C Asa na Duna I Na gandara ha aldeolas ermas, esquecidas entre pinhais, no fim do mundo. Nelas vivem homens se-meando e colhendo, quando o estio poupa as espigas e o inverno nao desaba em chuva e lama. Porque entao sao ramagens torcidas, barrancos, solidao, naquelas terras pobres. Ao fundo dum desses sitios, ha uma pequena lagoa que o calor de julho seca. A aldeia chama-se Corrocovo e a lagoa nem sequer tern nome. Quando a agua se escoa, a concha gretada esta coberta de bu-nho. As mulheres ceifam-no, estendem-no ao sol, e entrancam esteiras que vao vender as feiras da vila de Corgos. Mariano Paulo e os amigos descem da quinta, cacam ali os patos bravos, quando o outono os leva de passagem para as terras quentes do sul. O charco espalha sezoes nos casebres a borda de agua e aga-salha as aves para os senhores da aldeia derrubarem a tiro. Aves com frio, cacadas crepusculares. O Dr. Seabra e o Guimaraes vem de Corgos, a convite de Mariano Paulo. Sao os unicos amigos que 603 conservou na vila. Os outros for am rareando, desa-parecendo pouco a pouco, desde que D. Conceicao e o velho Paulo morreram. Sumiu-se o antigo alvo-roco do casarao de Corrocovo, o ruído dos seroes, com a gente de Corgos a encher as salaš. A vida de Mariano Paulo náo pedia grandes festas. Areenta como o chao da quinta. E os amigos deixaram de apa-recer, a casa ficou silenciosa. Só o Dr. Seabra e o Guimaráes continuaram fiéis. No outono aparecem de espingarda ao ombro, passam a tarde no casarao e pelo anoitecer metem-se na lagoa. Canaviais mergulham na água, as enguias revol-vem o lodo, sapos e ras enchem o crepúsculo duma toada constante. Os cacadores esperam, de lama até ao joelho, metidos nas suas botas de cano alto. Tiros. E um restolho aflito de asas, que as descargas mal deixam ouvir. Mudam de roupa na cabana de Lobisomem, partem com os patos a sangrar nas bolsas de lona. Lobisomem segue-os até á porta, de corpanzil vergado e uma das pernas a arrastar no chao nu da cabana. Da lagoa vem um cheiro de água que apodrece. Lobisomem senta-se a acariciar a plumagem do pato que os cacadores lhe deram, corre-lhe os dedos va-garosos nas asas macias, sorri misteriosamente como as criancas. O povoado cresce sobre a duna que há perto de duzentos anos os pinhais comecaram a fixar. No alto, a descer para o poente, fica a quinta dos Paulos. A casa tem dois pisos e é ampla e velha. Uma larga alpendrada resguarda-lhe as janelas da chůva, das nor-tadas. A teiha é antiga, canelada, e o tempo enegre-ceu a caiacáo. A quinta desdobra-se em leiras de pi-nhal, vinha, milho, pela gandara dentro. 604 Mariano Paulo abre a adega e Maria dos Anjos serve a carnica da caca, em grossas malgas, na mesa que Firmino improvisou sobre cepos do telheiro. Os amigos de Corgos gostam daquilo assim, á beira dos tonéis. O Guimaráes enche a caneca bojuda, vidra-da, e diz que o vinho se deve beber ao esguichar da pipa: — Já que se nao pode beber na parra, Conversam. E emborcam até alta noite, a largas goladas, o vinho espesso de Corrocovo. Hilário vé-o pinchar nos copos, nas canecas. As torneiras gotejam nos alguidares de barro negro. Nao percebe onde o pai arranja disposicao para aquelas ceias. Maria dos Anjos entra e sai carregada de loica. Firmino encosta--se a uma dorna. Espera. Lá para as tafitas, toca a aparelhar a charrete e ala para Corgos, com o Guimaráes e o Dr. Seabra. Pelos postigos gradeados entra o fresco da noite, um vento manso mas carregado de neve. Talvez o patráo se lembre de lhe emprestar o gabao aíentejano. Hilário deixa a adega, sem uma palavra. O Dr. Seabra poisa a máo no ombro de Mariano; — Estamos velhos para isto. Só o Guimaráes continua a beber: Prova um ba-gaco especial, gaba-lhe a forca e pergunta a idade da aguardente. Mariano responde, cansado. O Dr. Seabra fita-o com apreensao: cansaco apenas? E o Guimaráes, saboreando uma ultima golada, fecha os olhos, reconfortado. Quando aquele bagaco correu do alambique, ain-da Lobisomem era o moiro da quinta. Alto e escuro como um tronco da gándara, pegava na enxada, no machado, carregava o milho das tulhas da quinta, em grandes sacos, para as carrocas que esperavam ao 60S portao. O velho Paulo apontava-o a gente da vila que vinha buscar o milho a Corrocovo: — Um toiro, caramba. Olhem-me para ele. Lobisomem passava de sacaria ao ombro e os comerciantes, amarelos da escuridao dos armazens, pasraavam do andar firme daquele bruto, um pouco vergado sob os far dos de chumbo. As carrocas estavam carregadas e, la fora, os ca-valos impacientes escarvavam o chao. Os comercian-tes discutiam os ultimos pormenores do pagamento e despediam-se apontando o vulto de Lobisomem no telheiro: — Sim senhor, uma besta de forca. E homens e cavalos, ajoujados de milho, abala-vam a caminho dos armazens de Corgos. Uma tarde, Firmino foi dar com Lobisomem na adega quase morto. Caira-lhe uma do ma por cima, quando calcava o mosto do velho Paulo. A perna es-querda era uma massa de carne e ossos esmagados, presa por milagre ao resto do corpo. Jornaleiros da quinta comentavam o desastre, consternados. Nas feiras, quando os negocios correm mal, ha um rumor assim, que entristece os marchan-tes, os ciganos, os pobres vendedores de tamancos. O velho Paulo apertava as maos na cabeca: — Desgracas destas, so na minha casa. Garotos olhavam, agarrados as saias das maes, cheios de medo. Lobisomem gemia, num murmurio infantil. Escorria mosto e sangue: metade terra, ou-tra metade homem. II Os Paulos, um após outro, tinham conseguido alargar a quinta, leira sobre leira, num tempo em que os camponeses trocavam a terra a canecas de vinho. Corrocovo via a fazenda acumular-se, a quinta alastrar sobre os pequenos campos vizinhos. Os homens entregavam a terra vendida e comecavam a cavá-la por conta alheia, ganhando a jorna čerta dos patröes. Era mais seguro que o rendimento duvidoso duma nesga de chäo, sujeito ä razia das chuvas e do sol. A quinta cresceu, abocanhando tudo: pinhal, sea-ras e poisios. O velho Paulo consertou o casaräo, pös--lhe vigamentos firmes e assentou um andar novo sobre as paredes térreas. Trouxe amigos da vila e, aos domingos, o povo ficava cá em baixo a olhar as ja-nelas iluminadas pela noite fora. Vinham as famílias dos comerciantes de Corgos, do Dr. Juiz, do Gui-maräes, do Pina. Aparecia de vez em quando o Dr. Seabra, um médico novo, folgazäo. Mariano Paulo simpatizou com ele e fizeram-se amigos. Saíam em grandes estúrdias ä cidade, usando e abusando de mulheres, vinho do Porto, jogo. Corriam 606 607 as feiras, os arraiais da gändara, com meia dúzia de jornaleiros fiéis, beliscando as raparigas, armando za-ragatas, comendo o leiíäo assado sob as Iatadas das tabernas. Voltavam aos serôes de Corrocovo e dancavam com as meninas da vila. Mariano Paulo deixava-se enlear nos olhos amendoados da Conceícäo Pina. Falava-Ihe de coisas com segundo sentido e ela corava, enquanto o tocador de harmónio dobava a sua meada de valsas e mazurcas; corava e desco-rava, sentindo o braco de Mariano na cintura; mas de súbito os olhos algarvios, uma heranca materna, tornavam-se mais vagos e ela sorria, duma certa dištancia: — É melhor descansarmos um pouco. Mariano passava o resto da noite a contemplá- -la de longe, com o cigarro apagado na boca. A gente moga dancava; as senhoras falavam dos namoros das filhas; os homens, de política, negócios e, mais baixo, de certas damas da cidade; o velho Paulo, o Dr. Juiz, o delegado e o Pina jogavam a sueca. O Dr. Seabra, encostado a um canto, via Mariano sozinho e aproximava-se: — Näo posso mais com isto. Adormeco. Desciam ä adega, assavam chouricos no fogarei- ro, fumavam e bebiam. De cima, vinha o rumor da música, da danca, das conversas. Mariano pensava em Conceicäo e fazia confidencias ao amigo: — A rapariga deu-me volta á cabeca. Deve ser aquele sangue do sui. Näo se admire de me ver casa-do um dia destes. O Dr. Seabra gracejava: — É lá consigo. Mas há formas mais fáceis de suicidio. Entretanto, continuavam a sair pelas feiras. Dias grandes, com o gado a mugir e a levantar a espessa poeira dos largos; as mocas em ranchos; o sol de cha-pa nas barracas, nas reses, nas pessoas; a sede a aper-tar e o vinho fresco ao fundo das tabernas. Tinham ido a S. Caetano a pé, encurtando o ca-minho através do mato. O verao ardia como um for-no de cal. A feira estava no auge; respirava-se a custo; era a forca do dia. O Dr. Seabra viu a rapariga da blusa encarnada com os bois pela soga: — É preciso cuidado. Os bichos gostam de mar-rar no vermelho. E foi estendendo a mao: — A blusa é de seda? Pode-se apalpar? A rapariga nem pestanejou: — Apalpe a que o pariu. — Que diabo. Só queria apalpar a blusa. O rapaz moreno, que descascava uma vergasta com a navalha, aproximou-se. Mariano Paulo preve-niu: — Atencao, doutor. Esse fulano aciganado. E voltou-se para os homens que tinha trazido de Corrocovo. Lá estavam eles, de cacete na mao, decididos a tudo. Bebiam e comiam por conta de Mariano Paulo. E como, nestes casos, o ódio entre as aldeias também pesa, nao pensariam duas vezes para entrar em accao. No entanto, Mariano contou-os e segredou ao amigo: — Somos oito. É melhor ir andando. — Está bem, mas devagar. Cercava-os cada vez mais gente. O rapaz more-no atirara a vergasta for a e afagava a lamina da navalha. Um homenzinho gordb, aos saltos para ver 60S 609 alguma coisa, explicava a questäo a uma mulher ain-da mais baixa do que ele: — É essa cor j a dos fidalgos a implicar com a rapariga. O Dr. Seabra, Mariano e os seus homens reti-ravam por entre o povo. O rapaz moreno seguia-os passo a passo. Havia enxadas no ar, insultos, punhos ameacadores. Mariano Paulo gritou: — Abrir alas, quern tern amor ä pele. O rapaz moreno decidiu-se por fim, a navalha relampejou. O Dr. Seabra esquivou o golpe e o rapaz caiu no meio dos caceteiros de Corrocovo. O povo lancou-se no tumulto, ás cegas. Homens de cabeca rachada saíam a limpar o sangue dos olhos e atiravam--se outra vez ao barulho. Entäo, o gado espantou-se e comecou a varrer a feira de lado a lado. Os bois investiam, desfazendo ajuntamentos, desmantelando as barracas, colhendo a multidäo a torto e a direito, e foi preciso abando-nar uma luta por outra: dominar os bichos peios cor-nos, pôr um pouco de ordern na feira. Mariano Paulo, o Dr. Seabra e a gente de Corrocovo aproveitaram para se escapar na direccäo dos pinhais sem feridos de monta. Mas no largo o rapaz moreno ficara estendido, meio morto. Escorria-lhe o sangue duma larga brechá na cabeca e tinha os dois bracos partidos. III Mariano Paulo meteu-se no sossego da quinta. Corria a propriedade até äs vedacöes de cana, näo passava dali. Pensava seriamente em casar, trocar as feiras, as mulheres da cidade, o jogo, pelos olhos da Conceicäo Pina; conhecer a fundo aquele sangue do sul. O velho Paulo, mal disposto com a história de S. Caetano, resolvera intervir. — É tempo de escolheres outra vida. O Seabra näo vai por bom caminho e tu... — Deixe o Seabra em paz. Maior, revacinado e com barba na cara, assumo a responsabilidade do que faco. Mas o pai tem razäo, devo mudar de vida, e julgo que o melhor é casar-me. — Näo te exijo tanto. — Descanse. É de livre vontade. Talvez a Conceicäo me sirva. Se estiver de acordo, fale ao Pina, peca-lhe a filha em casamento. Os patos bravos, de passagem para o sul, comecavam a poisar com o outono na lagoa de Corrocovo. Mariano descia a aldeia pelo anoitecer, de cacadeira ao ombro, matava as aves brancas de encontro ao céu que escurecia. 610 O velho Paulo concordara com a ideia do filho e fora a Corgos fazer o pedido. Mariano descalcou as botas de caca e, impaciente, subiu á sala a inter-rogar o pai: — Que tal, o Pina? — Recebeu a proposta com as duas maos, para náo dizer com as quatro: o Mariano, sim senhor, Optimo rapaz; é uma honra para nós, amigo Paulo. Náo trazia cá a filha para outra coisa. Toda essa cambada da vila te queria apanhar. — E ela? — Calada, mas derretida. Agora, vai látu falar--lhes e combinem isso em pormenor. A cerimónia em Corgos, se quiserem, mas a boda aqui. Faco questao. Deixou-se cair numa cadeira, exagerando a via- gem: — Irra, que estopada. Mariano Paulo abandonou a caca e apareceu na vila. Visitou os Pinas, combinando o casamento para os fins de novembro. Chamou Conceicáo á parte e disse-lhe que já tinha escolhido padrinho. Ia dali fa-lar ao Dr. Seabra. Ela sempře foi lembrando: — Náo gostam dele, cá em casa. E eu, Mariano, para ser sincera, tenho medo que o Dr. Seabra o ar-raste de novo para histórias como a de S. Caetano. — Ninguém me arrastou para coisa nenhuma. Já nao uso calcoes. E o que lá vai, lá vai. Poe-se uma pedra no passado e vida nova. — É uma promessa? — Claro. E saiba que o Dr. Seabra náo é táo feio como o pintám. — Néssé caso, está bem, Mariano encontrou o médico no consultório, fez--lhe o convite e o outro preveniu-o: — Oihe que os Pinas julgam-me o diabo em car-ne e osso. Veja lá. — Falei á Conceicáo e ela concorda. — Conte comigo, entáo. A noiva apressava o enxoval. Mariano passava os dias junto dela e ao entardecer atravessava a vila de charrete em direccáo a Corrocovo. O cavalo a trote na estráda ladeada de pinhais. Anoitecia rapi-damente. Conceicáo ficara em Corgos ás voltas com tecidos, rendas, costureiras. Mariano suspirava. Que tempo demoraria ainda aquela trapalhada? Conceigáo sorria de semelhante fúria, mas ele tinha realmente pressa. Deixava a casa dos Pinas sófrego, inquieto. A mesa grande que o velho Paulo mandara er-guer na sala de jantar ficou pronta aguardando os oitenta convidados. As mocas da quinta engalanaram o portáo com arcos de buxo e palmas para receber a senhora. A véspera do casamento gastou-a Mariano a or-denar papéis, a rasgar algumas cartas inconvenientes: namoricos, amantes. Deitou-se tarde e dormiu pou-co. Mal acordou, abriu a janela de par em par á ma-nhá chuvosa, enevoada. Na quinta náo se via um tra-balhador. O velho Paulo dispensara o pessoal mas pagava a jorna. Novembro ia no fim, carregado duma neblina turva que rasava a terra dias inteiros. Lavou-se, vestiu-se devagar. Tornou café, sentou--se á espera do Dr. Seabra. Fumava cigarros uns atrás dos outros; pensava, irritado: — Eu é que pareco a noiva. Francamente. O velho Paulo veio receber o Dr. Seabra á porta da rua: — Suba, tente serená-lo. 613 612 O medico entrou no quarto do amigo e puxou do rel6gio: — Sao horas, Mariano. Vamos la a Corgos bus-car essa princesa. Sairam com o velho Paulo. O dia continuava tris-te. O orvalho e a neblina gotejavam das palmas en-trancadas no portao da quinta. IV A chuva, em grossas bátegas, derreava o telha-do. Firmino consertava os rombos por onde o in věrno entrava, mas a água e o vento tornavam a abri--los, ainda maiores. A lagoa crescera um metro sobre o bunho e in-vadia, as golfadas, os casebres de Corrocovo. Cor-rocovo era isto: tocas sem lume, devassadas pelo temporal; criancas quase mortas de frio; os campos alagados; o céu tao baixo que parecia poisar na rama dos pinheiros; chuva insistente, noite e dia. O Natal passou; Jesus nasceu por aquele tempo desabrido; e o dilúvio continuou a cair. O velho Paulo, por trás da vidraca, olhava a quinta. Via a terra fartar-se de água, ganhar forca para rebentar na primavera. A chuva desceria pelo cháo permeável, revolveria a areia até encontrar uma camada mais densa que a fizesse parar e ali fi-cava á espera das raizes ávidas que a procuravam. O velho Paulo agradecia a Deus aquela água que era sangue a correr no corpo das suas terras. Os campo-neses ansiavam pelo tempo descoberto em que pu- 614 615 dessem retomar o trabalho na quinta, ganhar o dia por inteiro. D. Conceicao passava as hor as estendida numa cadeira de bracos. Quase náo falava. E aquele silěn-cio, aquela lassidao, traziam Mariano Paulo inquie-to. Os seroes tinham acabado. Ela propria pedira ao marido que náo convidasse a gente de Corgos por en-quanto. — E os teus pais? — Mais tarde. Temos muito tempo. Só o Dr. Seabra aparecia de vez em quando, numa aberta do tempo; brincava com as apreensSes do amigo; agarrava-o por um braco e, depois, no desváo da.janela, tentava sossegá-lo: — Nada de cuidado. Trouxe de Corgos uns for-tificantes e o estado geral vai melhorar. É um corpo novo que anda ali dentro a alimentar-se, a enfraque-cer a máe. Um parasita. Compreende? Temos de matar-lhe a fome. Iodo, cálcio, etc. Deixe andar. E mudava de assunto, falava do rigor do inver-no. O velho Paulo surgia do escritório e dava a sua opiniáo: — Por um lado é bom, por outro é mau. Res-suscita-me as terras, cada gota que cai vale bem um poceiro de estrume. É certo que o vento me esgalha as laranjeiras, me p5e os frutos a apodrecer no chao. Náo sei. Pensando duas vezeš, talvez sej a prefer ivel que chova. O Dr. Seabra apontava a aldeia a escorregar pe-la duna, a mergulhar lá em baixo na lagoa: — Esses věem as coisas doutro modo. Poucos tem terras. O inverno, para eles, é a falta de trabalho e a falta de trabalho é a fome, a doenca. Para náo falar das casas encharcadas, das criancas mortas. 