At flKM,Uu> it-fajow I Sentes-te cansada, mas valeu a pena teres ido. Mais uma vez o teu fair-play se viu posto a prova; e finalmen-te soubeste triunfar dessa tentacao de «fuga», desse desejo de nesta ocasiao te encontrares bem longe de Portugal. E evidente que o Nuno, ate ao ultimo instante, ha-de ter pensado que nao irias. Mais: ha-de ter desejado que nao fosses. De qualquer modo, portou-se melhor do que tu esperavas: nem surpresa nem desagrado, quando la na herdade apareceste diante dele. E a pequena, tambem, impecavel. Ida e volta, mais de quatrocentos quilometros. Propo-sitadamente, foste e vieste so. Por sorte, o tempo estava esplendido. Ja mal te lembravas de um dia assim, no Alentejo, em pleno mes de Fevereiro. O ceu, muito azul, sem uma nuvem. Nos arredores de Elvas, foi como se ti-vesses voltado a 1940 ou 1941. Depois, nao deixaste de achar divertido — dentro do genero de coisas de que «eles» gostam — aquele ar de festa em toda a herdade. Agora sentes-te bem por te encontrares de novo em casa, na confortavel solidao da tua casa. Sao quase cin-co da manna. Por uma das janelas do teu quarto, cuja persiana acabas de entreabrir, ves a Lua, em quarto cres-cente, declinando ja sobre o casario de Alfama. Nem o casaco de peles tiraste ainda, como se te agradasse sur- 57 preender, de quando em quando, no grande espelho do armário, a completa silhueta com que surgiste, diante do Nuno, as cinco da tarde, logo á entrada da capela. Se o tempo náo estivesse como estava, onde poderia acomodar-se tanta gente? Mas já na hipótese de náo cho-ver é que tinham armádo mesas ao ar livre, quer em am-bos os pátios quer no amplo terreiro da herdade. Logo durante a cerimónia, mais de metade dos convidados náo coube sequer dentro da capela. O certo é que também se acumulava, cá fora, grande parte do pessoal: facilmente se distinguia, logo á primeira vista, o que teria ido de Lisboa daquele outro, bem mais numeroso, que seria ali da regiáo. E o Nuno, no fim da missa, radiante como já dono e senhor de tudo aquilo, a receber, muito com-penetrado, os cumprimentos daquela gente toda. Nem de longe suspeitava que tu estavas a observá-lo. A pequena, essa, bastante mais comedida. Até a máe da pequena esteve á altura das circunstán-cias. Fez sempře questáo, como viste, de te apresentar como sua cunhada («A viúva do meu irmáo Antonio, sa-be?»), sobretudo áqueles inúmeros parentes, lá do lado do marido dela, que tu náo conhecias ou náo te lembra-vas de alguma vez ter conhecido. Pensando bem, talvez fossem eles, de entre todos os convidados, os únicos que náo estariam ao corrente da história. Nem a máe da pequena terá grande interesse em que eles a saibam. Em contrapartida, das dezenas e dezenas de pessoas que tinham ido de Lisboa, quem a ignorava? Decides-te finalmente a tirar o casaco. Mas o modo como o arremessas para cima da cama faz-te dolorosa-mente lembrar duas outras máos que nunca mais aqui teráo esse gesto. E no espelho descobres, de relance, ao canto dos lábios, um vinco de amargura que em ti mes-ma ainda náo conhecias. Táo-pouco te agrada, a esta ho- ra da noite, o torn violäceo, quase rosado, com que de leve se disfarca a cinza dos teus cabelos. Mas o pior de tudo e a expressäo ausente que por instantes te imobi-liza, no rosto, urn como que inumano olhar de estätua. Recordas, no entanto, a modo de compensacäo, os cumprimentos e os galanteios (näo foram poucos) que ainda ontem recebeste. Para comecar, da parte de muitos desses parentes do lado paterno da pequena, que ao longo do dia te foram apresentando. E certo que bastante gaudies, coitados. A medo comecavam, quase todos, por elogiar o teu dominio da lingua portuguesa. E logo a mäe da pequena (porque näo häs-de dizer «a tua cunhada»?), se acaso os ouvia, näo perdia entäo o ensejo de lhes ir sugerindo, com falsa docura, na sua arrastada voz provinciana, umas indicacöes muito precisas acerca da tua idade: «Tambem näo admira, näo e? O Antonio ja morreu hä quase dezoito anos. Eles foram casados durante mais de treze... E so