A noiva judia Diante do Tejo há alguns carros parados. Faz noite. Num deles está Sara. É a única coisa que importa. Há um constante zumbido de carros a passar por cima da ponte mas ele näo ouve nada. Sara olha em frente para um rio que näo corre, enorme e escuro. Ele tem medo de olhar para Sara. O que ele sente é o medo. O que sente Sara nem Sara sabe. Näo sabem o que lhes acontece, talvez por isso fiquem assim quietos. A mäo dele, de repente e sem ordern, encontra a mäo dela e agarra-a. A mäo dela é a única coisa que existe. Todo o mundo gira ä volta dela. A mäo de Sara procura a mäo dele e agarra-a. Duas mäos fecham-se nelas próprias ä procura uma da outra. O carro, o rio, a ponte onde os carros continuam a passar, a cidade que adormece deva-gar, säo completamente indiferentes, podiam desfazer-se no vazio, ser abandonados pelo criador, que näo importa-va. O que importa säo as duas mäos agarradas ä procura uma da outra, uma dentro da outra, uma fechada pela outra e depois aberta pela outra, a deixarem de ser mäos, transformando-se em pequenos seres com vida propria. E depois, de repente e sem ordern, a boca dele ä procura da boca de Sara, primeiro no ombro, depois no pes-cogo, depois, só depois, na cara. A boca dela no ombro, no pescoco, na cara, a mexer-se. O gosto da pele, a resisténcia dos dentes, a pressäo dos lábios, a repelente seducäo do musculo da lingua. Ele, de olhos muito fechados, a desco- brir a boca de Sara, como se nunca tivesse beijado a boca de uma mulher, surpreendido que houvesse alguma coisa como uma boca, coisa inimaginavel, impossivel. Dentro de um carro parado junto ao rio, agarrados sem saber onde, sem saber do escuro, deles proprios es-quecidos, abandonados, enlouquecidos, muito proximos de um precipicio, muito agarrados. E depois dentro de um quarto, sem ousarem acender qualquer luz, quase no escuro, o corpo de Sara sobre o dele, desacreditando de tudo. E depois a luz do sol que comecpu a vir muito devagarinho e caridosamente os ilu-minou e depois os separou, ele a porta de casa de Sara sem dizer uma so palavra, nem sequer de despedida, bei-jando-lhe com ternura as maos. Nao, nao e preciso que nada se repita, porque nada se repete. II Simäo recordava: ;a viagem mais rápida, de Friburgo a Lisboa, só a pen-sar em Sara. Sara que tinha dito que sim, que se casaria com ele se ele assim o queria, o desejava. Pelo telefone, a tres mil quilómetros de dištancia, uma semana, uma só semana depois de se térem visto pela primeira vez. Näo, näo era pouco tempo, pouco era o tempo que restava. Uma pontada de dor só de pensar no tempo imenso em que tinham estado afastados, a injustica de todas as coisas que tinham feito separados, a crueldade de térem espera-do tanto tempo um pelo outro sem saberem um do °utro, nem um sinal, nada. Sim, ela tinha dito que sim, primeiro a sorrir e depois comovida. Simäo tinha ouvido tudo, todos os siléncios, muito agarrado ao telefone a trés mil quilómetros de dištancia. A viagem mais räpida. Simäo parando so para por ga-solina no carro, refrescar a cara — era Agosto —, comer qualquer coisa, beber ägua e mandar um postal a Sara, postais em que lhe dizia o seu amor premente ,e que ele sabia que iam chegar depois dele, mas isso pouco impor-tava, talvez ele näo chegasse, talvez morresse pelo cami-nho, o carro despistado numa curva ä beira do rio que esse, tinha a certeza, ia chegar a Lisboa de qualquer ma-neira, mesmo que ele näo chegasse. A viagem mais räpida. Sempre acima dos limites de velocidade pelas estradas que Simäo parecia saber de cor e fazia agora de olhos fechados, com os olhos a olhar para Sara. Simäo com as janelas todas fechadas, o carro a arder pelas estradas desfeitas pelo sol da Andaluzia e Sara era a ünica miragem. Simäo que chegou sete horas mais cedo do que pre-visto e Sara näo o esperava. Simäo que teve de esperar essas sete horas deitado, sentindo-se endoidecer, desejan-do morrer, ate Sara aparecer do nada ä hora prevista. Sara com olhos como pombas, Sara absolutamente irreal, como se nada tivesse acontecido. in Simäo recordava: o dia em que ele se casara com Sara, dia de que nunca soube a data exacta, os dias confundidos, uni dia de outono como os