, só tem desgraça. 120 SEVERINO Diga então o nome de Vossa Desgracência. JOÃO GRILO João Grilo. SEVERINO Chega então agora a vez de Sua Desgracência, o Senhor João Grilo, o amarelo mais amarelo que já tive a honra de matar. Pode ir, a casa é sua. JOÃO GRILO Um momento. Antes de morrer, quero lhe fazer um grande favor. SEVERINO Qual é? JOÃO GRILO Dar-lhe esta gaita de presente. SEVERINO Uma gaita? Para que eu quero uma gaita? JOÃO GRILO Para nunca mais morrer dos ferimentos que a polícia lhe fizer. 121 SEVERINO Que conversa é essa? Já ouvi falar de chocalho bento que cura mordida de cobra, mas de gaita que cura ferimento de rifle, é a primeira vez. JOÃO GRILO Mas cura. Essa gaita foi benzida por Padre Cícero, pouco antes de morrer. SEVERINO Eu só acredito vendo. JOÃO GRILO Pois não. Queira Vossa Excelência me ceder seu punhal. SEVERINO Olhe lá! JOÃO GRILO Não tenha cuidado. Pode apontar o rifle e se eu tentar alguma coisa para seu lado, queime. SEVERINO, ao Cangaceiro. Aponte o rifle para esse amarelo, que é desse povo que eu tenho medo. (Entrega o punhal a João sob a mira do Cangaceiro.) E agora? JOÃO GRILO Agora vou dar uma punhalada na barriga de Chicó. CHICÓ Na minha, não. JOÃO GRILO Deixe de moleza, Chicó. Depois eu toco na gaita e você fica vivo de novo! (Murmurando, a Chicó.) A bexiga, a bexiga! Acena para Chicó, mostrando a barriga e lembrando a bexiga, mas Chicó não entende. CHICÓ Muito obrigado, mas eu não quero não, João. JOÃO GRILO, novos acenos Mas eu não já disse que toco na gaita? CHICÓ Então vamos fazer o seguinte: você leva a punhalada e quem toca na gaita sou eu. JOÃO GRILO Homem sabe do que mais? Vamos deixar de conversa. Tome lá! Morra, desgraçado! Dá uma punhalada na bexiga. Com a sugestão, Chicó cai ao solo, apalpa-se, vê a bexiga e só então entende. Ele fecha os olhos e finge que morreu. 123 JOÃO GRILO Está vendo o sangue? SEVERINO Estou. Vi você dar a facada, disso nunca duvidei. Agora, quero ver é você curar o homem. JOÃO GRILO É já. Começa a tocar na gaita e Chicó começa a se mover no ritmo da música, primeiro uma mão, depois as duas, os braços, até que se levanta como se estivesse com dança de São Guido. SEVERINO Nossa Senhora! Só tendo sido abençoada por Meu Padrinho Padre Cícero. Você não está sentindo nada? CHICÓ Nadinha. SEVERINO E antes? CHICÓ Antes como? SEVERINO Antes de João tocar na gaita. CHICÓ Ah, eu estava morto. SEVERINO Morto? CHICÓ Completamente morto. Vi Nossa Senhora e Padre Cícero no céu. SEVERINO Mas em tão pouco tempo? Como foi isso? CHICÓ Não sei, só sei que foi assim. SEVERINO E que foi que Padre Cícero lhe disse? CHICÓ Disse: “Essa é a gaitinha que eu abençoei antes de morrer. Vocês devem dá-la a Severino, que precisa dela mais do que vocês”. SEVERINO Ah meu Deus, só podia ser Meu Padrinho Padre Cícero mesmo. João me dê essa gaitinha! JOÃO GRILO Então me solte e solte Chicó. SEVERINO Não pode ser, João. Eu matei o bispo, o padre, o sacristão, o padeiro e a mulher e eles morreram esperando por você. Se eu não o matar, vêm-me perseguir de noite, porque será uma injustiça com eles. JOÃO GRILO Mas mesmo eu lhe dando essa gaita? Você repare que eu podia ter morrido sem nada lhe dizer e você nunca saberia de nada, porque ninguém ia dar importância a uma gaita. SEVERINO É verdade. JOÃO GRILO Eu lhe dei uma oportunidade de conhecer Meu Padrinho Padre Cícero e você me paga desse modo! SEVERINO De conhecer Meu Padrinho? Nunca tive essa sorte. Fui uma vez ao Juazeiro só para conhecê-lo, mas pensaram que eu ia atacar a cidade e fui recebido a bala. JOÃO GRILO Mas pode conhecê-lo agora. SEVERINO Como? 126 JOÃO GRILO Seu cabra lhe dá um tiro de rifle, você vai visitá-lo. Então eu toco na gaita e você volta. SEVERINO E se você não tocar? JOÃO GRILO Não está vendo que eu não faço uma miséria dessa? Garanto que toco. SEVERINO Sua idéia é boa, mas por segurança entregue logo a gaita a meu cabra. (João entrega a gaita.) Agora eu levo um tiro e vejo Meu Padrinho? JOÃO GRILO Vê, não vê, Chicó? CHICÓ Vê demais. Está lá, vestido de azul, com uma porção de anjinhos em redor. Ele até estava dizendo: “Diga a Severino que eu quero vê-lo”. SEVERINO Ai, eu vou. Atire, atire! CANGACEIRO Capitão! SEVERINO Atira, cabra frouxo, eu não estou mandando? CANGACEIRO Capitão! SEVERINO Atire! JOÃO GRILO Homem atire logo pelo amor de Deus! O Cangaceiro ergue o rifle. SEVERINO Espere. (João, extremamente nervoso, ergue os braços para o céu.) Não se esqueça de tocar na gaita. CANGACEIRO Não tenha cuidado, Capitão. SEVERINO Então atire. O Cangaceiro ergue o rifle de novo e atira. Severino cai e o Cangaceiro pega a gaita. JOÃO GRILO, impedindo-o Não, deixe para tocar depois! Deixe pobre Severino conversar mais um pedaço com Padre Cícero! Essas ocasiões são poucas, é preciso aproveitar. 128 CANGACEIRO Não, já deu tempo de ele ver o padre. (Toca na gaita e nada.) Capitão! (Toca na gaita.) Capitão! Capitão! (Empurra Severino com o pé.) Está morto! JOÃO GRILO Toque na gaita. CANGACEIRO, depois de tocar Capitão! Ah Grilo amaldiçoado, você matou o capitão. JOÃO GRILO Em cima dele, Chicó. Atacam o Cangaceiro. Sem que ninguém veja a facada, João Grilo dá uns meneios e saltos de gato na frente do Cangaceiro, que puxa um revólver. Chicó imobiliza os braços do Cangaceiro, segurandoo por trás. Com uma das mãos força-o a apontar o revólver para o chão. JOÃO GRILO Solte o homem, Chicó! 129 CHICÓ Mas, João, soltar o homem com um revólver na mão? JOÃO GRILO Solte o homem, Chicó! CHICÓ João, se eu soltar o homem, ele mete-lhe revólver na cara! JOÃO GRILO Solte o homem, Chicó! CHICÓ João, você está doido? Não está vendo que o homem passa-lhe fogo?! JOÃO GRILO Solte o homem, Chicó CHICÓ Pois então tome! Solta o Cangaceiro, que cai ao chão. JOÃO GRILO Eu não lhe disse que soltasse, homem? Na primeira visagem que eu fiz na frente dele, meti-lhe a faca na barriga. 130 CHICÓ João, meu filho, você é grande! Vamos embora! JOÃO GRILO Nada disso, só saio daqui com o testamento do cachorro. Vai ao lugar onde está o corpo de Severino e tira o dinheiro. CHICÓ João, de tudo isso eu só não entendo uma coisa. JOÃO GRILO O que é? CHICÓ Como foi que você adivinhou que Severino vinha e preparou a história da bexiga? JOÃO GRILO Eu não adivinhei coisa nenhuma, a bexiga estava preparada para a mulher do padeiro, quando ela viesse reclamar o preço do gato. Eu ia ver se convencia o marido dela a dar-lhe uma facada, para experimentar a gaita e me vingar do que ela me fez. Severino meteu-se no meio porque quis e de enxerido que era. 131 CHICÓ Vamos embora, João. JOÃO GRILO Mas Chicó, tenha vergonha, você ainda está com medo? CHICÓ Estou, João, com um pressentimento ruim danado! JOÃO GRILO Então vamos embora, mas deixe de agouro. Chicó sai para cidade, mas João pára no limiar, erguendo teatralmente os braços. JOÃO GRILO E agora a vida boa e a independência para João Grilo e para Chicó, graças à minha altíssima sabedoria e ao testamento do cachorro. CHICÓ, de fora João, venha embora pelo amor de Deus! JOÃO GRILO Já vou, Chicó, João Grilo já vai. O Cangaceiro reergue dificilmente a cabeça, pega o rifle, atira em João e morre. João entra em cena segurando o espinhaço e senta-se no chão. Chicó volta correndo. 