seu alcance Hélia Correia 126627 Aqueles crimes com que todos sonham sao os que raramente se cometem. Tao-pouco ocorrem belos suicidios com frequencia que conte na estatistica. Sobretudo no sul. Nao ha ribeiras com corrente bastante onde a mulher va deslizando a sombra dos salgueiros com as palmas das maos por sobre a agua e as flores espalhadas no vestido. Sendo muito amarelas as paisagens, tern mais de veneno que de faca. Os venenos nao fazem bons cadaveres. Alguns acabam a escarvar a terra, como se hou-vesse uma linguagem na toxina e ela os mandasse abrir a propria cova. Ha os que se arremessam para o largo, procurando agua onde ela nao exdste, ardendo tanto pelo interior que o inferno se confirma ainda antes de eles terem morrido em absoluto. Sao vistosos, porem dissuasores, estes que continuam a espumar, sujando os panos com que os recobriram. Mas acontece que no sul ninguem se mata com veneno. A gente enforca-se. O homem deste conto esta no sul. Na infancia maltratou os animais como e habitual entre os rapazes. Nas terras sufocadas pelo estio, os animais nao tinham rapidez. O impacto das pedras no seu corpo nao pro-vocava uma resposta energica. Eles proprios recebiam a matanca com urn lampejo humilde no olhar e toda a sua vida sem sentido achava ali uma resolucao. A agonia ressoava sob as pedras, sob o chao seco, e levan-tava turbulencia. Era um gemido que o ouvido humano nao podia cap-tar. Subia a uma altura razoavel e atingia a crianca nos joelhos. Isto pro-porcionava-lhe um prazer talvez remotamente sexual mas que nao mriAi* na Karriaa Assemelhava-se a um formigueiro que o impedia de mover as pernas e o forcava a ficar até ao fim. Enquanto foi crescendo I algumas noites os seus dedos colados pelo esperma pareciam, na verí dade, estrangular. Mas também isso é coisa natural. Näo explica o nasci-mento de um projecto. O hörnern deste conto casou cedo para dar bom termo a uma gravi- | dez. Isso näo impediu que o casal fosse feliz e pouco fertil. A mulher näo tinha a vocacäo do sacrificio. Aprendeu tudo com o primeiro parto. Nunca mais se deixou surpreender. O seu corpo macico, de trabalho, comecou a ganhar vontade propria e o principal motor dessa vontade -|§fi era a fuga äs angüstias maternais. Aquele ünico filho produzia cheiros e sons que se prendiam äs paredes e sem descanso se multiplicavam. For-mavam uma teia onde a mulher se achava emaranhada para sempre. O hörnern näo sabia, ou procedia como se o näo soubesse, que um pai e mais que uns passos pela casa. Via no filho a massa de um incömodo, um rosto sempre em perigo de explodir. E so se comoveu quando ele andou. Levava-o para os campos, levantava-o quando as pequenas cobras flame-jantes deslizavam na sua direccäo. A crianca mostrava tal destreza no manejar das coisas masculinas que a garganta do hörnern se embargava sempre que lhe emprestava o canivete. O pequeno gostava de esculpir, armava fisgas desde muito cedo. O hörnern convenceu-se de que o crime se contentava com pequenos feitos, que era um impulso que se confun-dia com a chama de um pai amando um filho e vendo-o ficar pronto para cacar. Estava, porem, a enganar-se. Algo deixava os seus sinais no quarto, uma existencia desprovida de corpo ou duracao, algo dotado do talento da espera. E, assim que a crianca cresceu mais que os pesadelos e deixou as noites vagas, o homem acordava em sobressalto, ouvindo aquilo que nao era um som mas lhe comunicava uma tristeza. Olhava pela janela para o escuro, sem entender. Queria culpar o filho que durante os seus primeiros anos lhe gritara, interrompendo os sonos. Funcionara como um puro mecanismo de maldade. Mas aquela maldade prosseguia, desli-gada do h6spede infantil. Tentava descobrir, pelos amigos, se o que lhe sucedia era comum. £ aparentemente, eles percebiam o que nem se atrevia a perguntar. Em todos existia um pensamento por formulár, uma deformidade na cadeia de afectos que os forcava a levar muita vez o copo ä boca, como se a linfa náo fluisse