i I Só no ultimo dia consegue uns minutos livres para a rápida visita a esse museu de que tanto lhe falaram. Pas-sou mais de uma semana em Nova Iorque, e só na tarde do ultimo dia aqueles minutos lhe pertencem. Ao sair do taxi, ä porta do museu, sob mais um subito aguaceiro de Primavera, pensa como é absurdo viajar desta forma, com o tempo inexoravelmente cronometrado pelos inte-resses da empresa para que trabalha. Compra o bilhete de ingresso; deposita no vestiário o impermeável; apontam-lhe um ascensor: é a partir de cima que a visita se inicia. E, de lá de cima, comeca por ter urna visäo global da larga rampa espiralada por onde já neste instante principia a descer. Esta rampa em espi-ral, segundo lhe disseram, constitui precisamente o espaco destinado a exposicôes temporárias. Mas, como nem teve tempo de se munir de um catálogo, näo chega a perceber se acaso säo do mesmo «autor» ou de vários «autores» os heteróclitos objectos pendurados nas pare-des, suspensos do tecto, amontoados no pavimento: grandes placas de alumínio torcidas pelo fogo, hélices e pneus quase de todo carbonizados, restos de aparelhos ou de instrumentos que teräo sido de extrema precisäo, deflagradas estilhas de enormes caixas ou contentores, malas esventradas de onde se evadem, aos farrapos, pecas de roupa, sapatos, livros, discos, dossiers, que täo--pouco o fogo poupou e cuja forma só a custo se 13 reconhece. No modo como estes detritos se sucedem, se combinam e se respondem é que parece pulsar uma oculta intengäo que, de momento, ele nem tenta saber qual é, muito menos aprofundar. De quando em quando, do lado esquerdo da rampa abrem-se umas galerias onde se encontram expostos quadros e esculturas — «obras de arte» no sentido con-vencional que a expressäo ainda mantém — que per-tenceräo, conforme também lhe disseram, ao fundo permanente do museu. De uma dessas galerias vé de repente sair uma rapariga loura, cujo dourado rosto redondo, misto de Sol e de Lua dourada pelo Sol, irre-sistivelmente lhe evoca alguém que há muitos anos conheceu. Também ela, uma vintena de metros ä sua frente, desce agora a rampa em espiral; mas as outras pessoas que pela rampa circulam e, sobretudo, os incrí-veis objectos que no pavimento se amontoam (desta vez, uma sinuosa sucessäo de pára-quedas intactos) väo--no impedindo de a alcancar e de melhor confirmar entäo, voltando a vé-la de frente, a semelhanca que tanto o impressionou. Já para outra galéria se esgueira a cabeca loura que dir-se-ia oscilar como um girassol em cima do seu pe-dúnculo. E já no labirinto dessa galéria ele acaba estu-pidamente por perder-lhe o rasto, entre muitas outras cabecas que se detém diante de nus de Modigliani ou de visionárias paisagens de Chagall. No entanto, ao retor-nar ä rampa espiralada, basta-lhe assomar ao parapeito para a redescobrir, já lá em baixo, quase a atingir o piso térreo. Enquanto prossegue a sua descida, sempře cosi-do ao parapeito para näo a perder de vista, compreende que ela näo se dispôe a sair imediatamente do museu, que afortunadamente se encaminha ainda para o vestiá-rio. E do vestiário sai, pouco depois, com um imper-meável vermelho sobre os ombros e um saco de couro, igualmente vermelho, a baloucar-lhe na mäo direita. Mas é também de costas que nesse momento a vé, diri-gindo-se para a saída. E só o tempo, por seu lado, de recolher o proprio impermeável, de logo a seguir se reencontrar no exterior do museu, novamente debaixo de chuva e defronte das árvores do Central Park. Mas nem sombra da rapariga loura. O mais prová-vel é que tenha tido a sorte de logo apanhar um taxi. Já neste momento se arrepende de täo irreflectida-mente ter procurado segui-la. Acabou por ficar ape-nas com urna