132 CHICÓ Que foi isso, João? JOÃO GRILO O cabra estava vivo ainda e atirou em mim. CHICÓ Ai, minha Nossa Senhora, será que você vai morrer, João? JOÃO GRILO Acho que vou, Chicó, estou ficando com a vista escura. CHICÓ Ai, meu Deus, pobre de João Grilo vai morrer! JOÃO GRILO Deixe de latomia, Chicó, parece que nunca viu um homem morrer! Nisso tudo eu só lamento é perder o testamento do cachorro. Morre. 133 CHICÓ João! João! Morreu! Ai meu Deus, morreu pobre de João Grilo! Tão amarelo, tão safado e morrer assim! Que é que eu faço no mundo sem João? João! João! Não tem mais jeito, João Grilo morreu. Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo. Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre. Que posso fazer agora? Somente seu enterro e rezar por sua alma. Entra na igreja, limpando as lágrimas e aqui pode-se novamente interromper o espetáculo. Se se montar a peça com dois cenários, organiza-se então a cena para o julgamento que se segue. Mas pode-se continuá-lo com o mesmo cenário, usando-se somente pequenas modificações, já sugeridas no início e que o próprio texto a seguir esclarece. PALHAÇO, entrando Peço desculpas ao distinto público que teve de assistir a essa pequena carnificina, mas ela era necessária ao desenrolar da história. Agora a cena vai mudar um pouco. João, levante-se e ajude a mudar o cenário. Chicó! Chame os outros. CHICÓ Os defuntos também? PALHAÇO Também. 134 CHICÓ Senhor Bispo, Senhor Padre, Senhor Padeiro! Aparecem todos. PALHAÇO É preciso mudar o cenário, para a cena do julgamento de vocês. Tragam o trono de Nosso Senhor! Agora a igreja vai servir de entrada para o céu e para o purgatório. O distinto público não se espante ao ver, nas cenas seguintes, dois demônios vestidos de vaqueiro, pois isso decorre de uma crença comum no sertão do Nordeste. É claro que essas falas serão cortadas ou adaptadas pelo encenador, de acordo com a montagem que se fizer. PALHAÇO Agora os mortos. Quem estava morto? BISPO Eu. PALHAÇO Deite-se ali. PADRE Eu também. 135 PALHAÇO Deite-se junto dele. Quem mais? JOÃO GRILO Eu, o padeiro, a mulher, o sacristão, Severino e o cabra. PALHAÇO Deitem-se todos e morram. JOÃO GRILO Um momento. PALHAÇO Homem, morra, que o espetáculo precisa continuar! JOÃO GRILO Espere, quer mandar no meu morredor? PALHAÇO O que é que você quer? JOÃO GRILO Já que tenho de ficar aqui morto, quero pelo menos ficar longe do sacristão. 136 PALHAÇO Pois fique. Deite-se ali. E você, Chicó? CHICÓ Eu escapei. Estava na igreja, rezando pela alma de João Grilo. PALHAÇO Que bem precisada anda disso. Saia e vá rezar lá fora. Muito bem, com toda essa gente morta, o espetáculo continua e terão oportunidade de assistir seu julgamento. Espero que todos os presentes aproveitem os ensinamentos desta peça e reformem suas vidas, se bem que eu tenha certeza de que todos os que estão aqui são uns verdadeiros santos, praticantes da virtude, do amor a Deus e ao próximo, sem maldade, sem mesquinhez, incapazes de julgar e de falar mal dos outros, generosos, sem avareza, ótimos patrões, excelentes empregados, sóbrios, castos e pacientes. E basta, se bem que seja pouco. Música. Música de circo. O Palhaço sai dançando. Se se montar a peça em três atos ou houver mudança de cenário, começará aqui a cena do julgamento, com o pano abrindo e os mortos despertando. JOÃO GRILO, para o Cangaceiro. Mas me diga uma coisa, havia necessidade de você me matar? 137 CANGACEIRO E você me matou? JOÃO GRILO Pois é por isso mesmo que eu reclamei. Você já estava desgraçado, podia ter-me deixado em paz. SEVERINO Eu, por mim, agora que já morri, estou achando até bom. Pelo menos estou descansando daquelas correrias. Quem deve estar achando ruim é o bispo. BISPO Eu? Por quê? Estou até me dando bem! JOÃO GRILO É, estão todos muito calmos porque ainda não repararam naquele freguês que está ali, na sombra, esperando que nós acordemos. PADRE Quem é? JOÃO GRILO Você ainda pergunta? Desde que cheguei que comecei a sentir um cheiro ruim danado. Essa peste deve ser um diabo. DEMÔNIO, saindo da sombra, severo. Calem-se todos. Chegou a hora da verdade. SEVERINO Da verdade? BISPO Da verdade? PADRE Da verdade? DEMÔNIO Da verdade, sim. JOÃO GRILO Então já sei que estou desgraçado, porque comigo era na mentira. DEMÔNIO Vocês agora vão pagar tudo o que fizeram. PADRE Mas o que foi que eu... 139 DEMÓNIO Silêncio! Chegou a hora do silêncio para vocês e do comando para mim. E calem-se todos. Vem chegando agora quem pode mais do que eu e do que vocês. Deitem-se! Deitem-se! Ouçam o que estou dizendo, senão será pior! Desde que ele começou a falar, soam ritmadamente duas pancadas, fortes e secas, de tambor e uma de prato, com uma pausa mais ou menos Longa entre elas, ruído que deve se repetir até a aparição do Encourado. Este é O diabo, que, segundo uma crença do ser tão do Nordeste, é um homem muito moreno, que se veste como um vaqueiro. Esta cena deve se revestir de um caráter meio grotesco, pois a ordem que o Demônio dá, mandando que os personagens se deitem, já insinua o fato de que o maior desejo do diabo é imitar Deus, resultado de seu orgulho grotesco. E tanto é assim, que ele tenta conseguir aí pela intimidação o tributo que Jesus terá depois, espontaneamente, quando de sua entrada. O Bispo é o único a esboçar um movimento de obediência, mas, antes que ele se deite, o Encourado entra, dando pancadas de rebenque na perna e ajustando suas luvas de couro. Os mortos começam a tremer exageradamente e o Demônio acorre para junto dele, servil e pressuroso. DEMÔNIO Desculpe, fiz tudo para que eles se deitassem, mas não houve jeito. 140 ENCOURADO, ríspido Cale-se. Você nunca passará de um imbecil. Como se eu vivesse fazendo questão de ser recebido dessa ou daquela maneira! DEMÔNIO Peço-lhe desculpas, não foi isso que eu quis dizer. ENCOURADO Foi exatamente isso que você quis dizer. É terrível ter-se um sonho como o que eu tive e ver que ele vai ancorar nesse embrutecimento da inteligência e da dignidade! DEMÔNIO Isso pode acontecer comigo. Eu posso me sentir assim, mas o senhor... ENCOURADO Cale-se, já disse! Que me importa o que você faz ou sente? O que me desgosta é ver minha imagem refletida em você, uma imagem profundamente repugnante. Mas vamos aos fatos. Que vergonha! Todos tremendo! Tão corajosos antes, tão covardes agora! O Senhor Bispo, tão cheio de dignidade, o padre, o valente Severino... E você, o Grilo que enganava todo o mundo, tremendo como qualquer safado! 