fazer as contas: hä ja um ror de tempo que a minha cunhada Erika vive cä em Portugal...» «Sim», respondias tu. «Muito, muito tempo em Portugal. Muito, muito pouco antes de Portugal.» Via-se bem que alguns deles faziam logo as contas; e näo deixavam de surgir, imediatamente ou urn pouco mais tarde, os elogios de outro genero. Mas täo fora de moda que chegavam a ser penosos; so te faziam bem por apesar de tudo te reconduzirem aos primeiros tempos dos teus contactos com a vida portuguesa, aos primeiros tempos daquela especie de «corte», ja entäo demodee, com que o Antonio e os amigos do Antonio te assediavam... Um dos tios da pequena, mais directo que os outros, ate foi ontem ao ponto de rotundamente ex-clamar: «Mas estä muito bem conservada!» E, fosse esta a razäo ou fosse o simples facto de seres ali «uma estrangeira», a verdade e que näo faltaram homens ä tua roda. 58 59 Näo estás a pensar apenas nesses pobres burjessos. Também um colega do Nuno, mais novo que o Nuno, e sem dúvida mais tímido, com um quase fulgor de ma-drugada na indecisa vivacidade dos olhos muito claros, andou que tempos a voltejar em torno de ti, até ganhar coragem para se aproximar, sob o pretexto de te ofere-cer, desajeitadamente, um prato com fios de ovos. De-pois perguntou-te se eras austriaca ou alemä. Mas perce-beste que a pergunta näo passava de mais um pretexto; e que ele proprio, junto de outras pessoas, j á se teria pre-viamente informado. Mais tarde, falou muito de um confuso concurso para que andava a preparar-se. E, de repente, ä queima-roupa, pediu-te se lhe podias dar o numero do teu telefóne. Já agora gostarias de saber se o Nuno terá dado por alguma coisa de tudo isto. Na altura, porém, havia duas outras reflexöes que sobretudo te ocupavam. Urna delas provinha da suspei-ta, um tudo-nada orgulhosa, de que talvez nenhuma das portuguesas ali presentes, se estivesse no teu lugar, teria tido a coragem de aparecer, a placidez de assistir, o au-todomínio suficiente para nem excessivamente se apa-gar nem por de mais se fazer notada. E a outra resultava de urna sensacäo de anacrónica irrealidade que te iam provocando, näo só os galanteios, mas todos os mais te-mas da conversa daqueles homens: cavalos, automóveis, propriedades, cagadas, ocasionais surtidas — de que falavam como de coisas fabulosas — até Sevilha, até Madrid, até Paris. Dir-se-iam exactamente as mesmas conversas que ali tinhas ouvido, ou em herdades seme-lhantes äquela, trinta e dois ou trinta e trés anos antes. Mas haveria alguma coisa de mais anacronicamente irreal que a pompa provinciana de toda aquela cerimó-nia? Alguma coisa de mais irreal que a homilia do bis- po, a presenca de tantos padres, a exibigäo de tantos fra-ques, de tantos casacos de peles, de tantos rostos a que o tempo so tinha dado a pat ine de nenhum tempo? Cairias das nuvens se alguem te lembrasse, nesse momento, o ano em que realmente te encontras. E chegava a ser incrivel que tudo aquilo decorresse no mes de Fevereiro do ano da graga de 1974. So ä saida da capela e que a maior parte das pessoas deu pela tua presenca. Näo te foi dificil adivinhar, nos grupos que se formaram, muitos olhares esquivos na tua direcgäo e muitas trocas de palavras a teu respeito. No entanto, houve apenas uma pessoa, ainda antes do copo--d'ägua, que teve a simplicidade de se abeirar de ti e de simpaticamente murmurar: «Oh minha senhora! Gosto tanto de a ver! Foi täo bonito a senhora ter vindo!» Logo a reconheceste, apesar de precocemente envelhecida: era uma antiga empregada da irmä do Antonio, mais tarde «promovida» a qualquer coisa como dama de compa-nhia, e que tinha sido, no fim de contas, quem verdadei-ramente criara as pequenas. Tambem ela teria decerto ouvido alguns rumores. Que te importava? So procuras-te corresponder ä sua visivel simpatia, dizendo-lhe com o ar mais natural deste mundo: «Recebi convite. Näo podia deixar de vir. E a ünica sobrinha do meu marido.» E foi de propösito que näo disseste: «E hoje a ünica sobrinha do meu marido.» Em semelhante