616 Suspendia o discurso e acrescentava num sorriso: — Desculpem, mas ás vezeš dá-me para o sen-timento. Vocé, Mariano, coracáo ao alto. A D. Con-ceicáo está bem, na gravidez tudo aquilo é vulgar. Dě-lhe os meus cumprimentos. E venha a chůva que quiser, amigo Paulo. O que é preciso é o vinho forte. Acompanhavam-no á porta, ficavam a vé-lo montar o cavalo e sumir-se a trote nos pinhais. O velho Paulo concedia: — Ao fim e ao cabo, náo é má pessoa. O inverno důrou ainda um més. Abril trouxe, por fim, os dias claros. As serras apareciam ao lon-ge, aéreas, numa cor de pérola, a primavera explodia nas árvores nuas com a forga dum toiro, as aves ras-gavam o ar mais leve das manhás. Os trabaihadores comecaram a cavar o cháo da quinta, a lancar de novo as sementes á terra dos Paulos. E ao ritmo desses gestos lentos e antigos os anos foram passando sobre Corrocovo. 617 v Mariano Paulo olhou a locomotiva que chegava entre silvos e rolos de fumo. A gare cheirava a óleo, a carväo queimado. Viajantes apressados desciam das carruagens; o pessoal da estacäo passava com as suas fardas escuras; operários, de ganga, atravessavam a linha; corretores de boné agaloado ofereciam os hotels da cidade. As férias grandes tinham acabado e Mariano Paulo viera trazer Hilário ao colégio de S. Pedro. Acertou o relógio pelo da estacäo e entrou na carruagem. A máquina arquejava, o sol da meia tarde ardia nos vidros da enorme marquise. Sinais, a bandeira vermelha descendo, um grito de partida, e o combojo largou pelos campos do rio, já tocados de outono. S. Pedro era um convento salitroso, expropria-do durante o liberalismo. As portas, largas e altas, dir-se-iam feitas para gigantes. Hilário detestava S. Pedro, a alegria dos colegas nos corredores laje-ados, as brincadeiras violentas do recreio. Odiava os companheiros que o crivavam de alcunhas. Urn vigor selvagem tumultuava no claustro do colégio e ele, frá- 619 gil, tristonho, recolhia-se a um canto. Pensava em Corrocovo, na grande mol dura oval do retrato da mae, no Guimaraes e no Dr. Seabra, nos seroes da quinta, com o pai sempře calado, a fumar, de olhos fitos no lume, e Palmira a arear os talheres, a arru-mar a cozinha. Via sobretudo o avó, de bengala em punho, vagueando pelo casarao á procura de Mariano Paulo: — Tu e esse malandro do Firmino. Dois ladroes. Mas de hoje em diante quern toma conta disto sou eu. Quem vende o milho e o vinho, quern paga ao pessoal. Veremos se há lucros ou nao há. O pai, com os olhos quase fechados para ocul-tar as lágrimas, murmurava: — O teu avó está velho, doente. Nao facas caso do que ele diz. Recordava a noite espantosa em que chegavam ao seu quarto os gritos do velho a morrer; a voz con-tida do Dr. Seabra, os padre-nossos de Palmira no corredor; e, quando o avó se calava, um siléncio pior que as pragas e os solucos. A tremer de medo, puxava a roupa sobre a cabeca para náo ouvir. Agora, o rumor da cidade era táo leve que podia sentir-se uma folha de árvore cair. S. Pedro adormecia. Na camarata, a escuridao tomava forma, adensava-se aos cantos, erguia-se, rocava-lhe a cara. Reconhecia entáo a figura curvada do avó pelas salaš de Corrocovo, amaldicoando tudo, en-quanto a mořte crescia da noite e lhe tapava a boca. Suava, a camisola de la pegava-se-lhe ao corpo. Apertava as pálpebras com for ca até ver surgir o retrato da máe. Ou a madrugada o sossegar. Ansiava pelas férias. De regresso á quinta, en-contrava a amizade silenciosa do pai, a figura seca 620 de Palmira. Mas o Dr. Seabra aparecia, apontava--lhe as terras lavradas, explicava-lhe a vida dos bi-chos, das plantas. Era capaz de o ouvir horas ä fio. Äs vezes per-guntava: — De que morreu a mäe? — Morreu. Näo se fala mais nisso. Ves aquelas videiras? E o médico contava-lhe a história dum bago de uva, desde que o sol o aveludava até poisar sobre o Iinho da mesa, junto do päo do forno; urna gota de vinho cor das ultimas parras, entre roxo e oiro. Mariano Paulo ponderava os conselhos do Dr. Seabra: — Tire o pequeno do colégio. Traga-o para a quinta, ponha-o a crestar, a comer bem. — Näo o tenho longe por gosto. — Eu sei, mas o rapaz é fraco, ensimesmado, e precisa de ar livre. Palmira vinha anunciar a ceia. O Dr. Seabra que-ria partir, levantara-se ás sete da manhä, cavalgara o dia inteiro, o tifo nas aldeias, o inferno, e apetecia--lhe um pouco de descanso. — Pois é pena, doutor. Temos leitäo de cabidela. — Leitäo de cabidela? Bem, näo estou täo can-sado como isso. Comiam. E o médico estendia o garfo na direccäo de Hilário: — Para que precisa ele dum curso? Para se meter aqui, a dirigir a quinta, quando voce morrer? Mariano Pauio ia cedendo: — Talvez tenha razäo. Cortava a cinza do cigarro na borda do prato: 621 — Estou a pagar caro certas cabecadas antigas. E o que e. Tudo o que podia dar-me algum consolo me escapa entre os dedos. E num vago sorriso: — Trate do pequeho, entrego-lho. Bern preciso duma restia de sol nesta casa. Palmira levantava os pratos, trazia o cafe. Hi-lario deixava tombar sobre a mesa a cabeca pesada de sono. S. Pedro comecava a ser uma recordacao. Mas continuava a doer. Como um fruto azedo que se trin-cou e amarga ainda. i s VI No casaräo da quinta falava-se pouco, Mariano Paulo comia á pressa e saía para dar as indicacôes do servico a Firmino. Uma vez por outra, mandava aparelhar a charrete e aparecia na vila a tratar de ne-gócios. Hilário ficava só com Palmira. A criada fazia o seu trabalho, muda, vagarosa. Sentia-se abando-nado. Olhava as grandes salas coalhadas de penumbra, os móveis velhos e escuros. Palmira deslizava como uma sombra. O pai, lá por fora, só chegaria para a ceia. 5 Descia ä quinta. Os trabalhadores, curvados so- bre a terra, mal davam por ele. Firmino chamava-o. Fingia näo ouyir e procurava o silencio dos pinhais. As ramarias quietas tinham um ar de mistério. Ima-; ginava-se entäo per dido numa floresta enorme, com I f eras a armar o salto por trás dos troncos. O calor i adormecia as aves no cume dos pinheiros. Que fas- 1 cínio nessa ilha perdida, onde o naufrágio o atirara. j Que mar fantástico lhe despedacara o veleiro do cor- i so. Capitäo de piratas, com a tripulacäo afogada, I o barco desmantelado nos rochedos da costa, meio 622 623 submerso. Como nos livros folheados äs escondidas em S. Pedro. Sentava-se na areia, deslumbrado. Um sonho tu-multuoso arfava-lhe no peito. Bosques dormentes e terriveis. Longe do colegio, de Corrocovo, do presents. Navegador e aventureiro, buscando a imagem do retrato oval, fundeando em recöncavos de äguas pa-radas e sombrias. Animais estranhos; maravilhas; ra-madas de ärvores como bracos de gigantes enlacados nas veredas talhadas ä beira dos abismos; aves des-conhecidas, pelos ceus de tempestade, derrubando os mastros, rasgatido as velas nos bicos formidäveis; en-seadas tranquilas, com areias alvas ao fundo e peixes cintilantes sobre as folhas das algas; mais adiante, monströs do oceano encapelando as ondas, barbata-nas longas, aceradas; revoltas da marinhagem; esco-lhos, relämpagos, medusas. Cada vez mais perto da imagem que o esperava, encantada, ao fim dos peri-gos. No cimo das rochas, o castelo, atreva, manchas gradeadas de luz desenhando as janelas dos torreöes. A escalada dos penedos, num silencio terrivel. As tro-voadas iminentes, as fauces dos dragöes, a lingua das serpentes Verdes, nada disso importava. Chegaria. E as maos sangravam-lhe nas arestas de pedra, o corpo erguia-se todo num ultimo esfofco. Vinham as trindades chamä-lo ärealidade. Anoi-tecia. O medo de que a escuridäo o surpreendesse nos pmliais apressava-lhe o passo. Os camponeses tinham ja largado o trabalho. Deitava a correr, chegava exaus-to ao casaräo. No quarto ouvia-se o rumor dos ratos, do ca-runcho. Palmira entrava com a jarra de ägua para a noite, poisava-a na mesinha-de-cabeceira sobre o naperon. 624 — Palmira. — Menino. — A mäe estä parecida no retrato da sala? — Estä. E apagava-lhe o candeeiro de petröleo. I I 62$ VII As mulheres que trabalhavam na quinta ou vi-nham trazer a merenda aos jornaleiros, gravidas, com os garotos pela mao, faziam-na sonhar. Imaginava--se como elas: prenha; depois, um filho ao colo, um braco protector em torno dos ombros e o sorriso forte dum hörnern a fitar a crianca. As mulheres passa-vam, de barriga crescida; Palmira olhava-as e tornava--se ainda mais silenciosa. Arrecadava os ordenados dos meses que corriam, infindáveis, uns atrás dos outros. Qüando amontoa-va dinheiro bastante, ia ä feira de Corgos, äs barra-cas dos ourives. Firmino gracejava: — Tanto oiro. Para o deixar a quem? — Meta o nariz na sua vida. — Case-se, mulher. Engorda, passa-lhe o mau génio, arranja herdeiros. Com o baú cheio de oiro, näo lhe faltam homens. É o que tem a fazer. E foi. Luciano Taipa, jornaleiro da quinta, ave-riguou ao certo as libras e os cordöes do baú, come-cou o namoro, e um dia Palmira pediu a Mariano Paulo que arranjasse criada: 627 — Vou sair. — Sair, porque? Pouco ordenado? Ela tremia, de olhos baixos: — Náo se trata disso. — Entao? Enrodilhava as máos no avental: — Tenho de me ir embora. Tenho... E por fim decidiu-se: — Vou-me casar. Com o Luciano Taipa. Hilário viu-a partir desinteressado. Fria e distan- te, passara anos entre aquelas paredes sem se fazer amar. Sobre a infancia de Hilário, a sua figura pai-rava escuramente. Casar naquela idade. O Taipa gostava Iá de tal mulher. Cheira-Ihe a dinheiro, claro, e ela deixa-se enredar. Sejam felizes. Palmira veio despedir-se. Abracou-se a ele, de-solada: — Meu menino. Meu rico menino. Nunca mais o vejo. Mariano Paulo interveio: — Qual nunca mais o vé. Vai para o Brasil? Nao vai. Nesta casa ninguém lhe fecha as portas. Aparega quando quiser. Palmira pegou no bau de lata e no saco de roupa que tinha ao lado. Enxugou os olhos: — Desculpem, mas vivi muito tempo aqui. Habi-tuei-me. E partir sempre custa. Mariano Paulo fez um gesto vago: — Ninguém a pos na rua. Ao fundo da sala, Palmira voltou-se ainda. Ia para dizer qualquer coisa, mas encolheu os ombros, como se nao valesse a pena, e saiu. VIII No alto, um milhafre ronda os quintals, com as grandes asas imóveis. Lobisomem finca o cacete no caminho e pára um pouco, a olhar. Depois, a ave pas-sa sobre os pinhais, projecta uma sombra rápida na água da lagoa, volteia sobre Corrocovo e some-se no céu de um azul muito aberto. Lobisomem retoma a marcha, arrastando a perná aleijada na poeira. A aldeia dorme; o dia é quen-te; garotos chafurdam nas estrumeiras, de mistura com galinhas e bácoros; sol; um mendigo a cair de sono pelos umbrais das portas. O povo anda nos campos, no bunho da lagoa, nos pocos. Lobisomem sobe a ladeira, penosamente, em direc-cáo á quinta. Ao cimo da duna, o casaráo tem as janelas fechadas. O carro de bois que vai á sua frente passa o largo portao. Antigamente, sim, Carros com pesadas dornas a tentar subir a rampa e o velho Paulo a chamá-lo: — Dá uma ajuda a esses bois. Náo atam, nem desatam. Fincava o ombro na traseira do carro e quase ao rés da terra suportava dornas, tudo, nos ossos de 628 629 i pedra; os bois, aguilhoados, galgavam a rampa. Erguia-se suado, limpava o pö dos joelhos. O velho Paulo sorria e ele ficava ä espera do elogio: — Toiros, ao pe de ti, säo ratos. Enfim, recordacöes. Compöe os alforges e segue aträs do carro. A adega, ä esquerda, salta logo ä vista de quern entra. Os postigos gradeados de ferro como uma prisäo. Lobisomem estremece. Lembra a tarde em que os companheiros da quinta lhe tira-ram a dorna de cima: a vasilha enorme a desabar, a pedra dos ossos britada. Maria dos Anjos sente-lhe os passos no alpen-dre. Vem esperä-lo ä porta. Lobisomem leva a mäo ao chapeu surrado e ela imita-lhe o gesto. Fita-a com ar apreensivo. — Esfregue essas ventas, diz a rapariga. Pegue numa telha, em sal, e raspe como se faz aos porcos. Deus me d§ paciencia. Trazer a cara suja ou la-vada tanto faz. Mas fecha os olhos com resignacäo e inventa uma desculpa: — Lavei-me ontem de manhä na lagoa. Sabe que Maria dos Anjos näo acredita. Ouve--lhe a troca, as gargalhadas, e acha melhor desviar a conversa. Principia a falar de Palmira: — Näo torna a haver outra como ela. Mai eu chegava, era o caldo e a broa na mesa, eram bons modos, era um copo de tinto. Ou dois, ou tres. O que eu quisesse. Abana docemente a cabeca: — Tu, ja se ve, tens urn lugar guardado no inferno. Hei-de rezar por ti. Maria dos Anjos continua a rir: — Quem estä no ceu e a Palmira. Casou-se, Lobisomem. Entra na cozinha. Volta pouco depois com um prato cheio de caldo e poisa-lho na mesa do alpen-dre. Lobisomem dá um estalo com a lingua: — Se houvesse um copo também ia. Sopa sem vinho é domingo sem missa. Nunca ouviste dizer? , Segura o prato, murmura de olhos enevoados: — Muita uva ajudei eu a pisar nesta quinta. Maria dos Anjos traz-lhe o pichel e o copo. Mariano Paulo e Hilário surgem dos telheiros, aproxi-mam-se. Lobisomem tira o chapéu. — Coma-lhe, beba-lhe á vontade. Limpam a terrica das botas no rebate da porta. Lobisomem cumpre as ordens de Mariano Paulo. Come, bebe. Quando acaba, leva a loica a Maria dos Anjos: — Vou daqui lavar-me outra vez. E pedir á Se-nhora da Lagoa que te perdoe. Atravessa o pátio, com a rapariga a gritar-lhe da porta da cozinha que náo esqueca a telha e o sal, que raspe até se ver a pele. Pois sim. Arrasta-se la-deira abaixo. Á porta da loja do Miranda, o caixeiro aproveita a aragem do fim da tarde e, ao ve-lo, aponta--lhe o casaráo dos Paulos: — Abencoada quinta, Lobisomem. Abencoada vida. Lérias. E passa adiante. A noite vai-se aproxi-mando. Camponeses entram nos casebres; mulheres procuram os filhos adormecidos nos pátios, nas es-trumeiras; um fumo crepuscular desprende-se das ser-ras. A água da lagoa arrefece com o primeiro peso da sombra e as ras comecam a coaxar. Lobisomem senta-se ao fundo da cabana, na es-teira de bunho. Leva a mao á cabeca felpuda. Um milhafre paira sobre Corrocóvo. Lobisomem pensa 630 631 no pässaro esfomeado que viu de tarde, Teria caido de subito sobre a presa e devorado nas alturas a car-ne pilhada. E passaria a noite poisado num desses pi-nheiros solitärios que metem medo. Lobisomem olha ao redor a cabana desolada. No dia seguinte, a ave tornaria a rondar a terra. E assim no futuro, ate que um tiro a deixasse a apodrecer no chäo ou a morte viesse, natural, sumi-la na amplidäo do tempo. Lobisomem cabeceia de sono. O calor do vinho, do caldo, lä estä no corpo todo. A fervilhar mansa-mente. Uma dorna de mosto, salvo seja. Estende-se ao comprido da esteira e adormece. I i I IX O trabalho da quinta era feito com enxadas, a uva esmagada sem prensas, o milho escarolado ä mäo. A aguardente de Corrocovo corria ainda do tosco alambique, como nos tempos do velho Paulo. A com-pra da grande mäquina destiladora fora sempre adia-da. Os homens continuariam a calcar os cachos, o bagaco, a escarolar as espigas. Desceriam ao fundo das dornas onde o mosto fervia. Um cheiro doce e perigoso entontecia-os, sufocava-os. Teriam de vir ä I superficie encher o peito de ar. j Na quinta, tudo nascia da sua paciencia. Se aparecessem as prensas, a destiladora, os escarola-dores mecänicos, os homens seriam despedidos. < Uma mäquina faz o trabalho de cem bracos. A ofer- ta de mäo-de-obra aumentaria em Corrocovo, as j levas dos emigrantes e dos ganhöes engrossariam e o povo das terras areentas debandaria em massa. Ao fim da caminhada, a gente da gändara encon- ] traria os esteiros do Tejo, os valados lodosos, as febres do arroz. Ou o chäo alheio dum novo conti- I nente. 