141 JOÃO GRILO Que é que posso fazer? Já disse mais de cem vezes a mim que não tremesse e tremo. Desde que ouvi aquelas pancadas que comecei a sentir um calafrio danado. ENCOURADO E tem razão, porque o que vai lhe acontecer é coisa muito séria. (Sorrindo.) É engraçado como vocês empregam às vezes a palavra exata, sem terem consciência perfeita do fato. O que você sentiu foi exatamente um arrepio de danado. (Severo, ao Demônio.) Leve a todos para dentro. SEVERINO Ai meu Deus, vou pagar minhas mortes no inferno! BISPO Senhor demônio tenha compaixão de um pobre Bispo. ENCOURADO Ah, compaixão... Como pilhéria é boa! Vamos, todos para dentro. Para dentro, já disse. Todos para o fogo eterno, para padecer comigo. O Demônio começa a perseguir os mortos e o alarido deles é terrível. Ele vai agarrando um por um e os mortos vão se desvencilhando, aos gritos. 142 BISPO Ai! Leve o Padre! PADRE Ai! Leve o sacristão! SACRISTÃO Ai! Leve o Severino! SEVERINO Ai! Leve o cabra! JOÃO GRILO Parem, parem! Acabem com essa molecagem! Seu grito é tão grande que todos param e o silêncio se faz. JOÃO GRILO Acabem com essa molecagem. Diabo dum barulho danado! É assim, é? É assim, é? ENCOURADO Assim como? JOÃO GRILO É assim de vez? É só dizer “pra dentro” e vai tudo? Que diabo de tribunal é esse que não tem apelação? 143 ENCOURADO É assim mesmo e não tem para onde fugir! JOÃO GRILO Sai daí, pai da mentira! Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida! BISPO Eu também. Boa, João Grilo! PADRE Boa, João Grilo! MULHER Boa, João Grilo! PADEIRO Você achou boa? MULHER Achei. PADEIRO Então eu também achei. Boa, João Grilo! SEVERINO É isso mesmo e eu vou apelar para Nosso Senhor Jesus Cristo, que é quem pode saber. ENCOURADO Besteira, maluquice! PADRE Besteira ou maluquice, eu também apelo. Senhor Jesus, certo ou errado, eu sou um padre e tenho meus direitos. Quero ser julgado, antes de ser entregue ao diabo. Aqui começam a soar pancadas de sino, no mesmo ritmo das de tambor anteriores. O Encourado começa a ficar agitado. JOÃO GRILO Ah! pancadinhas benditas! Oi, está tremendo? Que vergonha, tão corajoso antes, tão covarde agora! Que agitação é essa? ENCOURADO Quem está agitado? É somente uma questão de inimizade. Tenho o direito de me sentir mal com aquilo que me desagrada. JOÃO GRILO Eu, pelo contrário, estou me sentindo muito bem. Sinto-me como se minha alma quisesse cantar. 145 BISPO, estranhamente emocionado. Eu também. É estranho, nunca tinha experimentado um sentimento como esse. Mas é uma vontade esquisita, pois não sei bem se ela é de cantar ou de chorar. Esconde o rosto entre as mãos. As pancadas do sino continuam e toca uma música de aleluia. De repente, João ajoelha-se, como que levado por uma força irresistível e fica com os olhos fixos fora. Todos vãose ajoelhando vagarosamente. O Encourado volta rapidamente as costas, para não ver o Cristo que vem entrando. É um preto retinto, com uma bondade simples e digna nos gestos e nos modos. A cena ganha uma intensa suavidade de Iluminura. Todos estão de joelhos, com o rosto entre as mãos. ENCOURADO, de costas, grande grito, com o braço ocultando os olhos Quem é? É Manuel? MANUEL Sim, é Manuel, o Leão de Judá, o Filho de Davi. Levantem-se todos, pois vão ser julgados. JOÃO GRILO Apesar de ser um sertanejo pobre e amarelo, sinto perfeitamente que estou diante de uma grande figura. Não quero faltar com o respeito a uma pessoa tão importante, mas se não me engano aquele sujeito acaba de chamar o senhor de Manuel. 146 MANUEL Foi isso mesmo, João. Esse é um de meus nomes, mas você pode me chamar também de Jesus, de Senhor, de Deus... Ele gosta de me chamar Manuel ou Emanuel, porque pensa que assim pode se persuadir de que sou somente homem. Mas você, se quiser, pode me chamar de Jesus. JOÃO GRILO Jesus? MANUEL Sim. JOÃO GRILO Mas, espere, o senhor é que é Jesus? MANUEL Sou. JOÃO GRILO Aquele Jesus a quem chamavam Cristo? JESUS A quem chamavam, não, que era Cristo. Sou, por quê? 147 JOÃO GRILO Porque... não é lhe faltando com o respeito não, mas eu pensava que o senhor era muito menos queimado. BISPO Cale-se, atrevido. MANUEL Cale-se você. Com que autoridade está repreendendo os outros? Você foi um bispo indigno de minha Igreja, mundano, autoritário, soberbo. Seu tempo já passou. Muita oportunidade teve de exercer sua autoridade, santificando-se através dela. Sua obrigação era ser humilde porque quanto mais alta é a função, mais generosidade e virtude requer. Que direito tem você de repreender João porque falou comigo com certa intimidade? João foi um pobre em vida e provou sua sinceridade exibindo seu pensamento. Você estava mais espantado do que ele e escondeu essa admiração por prudência mundana. O tempo da mentira já passou. JOÃO GRILO Muito bem. Falou pouco mas falou bonito. A cor pode não ser das melhores, mas o senhor fala bem que faz gosto. 148 MANUEL Muito obrigado, João, mas agora é sua vez. Você é cheio de preconceitos de raça. Vim hoje assim de propósito, porque sabia que isso ia despertar comentários. Que vergonha! Eu Jesus, nasci branco e quis nascer judeu, como podia ter nascido preto. Para mim, tanto faz um branco como um preto. Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça? PADRE Eu, por mim, nunca soube o que era preconceito de raça. ENCOURADO, sempre de costas para Manuel É mentira. Só batizava os meninos pretos depois dos brancos. PADRE Mentira! Eu muitas vezes batizei os pretos na frente. ENCOURADO Muitas vezes, não, poucas vezes, e mesmo essas poucas quando os pretos eram ricos. PADRE Prova de que eu não me importava com cor, de que o que me interessava... 149 MANUEL Era a posição social e o dinheiro, não é, Padre João? Mas deixemos isso, sua vez há de chegar. Pela ordem, cabe a vez ao bispo. (Ao Encourado.) Deixe de preconceitos e fique de frente. ENCOURADO, sombrio Aqui estou bem. MANUEL Como queira. Faça seu relatório JOÃO GRILO Foi gente que eu nunca suportei: promotor, sacristão, cachorro e soldado de polícia. Esse aí é uma mistura disso tudo. MANUEL Silêncio, João, não perturbe. (Ao Encourado.) Faça a acusação do bispo. (Aqui, por sugestão de Clênio Wanderley, o Demônio traz um grande livro que o Encourado vai lendo.) ENCOURADO Simonia: negociou com o cargo, aprovando o enterro de um cachorro em latim, porque o dono lhe deu seis contos. 