bem. Porque aquele pensamento se formava no mesmo sitio em que nascia a sede, a sede de álcool e de perdicäo. Falamos do instinto feminino mas também um instinto existe aqui. Algo que se escapava para a noite, uma tensäo de músculos. Sonhavam com grandes correrias, com paisagens onde as cores se encontravam incompletas. Chegavam-se : äs mulheres e cobriam-nas mas nos seus sonhos näo havia paradeiro. % - Fazem falta as amantes ä antiga. Nas putas de hoje näo se pode confiar - diziam. E puxavam a saliva para a fŕente da boca. Mas cuspir näo era permitido nos cafés. No vazio que Deus tinha deixado assentava a censura dos parceiros. E éram postos na rua, como os pais no seu tempo de pobres. Juntavam-se na sombra para fumar. Espalhavam uma espécie de tristeza, um fundamento para a lentidäo. Também o homem deste conto demorava. Temia comecar uma cor-% rida como uma bala terne o seu disparo. Ele estava no princípio de um trajecto e agarrava-se a tudo o que podia para que o movimento o näo tomasse. No Outono, fugia das cacadas, atormentado pelo ladrar dos cäes. O filho que crescia ia-o chamando.para os jogos de guerra no ecrä •fp mas ele ŕalhava muito e, olhando as mäos, julgava perceber sinais de morte, de uma velhice que o sacrificava muito antes da idade regular. Um dia aquilo encheu-o de pavor. Inventou um pretexto para passar todo um fim-de-semana na cidade. Sentiu-se realmente estremecer sob a brutal cintilacäo do vicio. Mas só tinha dinheiro para carne negra e essas mulheres brilhavam contra o escuro como manchas de sangue, com a boca, com os olhos colori-dos de amarelo. Voltou para casa como os homens voltam depois de semelhantes desvarios. Lembrava mais o perigo em que estivera, ao passar pelos grupos de ladrôes, do que aqueles coitos em que havia casti-dade porque nenhuma alma se encontrava. Depois dessa viagem, sossegou. Compreendeu que näo havia culpa. Entrava na mulher e imaginava tudo aquilo que queria imaginar. A crueldade näo achava obstáculos e näo deixava rasto de manhä. Dos crimes dimanava uma docura que encantava a família. Ele tinha apenas que suster as palavras que embatiam contra os seus denies, prontas para sair, palavras duras, de violentacao, porque a mulher nao se prestava ] isso. Mostrara uma alegria sexual muito inconveniente, no inicio. Com J passar dos anos, exigia muito recato para que o filho os nao ouvisse. Ia na meia-idade quando aquela mulher chamada Morte lhe apare-ceu. Näo foi sempre mulher aos nossos olhos. Há pouco mais de dois mil anos os seus tracos mostravam qualidades masculinas. Mas, ao longo dos séculos, ficara mais fina, mais subtil. Atraicoava. A certa altura tomou forma de donzela, com o rosto coberto por um véu, e transtornou as leis da natureza. Provocava desejo, punha corpo onde o corpo deixara de existir. A mulher que assomou pela manhä nas traseiras da casa, flu-tuando por söbre os desperdicios que o calor ia homogeneizando deva-gar, näo despertou um grande sentimento. O hörnern deste conto come-cara a levantar-se muito cedo e isso fazia com que encontrasse as coisas sem contexto, destacadas na luz crepuscular. Essa mulher chamada Morte usava um vestido direito até aos pés e ele viu-o ainda antes de lhe ver a cara. Mas ela entrou em movimento, debatendo-se contra o ar que ascendia e a afastava. Batia os bracos magros e a saia deitava chispas sob aquele embate entre o peso da Morte e os elementos. Finalmente assentou e o vulto dela comecou a espessar urn pouco mais. Talvez por atencäo com os humanos, para näo frustrar as suas expectativas, trajava de cor negra. Mas a pele, que näo deixava de mostrar alguma idade, resplandecia no seu nórdico fulgor. O cabelo enrolava numa tranca e o seu cendrado absorvia muita luz, criando urn vacuo escuro em seu redor. Uma agudeza de metal, provinda dos seus pequenos olhos, disparou e o hörnern deste conto estremeceu. - Näo tens de recear-me - disse a Morte. - Faco-te uma visita cordial. O hörnern näo sentia seguranca. Verdade seja