confusa imagem do museu. Näo se lhe pöe, no entanto, a hipótese de lá voltar. Melhor será, antes de ir ao hotel buscar as malas, passar ainda pelo Bloomingdale's para umas compras de ultima hora. Como näo aparece nenhum taxi e como a chuva agora parece abrandar, vai-se entretanto encaminhando para a mais próxima paragem de autocarros. O seu sumário conhecimento de Nova Iorque chega-lhe, apesar de tudo, para a esse respeito se orientar: se tomar um bus que o conduza, pela Quinta Avenida, até ao extremo sul do Central Park, a partir daí saberá desenvencilhar-se; e j á nem estará, entäo, muito longe do seu hotel. Recomecou a chover com dobrada intensidade. Mas recusa-se, por capricho, a subir para a camioneta que faz o trajecto entre a vila e a praia. Irá sozinho; irá a pé. A irmä, a urna janela, grita-lhe ainda: «Anda, sobe! Näo sej as parvo!» A Vera, já sentada ao lado da irmä, näo se digna sequer olhá-lo. Nenhuma delas poderá adivinhar o que acaba de descobrir: que é horrível ter só catorze anos, enquanto a irmä e todas as amigas da irmä, sobretudo a Vera, tém já dezoito. Elas toleram a sua companhia, sub-metem-se ä sua presenga, levam-no a reboque porque os pais assim o exigem; mas ostensivamente se encerram, 14 15 r entre sorrisos ou gargalhadas, em conversas e em con-luios de que ele se vé sempře excluřdo. Com tais capri-chos, bem o sabe, ainda mais delas se distancia, ainda mais a Vera fingirá ignorá-lo ou até mesmo o despreza-rá. Mas näo consegue renunciar a esses estupidos estra-tagemas, sempře e só com o fito de atrair as atencöes sobre si proprio. E a camioneta parte sem o levar. No mesmo instante chega o bus. Durante o percurso — vendo, de um lado, as árvores encharcadas do Central Park e, do outro, impenetráveis fachadas de residéncias patrícias —, insistentemente con-tinua a pensar na impressionante semelhanca entre a Vera de há quase quarenta anos e a rapariga loura há pouco e só de passagem entrevista no museu. Ao mesmo tempo segue a pé, com os cabelos a escorrerem água, por uma estráda pedregosa, entre figueiras e casebres. Num e nou-tro caminho, é sempře o rosto da Vera que o acompanha, esse rosto que dir-se-ia a figuracäo humana de algum fabuloso astro, meio Sol, meio Lua, inteiramente insensi-vel ao deslumbramento e ao sofrimento que provoca. Julgar-se-á a Vera uma deusa, só por ter subido, desde há meses, ao pedestal dos seus dezoito anos? Nenhuma outra das amigas da irrna, por mais odiosamente bonitas que sejam, parece ter consciéncia, como a Vera, de uma espé-cie de divindade que a simples idade lhe confere. É pro-vável que até as outras a detestem. O bus chegou, entretanto, ao ängulo do Central Park. Mas ele só consegue apear-se mais adiante, quase de-fronte do Tiffany. Subitamente, a chuva cessou por com-pleto; e há clareiras de um indizível azul entre os altos topos dos arranha-céus. Distraiu-se também com o espectáculo da multidäo: já näo sabe, ao certo, se envere-dou pela Rua 57 ou pela Rua 58. De entre as raparigas e 16 as mulheres que vai cruzando (é claro que só repara nas que lhe parecem belas), quantas se teräo apercebido, al-guma vez, das terríveis infelicidades de que pode ser ou ter sido causa a sua beleza, quando näo apenas a sua ju-ventude? Quantas conheceräo a semeňte de infortúnio que teräo lancado, que iräo lancar, na alma de adolescen-tes que elas nem viram, que elas nem véem, que elas nem sabem como as contemplaram ou como as contemplam? A empresa para que trabalha «diz» empenhar-se, como näo podia deixar de ser, em proporcionar, no seu ramo, várias espécies de felicidade. O partido político em que milita, no seu pařs, desde há cinco ou seis anos, também apregoa, no respectivo programa, como näo podia deixar de