150 BISPO E é proibido? ENCOURADO Homem, se é proibido eu não sei. O que eu sei é que você achava que era e depois, de repente, passou a achar que não era. E o trecho que foi cantado no enterro é uma oração da missa dos defuntos. BISPO Isso é aí com meu amigo sacristão. Quem escolheu o pedaço foi ele. ENCOURADO Falso testemunho: citou levianamente o Código Canônico, primeiro para condenar o ato do padre e contentar o ricaço Antônio Morais, depois para justificar o enterro. Velhacaria: esse bispo tinha fama de grande administrador, mas não passava de um político, apodrecido de sabedoria mundana. BISPO Quem fala! Um desgraçado que se perdeu por causa disso... MANUEL Não interrompa, não é esse o momento de discutir isso. Pode continuar. 151 ENCOURADO Arrogância e falta de humildade no desempenho de suas funções: esse bispo, falando com um pequeno, tinha uma soberba só comparável à subserviência que usava para tratar com os grandes. Isto sem se falar no fato de que vivia com um santo homem, tratando-o sempre com o maior desprezo. BISPO Com um santo homem, eu? ENCOURADO Sim, o frade. BISPO Só aquele imbecil mesmo pode ser chamado de santo homem! ENCOURADO O processo de santificação dele está encaminhado por aí; Ele acaba de pedir para ser missionário entre os índios e vai ser martirizado. Eu não, para mim isso não passa de uma tolice, mas aí para Manuel você está-se desgraçando. Bispo Mas é possível que aquele frade... 152 MANUEL É perfeitamente possível e não diga mais nada. Mais alguma coisa? ENCOURADO Não, estou satisfeito. MANUEL Então, acuse o padre. PADRE De mim ele não tem nada o que dizer. ENCOURADO É o que você pensa, minha safra hoje está garantida. Tudo o que eu disse do bispo pode se aplicar ao padre. Simonia, no enterro do cachorro, velhacaria, política mundana, arrogância com os pequenos, subserviência com os grandes. PADRE Mas não citei o Código Canônico em falso. ENCOURADO Em compensação, acaba de incorrer em falta de coleguismo com o bispo. 153 PADRE E o que eu fizer aqui ainda voga? MANUEL Não, isso é confusão do demônio. ENCOURADO E ele tinha ainda outro defeito que o bispo nunca teve. PADRE Qual era? ENCOURADO A preguiça. Deixava tudo nas costas do sacristão e a paróquia ficava completamente entregue a esse patife, por sua culpa. SACRISTÃO Patife é você. JOÃO GRILO, ao sacristão Homem, que esse sujeito aí deve ser pior do que você, deve, mas você tinha uma ruindade bem apurada! MANUEL Silêncio, João, já lhe disse que não interrompesse. 154 JOÃO GRILO O senhor me desculpe, mas a língua fica balançando na boca que chega a me dar uma agonia. Eu posso ouvir um safado desses dizendo que prestava e ficar calado? MANUEL Deixe a acusação para o colega dele. SACRISTÃO Colega? MANUEL É brincadeira minha, mas, depois que João chamou minha atenção, notei que o diabo tem mesmo um jeito assim de sacristão. ENCOURADO Protesto contra essas brincadeiras. Isso aqui é um lugar sério. MANUEL Calma, rapaz, você não está no inferno. Lá, sim, é um lugar sério. Aqui pode-se brincar. Faça a acusação do sacristão. ENCOURADO Esse sujeito foi quem tramou a história do enterro. Foi ele quem saiu cantando o trecho da missa atrás do cachorro, com olho nos três contos. Em latim, na língua que você escolheu. Hipocrisia e autosuficiência chegaram e aí ficaram. E, além de tudo, roubava a igreja. 155 PADRE Ah patife MANUEL Ah patife não, Padre João, o senhor devia dizer “Ah patifes”, porque faz tempo que eu não vejo tanta coisa ruim junta. E o padeiro? ENCOURADO Ele e a mulher foram os piores patrões que Taperoá já viu. MULHER É mentira! JOÃO GRILO É não, é verdade. Três dias passei... MANUEL Em cima de uma cama, com febre, e nem um copo dágua lhe mandaram. Já sei, João, todo mundo já sabe dessa história, de tanto ouvir você contar. JOÃO GRILO Mas eu posso? Me diga mesmo se eu posso! Bife passado na manteiga para o cachorro e fome para João Grilo. É demais! 156 ENCOURADO Avareza do marido, adultério da mulher. Bem medido e bem pesado, cada um era pior do que o outro. JOÃO GRILO Está aí Chicó que o diga. MANUEL Chicó? JOÃO GRILO Ah, é verdade, Chicó ficou. Já estava tão acostumado a aperrear pobre de Chicó que me esqueci de que ele tinha ficado. É um amigo meu. MANUEL Eu o conheço, estou até de olho nele por causa das histórias que vive contando. JOÃO GRILO Aquilo é o sol. Não vá ligar isso não. O sol do sertão é quente e Chicó começa a ver demais. É o sol. MANUEL, ao Encourado. Anote aí negação do livre arbítrio contra João. 157 ENCOURADO Está anotado. MANUEL Pois desanote. Não está vendo que é brincadeira? João sabe lá o que é livre arbítrio, homem? JOÃO GRILO É isso mesmo, desanote e não tem nada de fazer cara feia que não adianta. Eu não sei o que é isso mesmo não, mas sei que você quer é me desgraçar. MANUEL Acuse Severino e o cabra dele. ENCOURADO E precisa? São dois cangaceiros conhecidos. Mataram mais de trinta. MANUEL É verdade? SEVERINO É. Matei, não vou negar. ENCOURADO Acho que basta. Inferno nele. 158 MANUEL Espere, isso também não é assim de repente não! Davi fez coisa muito pior, traindo o amigo com a mulher e mandando ainda por cima o pobre morrer na guerra e, no entanto, era meu avô e grande amigo meu, um santo de quem você não tem coragem nem de pronunciar o nome. JOÃO GRILO Tenho visto poucos sujeitos levar carão e ficar com cara lisa como esse. ENCOURADO É, você está muito engraçado agora, mas Manuel é justo e quando ele me entregar vocês, há de ver que com o diabo não se brinca. JOÃO GRILO E quem disse que ele vai nos entregar? ENCOURADO Você acha pouco? Eu não estou vendo os olhos dele, porque estou de costas, mas pressinto essas coisas. A situação está favorável para mim e preta para vocês. Começa a rir e todos começam a tremer. MULHER É verdade, senhor? 159 MANUEL É verdade, a situação está ruim para vocês, porque as acusações são graves. BISPO Ai meu Deus! Valha-me Deus! Valha-me Deus nessa hora de angústia. ENCOURADO Agora é tarde, você devia ter-se lembrado disso antes. PADRE São João, meu padroeiro, não me deixe ir para o inferno, pelo amor de Deus. ENCOURADO Está aí quem é maior do que esse não sei o quê e vai me entregar você. MULHER, ao padeiro Homem, tenha coragem pelo menos agora e dê uma palavra em nosso favor. PADEIRO Estou vendo se acho algum santo padeiro, para me pegar com ele. 160 ENCOURADO O que me diverte nisso tudo é ver esse amarelo tremendo de medo. Coragem, João Grilo, uma pessoa como você tremendo? JOÃO GRILO Não sou eu, é meu corpo, mas a cabeça está trabalhando. MANUEL Está mesmo, João? JOÃO GRILO Está, Nosso Senhor, e se a tremedeira parasse eu era capaz de me defender. MANUEL Pois pode parar. JOÃO GRILO, parando e respirando Que alívio, já estava ficando cansado, O que é isso? MANUEL É besteira do demônio. Esse sujeito é meio espírita e tem mania de fazer mágica. JOÃO GRILO Eu logo vi que isso só podia ser confusão desse catimbozeiro. 