dita, recuou. Dispunha de vontade e isso espantou-o. Supós que os membros paralisariam. No seu segundo impulso, aproximou-se. Se havia alguma coisa que estranhar, era o grande siléncio da paisagem. Os sons näo se espalhavam como queriam. Estavam capturados nos arbustos, semelhantes a moscas. A frescura propria das madrugadas condensava-se junto do chäo. O hörnern comecou a caminhar na companhia dessa Morte, estráda fora. Ela fazia um esforco por manter-se ao lado dele. Mas a sua leveza projectava-a constantemente para cima e uma espécie de intranquilo bailado se formava e convidava o homem a correr. Deixara em absolute de ter medo. Isso näo significava confiar mas prescindir do coracäo humano. «Onde me está levando?», per-guntou. Ela sorriu mas näo sabia sorrir bem. Os lábios, muito estreitos, descaíam. O homem dava como certo que, entretanto, os parentes chora-vam ao seu lado e o tornavam a deitar na cama. Ele já näo passaria de uma alma que fugia para longe do cadaver. Sempre ouvira dizer que se tratava de uma ruga benigna. A Morte segurou-o pelos ombros, fé-lo parar. Tocava com maior suavidade do que se imagina. Mas estava apenas a orientá-lo, a conduzi--lo para um desvio. Era um caminho já tornado pelas sombras, as raqui-ticas sombras dos silvados. O homem nem olhara para o sol. Tinha uma grande luz ä sua frente. Entäo, a Morte conversou com ele. Estava can-sada de prender-se ä terra e falava depressa. A sua voz tinha um torn muito fraco, um torn de arrulho. - Amas-me há muito tempo e eu bem o sei. Pensaste sempre em mim. Agora vou compensar-te por isso. Embora nada se cumpra ä dimensäo que há no desejo. Apontou para o fundo da vereda: - Tens ali um bom crime. Sem beleza. Mas foi o que arranjei para te ajudar. - Que crime é esse? - perguntou o homem. - É a morte de um velho. Para o roubar. O homem disse: - Isso näo tern a ver comigo. A Morte riu: - Näo custa experimentar. Ao que sei, todas elas däo prazer. - Todas as que? As mortes? - Infligidas. Ele curvou-se e entäo sentiu o sol, a unha dura a trespassar-lhe a nuca. Aquela história näo lhe pertencia. - Ouve - disse-lhe a Morte -, o velho vai suicidar-se. Vim aqui por isso. Com a irritacäo, baixava a voz ainda urn pouco mais e rouquejava. 3 E, finalmente, o hörnern estremeceu. Tinha os favores da Morte e näo I podia, sob nenhum pretexto, recusar. Avistava-se a casa numa curva, uma casa em que as ultimas demáos de cal já náo surtiram bom efeito. As paredes mostravam o enchimento, as arestas quebravam-se. Aqueles jogos de dissimulacáo que quase sempře precedem a ruina já se haviam retirado dali. As janelas, turvadas pelas teias, mostravam-se indiferentes ao exterior. Ninguém espreitava I através delas, nem sequer o habitante que ficara para trás, porque a sua J visáo adoecera. A alguma distáncia, os caminhantes embargaram o passo, comovi- | dos. Uma félicidade muito antiga pairava ainda na esteva, como um cheiro. Uma jovem mulher deitara nela os seus lencóis, as fraldas das criancas, para que secassem. E, ao entardecer, dobrava-os lentamente junto á face. Farrapos de episódios esquecidos mantinham-se suspensos na folhagem e o seu mistério tinha algumas consequéncias. Quern por eles passasse pensaria que a febre o atacava de repente. Assim, o homem deste conto e a Morte quase se arrependeram de ali estar. Os cáes náo acorreram táo depressa quanto era seu costume. Nor-malmente desempenhavam o papel com precisáo. Toda a ferocidade que lhes restava se adaptava áquele service Desciam, enfrentando o visitante com as suas goelas inflamadas, e o dono, ouvindo-os, comecava a erguer--se. As vezes, disparava a cacadeira pela porta entreaberta. Os cáes gosta-vam daquele silvo no ar, alias gostavam ainda antes do silvo que sabiam ir intensificar no inimigo todo o metabolismo do pavor. Nesse dia, porém, náo houve a festa de autodefesa que juntava cáes e velho. Os animais sairam muito tarde e o seu alarme mal se fez ouvir. Algo falhava no dispositivo de informacáo com que