ser, o propósito de varrer a infelicidade da face da Terra. Mas ele acaba de fazer uma descoberta täo radical como a que fez aos catorze anos: que näo há empresas, que näo há partidos, que näo há programas nem decretos nem leis que possam algum dia eliminar o género de infelicidades em que vai pensando. E é como se dentro de si também tivesse deixado de chover; ou como se, entre os esbocos de todos os arranha-céus que dentro de si transporta, também se fossem abrindo clareiras de um azul igualmente inútil, igualmente precário e para sempře silencioso. Que lhe importam as compras no Bloomingdale's ou em qualquer outro armazém! Vai mas é entrar neste pub de evidente inspiracäo britänica, descansar um pouco e beber um scotch para intimamente celebrar a sua recen-te descoberta. O pub (chama-se mesmo «The Sunset Pub») apresenta uma sucessäo de quatro salaš; a ultima, pelo que já entrevé, é a que se encontra mais tranquila. Täo tranquila que apenas se divisa, ao fundo, a presenca de uma mulher. Senta-se a razoável distäncia da relativa penumbra onde ela está imersa, mas de tal maneira que a possa contemplar ä vontade, e de frente, quando ela se 17 decidir a retirar, de diante do rosto, as duas mäos com que segura a testa e a erguer os olhos do livro ou catá-logo sobre que permanece inclinada. E se aquela mulher...? Se ela retirasse as mäos de diante do rosto, se ela erguesse os olhos de cima do livro...? Näo precisa de completar o que está a supor: descobriu, entretanto, ao lado dela, sobre outra banque-ta, um impermeável vermelho, um saco da mesma cor. Só lhe parece extraordinário que a coincidéncia de se-melhante reencontro, ao arrepio de todas as probabilida-des, se verifique numa cidade como Nova Iorque. Mas o mais estraordinário ainda näo é isto: é o triunfante sorri-so que ela exibe, ao erguer os olhos, como se infinita-mente a divertisse o proprio facto de ali ser descoberta. Näo; näo há dúvida que se parece, e do modo mais impressionante, com a Vera de há quarenta anos; ou pe-lo menos, com a imagem da Vera que ele afinal guardou ao longo de quarenta anos. Este mesmo sorriso de triun-fo, neste rosto de Sol em que logo a trés quartos se adi-vinha um perfil de meia Lua, quantas vezes na Vera o descobriu, quantas vezes na Vera isso mesmo o exaspe-rou? Näo se lembra, por outro lado, de mais ninguém cujas feicöes täo diversamente se alterassem com as mais subtis mudancas de luz ou de posicäo. Como se estivesse nesse instante a pressentir o que ele pensa, a rapariga loura, no outro canto da sala, move impercepti-velmente a cabeca em várias direccöes, assim favore-cendo que os seus tracos diferentemente se iluminem. De repente recorda o que afinal havia de mais exas-perante nesse modo täo seu de se prestar, sorrindo ou nem sorrindo, ä milimétrica mutacäo dos jogos de luz: era o gesto de mordiscar o lábio superior e de por fim o humedecer com a ponta da lingua. De novo, ei-la execu-tando o gesto que ele proprio acaba de evocar. Dař por diante, näo há gesto ou expressäo da Vera que ele recorde e que näo obtenha, de imediato, uma como que reproducäo, ligeiramente trocista, por parte da rapariga loura que se encontra no outro canto da sala. O fenómeno torna-se de tal modo alucinante que ele se vai sentindo ora transido ora exaltado, täo depressa dis-posto a pôr fim ä inexplicável experiéncia como decidi-do a prolongá-la para além de todos os limites. E entäo que lhe ocorre um episódio que julgava já ter esquecido e se lembra mesmo, nesse episódio, de um pormenor que näo é fácil repetir ali. Andaria a Vera, na altura, j á pelos seus vinte ou vinte e um anos. Foi de novo na praia onde costumavam pas-sar as férias. Foi a única vez em que teve a ilusäo, por