161 MANUEL E agora? Que é que você diz em sua defesa? Sei que você é astuto, mas não pode negar o fato de que foi acusado. JOÃO GRILO O senhor vai-me desculpar, mas eu não fui acusado de coisa nenhuma. MANUEL Não? ENCOURADO Foi mesmo não. Começou com uma confusão tão grande que eu me esqueci de acusá-lo. Vou começar. JOÃO GRILO Você não vai começar coisa nenhuma, por que a hora de acusar já passou. MANUEL Deixe de chicana, João, você pensa que isso aqui é o palácio da justiça? Pode acusar. ENCOURADO Agora você me paga, amarelo. O sacristão, o padre e o bispo fizeram o enterro do cachorro, mas a história foi toda tramada por ele. E vendeu um gato à mulher do padeiro dizendo que ele botava dinheiro. 162 JOÃO GRILO Mentira, Nosso Senhor. MANUEL Verdade, João Grilo. JOÃO GRILO É, é verdade, mas do jeito que eles me pagavam, o jeito era eu me virar. Além disso eu estava com pena do gato, tão abandonado, e queria que ele passasse bem. MULHER É, e nessa pena levou meus quinhentos mil-réis. ENCOURADO Depois, foi ele quem matou Severino e o cabra dele, com uma história de gaita, Padre Cícero e não sei que mais. JOÃO GRILO Legítima defesa, Nosso Senhor! ENCOURADO Mentira, Manuel! MANUEL Verdade, demônio! 163 ENCOURADO Mas não se esqueça de que a história estava preparada para a mulher do padeiro. MANUEL É verdade, aí você passou da conta, João. E tudo por causa do bife passado na manteiga! ENCOURADO De modo que o caso dele é sem jeito. É o primeiro que vou levar. Essa é boa, João Grilo, o amarelo, que enganava todo mundo, vai levar na cabeça! JOÃO GRILO Ah e você pensa que eu me entreguei? Pode ser que eu vá, mas não é assim não! BISPO Mas é caso sem jeito, João. Ai meu Deus! PADRE Ai meu Deus! SACRISTÃO Ai meu Deus! JOÃO GRILO para Manuel Olhe a besteira deles: Deus aqui e eles gritando por Deus! 164 MANUEL E por quem eles iriam gritar? JOÃO GRILO Por alguém que está mais perto de nós, por gente que é gente mesmo. MANUEL E eu não sou gente, João? Sou homem, judeu, nascido em Belém, criado em Nazaré, fui ajudante de carpinteiro... Tudo isso vale alguma coisa. JOÃO GRILO O senhor quer saber de uma coisa? Eu vou lhe ser franco: o senhor é gente, mas não muito não. É gente e ao mesmo tempo é Deus, é uma misturada muito grande. Meu negócio é com outro. BISPO Agora a gente está desgraçado de vez. João, isso é coisa que se diga? MANUEL Mas o que foi que João disse demais? Tudo isso é verdade, porque eu sou homem e sou Deus! ENCOURADO Homem, dê-se a respeito! 165 MANUEL Esse respeito de que você fala, foi coisa que eu nunca soube impor, graças a Deus. JOÃO GRILO Eu, se fosse o senhor, nunca diria “Graças a Deus!”! MANUEL Por quê? É uma coisa que todo mundo diz. JOÃO GRILO O senhor não é Deus? MANUEL Sou. JOÃO GRILO Pois eu, se fosse Deus, só diria “Graças a mim” MANUEL Para que, João? JOÃO GRILO Pra fazer inveja ao diabo. ENCOURADO A confusão já começa. Apelo para a justiça. 166 JOÃO GRILO E eu para a misericórdia. PADRE’ Acho que nosso caso é sem jeito, João. Uma vez estudei uma lição sobre isso e sei que em Deus não existe contradição entre a justiça e a misericórdia. Já fomos julgados pela justiça, a misericórdia dirá a mesma coisa. JOÃO GRILO E quem foi que disse que nós já fomos julgados pela justiça? PADRE Você mesmo ouviu Nosso Senhor dizer que a situação era difícil. JOÃO GRILO E difícil quer dizer sem jeito? Sem jeito! Sem jeito por quê? Vocês são uns pamonhas, qualquer coisinha estão arriando. Não vê que tiveram tudo na terra? Se tivessem tido que agüentar o rojão de João Grilo, passando fome e comendo macambira na seca, garanto que tinham mais coragem. Quer ver eu dar um jeito nisso, Padre João? PADRE Quero, Joca. 167 JOÃO GRILO Agora é Joca, hem? E você, Senhor Bispo? BISPO Eu também, João. JOÃO GRILO Padeiro? PADEIRO Veja o que pode fazer, João. JOÃO GRILO Severino? Mulher e cabra? MULHER Nós também. Nossa esperança é você. JOÃO GRILO Tudo precisando de João Grilo! Pois vou dar um jeito. ENCOURADO É isso que eu quero ver. MANUEL Com quem você vai se pegar, João? Com algum santo? 168 JOÃO GRILO O senhor não repare não, mas de besta eu só tenho a cara. Meu trunfo é maior do que qualquer santo. MANUEL Quem é? JOÃO GRILO A mãe da justiça. ENCOURADO, rindo Ah, a mãe da justiça! Quem é essa? MANUEL Não ria, porque ela existe. BISPO E quem é? MANUEL A misericórdia. SEVERINO Foi coisa que nunca conheci. Onde mora?E como chamá-la? JOÃO GRILO Ah isso é comigo. Vou fazer um chamado especial, em verso. Garanto que ela vem, querem ver? (Recitando). 169 Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré! A vaca mansa dá leite, A braba dá quando quer. A mansa dá sossegada, A braba levanta o pé. Já fui barco, fui navio, Mas hoje sou escaler. Já fui menino, fui homem, Só me falta ser mulher. ENCOURADO Vá vendo a falta de respeito, viu? JOÃO GRILO Falta de respeito nada, rapaz! Isso é o versinho de Canário Pardo que minha mãe cantava para eu dormir. Isso tem nada de falta de respeito! Já fui barco, fui navio, Mas hoje sou escaler. Já fui menino, fui homem, Só me falta ser mulher. Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré. Cena igual à da aparição de Nosso Senhor, e Nossa Senhora, A Compadecida, entra. ENCOURADO, com raiva surda Lá vem a compadecida! Mulher em tudo se mete! 170 JOÃO GRILO Falta de respeito foi isso agora, viu? A senhora se zangou com o verso que eu recitei? A COMPADECIDA Não, João, por que eu iria me zangar? Aquele é o versinho que Canário Pardo escreveu para mim e que eu agradeço. Não deixa de ser uma oração, uma invocação. Tem umas graças, mas isso até a torna alegre e foi coisa de que eu sempre gostei. Quem gosta de tristeza é o diabo. JOÃO GRILO É porque esse camarada aí, tudo o que se diz ele enrasca a gente, dizendo que é falta de respeito. A COMPADECIDA É máscara dele, João. Como todo fariseu, o diabo é muito apegado às formas exteriores. É um fariseu consumado. ENCOURADO Protesto. MANUEL Eu já sei que você protesta, mas não tenho o que fazer, meu velho. Discordar de minha mãe é que não vou. 171 ENCOURADO Grande coisa esse chamego que ela faz para salvar todo mundo! Termina desmoralizando tudo. SEVERINO Você só fala assim porque nunca teve mãe. JOÃO GRILO É mesmo, um sujeito ruim desse, só sendo filho de chocadeira! A COMPADECIDA E para que foi que você me chamou, João? JOÃO GRILO É que esse filho de chocadeira quer levar a gente para o inferno. Eu só podia me pegar com a senhora mesmo. ENCOURADO As acusações são graves. Seu filho mesmo disse que há tempo não via tanta coisa ruim junta. A COMPADECIDA Ouvi as acusações. ENCOURADO E então? 