632 633 Mas Mariano Paulo náo fazia tencao de com-prar as máquinas. A quinta continuaria silenciosa, sem o barulho dos motores. Os homens continuariam a semear e a colher, como há mil anos. Ao domingo, Mariano dormia até tarde, almo-cava sozinho e acabava o dia numa cadeira de lona por baixo da grande nogueira, a árvore tutelar da ca-sa, que Silvério Coxo, o iniciador, plantara na pri-meira nesga de cháo comprada pelos Paulos. Paz so-bre Corrocovo. As mulheres cochilavam nas soleiras das portas, os homens enchiam a taberna, as criancas buscavam pelo mato os ninhos e as cobras. Ao largo, os pinhais eternizavam o dia nas ramagens quietas. Mariano enrolava um cigarro e ficava de olhos fecha-dos, a cismar. No escritório, Hiiário fazia de má von-tade as folhas do pessoal, alinhando nomes e dinhei-ros, conferindo a caderneta de Firmino. O Guimaráes e o Dr. Seabra davam uma saltada a Corrocovo. Mariano mandava vir assentos, o Dr. Seabra reclamava o cadeiráo de baloico e o Guimaráes, apontando a quinta, os milhos a torrar ao sol, acon-selhava Mariano Paulo: — Quarenta, cinquenta por cento das colheitas, vao-se-lhe embora. Ponha motores nos pocos e rega a quinta em metade do tempo. Mariano erguia-se na cadeira de lona: — Ponha motores nos pocos. Muito bem. Mas voce náo pergunta se eu os posso comprar. Motores náo se poem com lérias, custam contos e contos de réis. Recostava-se de novo e considerava: — Alias, a rega náo passa dum aspecto do pro-blema. A quinta precisa também duma destiladora, a adega de prensas e lagares, o milho de escarolado-res. Aproveitava a uva por inteiro, o bagaco por in- teiro, fazia deste areal, quern sabe, uma quinta de jei-to. E voces, lá em Corgos, a roerem-se de inveja. Mas já pensou quanto me custava tudo isso? — Empatava o dinheiro se o tivesse, comprava a crédito se o nao tivesse. Arranjava preocupacoes mas tirava-lhe o lucro, objectava o Guimaráes. O Dr. Seabra pedia licenga para intervir. Molhava a mortalha e cuspia os fios de tabaco pegados á boca: — Lume, faz favor. Acendia o cigarro no de Mariano e entrava na questáo: — Fique sabendo, Guimaráes, que nisso nao es-tamos de acordo. Qual tirava-lhe o lucro, qual o que. Podia empantanar a quinta. Uma vindima que nao compensasse, uma colheita má, e era o diabo. As le-tras náo esperam, os bancos querem lá saber de secas ou de chuva. Suponha voce que vinham dois ou tres anos fracos a seguir e aí estava o Mariano a vender a terra para pagar as máquinas. Apagava-se-lhe o cigarro e atirava-o fora, irri-tado: — Com máquinas nao vou. Dá-se muita guita a esse papagaio e o vento, quase sempre, leva-o. Mariano Paulo concordava. Hiiário concorda-va também, em silěncio: maquinaria na quinta era a balbúrdia, o inferno. O Guimaráes defendia-se, tentando um ultimo argumento: — Mas o senhor anda de comboio, por exem-plo. Logo usa as máquinas, transige. — É outro caso, Guimaráes. É diferente. Eu refiro-me á lavoura, apenas á lavoura, e ai mantenho que náo vou com máquinas. Santa paciéncia, mas pre-firo á antiga. Este areeiro náo me parece cháo para 634 635 grandes cavalarias. Suponha que uma destiladora se encrenca. Tem de vir gente especializada; säo pecas novas, cada porcariazinha assim um dinheiräo; ope-rários a comer, a ganhar bem, a arrastar o conserto. Junte-lhe uma semana, duas semanas, o servico parádo. E vej a se compensa. Levantava-se, o cadeiräo ficava a balancar. En-rolava outro cigarro e pedia lume: — Motores, lá para os grandes centros, na fiacäo, nos sabôes, na indústria. Ou nos solos ricos. Äí, sim. Tudo corre direito. Aqui, discordo; a terra é muito pobre para esses luxos. O outro hesitava; e o Dr. Seabra concluía: — As coisas säo o que säo, Guimaräes. Valha-o Deus. Na capela, dávam as trindades. Mulheres reza-vam, aflicôes, desejos, filhos doentes, um murmúrio extremo que näo perturbava o anoitecer calmo, lento, do domingo. O Dr. Seabra e o Guimaräes despediam-se. Su-biam ä charrete e metiam pelo caminho de bois. No piso barrancoso, a égua ia a passo. Éram trés quiló-metros entre pinhais e mato antes de alcancarem o alcaträo suave da estráda que levava a Corgos. Mariano Paulo encontrava Guilhermina a sair da cozinha e gritava por Maria dos Anjos: — Anda cá. Näo quero esta muľher em minha casa. Já to disse milhares de vezeš. Se a torno a apa-nhar aqui, väo as duas pela porta fora. No rosto de Maria dos Anjos ha via um sorriso indiferente e malicioso ao mesmo tempo. Mariano Paulo comia, serenava. Afastando a cadeira da mesa, recostava-se um pouco. Alguns ci-garros seguidos, sem urna palavra, e ia deitar-se. Hiterio subia atras dele. No quarto, apoiado ao peitoril da janela, fitava uma luz brilhando algures entre a folhagem das laranjeiras: uma candeia tre-mula. Deixava correr o tempo. La ouvia por fim, entre os rumores da noite, os passos cuidadosos de Maria dos Anjos no corredor. A porta do quarto do pai rangia. Olhava as arvores, em que a lua poisava como o orvalho, fria e cintilante. Na cama de Mariano Paulo, a intrusa comecava a gemer com a rouquidao de certos bichos: rolas, gatas. Descia confusamente a es-cada, abria a cancela do quintal e achava-se na rua. Seguia rente as paredes. Urn cao ladrava para os lados da quinta; depois outro, mais para o povoa-do; ainda outro. Quando se calavam, o coaxar quase indistinto das ras tornava-se alarmante, ia da terra ao ceu para descer sobre Corrocovo, misterioso como tudo o que chega de longe. Batia a porta de Guilhermina. A rapariga per-guntava quem era. Continuava a bater. E ela apare-cia por fim, de candeia na mao: a cabeca fragil, de cabelos caidos, recortada no oiro do azeite que ardia; a mancha branca da camisa; urn ombro fulvo, nu. 636 637 X Palmira ficara a viver em Corrocovo. Na casa dos Taipas, á beira da lagoa. Avistava dali o casarao da quinta dominando a aldeia, sobre o dorso da duna, com as suas paredes altas, esverdeadas de musgo, e a alpendrada que tornava as salas escuras, Julgava-se mais feliz agora, casada com Luciano. A velha Taipa, imóvel no enxergáo, via Palmira com prazer. Recebia das suas maos a malga transbor-dante; o cheiro quente do caldo excitava-a e a saliva corria-lhe pelos cantos da boca. A luz da candeia dava as feicdes de Luciano, a fronte curta, o nariz e o queixo espessos, a dureza da pedra, das imagens rudes. A velha chamava. Palmira mudava-lhe a roupa molhada. Fitava Luciano e suportava sem custo o cheiro da palha apodrecida pela urina. Virava o corpo meio morto, estendia uma coberta enxuta sobre o enxergáo. Tinham concordado que o oiro era iniitil ao fun-do do bati. Compraram urn pedaco de terra e come-caram a cultivá-lo, cheios de esperanca. Náo se tra- 639 tava já de surribar, semear, regar, por conta alheia. Queriam que o seu pedaco de chäo crescesse como os canoilos de milho. Que a sua terra aumentasse. E trabalhavam, mortificavam-se, de sol a sol. Á velha ficava todo o dia sozinha. As moscas voavam das estrumeiras, zumbiam na sombra do ca-sebre. Réstias de luz entravam pelas telhas desconjun-tadas, abriam no soalho minúsculos lagos amarelos. Nesses raios de sol a poeira brilhava e as asas rápidas das moscas passavam de vermelho a azul, de verde a roxo. Cores ágeis, inquietas. A velha pensava em Luciano, em Palmira. E rezavá por eles. Na solidäo, um fragor longínquo aproximava-se, os cavalos da morte e o seu galope devastador. Uma estranha balada nascia da terra ferida pelo tropei. Palmira e Luciano andavam longe. Se gritasse, o grito morreria na aldeia erma. A cantilena reboava como na abó-bada duma igreja. Cavalos á desfilada s obre os cam-pos, as árvores, o povo, e das patas dos cavalos, que faiscavam lume no chäo, brotava o coro milenário em demanda do céu. A velha rezavá, desfiando as hor as do dia como um rosário. Pouco a pouco, a água do sol sumia-se no chäo, as moscas sossegavam na obscuridade. E por fim, o bater dos tamancos no empedrado, as vozes do povo que chegava do campo, arrancavam-na ao apocalipse do casebre. A velha estendia os bragos ao longo do corpo, fechava os olhos, sossegava. I - Í ! Í XI As colheitas náo compensaram. Chuvas fora do tempo apodreceram metade das raizes e o sol quando veio continuou a destruicao. Nevoeiro, mildio, lagar-tas e calor, isto é, doencas a grassar no chao macera-do. O vento quente bafej ava as culturas, matava por sua conta. A terra, que era verde, tornara-se amarela. Os bois sairam a lutar com a seca. Escoavam os pocos, atirando a água dos alcatruzes ás chas de milho, á batata calcinada. Cepas torciam-se a uma luz intensa. As águas saibrosas da lagoa, levava-as apressa-damente a estiagem. Lobisomem entrava no charco, que lhe dava agora pelos joelhos, enchia de lodo uma velha panela. Trazia-a para fora e arrancava as en-guias da crosta lamacenta. Estripava-as. Acendia a fogueira no cháo da cabana, deixava-a pegar bem. Passava as enguias sangrentas pelas chamas e comia á máo, chupando os dedos, donde escorria uma gor-dura meio crua. Bichos do milho furavam de lado a lado os canoilos apodrecidos. Luciano Taipa puxava o braco 641 da cegonha, despejava o balde, enquanto Palmira en-caminhava a água entre a seara morta. O balde tor-nava a descer na ponta do varal, batendo nas paredes do poco estreito. A água diminuía. Os olhos de Luciano seguiam com ansiedade o nível que descia, ado-bo por adobo, no muro redondo. O balde deu no fun-do. Luciano levou a manga da camisa á testa suada e sentou-se desolado no rebordo do poco. Pela quinta, ia um movimento desabitual. O ga-do andava todo no trabalho, fazendo rodar os espigoes dos engenhos de manhá á noite. Bois, cavalos esfal-fados. Mariano Paulo decidira utilizar a propria égua da charrete. Hilário opós-se e discutiram. Tinham-se habituado a falar baixo. Anos de murmúrios, vozes sussurradas, quanto mais silencio melhor na casa som-bria, como se receassem acordar o velho Paulo, D. Conceicáo, os mortos. E agora, perto deles, Fir-mino pouco mais distinguia que palavras soltas, uma ou outra frase: pigarco, os jarretes da égua, baio, arrange mulas para este trabalho, pocos, é do que nós vivemos, habituada ao xairel, poe-Ihe ferraduras de prata, charrete, miího, um animal vistoso para apa-receres na vila, Até que Mariano Paulo ordenou, fo-ra de si: — A égua para o poco, Firmino. Quern manda, por enquanto, sou eu. Hilário viu-os desandar com o bicho pelo cabres-to. Falara sem nenhuma ideia reservada. Para pou-par a égua. Apenas, Mas o pai andava a entender tu-do pelo pior. Era ver-lhe os modos bruscos, os remoques, as queixas ao Dr. Seabra. Também Maria dos Anjos o tratava desabridamente. Por influéncia de Mariano Paulo ou por conta propria, a verdade é que estava a exceder-se. Uma cadela, que abria as pernas a um velho por interesse. Depois, clamava o pai, quando via Guilhermina na quinta, que nao que-ria putas la em casa. Que vontade de correr atras dele e dizer-lhe o que pensava de Maria dos Anjos, dos dois, do leito profanado da mae. Entretanto, Mariano Paulo e Firmino alcanca-ram o poco e prendiam agora a egua ao cambao. Virou-lhes as costas, atravessou o patio: sol a pique; cigarras desabaladas; mas o seu estridor, continuo e certo, mal se dava por ele; era como se fizesse parte do silencio; um silencio aspero que nascia de janelas em fogo, de telhas a arder sobre currais vazios. O ar espesso doia, nos olhos, nos ouvidos. Desejava a noite. Mas a noite viria, com os seus animais cansados, encher de cio os estabulos, os quartos. Na cozinha, Maria dos Anjos cantarolava. Grandessissima cabra. Deu um encontrao na porta e disse, com o calor de fora a secar-lhe a garganta: — Queres dormir hoje comigo? Ou so gostas de velhos? 642 643 XII O calor amainou nos fins de setembro. Chegou o outono e com ele as colheitas quase perdidas. Cor-rocovo tinha um inverno de fome ä sua frente. Näo tardaria que as chuvadas se despenhassem das gran-des nuvens que desciam do norte. De regresso ä aldeia, os ganhöes gastavam a jor-na dos arrozais em quinino que iam comprar a S. Cae-tano, a Corgos. O Dr. Seabra vinha ver os doentes. Acabava as visitas, subia ä quinta e dizia a Mariano Paulo: — Lá se foi o ultimo ceitil. Em remédios. Partiram, passaram alguns meses no lodo, amealharam meia dúzia de moedas e voltaram. Pois cá těm ä es-pera a mesma fome dos que näo saíram. Mariano concordava. Julgava-se também com alguma responsabilidade na miséria de Corrocovo. Pagava jornas baixas, insuficientes, mas o certo é que näo podia pagar mais. Os armazenistas entendiam-se uns com os outros, corapravam o milho e o vinho pe-lo preco da chuva. E ele tinha obrigacöes a cumprir, despesas certas a que näo podia faltar: pessoal, 645 contribuigöes, adubos, gado. O Dr. Seabra, tranquili-zava-o: — Uns tostöes a mais ou a menos näo resolviam nada. Nem isso está nas suas mäos. Mas, de facto, afiige. Criancas com barrigas enormes, os olhos pu-rulentos, as pernas como espetos. Enfim, tenho de ir andando. De um abraco ao Hilário. Ficava a meditar nas palavras do amigo. As cul-pas da pobreza que alastra em Corrocovo näo säo suas, Mariane Evidentemente. Via-se lutando tam-bém para manter a quinta, calculava os prejuizos da-quele ano desastroso. As dificuldades batiam ä porta de toda a gente. lam longe os tempos em que a agri-cultura fazia fortunas. Agora, o milho e o vinho che-gavam doutras regiöes, de terrenos férteis onde a pro-dueäo era menos dispendiosa. Os armazenistas, a concorrencia de precos, obrigavam Mariano Paulo a vender com lucros minimos e äs vezeš sem lucro. O velho Paulo deixara ainda a quinta a produzir um rendimento apreciável. Porém, os Ultimos anos tinham modificado certas coisas. As novas estradas traziam äs feiras de Corgos produtos de toda a parte. Pelas estradas, pelo caminho de ferro, nos vagöes, nas ca-mionetes, o comércio das cidades, das vilas, das al-deias, acelerava-se, levava daqui para ali, fazia per-mutas, entrechoeava-se, explorava todos os mercados. O isolamento dos pequenos meios desaparecia. O velho Paulo näo sentira, em toda a plenitude, o torve-linho deste choque de interesses. Mas a quinta esbarrondava-se agora nas mäos de Mariano. Os proprietaries procuravam langar mäo do comércio, de pequenas indústrias, para aguentar a agricultura. Mariano recordava os conselhos do Guimaräes. Moto-res nos pogos, etc. Talvez as máquinas embarateces- 646 sem ou aumentassem a produgao, pondo a quinta em condigoes de competir com as terras mais úberes. Talvez, mas os donos dessas terras comprariam máquinas também e, assim, a vantagem continuaria a pesar do mesmo lado. Tinha de encontrar outra solugáo, erguer um dique á ruina que se aproximava. O dinheiro depo-sitado no banco estava a levantá-lo para tapar fal-tas, manter os jornaleiros, financiar as novas semen-teiras. O desprendimento de Hilário por tudo aquilo desalentava Mariano Paulo. Dias e dias sem uma pa-lavra, vagueando pela quinta ou fechado no quarto, náo era vida para um homem feito. Á noite metia-se em casa de Guilhermina carregando o que podia. Ma-. riano Paulo admitia aquelas saidas, compreendia que Hilário precisasse duma mulher, mas náo gostava de o ver partir como um ladráo, de sacas cheias, pela sombra das paredes. Custava-lhe, sobretudo, saber que Guilhermina, nas costas de Hilário, comia as ofer-tas em ceatas com jornaleiros. Chamóu-o e pós-Ihe o problema. Hilário nem sequer se mostrou magoado. Nessa mesma noite, cor-ria para a rapariga com os presentes do costume. A transigéncia pareceu a Mariano Paulo uma falta de dignidade. O seu brio de antigo varredor de feiras náo perdoava a fraqueza do filho. Estes desgostos es-cureciam ainda mais o descalabro da velha quinta. Mariano rejeitava a modernizagao da agricultura, a compra das máquinas. Uma experiencia arris-cada e dispendiosa. Se os lavradores de S. Caetano, do Albocaz, estavam a langar máo do comércio ou de pequenas indústrias, porque náo tentar também? Parecia-lhe o caminho indicado, a única saida. 