outros dias, so que era o dia em que ele ia casar com Sara. Sara ä frente dele, andando muito depressa pelas ruas estreitas e cheias de gente äquela hora da manhä no cen-. tro da cidade. Ele procurando seguir Sara, lembrando-lhe como era costume os noivos chegarem atrasados, que se estavam atrasados era muito ou muito pouco tempo. Ela sem mesmo se virar, quase a correr, com o fato azul claro que tinha mandado fazer. Ele seguindo Sara, sentindo no bolso esquerdo das eal<;as as duas aliancas de ouro, cada uma delas com o nome do outro, a dela encaixando perfeitamente dentro da dele, de tal modo que ficavam presas uma ä outra. Sara e Simäo e o dia do ano em que se casavam. Ele muito enlevado a olhar para Sara, räpida e agil como uma gazela, com os cabelos muito negros, com todos os caracois que ele prometeu a si proprio contar naquela noite, tantos caracois como os anos desde que havia luz e terra e quem a habitasse. Ela cheia de pressa, pressa demais, quase empurran-do as pessoas que cruzava, ele procurando atrasar-se o mais possivel, mas sem perder de vista Sara, desejoso que todos aqueles momentos se estendessem sem passarem. Ela olhando em frente, abrindo o caminho. Ele aträs :dela, olhando para ela, sentindo-se feliz. Ela como a fugir, ele como a persegui-la por entre aquelas ruas estreitas e cheias de gente äquela hora no meio da cidade. Gente que näo ia nunca saber que aquele era o dia em que Simäo se casava com Sara. IV Simäo recordava: ele a chegar a casa, assobiando sem saber o que asso-Java, com värios livros debaixo de cada braco e alguns caiam jä depois de ter conseguido tirar as chaves do .so> ter tentado duas delas e ter por fim encontrado a que entrava na ranhura da fechadura. Assobiando mais alto para dar sinal a Sara de que estava ali, entrando em casa, deixando a porta aberta, com os livros que ainda tinha debaixo dos bracos, ä espera de ouvir a voz mais desejada, a voz de Sara, como se tivesse medo de ja näo se lembrar dela, como se a voz dela nunca tivesse existi-do, näo pudesse existir senäo num sonho. E ele de repente calado, seguindo pelo corredor ate ao quarto onde encontrava Sara deitada, talvez adormeci-da, sem saber o que fazer, se devia acorda-la ou deixa-la dormir ainda. Voltando para träs para ir buscar os livros caidos e fechar a porta sem fazer barulho para depois voltar muito rapido para o quarto, para olhar o corpo de Sara estendido sobre a cama, abandonado, tal como o tinha deixado muito cedo, logo de manhä, antes das horas que passara alegre porque pensava em Sara e pen-sava que ia voltar para casa e que a casa näo estava vazia, que Sara estava lä e que a beijaria. Ele ganhando coragem para a acordar porque ja näo era cedo e podia-lhe fazer mal dormir tanto tempo. Ele a tocar-lhe muito ao de leve, a descobri-la, absolutamente feliz que ela estivesse ali, apesar de ela näo estar ä espera dele, ja que continuava imövel, talvez adormecida. Sara a comecar a acordar, piscando os olhos, come-cando a mostrar os seus olhos, que eram como pombas. E depois ela sorria e perguntava que horas eram, se ja era tarde e ele dizia-lhe que näo e ela espantada ao saber que horas eram, puxando-o para cima da cama, ele todo ves-tido, de gravata, ela nua por debaixo dos lencois, quente. Ele beijando-a, agradecendo-lhe o ela estar ali, o ela existir. Ela sem dizer nada, com um sorriso nos läbios a pedir-lhe que a beijasse ainda, e ele beijava-a. Sara de roupäo azul escuro a beber o chä que ele tinha preparado, a comer devagar as torradas com man-teiga e mel que ele tinha barrado, sentados os dois diante da janela nua por onde entrava toda a luz. Ela a comer muito lentamente os pedacos de pessego que ele tinha descascado e partido. Os dois a fumarem cada urn o seu cigarro e os fumos dos dois a misturarem-se, azuis e cin-zentos, sobre a mesa onde estavam os dois, banhados de luz. Ele absolutamente feliz, tao feliz que nao lhe impor-tava que esses momentos nao durassem, que poderiam acabar de urn momento para o outro, porque aqueles bastavam. V Simao recordava: ele e Sara em Nova Iorque, o umbigo do mundo, no dia de Natal. Sara cheia de frio, a queixar-se do frio como se a culpa fosse dele, como se ele