dia, certa-mente ninguem queria pensar no suicidio da outra, da mais velha. Haveria mesmo, entre toda aquela gente, quem nunca o tivesse sabido ou quem agora ja mal se recordasse: cinco anos e tal, quase seis, era tempo suficiente para que tivessem acontecido ambas as coisas. Surpreendes-te agora a desejar que ao menos esta pequena näo seja täo desequilibrada como a irmä. Parece que näo. Oxala que näo. Tanto por ela como pelo Nuno. 60 61 Sentes-te fatigada; mas, por isso mesmo, sabes que dificilmente conseguiras dormir. De nada te Valeria ires para a cama neste momento. O proprio esforco que puseste na viagem do regres-so (cada vez gostas menos de guiar a noite) parece ter dado um violento esticao a todos os nervos do teu cor-po. Ja com o olhar percorreste as estantes a procura de um livro; ja colocaste no gira-discos um quinteto de Boccherini; ja preparaste um whisky com muito gelo e agua lisa, mas ja voltaste a despejar tudo no lavatorio, receando a mistura do alcool com o tranquilizante que talvez tenhas de tomar; e ja tornaste a por sobre os om-bros o casaco de peles, de novo pensando na ternura e na violencia daquelas duas maos que tanto gostavam de encontrar-te, aqui mesmo, geralmente durante a noite ou ja de madrugada, apenas com este ou com outro casaco em cima do corpo, e que tanto gostavam, depois disso, de com ternura e violencia avidamente to despirem. Abres agora uma das janelas da sala: adivinhas, na penumbra, a grande mole da igreja de Sao Vicente; e, mais para a direita, sobre o rio, ja uma tenue claridade que talvez seja, ao res da agua, uma vaguissima anun-ciacao da manna que ainda demora. Por que razao havias de ser tu a unica pessoa da famflia (da «familia»?) a encontrar-se em Lisboa, nesse longinquo fim-de-semana de um mes de Junho, quando a outra pequena se suicidou? Por que razao teria decidi-do telefonar-te, a dar a noticia, o psiquiatra com quern ela na altura se andava a tratar? Por que razao, logo nessa noite, tanto havia ele de ter insistido para apare-cer-te aqui em casa? Por que razao, nos dias seguintes, tantos e tantos telefonemas? Por que razao aquele cerco, dia a dia mais apertado? Por que razao havia ele de ser tao novo, e tao desconcertante, e tao seguro na sua apa- rente docilidade, e täo envolvente no modo de falar do seu trabalho, dos seus interesses, dos seus projectos? Só mais tarde virias a descobrir a feroz ambicäo sobre que tudo isto se equilibrava. Mas era saudável o seu riso no franco impudor com que depois reconhecia a existencia dessa mesma ambicäo. Nunca chegarias a perceber (nem tu lho perguntaste nem ele to confessou) se tinha havido alguma coisa, para além da simples relacäo de médico e doente, entre ele e a sobrinha mais velha do teu marido. Como também näo chegarás a saber se ao longo destes anos todos ele manteve qualquer convivio com algum outro membro da famflia. Somente há quatro meses, pela primeira vez, te viria a falar nesta pequena. Que a tinha encontrado, a ela e ä mäe, em casa de uns amigos comuns; que näo tinham, sequer, aludido ä outra; que nem por sombras se referira o teu nome; e que as duas, ä despedida, o tinham convidado para um fim--de-semana no Alentejo, por ocasiäo da abertura da caga lá na herdade. Tudo aquilo te pareceu täo rápido que imediatamente compreendeste. Nesse dia, aqui mesmo junto desta janela, tu propria te apressaste a pôr fim ao que já tinha chegado ao fim. Foi menos fácil do que pensavas; menos fácil, principal-mente, do que em outras ocasiöes, com outras pessoas, há bastante mais tempo acontecera. Näo que tivesses tido, alguma vez, a respeito do Nuno, a ilusäo ou a espe-ranca de qualquer coisa duradoura — e, menos ainda, de qualquer coisa definitiva. Pelo contrario. Mas tudo se tinha tornado — talvez em parte por tua culpa — dema-siado notório, demasiado affiché ao longo de cinco anos; e, se näo deixava de ser agradável, para ti, o facto de muita gente saber o que entre voces os dois existia, mais doloroso se tornava, quanto ao que tinha cessado de existir, o facto de essa mesma gente o saber agora. 