172 JOÃO GRILO E então? Você ainda pergunta? Maria vai-nos defender. Padre João, puxe aí uma Ave-Maria! PADRE, ajoelhando-se Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto de vosso ventre, Jesus. JOÃO GRILO Um momento, um momento. Antes de respondermos, lembrem-se de dizer, em vez de “agora e na hora de nossa morte”, “agora na hora de nossa morte”, porque do jeito que nós estamos, está tudo misturado. TODOS Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora na hora de nossa morte. Amém. A COMPADECIDA Não precisava fazer a modificação, João. Eu entenderia. JOÃO GRILO É, a senhora eu acredito que entendesse, mas aquele sujeito ali, com muito menos do que isso, faz uma confusão. 173 A COMPADECIDA Está bem, vou ver o que posso fazer. JOÃO GRILO, ao Encourado Está vendo? Isso aí é gente e gente boa, não é filha de chocadeira não! Gente como eu, pobre, filha de Joaquim e de Ana, casada com um carpinteiro, tudo gente boa. MANUEL E eu, João? Estou esquecido nesse meio? JOÃO GRILO Não é o que eu digo, Senhor? A distância entre nós e o Senhor é muito grande. Não é por nada não, mas sua mãe é gente como eu, só que gente muito boa, enquanto que eu não valho nada. (Ocorrendo-lhe a brincadeira.) Mas com toda desgraça, acho que sou menos ruim do que o sacristão. A COMPADECIDA Intercedo por esses pobres que não têm ninguém por eles, meu filho. Não os condene. MANUEL Que é que eu posso fazer? Esse aí era um bispo avarento, simoníaco, político... 174 A COMPADECIDA Mas isso é a única coisa que se pode dizer contra ele. E era trabalhador, cumpria suas obrigações nessa parte. Era de nosso lado e quem não é contra nós é por nós. MANUEL O padre e o sacristão... Gesto de desânimo. A COMPADECIDA É verdade que não eram dos melhores, mas você precisa levar em conta a língua do mundo e o modo de acusar do diabo. O bispo trabalhava e por isso era chamado de político e de mero administrador. Já com esses dois a acusação é pelo outro lado. É verdade que eles praticaram atos vergonhosos, mas é preciso levar em conta a pobre e triste condição do homem. A carne implica todas essas coisas turvas e mesquinhas. Quase tudo o que eles faziam era por medo. Eu conheço isso, porque convivi com os homens: começam com medo, coitados, e terminam por fazer o que não presta, quase sem querer. É medo. ENCOURADO Medo? Medo de quê? BISPO Ah, senhor, de muitas coisas. Medo da morte... 175 PADRE Medo do sofrimento... SACRISTÃO Medo da fome... PADEIRO Medo da solidão. Perdoei minha mulher na hora da morte, porque a amava e porque sempre tive um medo terrível da solidão. MANUEL E é a mim que vocês vêm dizer isso, a mim que morri abandonado até por meu pai! A COMPADECIDA Era preciso e eu estava a seu lado. Mas não se esqueça da noite no jardim, do medo por que você teve de passar, pobre homem, feito de carne e de sangue, como qualquer outro e, como qualquer outro também, abandonado diante da morte e do sofrimento. JOÃO GRILO Ouvi dizer que até suar sangue o senhor suou. MANUEL É verdade, João, mas você não sabe do que está falando. Só eu sei o que passei naquela noite. 176 A COMPADECIDA Seja então compassivo com quem é fraco. MANUEL Mas esses dois? Você mesma via daqui e comentava o que eles faziam com João Grilo e os outros empregados na padaria! JOÃO GRILO Se é por mim, não há dificuldade, porque eu sou tão sem-vergonha, que já me esqueci de tudinho. MANUEL Devia ter esquecido lá, João. Pode alegar alguma coisa em favor deles? A COMPADECIDA O perdão que o marido deu à mulher na hora da morte, abraçando-se com ela para morrerem juntos. MANUEL Isso pode se dizer em favor dele. Mas ela? ENCOURADO Enganava o marido com todo mundo. 177 MULHER Porque era maltratada por ele. Logo no começo de nosso casamento, começou a me enganar. A senhora não sabe o que eu passei, porque nunca foi moça pobre casada com homem rico, como eu. Amor com amor se paga. A COMPADECIDA Eu entendo tudo isso mais do que você pensa. Sei o que as mulheres passam no mundo, se bem que não tenha do que me queixar, porque meu marido era o que se pode chamar um santo. JOÃO GRILO Grande novidade! A COMPADECIDA O que, João? JOÃO GRILO Falei não. ENCOURADO Falou, sim. Ele disse: “Grande novidade.” A COMPADECIDA Na verdade, João tem toda razão. Falei assim por falar, mas que São José era um santo, não é nenhuma novidade. 178 ENCOURADO A senhora está falando muito e vê-se perfeitamente sua proteção com esses nojentos, mas nada pôde dizer ainda em favor da mulher do padeiro. A COMPADECIDA Já aleguei sua condição de mulher, escravizada pelo marido e sem grande possibilidade de se libertar. Que posso alegar ainda em seu favor? PADEIRO A prece que fiz por ela antes de morrer. O mais ofendido pelos atos que ela praticava era eu e, no entanto, rezei por ela. Isso deve ter algum valor. A COMPADECIDA E tem. Alego isso em favor dos dois. MANUEL Está recebida a alegação. A COMPADECIDA Quanto a Severino e ao cabra dele... MANUEL Quanto a esses, deixe comigo. Estão ambos salvos. 179 ENCOURADO É um absurdo contra o qual... MANUEL Contra o qual já sei que você protesta, mas não recebo seu protesto. Você não entende nada dos planos de Deus. Severino e o cangaceiro dele foram meros instrumentos de sua cólera. Enlouqueceram ambos, depois que a polícia matou a família deles e não eram responsáveis por seus atos. Podem ir para ali. Severino e o Cangaceiro abraçam os companheiros e saem para o céu. BISPO E nós? SACRISTÃO Decida-se logo, por favor, porque essa ansiedade é pior do que qualquer outra coisa. MANUEL Não diga isso, você não sabe o que se passa lá. Qualquer ansiedade é melhor do que aquilo. ENCOURADO É, mas não posso ficar eternamente à espera. Qual é a sentença? 180 A COMPADECIDA Um momento, meu filho. Antes de dizer qualquer coisa, não se esqueça de que o frade absolveu a todos condicionalmente e rezou por eles. MANUEL Pois não. Vou então proferir a sentença. JOÃO GRILO Um momento, senhor. Posso dar uma palavra? MANUEL Você o que é que acha, minha mãe? A COMPADECIDA Deixe João falar. MANUEL Fale, João. JOÃO GRILO Os cinco últimos lugares do purgatório estão desocupados? MANUEL Estão. JOÃO GRILO Pegue esses cinco camaradas e bote lá. 181 A COMPADECIDA É uma boa solução, meu filho. Dá para eles pagarem o muito que fizeram e assegura a sua salvação. JOÃO GRILO E tem a vantagem de descontentar aquele camarada ali que é pior do que carne de cobra. Não está vendo ele ali, de costas? MANUEL Estou. JOÃO GRILO Isso é de ruim. MANUEL Minha mãe o que é que acha? A COMPADECIDA Eu ficaria muito satisfeita. MANUEL Então está concedido. ENCOURADO Não tem jeito não. Homem que mulher governa... MANUEL Podem ir, vocês cinco. Os cinco se despedem comovidamente de João Grilo. 