tivesse a obrigacao de aquecer o ar, nem que fosse so o ar em redor de Sara. Se ele pudesse, ele o faria. E o caminho de regresso ao hotel parecia nao acabar, e nao era possivel parar para esperar por um autocarro porque Sara podia gelar e nao passava taxi algum, quan-do nos outros dias passavam tantos taxis. Ele sem saber o que fazer e Sara cada vez mais zanga-da. Sem saber se era com o vento frio ou com ele que ela estava assim, cada vez mais zangada. Sara com luvas, cada dedo de uma cor, como o arco-iris. Sara de cachecol com todas as cores do arco-iris. Sara com o corpo todo tapado por um sobretudo cinzento claro, maravilhosa Sara. Ele completamente apaixonado por Sara zangada com o vento e com ele por causa do vento e do frio. Porque ela o confundia na sua raiva ou com o ar gelado ou com um pequeno deus que deveria ter poder sobre o vento e o frio, e nao tinha. Por fim o taxi e o alivio dele quando Sara entrou no taxi onde esperou que Sara lhe pedisse desculpa, reconsi-derasse ja que ele nao era o unico responsavel pelo frio que faz no Natal em Nova lorque.' Mas ela nao pediu desculpa, ficou calada ate chegarem frente a porta do hotel. E ele entao soube que Sara nunca lhe iria pedir desculpa do que quer que fosse e ele sentiu-se assustado com o or-gulho dela que lhe pareceu desmedido. Mais do que assustado, sentiu medo e nem sequer teve coragem para o dizer a Sara, esperando estar enganado, desejan.do mais do que tudo estar enganado. Ele e Sara aguardando o elevador que nunca mais chegava. Sara sem olhar uma vez para ele. Ele olhando para Sara com os olhos mais tristes, para ela que era tudo para ele. Sara entrando no quarto a frente dele, dirigindo-se de imediato para o quarto de banho. Ele ouvindo o baru-lho da agua a cair na banheira, sozinho no quarto olhando os predios enormes como se estivesse emigrado num planeta distante e se sentisse perdido. Ele procurando adivinhar pelos barulhos da agua os movimentos de Sara, imaginando o corpo de Sara, o corpo amado, o corpo distante que ele via afastar-se cada vez mais. Ele a espera de Sara que continuava dentro da banheira e ele sem ousar entrar no quarto de banho, sem ousar fazer nada, pensar o que quer que fosse, ouvindo os carros que via passar la ao fundo. Ele olhando o ceu muito claro no qual se recortavam os predios que conti-nuavam a nao lhe parecer reais, agora recortes de papel num jogo para criancas. Ele que se sentia uma crianca, sem saber o que fazer, abandonado numa cidade a que al-guem tinha chamado Nova lorque. i Simao recordava: Sara diante do espelho penteando os cabelos que eram longos e encaracolados. Diante do espelho grande que ela tinha trazido de casa da mae, o único que havia em casa, a nao ser um muito pequeno que estava pendu-rado numa parede da casa de banho e que Simao usava para fazer a barba. O espelho que ela tinha posto no quarto onde dormi-am, sobre uma mesa. Sara emoldurada no espelho de cai-xilho de madeira penteando longamente os cabelos muito escuros. Durante muito tempo, várias vezeš ao dia. Ele por vezeš ainda deitado, por vezeš no corredor, quando a porta do quarto tinha ficado aberta, por vezeš logo ao entrar em casa, quando todas as portas estavam abertas, olhando, espreitando, louvando Sara diante do espelho. Sara e os seus cabelos, e os caracóis, os inúmeros caracóis do seu cabelo. Ele sentado na borda da cama a olhar para Sara dentro do espelho e a ver-se a si próprio ao lado dela, como num retrato, espantado com a beleza dela, fixada por momentos num quadro vivo, o mais precioso de todos os quadros que ele tinha visto em todos os museus que tinha visitado e revisitado. Ele muito impressionado com a beleza de Sara, beleza incompreensível, obra de um autor desconhecido, ou da natureza, ou de Deus e que só ele tinha o privilégio de poder contemplar sozinho, sentado na borda da cama, muito quieto, sem dizer uma só palavra, com receio que um gesto ou um som desfizessem para sempře a maravi-Iha qUe era $ara e os seus caDelos. Sara levantando-se de repente, dizendo-lhe que já podiam ir, que nao era tarde e ele agradecendo-lhe o ela ser tao bela, ao que ela respondia sempře: bela aos teus olhos. Ele beijando os olhos