62 63 Täo-pouco poderias dizer que se tratara dos melhores cinco anos da tua vida: tinham sido, no entanto, cinco anos com que até certo ponto já näo contavas; ou que näo contaras, pelo menos, vir a viver dessa maneira. E provável que nenhum outro homem, no futuro, volte a pedir-te, pelo telefone, que o aguardes aqui, dentro de meia hora, inteiramente nua sob um casaco de peleš, para ter o gosto de logo em seguida to despir e de, sofregamente, como quem volta por várias vezes a um labirintico pais que nunca na verdade ou por inteiro se conhece, com as mäos e a boča te correr o corpo todo, antes de, por fim, já também despido, demoradamente te possuir. E provável que a ninguém mais, no futuro, voltes a ter ensejo de chamar a aten-cäo para um palácio da Baviera, para um fresco do Perugino, para um por do Sol em Istambul ou para um trecho da Floresta Negra, com a certeza antecipada de uma noite de amor, ou pelo menos de volúpia, no quarto ocasional de qualquer hotel de férias, na cabina de qualquer expresso, na escala de qualquer cruzeiro. Mas só agora compreendes que tanto mais te comprazes nestas imagens quanto elas menos se prestam a ter algum dia como protagonista, muito menos como ofi-ciante, uma pobre pequena irremediavelmente pro-vinciana, que talvez seja até muito boa menina e que ontem mesmo — porque näo reconhecé-lo? — se apre-sentava tocantemente graciosa no seu cändido e apara-toso vestido de noiva. Estás a «vé-la», depois, em trajo de passeio, no mo-mento da partida para a lua-de-mel (expressäo horren-da!), a beijocar a mäe e as tias, a dar um abraco a este, um aperto de mäo aquele, antes ainda de entrar no Alfa--Romeu, novinho em folha, a que uns engracados tinham aposto, sem grande conviccäo, uma esvoacante grinalda de serpentinas. É já de noite, e está imensa gente no terreiro. O Nuno, dentro do carro, tenta apres-sar as despedidas com sucessivas pezadasno acelerador. Curiosamente, nao es capaz de reconstituir neste momenta as feicoes do Nuno: apenas «ves» as suas maos a apertarem o volante. Em contrapartida, ocorre-te agora, com fotografica nitidez, na insegura vivacidade dos seus olhos claros, o rosto anguloso do colega do Nuno. Ele tanto insistiu que acabaste por lhe dar o numero do teu telefone; mas tens a impressao de que nao chegaste se-quer a perguntar-lhe o nome. A menos que, se ele acaso o disse, nem o tenhas fixado. Agora, sim, e sem duvida a madrugada que vem sur-gindo, por detras de Sao Vicente e sobre as aguas ligei-ramente encrespadas do rio. Se tivesses partido, ha uma semana, para aquela viagem ao Extremo Oriente, a esta hora estarias em Toquio; ou em Quioto. Toda te entre-gaste a projectar essa viagem, durante os ultimos meses, como sendo o melhor pretexto para nao ires ao casa-mento. Mas, ha coisa de quinze dias, mudaste de ideias e fizeste bem: tinhas de mostrar a ti propria que eras capaz de aparecer; tinhas de novamente por a prova o teu fair-play, a fim de conjurares, com a tua presenca, a per-manencia ou o retorno de alguns fantasmas. Nao estas muito segura de o ter conseguido. Mas talvez nem seja isso que importa. A esta hora? A esta hora, em Toquio e em Quioto ja serao tres ou quatro da tarde. E subitamente percebes — como nunca ate hoje te aconteceu — que esta madrugada, depois de ter passado, ha umas poucas de horas, por um lugar onde neste instante poderias encontrar-te, ainda e a mesma, no fim de contas, que tambem ontem aqui se anunciou, a mesma que ja anteontem aqui sur-giu, a mesma que vem da semana anterior, do ano passado, do seculo transacto, de ha milhares de outros secu- 64 65 4 los, de há milhares de milénios, a mesma-sempre-dife-rente desde o comeco do Mundo. Sempře a mesma madrugada a correr atrás da Terra. Ou, melhor, sempře a Terra no encalco da mesma madrugada. Sabes, Erika? Enquanto sobre a Terra te encontrares, näo poderás impedir-te, mesmo que o näo saibas, de também procederes, melhor ou pior, como a propria Terra vai procedendo. 1980 POSFACIO DE JOSE MARTINS GARCIA 66