647 Exactamente nessa altura, o Guimaraes veio a quinta com o Dr. Seabra. O medico perguntou por Hilario e, como Mariano lhe indicasse tristemente: ai por fora, saiu a procura-lo. O Guimaraes aprovei-tou a ocasiao para tratar do assunto que o trouxera e lhe queimava a lingua. Queria vender os seus for-nos de cal. Passeava pela sala, de porta a porta. Es-barrou no pe duma cadeira, voltou-se: — E pensei em si. Mariano Paulo sentiu calor e frio ao mesmo tempo. Ali tinha, numa salva de prata, a solucao procu-rada. Algumas fortunas da vila, fora a cal que as fi-zera. Bela oportunidade, realmente. E tentava manter-se calmo, aparentar desinteresse. A verdade e que deixarade ouvir o Guimaraes. Sonhava: os for-nos na sua mao, clientes certos, escrita bem monta-da, pessoal capaz, salvando a quinta e os Paulos. Entretanto, o Guimaraes sentara-se e alegava con-fusamente os motivos da venda. Mas, dando conta dos passos do Dr. Seabra e de Hilario no corredor, fez um sinal a pedir silencio: — Apareca por Corgos um dia destes. Para fa-larmos com mais vagar. 64S XIII Mariano Paulo aceitou a sugestao do Guimaraes, passados dias. Jantou cedo e mandou aparelhar a char-rete. Dispensou Firmino, ele próprio guiaria: era uma distraccáo para a légua bem puxada da viagem. Mandou subir a capota, enrolou a manta de xadrez nas pernas. Nuvens de céu a céu. A chuva podia cair dum instante para o outro. Levou os primeiros quilómetros a examinar o negócio com o Guimaraes. Atravessava a várzea quan-do principiou a morrinhar. A várzea é um vale pouco perceptível, onde uma ribeira sečou há dezenas de anos; existe ainda o pontáo desmanteiado, a indicar o percurso da água; a vegetacáo degenerou mim res-tolho pardo; a ribeira cobriu-se duma códea de lama e sečou entre os silvedos das margens. Os fornos de cal erguem-se, em pedra nua, ao comeco da várzea. Ao lado, ficam os telheiros espacosos, onde se acama a lenha e o pessoal dorme nos intervalos das forna-das. Abafa-se no verao. No resto do ano corre por ali um vento resinoso e salgado: vem do mar, adensa--se entre os pinhais. Quando chegam as chuvas en- 649 cordoadas de Janeiro, ao fundo da ravina o charco de lodo ressuscita e o velho pontao torna-se uma coi-sa útil. A morrinha aperta, Mariano Paulo incita a égua; para nada; as cancelas da passagem de nível estáo fe-chadas. Aconchega a manta aos joelhos e espera que o comboio passe. No crepúsculo, o trabalho dos for-nos continua. Nuvens de fumo branco bóiam junto ao cháo como nevoeiro baixo; o vento empurra-as sobre a vila; as diamines deitam mais fumo; Mariano Paulo comeca a respirar mal. Encontra o Guimaraes no café, numa roda de amigos. Váo para um canto sossegado e entram no problema sem rodeios. O Guimaráes expoe a situacao: — Ou me torno dono de toda a cal ou nao quero nenhuma. Os dos fornos pequenos vendem, De res-to, a concorrěncia daí é nula. A questáo é o Neves gordo. O do armazém. Nao cede. — Oica, Guimaraes. Voce falou-me em vender os seus fornos e eu aceito o negócio. Pelo justo pre-co, claro. Agradeco-lhe a franqueza de me dizer que a concorrěncia do Neves pode causar embaragos. Náo se esqueca que fico nas mesmas circunstáncias. Dou--lhe trinta contos. Nem mais um tostáo. O Guimaraes bateu a ponta das unhas no már-more da mesa: — É curto, Mariano, muito curto. Continuou a tamborilar. Mariano Paulo aguar- dava. — Sugiro-lhe outra coisa, disse o Guimaraes por fim. Associamo-nos, pomos o Neves de pantanas. Sempře se há-de arranjar maneira de o vergar. Um golpe baixo, que Mariano Paulo nao espe-rava. Ainda assim, conseguiu dominar-se: — Nunca gostei de sociedades e, alem disso, os fornos ficam-me longe, fora de mäo. Näo lhe posso dar mais. O melhor é tomarmos um cálice de porto e esquecer o assunto. Estäo a fazer-se horas do seu jantar. O outro segurou-o pelo braco: — Falemos claro, Mariane Näo me convém vender. Vivo dos fornos, näo posso desfazer-me deles. Mariano Paulo irritou-se: — Que diabo de história é essa? Voce é que me foi falar na venda. Passava-me lá pela cabeca o negócio se näo mo tivesse proposto. O Guimaraes Concordou: — Eu sei, mas o caso é que preciso duns dinhei-ros. Para já. Letras no fim do mes, sem reforma pos-sível. E eu, descalco como nunca. Mariano recompôs-se. Se o Guimaraes aceitasse a ideia duma hipoteca, nem tudo estaria perdido. A possibilidade de conseguir os fornos continuava: — Comecasse por aí. Valha-me Deus. E insinuou: — Qualquer pessoa lhe empresta o dinheiro. Os fornos säo uma boa garantia. Estou ao seu dispor. Tanto rodeio, tanta nica, entre nós. De quanto predsa voce? Acabaram por combinar a hipoteca sem gran-des objeccöes do Guimaraes. Mariano mandou vir o porto. O café estava agora vazio. O empregado pôs a garrafa e os cálices na mesa e voltou a sentar-se atrás do balcäo. Tinha uns olhos de peixe no aquário, enormes, aumentados pelas grossas lentes. Fixava sem in-teresse os dois senhores que bebiam, atiravam os ní-queis sobre o tampo de mármore e saíam a conversar. Mariano Paulo insistia: 650 651 — Apareca. Diga ao Dr. Seabra e děem uma sal-tada á quinta no domingo. Jantam lá. Despediram-se á porta do café. A chůva miúda náo parara. Os candeeiros da praca de Corgos vaci-lavam na névoa e no fumo dos fornos. O Guimaráes levantou a gola do sobretudo, calcou as luvas de ma-Iha. Mariano Paulo subiu para a charrete, acendeu a lanterna de petróleo e gritou, enquanto o outro se afastava na rua molhada: — Mas que tempo este. E náo se esqueca, ama-nhá ás duas, no notário, O negócio, enfim, podia ter corrido pior. Saltando sobre os acidentes, conversa desagradável, comboio na passagem de nível, chůva toda a viagem, o certo é que salvara o essencial. Náo comprara os fornos, quer dizer, ainda náo os tinha na mao. Contudo os prazos da hipoteca eram breves. Uma cor da ao pescoco do Guimaráes. Onde iria ele desencantar o dinheiro a tempo e horas, antes que o nó se apertasse? Abencoado Neves que estava a liquidar de tal maneira urn concorrente. Soltou a égua a trote largo. Pouco depois estava nos fornos. Os homens oscilavam sobre um fundo de chamas, alongando, retraindo os bracos carrega-dos de lenha, e o fogo recortava os movimentos, as figuras toscas. Garotos corriam aos telheiros, gemiam sob os toros de madeira. Soavam ordens breves, rou-cas. A pedra ardia, o calor fracturava-a. Era a cal que segurava as paredes das casas novas, dos arma-zéns, das vivendas, da vila inteira que crescia. A fumarada fazia tossir, o suor escorria nas ca-ras grisalhas. Os fornos trabalhavam espalhando sobre o cháo uma mancha de luz. De calcário queimado. Mariano Paulo chicoteou a égua, entrou na es-curidáo da estráda. 652 XIV A fome alastrava. A estacáo fria acossava os homens, os coelhos do mato, os morcegos, e fechava-os nas tocas. As árvores ficavam nuas, as grandes chu-vas voltavam. Hilário gostava do inverno ä solta. Céus a de-sabar, casebres submersos, pinhais vergados ao peso das bátegas, água e vento contra a janela. Passava as noites acordado enquanto o ar de roldáo devasta-va tudo. Ocorriam-lhe histórias nebulosas da infäncia. Bruxas, lobisomens, botas de sete léguas. O cenário nunca variava. De subito, o luar sumia-se, ficava tudo escuro, e as histórias podiam contar-se porque ha-via golf Oes de luz a iluminá-las, furando a chůva aqui e ali, talvez trovoadas muito altas que mal se ouviam. A vida no casaräo náo melhorara. Longe disso. Maria dos Anjos enfiava-se nos lengóis com Mariano Paulo, enroscavam-se um no outro, teciam ambos as intrigas, as quezílias, do dia seguinte. Ambos. Uma meada, que se saiba, tem sempře duas pontas. Lá fora, continuava a fúria nitida do temporal. Ainda bem. Hilário povoava a solidäo de coisas má- 653 gicas, remotas, que o homem assustado inventára. Pe-la madrugada, com a tempestade quase morta, o mur-múrio das caleiras adormecia-o. A fome alastrava. O Miranda só fiava na loja aos pequenos proprietaries, que garantiam o paga-mento com as terras. Corrocovo comia as courelas, os pedacos de vinha. Quern tinha os bracos como uni-cos bens pedia as portas. Luciano Taipa vira o milho da sua Ieira secar, apodrecer. Escapara meia dúzia de alqueires, o sus-tento de poucas semanas, mas näo vendera um gräo, näo apurara um ceitil. O inverno, encrespado, ia pas-sando e o rol da divida crescia no livro de assentos do Miranda. Primeiro, o adubo. Misturado ao estrume, a en-volver as sementes. E Luciano confiante. A colheita pagaria o adubo, o trabalho, as contribuicôes. E al-guma coisa sobraria para alargar a leira com a com-pra de outras leiras vizinhas. Luciano Taipa a endi-reitar a vida. Mas se o homem pôe, Deus dispoe. E Deus dispusera a desgraca onde Luciano tinha pos-to a esperanca. Deus a trabalhar por conta do Miranda. E o Miranda a apontar a Luciano com a ponta do lápis o livro dos assentos: — Sou teu amigo, capaz de um sacrificio. Mas nisto, näo. Negócios säo negócios. Ou pagas ou fico--te com a terra. E o rol da dívida a avancar pelas páginas do livro. Primeiro, o adubo; o dinheiro emprestado para as contribuicôes. Janeiro chegava, a vila mandava afi-xar editais nos lugares publicos do costume: as pare-des da capela, as árvores do largo. Editais, más no-tícias. Os impostos a caírem em Corrocovo. O Miranda encetava outra página do livro: 654 — Vai levando, rapaz. Tu es dos que pagam. Parcelas sobre parcelas, somas, garatujas, que s6 o exagero aritmetico do Miranda entendia. Luciano resmungava, mas Palmira, a velha e ele tinham de comer. O inverno nao acabara ainda. — Tudo aqui escrito, alma de Deus. E calculado pelo baixo. Acredita. O rol crescia. Agora, era o milho de todos os dias, o milho que o estio devorara. Quando o inverno findasse, a terra estaria nas maos do Miranda. Nao foi preciso tanto. Antes que as aves bran-cas da lagoa e as andorinhas regressassem do sul com a primavera, Luciano Taipa entregou-lhe a leira em-penhada e emigrou. 655 XV A quinta parecia viver fora do tempo. Numa pau-sa do tempo. A memoria, os factos, as coisas, dir--se-iam flutuar ao acaso. Hilärio näo conseguia dar--lhes uma ordem coerente. A solidäo, que tanto lhe agradara, comecava agora a perturba-lo, dissolvia no mesmo ritmo confuso o passado, o future Dias, in-termitencias de sol e treva, que geravam semanas, anos, vidas, sem se dar por isso. La vinha rompendo outra manhä. E Hilärio, no quarto, esperava que o casaräo acordasse. Sentia por-tas que se abriam, passos, um chiar de ägua entor-nada no lume. Maria dos Anjos na cozinha, mais passos. Os camponeses espalhavam-se pela quinta e o trabalho comecava na madrugada ainda a despontar. Urn vulto subia a rampa. Era Firmino. Parava junto dos jornaleiros, destinando o servico a cada urn. Con-tinuava a subir, devagar. Seguiam-no agora dois ho-mens. Chegava ä adega, abria-a. Os dois homens en-travam e ele ficava a falar-lhes, meio dentro, meio fora, com um dos bragos estendido, a mäo apoiada na cantaria. De vez em quando apontava com a ou- 657 tra mao o interior da adega. Dali, dirigia-se aos cur-rais. Maria dos Anjos saia do casarao e atravessava o quintal. Sumiam-se ambos no telheiro, apareciam carregados de palha e erva. Entravam nos estábulos. Bois mugiam. Maria dos Anjos voltava á cozinha, Firmino surgia com a égua da char rete. E entao, um desses factos á deriva, quase per-didos na memória, tomava conta da consciěncia de Hilário e, uma vez fixado, tornava-se de há pouco, abolia o tempo, o fluir ordenado das coisas. Por exem-plo, dizia ao pai que nao pusesse a égua a puxar ao engenho e o pai teimava. Quando? Talvez ontem, tal-vez agora mesmo. O certo é que a égua se aguentara. E se nao, era ve-la empinar-se, levantar as patas dian-terras e relinchar ao sol-nascente como se cumprisse um rito selvagem da sua raca. Firmino largava-lhe o cabresto. A égua partia a trote, arrancava de su-bito, moderava o passo, arrancava outra vez, para-va. Firmino espalmava-Ihe a máo no flanco e o jogo recomecava com o ritmo seguro dos cascos no cháo do pátio. Hilário abriu a janela: — Atrela a égua. Vou sair. Passou pela cozinha, tornou café e pao. Nem uma palavra a Maria dos Anjos. Quando chegou ao pátio, já Firmino esperava com a charrete pronta. Mariano Paulo, que acabava de levantar-se, apareceu no alpendre e perguntou-lhe onde ia. Respondeu vaga-mente: — Passear por ai. Estalou o chicote no ar, incitou a égua e partiu. Atravessou Corrocovo atalhando pelo caminho de bois á estráda da vila. A manhá, tecida num azul vitreo, humido, resplandecia em milhares de folhas: uma teia de orvalho aceso pelos raios do sol. Nas ramarias al- 6SS tas, os pässaros cantavam. A egua contraia os ten-döes esguios e galgava os barrancos. Se aguentara o engenho, podia aguentar aquilo. Chicoteou-a. Um gol-pe firme, de alto a baixo. A charrete guinou, emba-tendo num socalco mais duro. Hilario, ao saltar no assento, enfureceu-se. E a partir daf, o dorso da egua, cor de mel, foi-se cobrindo de vergöes, enquanto as patas lhe escorregavam no piso enlameado pelas ultimas chuvas. Quinze dias seguidos ao engenho. Hilärio chicoteava. Largara as redeas e segurava o cabo do chicote com tanta forca que sentia as unhas entra-rem na palma da mäo. A cada golpe, a egua estre-mecia, tinha um arranco agil, a espuma caia-lhe da boca, flocos de suor ensanguentado escureciam-lhe o pelo. O sol, coado pela rama densa dos pinheiros, mal se entrevia agora. E, no silencio, o rodar estra-nho da charrete, os silvos do chicote, ecoavam escu-ramente, como numa cripta. Desembocaram na estrada da vila e ai, sobre piso seguro, a 6gua largou ä desfilada. De redeas sol-tas, galgava o caminho com ferocidade. Ärvores, ca-sas de arrumacäo nas quintas desabitadas, vultos de jornaleiros levantando a cabeca espantada, tudo se perdia na corrida. Hilärio quis suster o animal. Pro-cur ou reapossar-se das redeas, mas näo pode alcancä--las. A egua, com o freio nos dentes, continuava a marcha desabalada. Parecia impossivel detMa. Um vento tempestuoso pegou de repente nos ca-belos de Hilärio e atirou-lhos aos olhos, deixando-o quase cego. Esperava a cada instante que a charrete se desconjuntasse na valeta ou embatesse nalgum pi-nheiro. Afastou os cabelqs, fixou o corpo da egua, elästico, envolto no fumo do suor, e ergueu o chicote outra vez. Mas nisto, a roda fragorosa chocou contra 659 o marco da estráda. Houve um estardalhaco de fer-ragens que rangem, um memento de desequilíbrio, e Hilário estatelou-se, de pernas para o ar, no fundo da charrete. As primeiras casas de Corgos surgiram, ficaram para trás. Mulheres gritavam, garotos assustados fu-giam, abandonando os jogos, refugiando-se nas portáš. Só mais adiante, já na praca da vila, a charrete parou. Meia dúzia de homens decididos lancou-se para a frente da égua, fazendo-a abrandar. Atiraram-se aos varais do carro, foram levados uns metros no