um instante, de que ela condescendia em atentar ao menos na sua presenca. A Vera, nessa manhä, trazia sobre os cabelos um lenco de seda incrivelmente leve, quase urna gase que um simples sopro poderia dissolver. Ao ve-lo chegar, junto do toldo, com um panama vermelho que na véspera estreara, pediu-lhe subitamente que lho emprestasse; e, colocando-o, entäo, sobre a propria cabeca, murmurou apenas: «E meu.» Ficou de facto com ele; mas, nos dias seguintes, e até ao fim das férias, quem ostensivamente passou a usar o panama vermelho foi aquele odioso professor de ginástica, já casado e já com um filho, que tinha a especialidade de organizar, entre os banhistas, uns estúpidos campeonatos de volei-bol — e de cuja intimidade com a Vera, semanas depois, toda a praia jubilosamente rosnava. Como era possivel ter pensado que se esquecera? Agora saboreava com amargor a recordacäo do episódio; e a rapariga, ali adiante, mantinha-se estática e sus-pensa, como que a dar-lhe tempo de reunir o maior numero de pormenores. Depois, lentamente, puxou para si 18 19 o saco de couro; lentamente o entreabriu: e lentamente retira, lá de dentro, um panama vermelho. Mas, entäo, é num gesto brusco que na cabeca o enfia; a seguir, noutro gesto igualmente brusco, já em pé, agarra com urna só mäo o impermeável e o saco de couro, de roldäo os arrasta através da sala e com tal ímpeto desaparece, em direccäo ä saída, que ele nem tem tempo de esbocar a mais ligeira reaccäo. Só neste momento, alias, um empregado vem atendé--lo. E já o empregado, depois de o atender, vai até ä mesa onde ela se encontrava, para de lá recolher o vo-lume que em cima do tampo tinha ficado aberto: parece, de facto, o catálogo de urna exposicäo; mas ele apenas consegue ler, na capa, em grossas letras, a palavra Accident. Reportar-se-á ä exposicäo que täo rapidamen-te acabou de percorrer? No fim de contas, que im-portäncia tem isso? Täo-pouco vale a pena procurar explicacôes para quanto acaba de se passar. O que mais o intriga, ou surpreende, é o caprichoso mecanismo da sua própria memoria. A flagräncia com que de subito recordou determinados incidentes con-trasta com a densa neblina em que muitos outros se conservam. Sabe que foram aquelas as últimas férias em que a irmä e a Vera teräo convivido; sabe que ulterior-mente, lá em casa, o nome da Vera deixou mesmo de ser mencionado; mas näo sabe se ele proprio voltou ou näo voltou a vé-la; nem em que circunstäncias, oito ou dez anos mais tarde, veio a tomar conhecimento da morte da Vera. Nessa altura, täo profundamente se teria enrai-zado, dentro dele, o furioso desejo de a esquecer que näo chegou a dar — conscientemente, pelo menos — a menor atencäo äs causas daquela morte. Morta já ela estava, para ele, muito antes de ter morrido. Agora, no entanto, pergunta a si proprio se realmente estaria. 20 E detem-se nestas perguntas para näo ter de colocar, tambem a si proprio, algumas outras bem mais inquie-tantes. E com uma sensacäo de levitado alfvio que toma o seu lugar, tres horas mais tarde, no Jumbo que o levarä a caminho da Europa. Acaba neste instante de apertar o cinto. Ja o aviäo se prepara para descolar. E de subito reconhece, entre as värias «hospedeiras», a mesma rapariga loura que entre-viu no museu, que a seguir reencontrou no pub. E ela quem avanca, sem um sorriso, pelo corredor em cuja coxia se encontra sentado. So agora, mais de perto, com a luz que lhe da no rosto, se lhe afigura um tanto mais velha que a Vera de hä quarenta anos. Mas e provävel que ela estivesse mais ou menos assim na altura em que morreu. Entäo, recorda, de repente — ao mesmo tempo que todo se esforca por näo o recordar —, que a Vera morreu, afinal, num acidente de aviacäo. 1980 21