de Sara, as duas pombas, que ele sentia tremer debaixo dos seus lábios, também eles trementes, todo ele comovido. Ele agařrando no braco de Sara, levando-a pelo cor-redor, muito orgulhoso de a ter ao seu lado, quase dema-siado orgulho, quase vaidade dela que o seguia pelo cor-redor com o seu sorriso e lhe dizia que ele era um tonto. VII Simäo recordava: ele diante do espelho muito pequeno que estava no quarto de banho, a fazer a barba pela segunda vez, a olhar para o espelho para näo olhar para Sara que tinha por fim chegado e estava ao seu lado. Ele a perguntar-lhe com uma voz assustadoramente calma, uma voz emprestada para esconder a dor terrível que lhe doía no sítio mais sensível da alma, se tinha tudo corrido bem, se o aviäo tinha chegado sem atraso e ela a dizer-lhe que sim e ele sabendo que o aviäo nem sequer tinha partido, que o aeroporto estava encerrado por causa do nevoeiro, coisa em que ela nem sequer tinha reparado. Ele a perguntar-lhe de novo como se ela näo o tivesse ouvi-do, apesar de estar ali mesmo ao seu lado, e ela a repetir que sim que näo tinha havido problemas nem ä chegada nem ä partida e que o aviäo tinha voado em direcgäo a Roma para depois voltar para casa, para Jerusalem. Ele continuando a fazer a barba, apesar de näo ver nada a näo ser uma mancha sem contornos que devia ser a sua cara, a dizer-lhe que näo era possível, que o aeroporto estava encerrado por causa do nevoeiro, com a voz aparentemente calma, a tal voz emprestada. epois o silencio dela que durou muito tempo ate por fim dizer que de facto nao tinha ido trabalhar, que o Raul a tinha substituido, que ela se tinha sentido incapaz de trabalhar, que tinha ido para a cidade e se tinha metido num cinema para passar o tempo e nao pensar nas dores de cabe^a. Ele a perguntar-lhe que filme vira e ela a res-ponder que tinha ido ver o mesmo que tinham visto os dois juntos na semana passada. Ele a saber que ela lhe estava a mentir, a ele que a adorava, sem conseguir perce-ber, com a dor a doer cada vez mais fundo no sitio mais sensivel da alma. Ela saindo do quarto de banho, deixando-o so diante do espelho onde ele nao via senao uma mancha disforme que devia ser a sua cara coberta de lagrimas, esforcando--se por acreditar na mentira dela, sem conseguir, com a alma cortada e a cara a sangrar. vin Simäo recordava: ele com sete dioptrias em cada urn dos olhos, sem ócu-los, que tinha estupidamente partido de manhä ao limpá--los, e ela a dizer que tinha de sair, que tinha de ir ver o Fernando, porque ele devia estar triste e precisava de a ver. Ele a dizer-lhe que ela näo o podia deixar assim, meio cego durante a noite, que também ele precisava dela, mais do que ninguém, que ela näo podia partir assim. Ela sentada na borda da cama onde ele estava deita-do com os olhos fechados, a cabega a doer, e ela a dizer que era muito difícil o sentir-se amada por dois homens e ele viu que devia ser urn deles o que o fez rir. Ela entäo triosa com uma voz que ele teve dificuldade em reco- nhecer como a dela, urna voz pavorosa, a dizer que entäo ela faria o que ele quisesse, que se ele quisesse ela ficava ali a olhá-lo deitado, mesmo a sorrir se ele assím o quisesse, que se ele quisesse ela ia fazer o jantár e ele que esco-lhesse o jantár, se ele quisesse, porque ela só existia para o servir, e que ele era o dono dela e que se ele quisesse que ela chorasse ela choraria o exacto numero de lágri-mas que ele ordenasse. Ela a dizer tudo isto. Ela a levantar-se e a comecar a arranjar-se diante do espelho para sair, apesar de tudo o que ele tinha dito e de tudo o que ela tinha dito. E entäo ele saltou da cama e agarrou-a nos bracos com urna raiva que desconhecia. Ela a dizer-lhe que a largasse, que ele lhe estava a bater, que ia sair porque tinha medo dele, que ele lhe ia bater mais, que agora é que ia mesmo sair. Ele de bragos caídos, olhando para a névoa do chäo, certo do prazer com que ela o via sofrer assim, estranho prazer, com que ela o ia deixar ali de pé sem os óculos, partidos. Ela näo queria saber, ela que estava čerta que dois homens a amavam, enquanto um deles molhava o chäo de lágrimas. Ela era livre de fazer o que quisesse. VIDA DE ADULTO (1992)