im-pulso, mas conseguiram dominar o animal cansado. Juntaram-se logo os curiosos do costume: — Grande desastre. Esteve por um triz. — Podia ter havido mortos. — Podia, mas náo houve. — D8em gracas a Deus. Hilário, mal refeito do susto, contou dificilmen-te como a égua se espantara, á desfilada, sem que nem para qué\ Alguém interrompeu: — É sempře assim. Quando tomam o freio nos dentes, náo previnem. Um dos homens que tinham ajudado a parar a charrete ponderou, taciturno: — Cavalos, bichos caprichosos. O meu pai que o diga. Outro apontou para a testa de Hilário: — Tem aí um lanho a sangrar. — Leva-se ao Dr. Seabra. O Dr. Seabra, boa ideia. Hilário queria ver-se livre deles e aproveitou: — Vou iá eu sozinho. Conheco o médico perfei-tamente. Um gesto na direccäo da égua, da charrete: — Agradeco é que me tomem conta disto. O homem que apontara o rasgäo na testa de Hilário segurava a égua pelo freio. O taciturno insistia: — Gado desconfiado. Lembra-me bem o que su-cedeu a meu pai. Todo o cuidado é pouco. E embrenhou-se na história do pai, cuspido da sela, por urna coisa de nada, um pequeno toque de espora: — Mas baštou para ir esmagar a cabeca no um-bral do portäo. Osso contra pedra. Já se vé que cede o osso. Um aldeäo, com a mulher ao lado, indicou as chicotadas no lombo da égua: — O coiro do animal retalhado por urna faca de sapateiro. É o que é. — Tiraste-me as palavras da boca. A indignacäo contra Hilário comecou a nascer. Embora a vendedeira de hortalica, que se aproxima-va acotovelando toda a gente, garantisse: — Medo. Foi apenas medo. — Lérias, santinha. — Um tipo destes, na minha terra, levava mas era um arraial de porrada. — Espanta-se-lhe a égua. Que vá depois buscá-la. O homem taciturno, que tinha perdido o pai núra desastre de cavalo, tentava serenar os änimos: — Fala a experiencia. Cavalos é comigo. Sim senhor, parece um bicho manso, mas näo se fiem ne-le. Nunca se sabe quando vem o coice ou o pinote. Por uma esporada á toa, foi o que se viu com meu pai. A vendedeira de hortalica, sentindo algum apoio, olhou com desprezo o homem que propunha a porrada: 660 661 — Queria ver estes valentöes com o animal des-bridado. Vossemece era o primeiro a mijar-se. Mas a vida chamava, das lojas, dos armazens, das casas, e as conversas morriam. Os curiosos dis-persavam, levados por coisas mais urgentes. E algum tempo depois, so o hörnern taciturno ficava junto da charrete, meditando sobre o rapaz medroso e a egua chicoteada. Sobre a egua, pensava: — Uma licäo destas aos cavalos em geral, talvez näo fosse asneira. Para atirarem menos gente, de ca-beca, contra o primeiro umbral que veem. Sobre o rapaz, considerava: — Teve mais sorte que o meu pai. Trinta, quaranta chicotadas numa egua atrelada, e nem sequer foi cuspido da charrete. Muito mais sorte, sim senhor. XVI Hilário náo queria entrar em pormenores. Por-menor arrasta pormenor, enredam-se, baralham-se, e ás tantas há um novelo, uma teia de aranha. Com o falador lá dentro. Náo. Poucas palavras, escolhi-das uma a uma. Era o melhor para explicar a Fir-mino o que se passara: — A égua desgovernada, com o freio nos dentes. A charrete a desmantelar-se. Compreendes? Servi-me do chicote porque foi precise Náo tinha outro remédio. Firmino, consternado, olhava o animal. Depois, correu a buscar água, lavou-lhe as feridas, desinfectou--lhas com sabáo. De vez em quando resmungava en-tre dentes: — Pobre bicho. Hilário ia assistindo ao tratamento. Que diria o pai quando visse a égua naquele estado? Aceitaria meia dúzia de palavras por cima da rama? Impossí-vel. Desconfiava sempře. Demais a mais com Maria dos Anjos a acirrá-lo. Insinuacoes, segredos, queixas, no sussurro da cama, que é ainda o grande sítio para convencer um homem. 662 663 Firmino despejava baldes e baldes sobre o animal. A água tingida de vermelho escorria, ensanguen- % tava o chäo. Um ou outro resmungo. O ar sério, fe- -chado. Mas enfim. Tratava a égua, lastimava o caso. E pronto. Maria dos Anjos, essa, nao. Alvorocada. i Espreitando, farejando. Lavar um tacho ä porta da ■ cozinha. Estender roupa no arame do alpendre. Sem parar. Tira a cera dos ouvidos, a remela dos olhos, E logo ä noite, com as pernas abertas, conta-lhe tudo ) bem contado. Firmino examinava agora os golpes do chicote, : limpos, sem poeira e sem crostas de sangue. Imóvel. A cara a um palmo das feridas. Exame demorado. Lembrava o alveitar de S. Caetano, chamado ä quin- i ta num caso grave. Afinal, por aqui, também há cen- < suras, também cheira a sarilho. A fadiga acumulada ... -i nas ultimas horas veio ao de cima e Hilário murmurou: — Näo vale a pena enfiares o nariz no cu da égua. jí Olha para mim e diz lá o que pensas. ! Firmino voltou-se, vagaroso: — A égua está em sangue. É o que há para dizer. — Já tinha reparado. E depois? Posso fazer o mesmo a um cäo velho. Ainda näo larguei o chicote. Nossa Senhora da Lagoa. Cäo, insultos, amea-cas de pancada. Como o avö, quando endoideceu. § Mas näo era o avö. Näo era o velho Paulo. Com os ; :|j seus cabelos brancos. Aguentando a quinta, a casa, até ao fim, até a cabra da vida lne toldar o juízo. E, quase sem querer, ergueu a mäo enorme, i abateu-a sobre o braco de Hilário. O chicote caíu. |l — Respeito-o por ser filho de quem é. Näo se esqueca diss o. Franziu os olhos, como se houvesse muitosol: 1 — Só por ser filho de quem é. \ 664 Conteve o ar no peito; e a mäo de ferro abriu--se, lenta, dedo a dedo; por amor de Deus, näo me responda, näo me diga mais nada. Levou a égua para o curral, cobriu-a com a man-ta de trapos, e tornou a sair. Hilário continuava no mesmo sítio. Ao vé-lo, de ligadura na cabeca, bracos caídos, oscilante, o caseiro estacou. Um reflexo nas janelas do casaräo, a nogueira de Silvério Coxo ao fundo do pátio. E de repente, outra lembranca, outro retrato antigo. Mariano Paulo dizia: — Corre a quinta com ele, obriga-o a trepar aos ninhos. Subíam as árvores. Ou entäo escolhiam cogu-melos, um trabalho difícil que Mariano Paulo con-fiava apenas a Firmino. Se a humidade floresce, há tortulhos nos luga-res sombrios, junto dos muros derruídos, na raiz dos pinheiros, nas grutas calcárias. As espécies letais escondem-se entre as outras, mas Firmino sabia dis-tinguir o bom do mau. Hilário aprendeu com ele e, čerta vez, trouxe para casa um cogumelo venenoso, äs escondidas. Nessa noite, Firmino teve de ir a Corgos chamar o Dr. Seabra. A toda a pressa: — Chegaremos a tempo, doutor? — Kavernös de chegar. Näo rebentaram as montadas por acaso. O medico precipitou-se no quarto, com a maleta aberta. Lavagem de estömago, injeccöes, leite quente. Pela madrugada, Hilário estava Ji vre de perigo. Mariano Paulo, acendendo o ultimo cigarro, perguntou-lhe: — Que diabo te passou pela cabega? — Nada, pai. Era só para saber. — Saber o que? 665 — A mae, o avö. Como se morre. Agora, diante da crianca transformada em horném, as recordacöes assolavam Firmino. As recordacöes e um fulgor de remorso. Nascera na quinta, onde os seus tinham sido ca-seiros desde o início; assistira ao descalabro da fa-mília; acompanhara as desgracas da casa; a mořte de D. Conceicäo, do velho Paulo, o afundamento da pro-priedade, as ralagöes de Mariano Paulo, as colheitas pobres, a terra gasta de ano para ano. Äs vezeš deixamo-nos levar pelo primeřro impul-so e dá asneira; Hilário era o herdeiro da quinta, o futuro paträo; tinha de ser obedecido, respeitado. Andara mal nesta questäo. Infringira velhos man-damentos, seguidos pela sua gente no trato com Sil-vério Coxo e os sucessores; seguidos com proveito de todos: nunca entre eles houve desavencas. A história da égua era capaz de estragar tudo: a longa dedicacäo aos Paulos, a pedra e a cal de tanta vida, por assim dizer. Iria remediar o que pudesse. E aproximou-se de Hilário, gravemente: — Perdäo só se pede a um pai, mas se quiser peco-lho também a si. Chapéu na mäo, pouco á vontade. Hilário mal o olhou. O hörnern perigoso de minutos antes desa-parecera. Tal e qual um cäo, cruel e humilde ao mes-mo tempo. Mas um cäo que nem morder podia, que deixava os dentes podres onde dava a dentada. ! xvii j 1 Firmino surgiu no casarao com a notícia. An- • dava um homem estranho pelos matos, um homem de enorme barba branca, que dormia entre a urze e ! apedrejava os caminhantes. Alto, forte, coberto de farrapos, com a cabeca de neve, a barba pela cintura. ] Correra sobre a Joana Fardoeira, e os olhos sulfuro- i sos coruscavam como os dum demónio. Corrocovo ouviu a Fardoeira com desconfianca e duvidou. A ra-ca dos lobisomens tinha acabado. Mas a mulher ga- ■ rantia, benzia-se, jurava, e até os mais cépticos he- I sitaram. Coisas do outro mundo. Sabe-se lá ao certo. ] Hilário lembrou-se das noites que levara a cis- ; mar em histórias mais ou menos assim. E agora es- 'í tava talvez a repetir-se uma dessas turvas narracoes ii i que vinham de longe, dos comecos do povo. ! Mariano Paulo náo deu grande importáncia ao caso. Preocupava-o demais o negócio com o Guimaraes. A salvacao da quinta podia ser a cal. Seria, tinha a certeza, se os fornos lhe viessem par ar ás máos. O Dr. Seabra aparecia, trazendo ás vezeš o Guimaraes. Ficavam a conversar sob as ramagens da no- gueira, a fumar, a beber o vinno da quinta. Discutiam o caso do homem que vagueava para la dos pinhais, no coracáo do mato. Mariano confessava que náo ti-nha uma opiniao segura. O Dr. Seabra falava de leprosos, doidos, pobres esfomeados, refugiando-se na gándara, á beira dum povoado, onde há quintais, adegas, celeiros, para as-saitar de noite. O Guimaráes rejeitava também qual-quer forma de crendice e sugeria: — Talvez um evadido. Todos os dias lemos nos jornais fugas de criminosos. O Dr. Seabra interrompia-o, convencido de que o outro falava por falar, que no fundo tendia para uma explicacao sobrenatural: — É possivel. Mas doido, esfomeado ou crimi-noso, temos de concordar nisto: é miséria. Daqui náo se pode fugir. O Guimaráes despedia-se, tinha ainda de ir a S. Caetano falar com o Crespo. Mariano via-o partir e era como se lhe tirassem um peso de cima dos om-bros. O prazo de pagamento fixado corria e o Guimaraes náo abordara, mesmo por alto, o assunto. Ca-da vez que o via partir, sem térem trocado uma palavra sobre o negócio, a esperanca de lhe apanhar os for-nos redobrava. Por outro lado, a despreocupacáo do Guimaráes, como se nada o afligisse, deixava-o apreensivo. Nos últimos tempos, o Dr. Seabra mostrava-se muito inter ess ado por politica: — Tenho pensado que toda esta geringonca social precisa duma grande volta. Quanto mais náo se-ja por uma questáo de decoro elementar, de huma-nidade. Mariano moderava-o: — Nao se meta nisso, doutor. Acho que esta-mos de acordo em muita coisa que diz. Mas fale aqui e cale-se la for a, onde quern ouve duas acrescenta tres. Em Corgos, como sabe, comecam a chamar-lhe os piores nomes. Que e comunista, que anda a fazer ma cama para se deitar. Tenha cautela. O Dr. Seabra exaltava-se: — Ora, Mariano. A caravana nao perde tempo com os caes de Corgos. E, fique sabendo, nao sou comunista. Sei la o que e o comunismo. Mas nao se espante se me vir qualquer dia a ler o Marx so para os irritar. Tenho um pouco de coracao, que diabo, e nao posso ver homens a viver como os bichos ou pior que os bichos. — Nao discuto isso. Apenas lhe aconselho pru-dencia. Fazia-se um silencio. E a voz do Dr. Seabra vol-via, mais serena: — Voce recorda-se duma conversa que tivemos aqui ha tempos? Os homens que voltam a Corrocovo empaludados, que gastam numa semana a feria amea-Ihada em tres meses nos charcos do arroz e acabam por ficar a curtir sezoes o resto da vida? Voce con-cordou, trouxe ate o seu caso para a discussao, as jor-nas baixas que pagava, etc. Com toda a certeza que se lembra. Mariano Paulo lembrava-se. O Dr. Seabra con-tinuou: — Pois bem, quero chegar a isto: esses homens fazem as fortunas dos grandes lavr adores ribatejanos e vem acabar a Corrocovo sem um naco de broa, sem enxerga, sem a porcaria dumas drogas. Nao falo ja doutras aspiracoes, de alegria, de felicidade, dum des-tino digno. Falo das coisas primarias, inadiaveis: ali- 66« 669 mentacäo, cobertores, remédios. Aponto simplesmen-te os factos, näo indico nenhuma solucäo, näo digo que o comunismo resolva ou deixe de resolver. Aqui-lo de que falo, toda a gente o tem debaixo do nariz e toda a gente finge que näo ve. O Dr. Seabra partia e Mariano, da janela, olha-va a quinía, o trabalho dos jarnaleiros no silěncio da tarde. Esquecia a conversa do amigo. O Guímaräes e os fornos voltavam ä sua atengäo, preocupando-o. Era ali que tinha de teimar. Silvério Coxo e os descendentes näo haviam er-guido a pulso a maior casa de Corrocovo, esforcos, tenacidade, privacies, para que ele, Mariano Paulo, a deixasse levar pela voragem. Quanto ao Guimaräes, é certo, estou a sacrificá--lo, a jogar com a ruina dele para evitar a minha. A sangue-frio. Mas paciéncia, acaridade comeca por nós próprios. Vem no evangelho. E näo fui eu que o fiz. Firmino atravessava o pátio. A mesma vigiläncia dedicada, descobrindo o que era preciso fazer, man-dando repetir o que for a mal feito: sulfato numa cepa esquecida, estrume num pé de laranjeira. A vida entregue á casa, á quinta, sem hesitagôes. Os próprios trabalhadores serviam a família dos Paulos há geracôes, arrancando áquele chäo o milho, o vinho, através dos anos. Se a quinta se esbarron-dasse, que séria deles? Também nos casebres a vida se tornara mais rude. Dantes, havia alguma carne para cozinhar. De quando em quando. Um ou outro por-co era cevado e as salgadeiras de Corrocovo suaviza-vam o inverno. Agora, os camponeses levavam a criacäo äs feiras. Tiravam o päo ä boca, enchiam as gamelas dos animais. O gado gordo rendia o dobro e vendiam-no aos talhantes. O cotim, os tamancos, a chita, näo caíam do céu. Era preciso pagá-los. E co-miam a sardinha assada nas brasas, a broa, as azei-tonas, uma pošta de bacalhau nos dias santos para a família inteira. Nos meses frios, nem isso tinham. Só o vinho abundava. Os homens esperavam o domingo, metiam-se na loja do Miranda, e ao seräo as discussôes nasciam nos casebres. Jornaleiros bé-bedos espancavam as mulheres, a filharada. O dia chegara j á ao poente, o sino da capela dáva as avé-marias e os cavadores largavam o trabalho. Quando desceu para jantár, Mariano Paulo encontrou Firmino e Maria dos Anjos a falar da apa-ricäo dos matos. Afinal, a Fardoeira näo mentira. Um moco que ia para S. Caetano fora apanhado pelo velho e viera contar factos extraordinários. A barba branca do homem manchada de sangue fresco, ainda a pingar. O solitário matava coelhos ä cajadada e devorava a carnica crua. No chäo areno-so dos matos näo existe uma poca de água e aquele cäo danado bebia o próprio mijo. Santo Deus. As mulheres recusavam-se a sair ä lenha. A figúra do alma penada, a sua forca descomunal, tornaram-se num pesadelo. Vivia-se nisto, quando um novo caso decidiu a aldeia a intervir. O nojento tentara violar uma rapa-riga que vinha do moinho do Perboi trazer a farinha a Corrocovo, e ela falava com terror dos dentes agu-cados do bruto, dos olhos acesos cotno brasas, do cheiro imundo que largava, da maneira como desa-tara a cilha e espantara o burro, enquanto os sacos rebentavam no chäo, espalhando a farinha sobre os espinheiros. Salvara-a um desmaio do velho, que fi-cou por terra a espernear. 