contavam sempře. Os seus olhos de cáes, as suas ventas, náo decifravam os contornos daquele vulto que em si continha uma figura humana e uma voragem que os intimidava. Eles náo tomavam, como o homem deste conto, a Morte pela mulher que ela náo era. Viam melhor, viam um espaco eléc-trico que fulminava aquilo que nele entrasse. Voltaram para trás, uivando. Iam de lado, na sua confusäo. Ainda assim, o velho suspeitou de urna presenca näo familiar. Saiu. De qual-quer modo, sairia. Näo era urna saida com horário e nem sequer com dia. Era a saida que o tribunal determinara, o tribunal particular que havia dentro dele, com o juiz, o condenado e o carrasco. Tinham os trés conhecimento da sentenca e nenhum se apressava, o condenado pelas razöes da sua condicäo, o juiz e o carrasco porque queriam saborear essa melancolia, essa nuvem que impende sobre o rosto de quern, podendo tanto, facilmente cairia nos logros da piedade. Os trés homens no velho revezavam-se na apreciaeäo do utensilio que destinavam ä execueäo. Um deles, näo sei qual, pedira ao filho que comprasse uma corda resistente. O filho raramente o visitava. Odiava, näo o pai, mas a viuvez. Dispu-nha de bastante inteligencia para saber como tudo acabaria. Ele proprio via a grande solidäo desenhada no ar, ä sua espera. O velho, encomen-dando aquela corda, programava puni-lo para sempre. Desconhecia que dotara o filho de todo o sofrimento necessário ao fazé-lo nascer naquele lugar. A alma transmitia uma tristeza, o corpo transmitia uma faléncia nos glóbulos vermelhos. Näo se herdava muito mais do que isso. Ao verem uma luz que se movia sob a folga da porta, os cäes gani-ram. Do interior, o velho tentaria certamente encontrar um raciocínio que lhe explicasse a anormalidade. Quem quer que fosse, transformava a máquina agressiva dos bichos em temor. A perplexidade convocava uma energia que näo estava nos seus hábitos. Ele, para se salvar, näo tinha mais que os gestos muitas vezes ensaiados e que, naquele momento, lhe fugiam. Estava a untar a corda com azeite para a amaciar. Cuidava dela como em tempos cuidara das ovelhas, afectuosamente e sem esquecer que a morte era o propósito final. O velho veio ä porta e pôs a mäo em pala junto ä testa. Era a mäo esquerda. De qualquer modo ele näo podia ver senäo quem já estivesse muito perto. Lembrava-se do gesto, nada mais. Os sóis de muitos anos incidiam e projectavam na parede a sombra de um homem que estudava o horizonte. A sombra deslizava até ä esquina, conforme o andamento das estaeöes. Depois, a pouco e pouco, apequenara. Parecia ressequida por um sal. Caía nos relevos da ruina com a sua miséria, esfarelando. 5547 Mas, nesse dia, o braco descaido opunha aos raios um volume novo. Era o braco direito. A sua mäo tremia urn pouco ao segurar a corda. A sorn-bra estava ao lado da janela e a mäo parecia levantar um pässaro reti-rado, ainda vivo, da armadilha. Quando a Morte e o hörnern deste conto se aproximaram o sufi-ciente para que o velho os visse, ja os cäes tinham emudecido. Arrefe-ciam, no seu terror, sob a intensa temperatura, arrefeciam como pedras sob arbustos. Se alguma vez os sujeitara um pacto de lealdade ao dono, fora extinto. O velho e a sua corda estavam sos. A Morte disse: - Pega nesse velho e aperta-lhe o pescoco. Poderas fazer ideia do que seja assassinar. Se achares, depois, que vale a pena, continuas. - Näo e isso que eu sonho - disse o hörnern. - E ja nem sonho. Deixe-me ir embora. - Veras como os seus ossos däo estalidos debaixo dos teus dedos. Experimenta. - £ o corpo de um velho - disse o hörnern. - Trago-te para urn acto extraordinario, urn acto que te poupa äs consequencias. Suicidios de velhos säo comuns. Ninguem os investiga. Tu pendura-lo pela corda na ärvore e acabou. O hörnern deste conto olhou para a Morte. Tinham parado os dois a alguns metros da posicäo do velho e este retirou a mäo da testa para a por no ouvido, formando concha. Os visitantes murmuravam e o velho esticava-se para a frente, com