182 JOÃO GRILO Muito bem. Desmanchem essa cara de enterro e boa viagem para todos. Saem todos. MANUEL E agora, nós, João Grilo. Por que sugeriu o negócio para os outros e ficou de fora? JOÃO GRILO Porque, modéstia à parte, acho que meu caso é de salvação direta. ENCOURADO Era o que faltava! E a história que estava preparada para a mulher do padeiro? MANUEL É, João, aquilo foi grave. JOÃO GRILO E o senhor vai dar uma satisfação a esse sujeito, me desgraçando para o resto da vida? Valha-me Nossa Senhora, mãe de Deus de Nazaré, já fui menino, fui homem... A COMPADECIDA, sorrindo Só lhe falta ser mulher, João, já sei. Vou ver o que posso fazer. (A Manuel.) Lembre-se de que João estava se preparando para morrer quando o padre o interrompeu. 183 ENCOURADO É, e apesar de todo o aperreio, ele ainda chamou o padre de cachorro bento. A COMPADECIDA João foi um pobre como nós, meu filho. Teve de suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre como a nossa. Não o condene, deixe João ir para o purgatório. JOÃO GRILO Para o purgatório? Não, não faça isso assim não. (Chamando a Compadecida à parte.) Não repare eu dizer isso mas é que o diabo é muito negociante e com esse povo a gente pede o mais para impressionar. A senhora pede o céu, porque aí o acordo fica mais fácil a respeito do purgatório. A COMPADECIDA Isso dá certo lá no sertão, João! Aqui se passa tudo de outro jeito! Que é isso? Não confia mais na sua advogada? JOÃO GRILO Confio, Nossa Senhora, mas esse camarada enrolando nós dois. A COMPADECIDA Deixe comigo. (A Manuel.) Peço-lhe então, muito simplesmente, que não condene João. 184 MANUEL O caso é duro. Compreendo as circunstâncias em que João viveu, mas isso também tem um limite. Afinal de contas, o mandamento existe e foi transgredido. Acho que não posso salvá-lo. A COMPADECIDA Dê-lhe então outra oportunidade. MANUEL Como? A COMPADECIDA Deixe João voltar. MANUEL Você se dá por satisfeito? JOÃO GRILO Demais. Para mim é até melhor, porque daqui para lá eu tomo cuidado para a hora de morrer e não passo nem pelo purgatório, para não dar gosto ao cão. A COMPADECIDA Então fica satisfeito? JOÃO GRILO Eu fico. Quem deve estar danado é o filho de chocadeira. 185 O Encourado, furioso, volta-se para João, mas nesse momento, ou dá um grande grito e corre para o inferno, ou deita-se no chão e rasteja até onde está a Virgem para que ela lhe ponha o pé sobre a nuca (cf. Gênesis, 3, 15), saindo após. JOÃO GRILO Que foi que ele teve, meu Deus? A COMPADECIDA Na raiva, virou-se para você e me viu. JOÃO GRILO Quer dizer que estou despachado, não é? MANUEL Não. Vou deixar que você volte, porque minha mãe me pediu, mas só deixo com uma condição. JOÃO GRILO Qual é MANUEL Você me fazer uma pergunta a que eu não possa responder. Pode ser? JOÃO GRILO Está difícil. MANUEL É possível, você que é tão esperto? 186 JOÃO GRILO Mais esperto do que eu é o senhor que me criou. Mas vou tentar sempre. A COMPADECIDA Isto, João. Tenha coragem, não desanime, que eu estou aqui, torcendo por você. JOÃO GRILO Então estou garantido. Eu me lembro de que uma vez, quando Padre João estava me ensinando catecismo, leu um pedaço do Evangelho. Lá se dizia que ninguém sabe o dia e a hora em que o dia do Juízo será, nem homem, nem os anjos que estão no céu, nem o Filho. Somente o Pai é que sabe. Está escrito lá assim mesmo? MANUEL Está. É no Evangelho de São Marcos, capítulo treze, versículo trinta e dois. JOÃO GRILO Isso é que é conhecer a Bíblia! O Senhor é protestante? MANUEL Sou não, João, sou católico. JOÃO GRILO Pois na minha terra, quando a gente vê uma pessoa boa e que entende de Bíblia, vai ver é protestante. Bom, se o senhor não faz objeção, minha pergunta é esta. Em que dia vai acontecer sua segunda ida ao mundo? 187 MANUEL João, isso é um grande mistério. É claro que eu sei, mas ninguém entenderia nada, se eu explicasse. Nem posso explicar nada agora, porque você vai voltar e isso faz parte de minha vida íntima com meu Pai. JOÃO GRILO Então deixe eu ir-me embora. Acredito que o senhor saiba, isso faz parte de sua vida íntima com o senhor seu Pai, mas o que o senhor disse foi que eu podia voltar se lhe fizesse uma pergunta a que o Senhor não pudesse responder. A COMPADECIDA É verdade, meu filho. MANUEL Eu sei, mas para que você não fique cheio de si, vou lhe confessar que já sabia que você ia-se sair bem. Minha mãe já tinha combinado tudo comigo, mas você estava precisado de levar uns apertos. Estava ficando muito saído. JOÃO GRILO Quer dizer que posso voltar? 188 MANUEL Pode, João, vá com Deus. JOÃO GRILO Com Deus e com Nossa Senhora, que foi quem me valeu. (Ajoelhando-se diante de Nossa Senhora e beijando-lhe a mão.) Até à vista, grande advogada. Não me deixe de mão não, estou decidido a tomar jeito, mas a senhora sabe que a carne é fraca. A COMPADECIDA Até à vista, João. JOÃO GRILO, beijando a mão de Cristo Muito obrigado senhor. Até à vista. MANUEL Até à vista, João. João bota o chapéu de palha velho e esburacado na cabeça e vai saindo. MANUEL João! JOÃO GRILO Senhor? MANUEL Veja como se porta. JOÃO GRILO Sim senhor Sai de chapéu na mão, sério curvando-se. MANUEL Se a senhora continuar a interceder desse jeito por todos, o inferno vai terminar como disse Murilo: feito repartição pública, que existe mas não funciona. PALHAÇO, entrando Aqui, sinto interromper a conversa de dois atores tão importantes, mas é preciso arrumar novamente a cena para o enterro de João. Estamos novamente na terra. Levem seus tronos, por favor, enquanto se ajeita o resto do cenário e o espetáculo continua. (Depois da saída dos dois atores.) Chicó arranjou uma rede e colocou nela o corpo do amigo. Vamos enterrá-lo, ele e eu. Vai começar o ato final da peça. Essa é uma das falas que podem ser suprimidas ou adaptadas de acordo com a encenação adotada. O Palhaço sai e volta logo, segurando um dos punhos da rede, em que João vai se enterrar. Segurando o outro punho, entra Chicó. CHICÓ Ai, ai, nunca pensei que João fosse tão pesado! PALHAÇO Vamos descansar um pouco, que o cemitério é longe. 