670 671 Corrocovo näo pode mais. Nem que fosse o dia-bo em carne e cor nos. Armou-se de enxadas, vara-paus, marmeleiros, e bateu os matos, devassou a gändara, esquadrinhando as tocas, praguejando ao bicho malcheiroso que devorava animais crus, cagan- H do o hörnern guedelhudo, possesso, como se caca um | lobo. i Mas a fera sumira-se. Havia apenas rastos dela: peleš sangrenías de coelhos, tripas cobertas de mos- ^ quedo. E pouco mais. XVIII O Guimaräes veio a Corrocovo inesperadamente: — Novidades, Mariano. Já tenho o dinheiro da hipoteca. Quer recebe-lo agora ou no cartório? Acho melhor agora. Podem roubar-me no regresso. E desátou a rir. Mas a cara do outro era uma carranca feroz. Percebeu que estava a pisar terreno falso e mudou de tom: — Lá o espero em Corgos amanhá. Boa tarde. Mariano Paulo estendeu-se na cadeira de lona. Oíhos fechados, cigarro moído entre os dentes. Ten-tava serenar, descobrir onde o Guimaräes arranjara o dinheiro. Talvez no Crespo, o amigo de S. Caeta-no, com quem tinha sempře assuntos a tratar. Ulti-mamente, mal poisava na quinta: — Vou a S. Caetano. Uns negócios, umas tra-palhadas. O Crespo está ä minha espera. E abalava. Nunca Mariano suspeitou dessas vi-sitas. Quando muito, um leve pressentimento, logo desvanecido. O Guimaräes andava com certeza a tratar de fornecer a cal para a casa nova que o Crespo ia construir. Em toda a parte se falava da vivenda 572 673 que espantaria S. Caetano: um palacete de tres an- dares, com terracos de märmore, varandas envidra- cadas, jardins, garagem, pavilhöes separados para es- :■ | tufas. As obras principiariam quando os arquitectos de Lisboa, encarregados do projecto, acabassem as plantas. Grande expectativa em torno da oitava ma- i-f ravilha, como dizia o Dr. Seabra. Hä dois anos que ; I os alicerces abertos esperavam. Näo se passara dai, |: entäo. E correram boatos.O Crespo näo tinha dinhei- ro para cavalarias daquela altura. Dizia-se ate que estava arruinado. Mas um dia camionetes de carga comecaram a correr das pedreiras da Fena para S. Cae- J ;| tano abarrotadas de pedra grossa e cantaria aparelha- :i :| da. Outras vinham da Pampilhosa com a teiha. O Cres- : | po recebia os materiais e a expectativa recomecou. As paredes iam ser levantadas por fim. ::':'}$ Mariano näo admitiu outra hipötese, pelo me-nos conscientemente: o Guimaräes procurava colocar a sua cal. O que, de resto, pouco se Ihe dava: antes que a venda se fizesse, a cal fosse carregada e o Cres- : :| po pagasse, o prazo da hipoteca acabaria. No fundo, o Guimaräes trabalhava para aquecer; quando os for- ; 1 nos cumprissem as encomendas, ja estariam na mäo dos Paulos. |; Mas o fulano näo era täo parvo como isso; ma-tara, em proveito proprio, dois coelhos duma caja- :. dada: vender a a cal e conseguira um adiantamento. Aquele dinheiro näo podia vir senäo do Crespo. o;H? Mariano Paulo foi a Corgos desfazer a hipoteca. Recebeu o emprestimo, os juros, e disse adeus aos fornos. Gastara meses irrecuperäveis; para nada; ali. estava no mesmo beco sem saida. A ruina ä porta. E ele, atordoado, a atirar cigarros quase inteiros ao chäo, a pisä-los com raiva. Esperava-o ainda outro dissabor. O Dr. Seabra trouxe-lhe da vila a notícia desoladora. O Guimaräes andava por Corgos a murmurar cobras e lagartos. Mariano Paulo näo passava dum canalha. Contava a história dos fornos e carregava nas cores. Näo era a primeira vez que os Paulos usavam process os se-melhantes. Apanhar desgracados com a lingua de fora e exigir hipotecas fazia parte dos hábitos da casa. Des-de o início, das primeiras patifarias de Siívério Coxo. Näo faltavam provas nos carterios. A quinta de Cor-rocovo nascera desse lodo moral. O Dr. Seabra acrescentou: — Aconselhei-o a acabar com a campanha: é uma indignidade, Guimaräes, demais a mais tratando-se dum amigo; amigo?, näo me faca rir. Mariano Paulo ergueu-se: — Pois diga-lhe que vou a Corgos meter-lhe pe-la boca dentro a bosta que me atira ao nome. Nin-guém o obrigou a aceitar as minhas condicôes. Eu contei-lhe tudo, a si. Concordámos, realmente, que sendo o Guimaräes um velho companheiro tinha di-reito a que o ajudassem. No entanto, concordámos também que estava em jogo a quinta. Tratava-se afi-nal dum negócio. E, posto o assunto neste pé, procedí com lisura. Tudo o que diz respeito ä quinta é para mim um caso de legítima defesa. Entre o Guimaräes e a minha vida näo podia hesitar. Alias, ele näo fez nenhuma objeccäo á hipoteca. O Dr. Seabra atalhou-o: — Também 1ho recordei. Respondeu-me que tinha necessidade urgente do dinheiro e procurara já o Cosme, o Seixas, meio mundo, sem conseguir um chavo: foi quando o Paulo apareceu; que remédio senäo sujeitar-me. E mais: esse traste sabia das difi- 674 culdades que eu atravessava, doutor, e surgiu no momente preciso, como um abutre, com o velho instin-to da familia. — Francamente. Se foi ele que me veio falar. Está bem, dé-lhe o meu recado. Que vou lá, que Ihe ponho os ossos num feixe. — Náo Ihe contei esta porcaria para voce fazer um escandalo. Bem pelo contrário. A minha ideia era estudarmos a melhor manéira de chamar o Guimaráes á razáo. — Tenha paciéncia. Questoes destas, resolve-as cada um como entende. E eu entendo que um bom marmeleiro é o único argumento que ele percebe. — Como queira. Mas voce tem mais em que pen-sar: a quinta, uma solucáo para este trinta e um. Guar-de o Guimaraes para outra altura. Largos dias tém cem anos. Espere a ocasiáo. O seu dever agora é olhar por isto, é aqui, náo é em Corgos á procura dum su-jeito que Ihe chamou nomes. Mariano Paulo abrandava; concedeu que o Guimaraes podia esperar; na verdade os seus problemas eram outros. O Dr. Seabra encorajou-o, prometeu--Ihe um ano farto, garantiu-lhe que havia de encon-trar uma solugao melhor que a dos fornos. Ficou para jantar. Á despedida, Mariano acompanhou-o ao portao e foi-lhe assegurando: — Mas vá ciente duma coisa, doutor. O Guimaraes náo per de pela demora. i XIX i Mai se tinham sumido os Ultimos ecos da batida ao aparecido dos matos, ja outra noticia pasmosa cor-I ria a gändara. Afinal as aldeias pobres eram minas j de oiro. Santo Deus. Tesoiros escondidos aos solda- } dos de Napoleäo. Barras, pulseiras, jöias, libras so- terradas. Por uma tarde de sol, o Miranda, que trazia jor-i naleiros na surriba, fechou a loj a e veio vigiä-los. Che- gou e logo o Tendeiro deu um grito, atirou a enxada for a e comecou äs cambalhotas. Os companheiros i acorreram e ficou tudo estarrecido. O Miranda apro- ximou-se, curioso, enquanto o Tendeiro berrava: — Estou rico, estou podre de rico, estou milio-; närio. Estä doido, pensava o Miranda, afastando os i homens. Mas viu; e o coracäo bateu-lhe no peito como \ um sino; ia caindo redondo no chäo. A panela velha, I aberta pela enxada do Tendeiro, rachara-se em duas e espalhara um monte ofuscante de libras. O Miranda recuperou o sangue-frio e ordenou: 1 — Para o trabalho. Eu trato disto mais o Tendeiro. 676 677 Mas os camponeses continuaram no mesmo si-tio, mudos, com os olhos encandeados pelo oiro. O Miranda ia-os empurrando: — Pago o dia, quero o dia ganho. Vamos lá. Fitaram as libras uma ultima vez e f oram andan- do. Passado o espanto, discutiam o caso. Uma besta, o Tendeiro. Tapava a panela com terra e calava-se. Depois, a noite é grande e o peso näo devia ser tanto que o näo carregasseem duas vezes. Mas näo, pusera--se a gritar; para o Miranda, claro, cair em cima do tesoiro como o Zé do Telhado. O merceeiro expôs a questäo com firmeza: — O que está na minha terra é meu. Mas como descobriste as libras tens o teu quinhäo. Tira uma man-cheia delas, mete-a no bolso, e vai cavando em volta. Quero o f undo dessa panela ao sol. O Tendeiro assoou-se ás costas da mäo: — Metade para mim. É a.lei. Lembre-se que podia ter achado as moedas, calar-me como um rato e ficar com tudo. O homem reclamava e o Miranda alarmou-se: — Näo passarias dum refinadíssimo gatuno. Poúčaš brincadeiras dessas. Quanto ä metade, näo sejas ambicioso. Tira a mancheia que te disse ou volto com a pala vra atrás. O Tendeiro deitou um olhar turvo ao homem que o roubava, com o ä-vontade que se via, passando a mäo na fazenda lustrosa do guarda-pó. Os traba-lhadores andavam para o fundo da propriedade. Sumiram-se. Os pinhais, a aldeia, o céu, desaparece-ram. Ficou apenas ä sna frente o pescoco gordo do Miranda. O pescoco engordou mais, e mais, e mais. Deitou-lhe as mäos calosas, apertou. A carne branca, flácida, fez-se vermelha; fez-se roxa; e näo che- gou a fazer-se negra porque o Tendeiro foi agarrado a tempo. Largou o pescoco do patrao com desgosto e pos-se a chorar. Os jornaleiros, debrucados sobre o Miranda, bor-rifavam-Ihe a cara com a água das bilhas. O Miranda respirava mas náo voltava a si. A malta olhava ora o oiro ora o rosto desfigurado do merceeiro. Acaba-ram por escolher a panela rachada. Justino apontou o corpo do Miranda e gracejou: — Salvámos-lhe a vida, que diabo, sempře te-mos direito a uma moeda. Contou oito libras, uma para cada um, e distri-buiu-as. Bateu no ombro do Tendeiro: — Lágrimas numa altura destas, homem? Tira meia dúzia de loiras e raspa-te antes que ele acorde. O Tendeiro tirou a mancheia que o Miranda lhe marcara; os outros acharam demais e insurgiram-se; mas o Justino acalmou-os: — Por mim, concordo. Foi ele que encontrou a panela. O Tendeiro enfiou as libras nos bolsos do colete e indicou o Miranda: — Se calhar, matei-o. O Catrouxo pegou outra vez na bilha: — Descansa que ele ressuscita. Despejou a água toda, do mais alto que pdde, e o Miranda estremeceu. Daí a nada abria os olhos, devagar. Os jornaleiros consolaram-no: — Vá lá que andou com sortě. O tipo ia-lhe dan-do cabo do canastro. O Miranda, abismado, apalpou o pescoco ao de leve, com a ponta dos dedos, e perguntou numa voz que os jornaleiros mal entenderam: — Onde está ele? 678 679 Apontaram-lhe o vulto do Tendeiro, que se per-dia ao longe nos pinhais. O merceeiro articulou di-ficilmente: — Um assassino. Há-de pagar-mas nem que se-ja no inferno. Deixou tombar a cabeca para o lado; mas de re-pente ergueu-se apoiado nos cotovelos, rouco: — E o oiro? As libras? Ele levou-as? A notícia correu. O chäo da gändara, bastava esgravatar no sítio certo e aí estavam as minas ao sol. Pesquisadores surgiram dum instante para o outro, cavando noite e dia, revolvendo o areeiro. A bruxa do Albocaz sugeria os pocos, as paredes velhas, como esconderijos: — Procurem nas rachas dos adobos. Quando vinha ä quinta, o Dr. Seabra protestava: — Veja essa pobre gente a arrasar os muros, a desmantelar os pocos, por ordem duma bruxa. Esta-mos na Idade Média, Mariano. O amigo, para o ouvir, dizia: — Mas as libras do Miranda existem. — Um caso isolado. Näo generalize, näo confun-da a árvore com a floresta. Nada mais natural, por exemplo, que um avarento tenha enterrado as suas libras e morrido sem poder recolhe-las. — Talvez seja oiro do tempo dos Franceses, dos homens de Napoleáo. Passaram por aqui, deixaram uma milícia nos Campanas. A gente rica enterrava o que tinha para fugir á pilhagem. Se assim foi, há mais probabilidades de existir a floresta do que a árvore solitária. — Näo quero ofendé-lo, mas voce parece o Gui-maräes a raciocinar. A propósito, a campanha es-moreceu, näo pense mais no assunto. — Penso. O prometido é devido: racho-o na pri-meira altura que o vir. — Adiante. Como ia dizendo, o seu raciocinio näo está certo. Mai os Franceses partiram, é evidente que os tesoiros foram desenterrados. Ou entäo leva-ram-nos eles, depois de torturar os donos e apurar onde os tinham escondido. Claro como a água. — Rendo-me, doutor. Firmino assistiu a parte da conversa, baralhou alhos com bugalhos e foi para a quinta garantir: — É oiro dos Franceses. Há-o por ai aos montes. Ninguém sabia quern eram os Franceses, nem queria saber. Semearam a gändara de libras? Fizeram I muito bem. Se calhar estavam a pensar em nós. E os < pesquisadores teimosos continuaram. ■ Lobisomem arrastou-se ao casaräo para falar a t Mariano Paulo. Também trazia a sua ideia: i — Venho pedir-lhe uma enxada. Tenho oiro en- 5 terrado no chäo da cabana. : Mariano Paulo desiludiu-o: I — Näo acredites nisso. De resto, com a perna 1 assim, näo podes trabalhar. ! Ora. Lobisomem arqueou o peito: ; — Cavo de rastos, se for preciso. AH há oiro, aposto a outra perna. Quando voltou ä quinta, dias depois, confidenciou: , — Na cabana, o oiro está fundo, sim senhor, \ mas em secando a lagoa trago-lhe um poceiro de pre- I sente. Deixe-me a enxada mais uns tempos. J O Miranda convalescia. Sentava-se na cama e I ordenava ä mulher: I — O baú para aqui. I Mexia e remexia as libras, pegava nelas, atirava- * -as ao ar, deixava-as cair no cobertor. O cintilar ru- 680 681 moroso das moedas fascinava-o. Depois, contava-as cuidadosamente e propunha: — Vé lá se acertas quantas säo. A mulher fitava todo aquele fulgor e arriscava: — Talvez urn cento, talvez mais. O Miranda sorria: — Nem tanto, alma de Deus. Corta-lhe um pou-co e torna a dizer. O quarto enchia-se de sombra. Só o baú aberto luzia na obscuridade. Como ela näo acertasse, o Miranda fechava-o: — Pôe-no debaixo da cama; amanhä hás-de ten-tar outra vez. Agora vai ä loja, vigia-me o garoto. Atencäo ao tabaco. E o Tendeiro, partiu para o Ri-batejo ou näo? Se o apanho cá, malha com os ossos na cadeia. Aos domingos o padre Alípio de S. Caetano vi-nha prégar ä capela de Corŕocovo: — Se houver oiro na terra, deixem-no onde es-tá. Quero almas limpas da cobica. O verdadeiro oiro é Cristo. í fl ■ -k XX A luz da candeia, quando muito, alcancava os pes da cama. A seguir, numa zona indecisa, onde a penumbra ia ganhando palmo a palmo a consistěncia da sombra, Guilhermina adivinhava os objectos pelo hábito: a mancha esbranquicada do lavatório, uma cadeira, o armário de pinho. Ao fundo, o quarto mer-gulhava no escuro. Se a cháma oscilava ou o fumo a enegrecia tudo isto se tornava porém incerto e tré-mulo. Guilhermina bocejou. Iria adormecer? Pós-se a calcular as horas. Duas? Trés? O relógio da torre de-sarranjado. Há meses. O siléncio da noite; viandan-tes pelas azinhagas; luar a cair sobre areia. Outro bo-cejo. Hilário, que dormia enfim mais sossegado, suspirou. Quieta, para o nao despertar. As pálpebras pesa-vam-lhe. Soprou a candeia, fechou os olhos. Talvez o sono viesse. Pela madrugada, Hilário perguntaria antes de sair: — Queres agora? 6S2 633 Passava ali noites e noites sem ela querer. Tei-mava, metia-se na cama, inofensivo como uma crian.-ca. Ä menor tentativa, Guilhermina atalhava: — Näo penses nisso. Ve" se dormes. Nem sempre o recebia. Marcava encontros a jorna-leiros e,-se Hilärio aparecia tambem, pior para ele. Que o jornaleiro lä estivesse ou näo, tanto fazia. Näo estando, havia de chegar. Deixava Hilärio bater, pedir, amea-car, e surgia por fim, de candeia na mäo, com um ar de misterio e a resposta que se da aos mendigos: — Tem paciencia. Vai com Deus. A porta entreaberta um momento. Aiguem no quarto, na penumbra? Näo podia saber, a luz da candeia ofuscava-o. E a cautela, receoso de esbarrar com algum brutamontes, virava as costas, desistia. Uma artimanha da rapariga. Que dava resultado. Hilärio escolhia um recanto de sombra e aguar-dava. Noite perdida vigiando ate os olhos lhe doerem quern entrava ou sai'a. Äs tantas, urn vulto escoava--se da porta de Guilhermina. Saltar-lhe em cima, dar--Ihe dois abanöes, obriga-lo a mostrar a cara. Era o que tinha vontade de fazer, mas näo fazia. Limitava--se a ranger os dentes. O vulto sumia-se na esquina. Comecava a segui-lo, de longe, parando se o via pa-rar. No bico dos pes, para abafar os passos. Dissi-mulado contra as paredes. Uma vez trocaram-se os papeis. Escorregou no cascalho solto e o barulho deteve o visitante de Guilhermina a meio da quelha. Uma figura talhada no luar. Enorme. Arrastou-se pela valeta ate ao escuro dum casebre. A figura avancou: — Quem estä ai? Voz äspera, tamancos rudes. Susteve a respi-racäo. Talvez a sombra lhe valesse. E de facto valeu. f O outro passou sem dar por ele. Era o Catrouxo, tra- ;;: balhador do Miranda. s? Sentou-se no rebate da porta. O cabelo enchar- í cado, o suor a pingar-lhe da testa, como se estivesse a chover. Qual Catrouxo. Uma avantesma, urn lobi-somem, com a lua por trás. Tentava enganar-se, cla-p: ro. O certo é que tinha andado de rastos pelo cháo |: onde o Catrouxo assentara os pes como um rei. O susto důrou alguns dias. Depois, Hilário con-tinuou a rondar. Cuidadoso, mais colado á sombra. E uma única ideia: descobrir entre os fregueses de Guilhermina um trabalhador da quinta. Pagaria por to-t dos. Via-o já de joelhos, a rogar-lhe: I — Náo me despeca, nao me desgrace. Arranjaria maneira de o pór a andar. Naquilo, a obrigacao do pai, que tanto bramava contra Guilhermina, era dar-lhe apoio. Sim, pelo menos naqui-i. lo. Esperava, embucado no escuro, seguia cada um dos jornaleiros a casa. Gente do Miranda quase sempre. E outros que nao pudera reconhecer. Fugiam pe-los quintals, perdia-lhes o rasto. Homens da quinta, já se vé. i Até que chegava o ajuste de contas com Guilher- mina. — És a cabra das cabras. Nao há par de calcas em Corrocovo que náo tenha passado por esta cama. f Batia o pé, numa espécie de birra, ameacava: i — Antes Deus te matasse. Deus ou eu. E olha que pode acontecer, pode faltar-me a paciencia um 1 dia destes. Logo a seguir, arrependia-se. Era incapaz de lhe tocar, procurava só o ah'vio que as palavras traziam, < pouco a pouco: 1 — Náo te queria ofender. 