as rugas muito fundas contra a luz. Natu-ralmente, falaria, ja que näo disparara a espingarda. Avancaria na sua escala de civilidade, pois näo expulsara a tempo os seus intrusos. Mas seguia o exemplo dos seus cäes, com respeito ao silencio. Os cäes cala-vam-se e o velho tambem. Os cäes sabiam que era a Morte e o velho näo. Ele estava convencido de que a morte viria pela corda e, abrindo a mäo, deixou-a deslizar. Ela estalou como urn chicote contra o solo. So a secura produzia urn som assim. - Falta-te muito pouco - disse a Morte. O seu bafo queimava. Era visivel que aquela hesitacäo a ofendia. Tratava o hörnern deste conto como urn fillio para quern se procurou a melhor prenda. E ele retribuia com um escrüpulo que mais se assemelhava a decepcäo. «Näo passas de um humano», comentou. Queria entoar a frase com desprezo mas a metafora da maternidade influenciou-lhe o modo de falar. Havia uma suave complacéncia, um regozijo, quase. Via nele aquela falta de resigna-cäo, a obstinacäo propria da raca que impedia as criancas de crescerem comple-tamente, ensimesmadas no desejo. Ele näo tinha a experiéncia de rnatar, tinha somente a imaginacäo. A imaginacäo juntara temas, o sexo e o crime, o crime e a mulher, e ele ignorava que podia separá-los, que a beleza näo era indispensável ao prazer de cravar uma navalha. Também uma ignorancia se alojava pela primeira vez dentro da Morte. Estava a enternecer-se com o homem e nunca conhecera uma afeicäo. Ele respi-rava ansiosamente, como as crias abandonadas pelos protectores e deixou que ela o conduzisse para mais perto, para a moldura de visäo do velho. Ele identificou-os ou, melhor, arrependeu-se do que desejara. A Morte vinha com o seu esplendor, com a sua frieza de estrangeira. E o que a acompanhava ia curvado, como se o chäo contasse a sua história e essa fosse uma história de sepulcros. «Antes fossem ladrôes», pen-sou o velho. «Antes uma matilha de cäes bravos». Pois também dentro dele havia um bicho e um fora-da-lei, enraizados nas suas profundezas, no que dói. Julgou ouvir o sopro de uma faca ao embater no musculo do porco, mas era só uma recordacäo. As mäos do homem avancavam nuas. Tudo o que o velho queria era lutar, mas encolheu-se como a defender-se de um ataque de enxame. Os dedos encontraram-lhe as carótidas e ganhavam mais forca ao apertar. Contrariamente ao guincho do animal, daquele velho devia sair algo que tivesse um gemido e uma oracäo. No entanto, ele dobrou-se sem um som. - É isto o crime? - perguntou o homem. E olhou em volta. Mas näo estava lá ninguém. A Morte entrara para as células do velho e estoirava--as com as unhas, como bolhas. Ele oscilava com alguma timidez, sob o impacto dos rebentamentos que a Morte ia operando no seu ser. Tinha perdido a contencäo de líquidos e a braguilha cocada reluzia. O homem deste conto estava exausto por preparar a forca no sobreiro, pendurar o cadaver e varrer o rasto que ele deixara. A Morte, näo, a Morte näo pisava. Só havia vestígios de uma luta, o arrastar das botas no ter-' reiro. «É isto o crime?», repetiu. O céu chispava, desperdicando a sua dose de energia. O homem comecou a caminhar. Sentia pouco. Näo sentia nada. A Morte oferecera-lhe aquele crime, o seu crime perfeito, sem castigo. Ele experimentara um arrepio ligeiro, urna rebeliäo do próprio corpo. Ainda que quisesse abrir as mäos, afrouxar a pressäo, näo o faria. As mäos estavam para lá de obedecer. O sexo intumescera por um momento, quando as vertebras quebraram e a cabeca do velho se dobrou. Mas a Morte inclinara-se sobre ele e o seu vestido de mulher rocava como qualquer vestido de mulher. O homem estava a regressar a casa e idealizou que acordaria aos pri-meiros ruídos da manhä. Porém a estráda e os campos em redor vibra-vam como só o real pode vibrar. Näo sonhava. Seguia devagar, na espe-ranca de que a Morte regressasse. Assobiava baixo. Era outra vez um rapaz no bordel, um rapaz sujo, que leva dentro o seu primeiro amor. A Colina Mafalda Ivo Cruz