190 Deitam o corpo, dentro da rede, no chão e sentam-se um pouco, enxugando o suor. CHICÓ Quando eu penso que pobre de João não tem nem direito a um enterro em latim! Coitado, está mais abandonado do que o cachorro do padeiro. Pobre de João! JOÃO GRILO, erguendo a cabeça para fora da rede É, pobre de João agora, mas nesse instante vinha reclamando meu peso. CHICÓ Você ouviu alguma coisa? PALHAÇO Eu não. CHICÓ Pois eu ouvi direitinho a fala de João. PALHAÇO Ai, ai, ai, você já começa com suas histórias! JOÃO GRILO, com voz de alma Um Padre-Nosso e uma Ave-Maria para essa alma que aqui pena! 191 CHICÓ Ai! PALHAÇO Ai! Chicó, me acuda que é a alma de João! CHICÓ Valha-me Nossa Senhora! João, pelo amor de Deus, se lembre de que fui seu amigo! JOÃO GRILO, saltando fora da rede Estou aqui, Chicó! CHICÓ Ai! PALHAÇO Ai! Corre Chicó! CHICÓ E eu posso? Acho que minhas pernas caíram! PALHAÇO Então vá-se danar, porque eu vou! Sai correndo. Chicó ajoelha-se. JOÃO GRILO, cruzando os braços Tenha vergonha, Chicó! Um homem desse tamanho com medo de alma! Nem coragem para correr teve! 192 Ai meu Deus, é João! João, dizei-me o que quereis e se estais no céu, no inferno ou no purgatório! JOÃO GRILO Olhe a besteira dele! Fica logo com fala de alma: “João, dizei-me se estais não sei o quê!” Tenha vergonha, Chicó, estou vivo! CHICÓ É alma e da ruim, daquela que diz que está viva. Ai, minha Nossa Senhora! JOÃO GRILO, dando-lhe uma tapa Levante, Chicó. Não está vendo que sou eu? Estou vivo, rapaz! CHICÓ É possível? JOÃO GRILO Tanto é possível que estou aqui. CHICÓ Eu só acredito vendo. JOÃO GRILO, aproximando-se Pois então veja. 193 CHICÓ Ai! JOÃO GRILO Que é isso, homem? Você não disse que acreditava vendo? CHICÓ Disse, mas não lhe pedi que mostrasse não. JOÃO GRILO E como é que vai ser agora, Chicó? CHICÓ Assim mesmo, eu sem acreditar e você sem mostrar. JOÃO GRILO E nossa sociedade, nossa velha amizade, vão se acabar? CHICÓ Já estão acabadas. É contra meus princípios fazer sociedade com defunto. JOÃO GRILO Mas eu estou vivo, rapaz. Veja, pegue aqui no meu braço. CHICÓ Ai! 194 JOÃO GRILO Tenha coragem, homem, pegue! Com a maior cautela Chicó toca-lhe o braço e enfim se convence. CHICÓ Meu Deus, é mesmo! João! (Abraça-o.) Como foi isso, João? JOÃO GRILO Sei não, Chicó, acho que a bala pegou de raspão. Fiquei com a vista escura e quando acordei estava na rede e vocês iam me enterrar. Mas tenho uma notícia horrível para você. CHICÓ João, você tendo escapado, é o que basta. O que é que há? JOÃO GRILO Perdi o dinheiro. CHICÓ Que dinheiro, rapaz? JOÃO GRILO O testamento do cachorro. Quando acordei, meti a mão no bolso e não achei nada. 195 CHICÓ Pode ficar descansado, João, o dinheiro da sociedade está aqui. Eu tirei de seu bolso, antes de você se enterrar. JOÃO GRILO Ah, cabra safado, com pena de mim, mas não se esqueceu do dinheiro, hem! CHICÓ Homem, quer saber de uma coisa? Foi. Você já estava morto, esse dinheiro não ia mais lhe servir, achei que era mais seguro eu ficar com ele. JOÃO GRILO Fez bem, eu teria feito o mesmo. Quer dizer que estamos ricos? CHICÓ Estamos. Além do dinheiro do enterro, o que Severino tirou da padaria. Estamos ricos, João. Que acha de ficarmos com a padaria? JOÃO GRILO Grande idéia. (Como quem vê a tabuleta.) Padaria Miramar, João Grilo, Chicó & Cia. Que acha? CHICÓ Lindo. Mas João... Ai meu Deus, ai minha Nossa Senhora! Meu Deus, meu Deus! Meu Deus, meu Deus! Burro, burro! 196 JOÃO GRILO Que é isso? Burro o quê? Burro é você! CHICÓ Sou eu mesmo, João, sou o maior burro que já apareceu por aqui. Ai meu Deus, ai minha Nossa Senhora! JOÃO GRILO O que é que há, rapaz? CHICÓ Coitado de mim, coitado de pobre de João! Era rico nesse instante e agora é pobre de novo! JOÃO GRILO Não me diga que perdeu o dinheiro! CHICÓ Perdi nada, está aqui! Ai meu Deus, ai minha Nossa Senhora! JOÃO GRILO E por que essa gritaria, homem de Deus? CHICÓ Eu pensei que você tinha morrido, João! 197 JOÃO GRILO E o que é que tem isso, homem? CHICÓ Tem que eu, pensando que não tinha mais jeito, fiz uma promessa a Nossa Senhora para dar todo o dinheiro a ela, se você escapasse! JOÃO GRILO Ai meu Deus, ai minha Nossa Senhora! CHICÓ Ai meu Deus, ai minha Nossa Senhora! JOÃO GRILO Mas Chicó, como é que se faz uma promessa dessas? CHICÓ E eu sabia lá que você ia escapar, desgraça? Oh homem duro de morrer, meu Deus! JOÃO GRILO Ah promessa desgraçada, ah promessa sem jeito, Chicó! CHICÓ Agora é tarde para me dizer isso. 198 JOÃO GRILO Não terá sido a metade que você prometeu? CHICÓ Não, João, foi tudo. JOÃO GRILO Ah promessa desgraçada, ah promessa sem jeito, Chicó! CHICÓ É, só reclama de mim! E você, por que achou de escapar? JOÃO GRILO Acho que foi de tanta vontade que eu estava de enriquecer. Não terá sido engano seu Chicó? CHICÓ Não, João, tenho certeza absoluta: entrei na igreja, me ajoelhei e prometi. JOÃO GRILO Tudo? CHICÓ Tudo. JOÃO GRILO Ah promessa desgraçada, ah promessa sem jeito, Chicó. 199 CHICÓ Mas já foi feita e o jeito é pagar. JOÃO GRILO Pagar? CHICÓ Sim. JOÃO GRILO Tudo? CHICÓ Tudo. JOÃO GRILO Ah promessa desgraçada, ah promessa sem jeito, Chicó! CHICÓ Está certo, homem, estou tão desgostoso quanto você! Diabo de uma reclamação em cima da gente de minuto em minuto! É melhor deixar de conversa: vamos pagar o que se deve! JOÃO GRILO Vamos, não; vá você! Eu não prometi nada e metade do dinheiro é meu! CHICÓ É, mas acontece que quando eu prometi ele era todo meu, porque eu me considerava seu herdeiro. 200 JOÃO GRILO Eu não tenho nada com isso, não prometi nada. CHICÓ Então fique com sua parte e assuma a responsabilidade. Eu vou entregar a minha. JOÃO GRILO Chicó! CHICÓ Que é? JOÃO GRILO Espere por mim que eu também vou. CHICÓ Vai? JOÃO GRILO Vou. CHICÓ Pois eu já estava convencido de que você estava certo. JOÃO GRILO É, mas faltou quem me convencesse. Se fosse a outro santo, ainda ia ver se dava um jeito, mas você achou de prometer logo a Nossa Senhora! Quem sabe se eu não escapei por causa disso? O dinheiro fica como se fossem os honorários da advogada. Nunca pensei que essa também aceitasse pagamento! 201 CHICÓ João, veja como fala! JOÃO GRILO Que é isso, Chicó, está se mascarando? Com Deus, não, mas com Nossa Senhora eu tenho coragem de tirar brincadeira! CHICÓ Quer dizer que entrega? JOÃO GRILO Entrego. Palavra é palavra e depois estive pensando: quem sabe se a gente, depois de ficar rico, não ia terminar como o padeiro? Assim é melhor cumprir a promessa: com desgraça a gente já está acostumado e assim pelo menos não se fica com aquela cara. CHICÓ É mesmo. JOÃO GRILO Pois vamos. Mas de outra vez, veja o que promete, infeliz, porque essa, ah. Promessa desgraçada, ah promessa sem jeito! Saem. Entra o Palhaço. PALHAÇO A história da Compadecida termina aqui. Para encerrá-la, nada melhor do que o verso com que acaba um dos romances populares em que ela se baseou: “Meu verso acabou-se agora, Minha história verdadeira. Toda vez que eu canto ele, Vêm dez mil-réis pra a algibeira. Hoje estou dando por cinco, Talvez não ache quem queira.” E se não há quem queira pagar, peço pelo menos uma recompensa que não custa nada e é sempre eficiente: seu aplauso. Pano. Recife, 24 de setembro de 1955.