684 6&5 E acabava com o pedido habitual, que mudasse de vida, que fosse apenas dele. Quase conseguia sorrir: — O que tenho a fazer é trocar-te a fechadura da porta, dar a volta á chave e guardá-la no bolso. Assim, só entro eu. Guilhermina desatava a rir, os cabelos loiros ful-guravam: — E o resto? Náo te esquecas do resto. Uma blu-sa de quando em quando. Um cordao de oiro. Saltava-lhe ao pescoco. Nessa altura, porém, Hi-lário recordava os sermoes do pai. Nem de propósito; — Viras as costas e esse coirao come o que lhe dás em pandegas com jornaleiros. Jornaleiros, saidos daquele quarto, daquela ca-ma, para voltarem com o seu cheiro de estrume. Sempře. E afastava-se dela. Outras vezes, a saliva ardente da rapariga inibia--o. Nao sabia porque. Um pressentimento, urn aviso obscuro de que estavam a macular qualquer coisa. Talvez fosse melhor nao saber. Guilhermina gritava: — Percebes agora porque preciso de homens? Furiosa, dum lado para o outro: — Porque és um desses machos de quando o rei faz anos. E, de repente, estendia o braco: — Rua. A porta é ali. O sono perpassava por ela, tocava-lhe de manso. Que horas seriam? Quatro? Cinco? A noite nunca mais acaba. Luar e areia. Tudo cor de cal. Náo pode ser. Há uma ponta de azul no céu que a luz nao consegue caiar, de" as voltas que der. Camadas e camadas de luar. Está bem, mas náo fica branco. Iria adormecer? Como, se tinha as pálpebras mais leves, a cabeca desperta? Riscou um fósforo e acendeu a candeia. A luz caiu sobre o rosto de Hilário. Magro, contraído. Uma expressáo de crianca que adormeceu com medo. Es-taria a sonhar? Se está, o sonho náo é bom. Voltou-se para ele, acordou-o: — Queres agora? Hilário, surpreendido, esbogou uma carícia, sus-pendeu-a logo. Os dedos mal tocaram a ponta do marnilo. Ela segredou: — Náo sejas parvo. Aproveita. A máo de Hilário continuava hesitante. Entáo, a rapariga soergueu-se na cama, arqueou o busto, aproximou-se devagar. E o seio entrou suavemente na concha da máo. 686 6S7 XXI Ao fundo da quinta, havia um pedago de terra barrenta. Os garotos esgueiravam-se entre as vedacoes de cana e passavam as tardes a modelar bonecos, a atirar a argila pegajosa á cara uns dos outros. Mariano Paulo reparou por acaso nos pequenos pogos vermelhos que a criancada escavara e um novo projecto se esbocou ali mesmo: utilizar o barro no fabrico de telha ou coisa semelhante. A salvacáo da quinta tornara-se uma ideia constante, obsessiva. Náo deixaria escapar nenhuma ocasiáo de manter intacta a heranca dos Paulos. Ao longe, o sol do fim da tarde incendiava as serras: a fraga a arder recortava-se no céu; o povo daqueles sítios morreria na fogueira medonha; os macicos de árvores, erectos cresciam sobre o dorso da montanha como as linguas das chamas. Para cá, o campo raso estendia-se em pinhais cerrados e terras de cultivo. Salvo do incéndio, vinna até Corro-covo, com as suas aldeias crepusculares, entrevistas através dos ramos. Ouvia-se o rumor indistinto, vago, do fogo que calcinava as penedias. Ou entao 6S9 seria apenas um pouco de vento, ao longe, entre as árvores. O projecto entusiasmou Mariano Paulo. Fabri-car materials de construcao, criar uma indústria, aguentar-se. Nos dias seguintes, ele próprio e Firmi-no fizeram sondagens ao terreno, cavando como dois jornaleiros, averiguando o tamanho da camada ar-gilosa. Resultados encorajadores. Nem sempře o dia-bo está atrás da porta. Os fornos do Guimaráes ti-nham faíhado, mas aquilo parecia ser uma saída viável. Consuítou o Dr. Seabra: — Há barro com fartura ao fundo da quinta. Barro de boa qualidade. Que diz o senhor a um for-no, uma fabriqueta de tijolo e telha? Calculo que me custe uns cinquenta contos. O meu ultimo dinheiro, alias. — Temos de ver isso com calma. — A quinta náo me dá para as despesas. Os en-cargos sobem todos os dias, a terra envelheceu, farta de sementeiras. Preciso de explorar este filáo de barro como se explorasse uma mina. Em verdade, náo me resta mais nada. — Mas a argila será realmente boa? Depois, é forcoso contar com verbas suplementares: um técni-co de fora, caro, já se vé, dinheiro para manter a fá-brica antes do produto estar lancado, etc. E mais: ar-ranjar mercados, sustentar a concorréncia, eu sei la. Um bico de obra. — Talvez, doutor. De qualquer modo, já estou metido numa camisa-de-onze-varas, num inferno de trinta caldeiroes. E para que? Para andar de mal a pior. Junte-lhe o Hilário, que náo mexe uma palha, náo se rala com nada, e diga-me que diabo hei-de eu fazer. 690 Calou-se. O Dr. Seabra enrolou o cigarro, acen-deu-o. Expelindo o f umo com lentidáo, fitava Mariano. As paredes do casaráo escorriam humidade. E veneno. Respirava-se um ar doentio, morria-se antes do tempo, enlouquecia-se: Hilário, D. Conceicáo, o velho Paulo. Outro cigarro; pobre Mariano: — Vamos pensar a sério nessa história da fábri-ca. É arriscado, mas se náo ve outro caminho expe-rimenta-se. Tinha de o ajudar porque Hilário, náo há dú-vida, ajudava pouco. Melhor, desajudava. Um jeito especial para levantar problemas diante dos pés como um perdigueiro levanta perdizes. Ultimamente, im-plicava com os trabalhadores sem nenhum motivo. O Dr. Seabra aconselhava-o: — Näo atormentes essa gente. Jä lhes bašta o que bašta. Näo arranjes sarilhos e pensa um pouco no teu pai. — Se o senhor passasse e meia dúzia de cáes lhe ficassem a rosnar nas costas, o que é que fazia? — Deixava-os rosnar. O teu pai náo pode per-der tempo com questiúnculas idiotas. Tem mais que fazer. Se náo queres dar-lhe apoio, dá-lhe ao menos descanso. Está a defender o teu future Ou náo per-cebes isso? Hilário desceu a rampa, de chibata na máo, fus-tigando com fúria as folhas dos canSilos que se es-tendiam para o caminho estreito. O Dr. Seabra continuava a fitar Mariano; achava--o mais preocupado: uma tensáo imóvel, concentra-da; e, num dos seus impulsos de amizade, decidiu-se: — Concordo com a fábrica. Meto o meu dinheiro no empreendimento. Näo é muito mas sempře em-purra. Se for preciso, arrahjo capital por fora. Há bocado falei-lhe de prudéncia, dificuldades, näo sei que. Pois antes me tivesse calado. O essencial aqui... E deixou-se arrastar pelo próprio discurso; como era hábito, de resto; formulou projectos, divagou, juntou a sede ä vontade de beber, até que Mariano, en-tusiasmado, deu um murro na mesa: — Deus o oica. Vou-me a isto com unhas e dentes. XXII Dias depois, o Dr. Seabra voltou a Corrocovo. Maria dos Anjos informou-o que o patrao andava para o fundo da quinta com os pedreiros. O Dr. Sea-bra desceu, pasmado da rapidez com que Mariano Paulo estava a resolver o assunto. Ia andando e via de longe as paredes da fabrica que rompiam da terra: um barracao comprido, espacoso, tracado a beira dos pocos barrentos. Os pedreiros assentavam os adobos com gran-des chapadas de cal e areia. Mariano vigiava o tra-balho. Nao queria erguer um palacio. Bastavam as paredes alvoradas, cobertas de telha francesa da Pam-pilhosa. Nemrebocos, nemcaiacao, nemvidros. Chao de saibro batido, janelas de madeira ou gradeamen-tos de ferro, conforme os orcamentos. O Dr. Seabra estendeu-lhe a mao: — Vocg, la perder tempo nao perde. Mariano apontou as obras: — Daqui a quinze dias estao prontas. Ha uma dificuldade: o forno. Duvido que esta gente o saiba construir. Mandei chamar o Rosado de S. Caetano. 692 693 Um especialista. Em Corgos, quase todos os fornos de cal foram feitos por ele. O Dr. Seabra concordou: — Muito bem, Mariano. E agora, outra coisa: falei ao Cosme rico; achou a ideia boa e ofereceu capital. Devemos aceitar. Diminuem os riscos da nossa parte... — E diminuem os lucros. Náo, doutor. Yamos ganhar dinheiro com a fábrica. Ninguém me tira isto da cabeca. O melhor é jogarmos sozinhos. Hilário, que vagueava pela quinta, aproximou-se: — A fábrica progride. Já viu, doutor? Os pri-meiros fregueses devemos ser nós. O casarao tem o telhado todo esburacado. E os seus beirais, lá por Corgos? Desconfio que as vendas ficam por aqui. Que lhe parece, pai? Um pedreiro veio chamar Mariano Paulo. Que-ria saber com que largura deixariam o portao do fun-do. O Dr. Seabra encarou Hilário: — Sempře o mesmo feitio. Quantas vezeš será preciso explicar-te... — Chega de sermoes. Esta fábrica é uma asnei-ra. Vontade pura e simples de estragar dinheiro. Se a ideia foi sua, felicito-o. O médico tentou dominar-se, mas náo conseguiu: — Assim o queres, assim o tens. Limpa as ore-lhas e ouve. Venho a Corrocovo há dezenas de anos, tive alguma influéncia na tua vida, tratei-te desde que nasceste, servi-te de ama seca, aturei-te. Sinto auto-ridade bastante para dizer que lastimo o tempo que perdi contigo. Náo mereces as preocupacoes do teu pai, nem a minha amizade, nem o sacrifício da tua mae, que morreu para vires ao mundo. Náo mereces nada. 694 Hilário riscava o chao com a biqueira da bota. Em frente, os pedreiros erguiam as paredes da fábrica; os serventes carregavam adobos sobre adobos. Nao tardaria muito que pedreiros e serventes precisassem de andaimes. O edifício crescia, dentro de quinze dias estaria pronto; o Rosado de S. Caetano viria construir o forno; Mariano Paulo contrataria um técnico que fiscalizasse o barro, a cozedura, os pormenores do fabrice Os serventes e os pedreiros trabalhavam com a cara salpicada de cal. A ultima cartada de Mariano Paulo jogava-se ali, nas paredes que subiam á pressa. Hilário suspendeu bruscamente o movimento do pé: — Quer dizer que a matei? O Dr. Seabra nao esperava a pergunta e reco-nheceu que fora longe de mais: — Náo deturpes as coisas. — Foi por isso entáo que nunca me contaram a verdade e é por isso, claro, que todos me odeiam. Mesmo o hipócrita que se atreveu a meter outra mu-lher na cama onde ela dormia. — Nao faleš do teu pai nesses termos. — Deixe-se de tretas, de palavras solenes: preocupacoes, amizade, sacrifício. Sacrifício, porqué? O Dr. Seabra respondeu com grande esforco: — Por que morreu de parto. Mas náo quis insi-nuar que fosses responsável. Devo dizer-te, para sos-segares a consciéncia, que num caso em que tenha de sacrificar-se a mae ou o filho, o médico sacrifica sempře o filho. Já věs que interpretaste mal o que te disse. De resto, naquela noite, o problema foi outro: uma hemorragia difícil de estancar. Chamaram-se mais médicos, tentou-se tudo, mas pela madrugada, pou-co depois de o padre Alípio lhe dar a extrema-uncao, a tua máe morria. Tu berravas lá dentro, no berco, e lembro-me perfeitamente que o amanhecer fazia da janela um rectángulo azul gelado, um bloco de neve tingida, que eu fitava sem saber porque, enquanto ela dizia as ultimas palavras. Queria ver-te, mas quan-do apareceram contigo era tarde. Ainda hoje tenho a impressao de que a neve da janela passou de azul a negra. O mais provável, contudo, é que fosse dos meus olhos. Estava, de facto, cansado. Como agora; a sua voz escurecera: — Nao sei. Mas sei duas coisas certas: que a cho-rámos sem hipocrisia e que nao devia ter falado dis-to. As vezes precisava que me cortassem a lingua. Ai tens. I XXIII É um dia quente de fim de agosto. A terra es-' calda e as poucas leiras de milho que restam na pla- nicie tern a cor torrada das folhas secas. As eiras estáo já cobertas de espigas. As terras lavradas ficaram nuas. E os vinhedos esperam a vindima. Ranchos de trabalhadores corta-ráo a uva até outubro. Quando as vinhas ficarem nuas como as terras lavradas, o outono acaba. As primei-ras chuvas cairao. E entáo, as folhas mortas apodre-j cem para serem levadas na forca das águas. \ O sol estala no tojo, no lombo das cobras. Os pássaros sonolentos arriscam um voo breve e mergu-lham outra vez na sombra. Frescura, só a dos ramos dos pinhais. Nas leiras mais distantes, os trabalhadores da quinta apanham o ultimo milho; carros de bois sobem com a carga das espigas; um canto desgarrado j de mulher vibra na tarde e faz o dia triste. Perto do ] casarao, a égua da charrete pasta uma erva miúda, Í que a sombra das paredes protege da torreira. A meio da rampa, as galinhas aproximam-se do poco. Duran- ■5 í \ 697 te as regas, sempre caiu no cháo alguma água dos al- catruzes. Humidade. E quern diz humidade, diz mi- nhocas. Mais ao longe, os jornaleiros tiram o chapéu, sacodem o suor da testa, dobram-se outra vez sobre f o milho. Eles o semearam e abriram os regos por on- j de a água chegou as raizes dos canoilos. Colhem-no | agora atirando as espigas arrancadas para os largos i poceiros. Mais tarde, háo-de malhá-lo nas eiras, levá- ,; -lo ás tulhas de Mariano Paulo, acamar os sacos nas ; carrocas dos armazenistas de Corgos. Ai, perde-lo- -ao de vista. Tornarao a encontrar algum quando pa- garem, nas feiras e nas loj as, os lucros duvidosos de Mariano Paulo e os lucros certos dos armazenistas; | dos comerciantes que os armazenistas dominam; e dou- tros homens mais poderosos que dominam os arma- \ zenistas. Firmino caminha para o fundo da quinta. A ram-pa faz uma curva apertada e, de súbito, a casa da fá-brica, sem caiacáo, de adobos nus, surge por entre os pinheiros deixando escapar para o céu da tarde a fumarada do forno. Firmino sorri. A telha vai endireitar, até que en- 1 fim, o barco de Mariano Paulo. Chegam encomen-das todos os dias. Trés homens escavam a saibreira, alargando os veios do barro; a argila endurece nas I formas; a telha empilha-se nos alpendres, escoa-se aos ombros dos carregadores para os taipais dos carros j que a levam aos recantos da gandara. Mariano Paulo parece outro. Por aquele andar, o capital que empregou será reembolsado ao fim de dois anos. Firmino olha a fábrica e sente que uma vida nova nasce das paredes descarnadas, dos pocos * abertos na terra vermelha. A má sina dos Paulos co-meca a dar meia volta, a afastar-se. Hora a hora, em cada golfada de fumo que sobe enegrecendo a rama dos pinheiros. Quando Firmino transpoe o portáo da fábrica, o ar a ferver entra-lhe nos olhos, na garganta. Tosse e, de passagem, bate amigavelmente no ombro do horném encarregado do forno. O outro volta-se, cris-pado, coberto de suor. Lá fora, a tarde cai sobre Corrocovo. As aves saem por fim das árvores e voam de encontro ao sol quase a tocár o horizonte. No silencio da planície, só a mesma cantiga monótona ecoa. Uma voz de mu-lher. Exausta, triste. 698 699 XXIV Mariano Paulo acendia o cigarro e recostava-se na cadeira de lona ä sombra da velha nogueira de Sil-vério Coxo. Era domingo. Na fábrica paráda, nenhum rumor. O trabalho, interrompido sábado ä noite, re-comecaria apenas segunda de manhä. Uma quebra apreciável de rendimento. Desde o início que a telha se vendia bem. As en-comendas aumentavam dia a dia, o fabrico tornava--se cada vez mais rápido. Näo fora preciso contratar o técnico que o Dr. Seabra aconselhara. Os campo-neses aprendiam a fazer as coisas com facilidade. O Rosado de S. Caetano construíra o f or no, ficara uns dias a dar as indicacôes convenientes, a controlar as primeiras tentativas, e Firmino pusera-se logo a par do assunto. A telha saia, a cada nova fornada, mais perfeita, mais solida. A argila, tirada agora duma fundura de dez metros, vinha quase limpa de areia. Algumas experiéncias, poucas, e assentou-se num processo definitivo. Producäo a pleno fôlego, livre de embaracos; descontando, claro, os aborrecidos atra-sos dos domingos. Mariano Paulo ponderava a ne- 701 cessidade de os remover. Falaria nisso ao Dr. Seabra, resolveriam a questäo. E pronto. Ali estava a grande ocasiäo de pôr as suas coisas em ordern. Melhor, sem dúvida, que os fornos do Guimaräes. Entrevia a fábrica térrea, meio escondida pelos pinheiros. Se os Paulos já mortos an-dassem por ali, discretos e atentos, pisando a sua ve-Iha quinta, sentir-se-iam orgulhosos dele. A paz e a abastanca antigas voltavam de novo ao casaräo. O milagre da telha pagaria com juros as desgracas passadas. Apenas urna sombra naquela ressurreicäo: Hilá-rio. Mariano Paulo franzia a testa; corriam dois, trés minutos; e erguia os ombros resignado. Em resumo: a) finangas quase restauradas; pensando bem, a ideia de associar o Cosme rico á fábrica, como o Dr. Seabra desejava, talvez a transformasse numa uni-dade industrial de certo poderio, sobretudo se enve-redassem pela producäo doutros materials: tijolo, por ex.; recusara de início, porque lá diz quem sabe: grande nau grande tormenta, mais vale um pássaro na mäo, etc.; mas era um problema a rever; b) aspecto familiar: a convivenčia de Hilário, di-fícil, impossível; havia num dos pratos da balanca grandes atenuantes para o rapaz: a saúde frágil, sempře adoentado; e, näo era favor reconhece-lo, a ari-dez da infäncia, a falta da mäe; abandonei-o, entre-guei-o a Palmira e foi como se o obrigasse a atravessar um deserto, sozinho; mea culpa; no outro prato, pórem, a preguica, o comportamento com Guilhermi-na, o desinteresse pela quinta, o feitio quezilento, talvez pesassem mais; näo sei; procuraria meihorar as. suas relacöes com ele, embora näo acreditasse muito; em todo o caso, tentaria; a felicidade nascida no de-clinar da vida, como a aragem fresca do entardecer que passa pelos campos queimados ao sol duma tar-de inteira, precisava disso para persistir; c) lado sentimental: Maria dos Anjos fazia parte da harmonia tanto tempo esperada; recordava a chegada da rapariga ao casaräo lutuoso, as vezes que hesitara em mete-la na cama e, por f im, a noite ine-vitável; basta que a memoria ceda apenas um momenta para os mortos estarem perdidos; Deus sabe que näo exagero; quero-a por simples apetite, como o päo, o vinho, o sono; näo distingo a ternura do res-to; e a ideia da véspera, de há anos, surgia-lhe mais nitida: casar, dar-lhe a compensagäo que merecia; d) para terminar: Hilário näo era o herdeiro que sonhara; a pesada heranca dos Paulos exigia os ombros fortes de alguém capaz de confundir a quinta com a vida; um filho de Maria dos Anjos; da terra, mais exactamente. Eis o balanco, o deve e haver actual. A partir dali, o ponto de facto importante era falar do casa-mento a Hilário. Falaria: e o que for soará; mas näo julgues que prescindo desta ultima luz; comeca a anoi-tecer para mim, percebes? 702 703 XXV Acabam de jantar. Nao trocaram ao todo meia dúzia de frases. Maria dos Anjos levanta os pratos, os taiheres. Deita um olhar irónico a Hilário; e ou-íro, repreensivo, a Mariano Paulo: entáo, tratas ou nao tratas do assunto? Mariano Paulo está nervoso. A mao treme-lhe ao erguer o cálice de aguardente; enruga as sobran-celhas; procura as palavras, hesita, nao gosta de dis-cursos. Mas por fim lá se decide: o melhor ainda é pór os floreados de parte e Hilário que entenda como quiser. Ergue-se da cadeira, dá uma volta á mesa: — Tu sabes o que tem sido a minha vida, a nos-sa vida... Já nao era sem tempo. E Maria dos Anjos sai da sala. Vem lá de fora um cheiro a estrume, a fruta quase podře, que faz palpitar as narinas de Hilário. O pai aproxima-se, poisa-lhe a mao no ombro: — Bern, pensei que me devia casar. Nao vejo maneira de trazeres uma mulher para dentro destas paredes e é preciso alguém que governe a quinta quan- 705 do desaparecermos os dois. Uma heranca como a dos Paulos tem de perdurar para alem das pessoas, de tu-do o que passa. É minha obvigacao velar por isso. Espero que o entendas. Afasta-se em direccao á janela e continua a fa-lar, de costas: — Enfim, náo sou para discursos. Acho que a Maria dos Anjos me convém. A figura espadaúda de Mariano Paulo recorta--se no céu enluarado, quase branco; Hilário observa--o em siléncio. — Sei que a memória da tua máe é uma coisa preciosa, mas náo somos nós que fazemos a vida. Do fundo da aldeia sobe um latir de cáes; no pátio ouve-se o vaivém de Firmino, a fechar a adega, a levar erva aos animais. Mariano volta-se e encara o filho: — Talvez aches que há nisto um pouco de egoís-mo. Realmente, náo sou perfeito. Mas, para lá do que possas julgar, é neste cháo, nesta casa, que eu penso. Hilário vě um pedaco de céu, as estrelas que brilham sobre a duna e ás vezeš se perdem num rasto de luz. Ali está uma coisa útil que aprendeu em S. Pedro. Pode explicar a Firmino que as estrelas náo caem na terra, se fragrnentam e somem pelo espaco. Quando muito, chega até nós do alto um pequeno detrito sideral, uma coisa de nada, Firmino. E mal tu supóes que as estrelas continuam a brilhar depois de mortas. Como aqueles que nao es-quecemos. O caseiro anda pelos currais a cuidar do gado. Se uma estrela desaparece, formula um desejo. Coisa pedida é coisa cumprida, aprendeu ele em crianca: 706 — E Deus nos guarde de fogo tamanho cair em Corrocovo. Ficava tudo cego e ateava-se o iume nos pinhais. Mariano pergunta: — Entäo, que dizes tu? Na voz de Hilário há um laivo de rouquidäo: — Nada. Alias, que lhe importa o que eu digo? Levanta-se e, ao satr da sala, acrescenta: — Obrigado pela participacäo do casamento. No quarto, o mesmo ruído antigo de ratos e madeira a estalar, quando Palmira vinha apagar--Ihe a luz e ele queria saber se o retrato da máe es-tava parecido. Senta-se na cadeira de verga, perto da janela. Um ultimo rumor de aldravas puxadas por Firmino é o sinal de que a noite se apoderou do casaräo. Aguarda, imóvel, que Maria dos Anjos passe para a cama de Mariano Paulo. Ouve-lhe por fim os chinelos discretos. Ancas largas, sólidas, peito para dar mama a Corrocovo em peso, Maria dos Anjos pode parir uma dúzia de filhos. E vai pari-Ios, com certeza, para o prejudicar. Lá se desfaz a teoria de Mariano Paulo, lá se esboroa a quinta. A luz acende-se no aposento do pai. O barulho da água despejada no baldě significa que a pega se lávou e pouco tarda que volte ao próprio ninho, depois de conspurcar o alheio. Hilário levanta-se, atra-vessa o corredor no bico dos pés, empurra a porta do quarto dela e entra. A rapariga surge, em camisa de noite, os cabe-los negros desfeitos, e a obscuridade, tocada por uma ponta de luar que atravessa a vidraca, dá-Ihe de repente um ar irreal, uma tonalidade quase azul, como se Hilário a visse perpassar num sonho ou a 707 [Í visäo viesse do passado, donde esperara sempre um regresso como este. Seilte apoderar-se dele, que ainda há pouco a juigava nos termos mais soezes, uma grande pureza, a paz dum berco acalentado, qualquer coisa assim. Esquece a ideia que o trouxe: vé, näo se delta só con-sigo, mas agora protesta, é uma noiva exemplar, e quando a rapariga se dirige ä mesinha-de-cabeceira, murmur a: — Näo fales, näo te mexas. Maria dos Anjos, sobressaltada, risca um fósfo-ro, acende a vela: — Quem lhe deu ordern de entrar? Hilário fecha os olhos um momento e torna a abri-los vagarosamente. Confundiu-a com alguém des-conhecido, com um desejo täo fundo que näo pode dizer ao certo o que é. Na sua confusäo há ódio outra vez, mas sobre-tudo sentimentos larvares, que sempre ignorou, e se chocam, transformam, váo ganhando pouco a pouco a tempera de um único instinto, pesado e inadiável, que o domina sem ele querer. Ei-la, sob a camisa leve, com o cheiro do leito donde vem e as olheiras da fémea que deixou o horném há pouco. — Já uma vez te pedi que dormisses comigo. Lembras-te? Dói-lhe o que diz, o que faz, mas näo pode evi-tar as palavras, os gestos, que lhe parecem ordenados há muito: — Tem de ser agora, compreendes? Estende os bracos, mas a rapariga consegue fugir-lhe: — Pare ou desato a gritar. E como ele a persegue, sonambulo, de olhos fi-xos, esbofeteia-o com toda a forca. Hilario vacila e deixa-se empurrar para fora do quarto. A porta, ao fechar-se, acorda-o dum pesadelo indecifravel. 70S 709 XXVI Foi entäo que a grande estráda que descia da vila comecou a aproximar-se de Corrocovo, a abrir-se por entre o mato, a deitar pinhais inteiros ao chäo. Apareceu em f rente da aldeia o piso certo de saibro e pedra. E a multidäo de britadores, homens de pi-car etas, pás, enxadas, com a ajuda dos cilindros enormes, enfiou a estráda ao meio do lugar. Negociantes, porqueiros, carros de milho, fru-ta, couve, gados e celeiros, passavam agora em Corrocovo, na estráda nova, para as feiras da vila. Gente de léguas em redor subia e descia com a riqueza da gändara nas manhäs e anoiteceres de feira. E a gatunagem apareceu na embocadura das azinhagas, a assaltar e a espancar negociantes, a tres-malhar o gado. Abriam os taipais dos carros, enxo-tavam os bois, os cavalos, e os sacos soltos caiam no caminho. Vinha a guarda de Corgos, fazia rusgas, metia parte da escumalha na cadeia da vila. Mas Corrocovo só entrou na or dem com o tiroteio do Albocaz. Nessa noite, os homens far dados atiraram a matar sobre a quadrilha surpreendida e cercada. Os homens de Corrocovo defenderam-se ä pedra, a cacete, e fo-ram mor tos, feridos, aprisionados, quando a lua rom-peu por trás das nuvens. Estavam em campo raso, sem abrigo e sem armas. O luar fizera dos seus vultos o alvo seguro das carabinas. A estráda čontinuou a rolar pela gändara. De lugarejo a lugarejo, as distäncias ficavam mais cur-tas. A exploracäo ia comecar a fundo. Os armazéns, o comércio de Corgos e, através deles, os grandes negociantes e industrials das cidades, lancavam pela estráda nova as furgonetes, os camiôes de carga. Escapes ruidosos assustando pássaros e gado. Agora, sim, a vila comia Corrocovo com comodidade: a comodidade dos motores e dos pneumáticos de im-portacäo. Urna enorme engrenagem de inter esses punha-se em movimento, invadia o areeiro dos cam-poneses; Ford, Rockefeller, Shell, Renault, equi-pavam Corgos para aquela marcha; e Corgos, na companhia da gente poder osa doutras regiöes, come-cava a marchar, com firmeza. A fábrica de Mariano Paulo estava condenada. O restrito mercado que tinha fora devassado. Äs al-deolas ermas, onde a telha de Corrocovo se vendia, chegava a concorrěncia das grandes industrias. As fá-bricas da Pampilhosa descarregavam a telha, nos po-voados obscuros, mais barata que a do forno da quin-ta. Tornados em conta os lucros dos revendedores, as despesas de transporte, sobrava ainda margem para uma guerra de precos. Mariano Paulo näo podia aguentar o desafio. A pequena indústria ia ser des-mantelada e, conseguido isso, a empresa mais forte ficava sozinha em campo, A subida de custo far-se--ia, depois, livremente. 712 O Dr. Seabra vir a o perigo ao primeiro relance e confessara-o a Mariano Paulo. Admitia até que a Pampilhosa estivesse a vender com algum prejuizo. Por enquanto, claro. O velho processo de perder um pouco a principio para ganhar tudo no fim. Mariano apertava as mäos na cabeca. A venda diminuia, as encomendas escasseavam. Abria uma ja-nela do primeiro andar. A fábrica via-se melhor dali: nada menos de cinquenta contos enterrados naquela brincadeira. E no momento exacto que o negócio co-mecava a dar algum lucro, vinna uma estráda do inferno trazer a morte ao casaráo. Custava a acreditar; mas os livros da escrita descobriam, dia a dia, o des-calabro; e a voz do Dr. Seabra, sempre confiante, ecoa-va agora insegura na sala: — Näo há nada a fazer. Como se falasse duma doenca incur ável. Mariano Paulo deixou-se cair no cadeiräo. A ultima esperanca, o ultimo dinheiro, a iuta feroz para conservar as leiras de terra que os seus lhe tinham confiado, tudo por água abaixo. Apoiou-se nos bracos do cadeiräo e er-gueu-se de novo: — É preciso tentar qualquer coisa. O Dr. Seabra contou-lhe entäo a história do pei-xe que devorava um peixe mais pequeno e era por sua vez devorado pelo tubaräo. A vida punha os homens a comerem-se uns aos outros. O mais forte vencia, e f or ca, all, significava dinheiro. Ninguém podia im-pedir a ruina da fábrica, da quinta. Mariano Paulo interrompeu-o: — Guarde as fábulas para outra altura. Vamos pensar no que se pode fazer. O Dr. Seabra abanou a cabeca: — Nada, já lhe disse. Insisto na mesma história. 713 Suponha que o peixe procurava escapar-se ao tubarao. Muita pena, Mariano, mas nao ha mem6ria dum tubarao menos pratico que tenha deixado fugir o peixe, por piedade. XXVII O tempo corria, a fábrica desmantelava-se. Mariano Paulo despedira o pessoal quase todo: — Contra vontade. Com pena deles e de mim. A telha que saia ainda do forno era empilhada no alpendre ä espera dos raros compradores que sur-giam. Regateavam tanto que Mariano Paulo se via forcado a vender aos precos da Pampilhosa, ás vezes mais barato, para apurar algum dinheiro. Contos de réis pela janela fora. Tinha de fechar a fábrica, de-sistir. O Dr. Seabra previra tudo aquilo com exactidäo: — Nada a fazer. Mariano Paulo estava convencido. Mas come-cava a imaginär, acima das razöes invocadas pelo amigo, outras razöes mais poderosas. Talvez os res-ponsáveis da sua ruina näo fossem os homens. Esses apareciam apenas em campo como armas duma for-ca maior. E a vida ia tomando para ele, dia a dia, as pr opor goes dum combate contra o destino. Os homens näo podiam levar täo longe a infelicidade alheia. Confidenciava ao Dr. Seäbra: 714 715 — Há famílias assim, votadas á destruicäo. De-via talvez cruzar os bracos e deixar correr. Ser o cor-deiro pacífico. Mas comigo o destino engana-se. Vou espernear até ao f im. O médico ouvia-o, apreensivo. Lembrava a sombra do velho Paulo, praguejando pel o casaräo, apoiado ä bengala; via Hilário cada vez mais cala-do, mais azedo. E näo tinha grandes ilusôes sobre o que estava a aconíecer com o amigo. A ideia tentacular crescia, dominava as conver-sas, tornava-se o seu único terna. Mariano, per den-do a harmonia natural dos gestos, sacudido, os olhos incendiados, garantia: — Espernear até ao ultimo alento. Dar-i he que fazer. O Dr. Seabra tentava dissuadi-lo: — Qual destino, qual carapuga. A verdade é que uns senhores da Pampilhosa fabricam a telha mais barata do que nós e uns senhores näo sei donde atravessaram Corrocovo com uma estráda nova. Fecha-se a fábrica porque näo se aguenta a concor-réncia. O resto näo tem pés nem cabeca. O que vocé precisa é de repouso, de calmantes. Mariano sorria: — Que diabo, näo seja täo ingénuo. E de súbito, olhava para os cantos, baixava a voz, como se alguém o vigiasse: — Sei que estou perdido. Mas a telha, a fábrj-ca, a estráda, näo säo chamadas para aqui. A rato-eira é outra. Uma praga antiga, uma maldicäo que vem de longe. Há muito que os Paulos foram con-denados. Para pagar agora. Entretanto, a rigidez de face crescia. As rugas, vincadas por um traco mais firme, sossegavam até 716 lembrar os golpes duma enxó nas imagens de madeira dura. Os olhos apagavam-se, pouco a pouco. E ele, inexpressivo, sem uma contraccäo, perdia-se nesse mundo que girava incansavelmente em torno do mesmo eixo, da mesma ideia fixa: — Estive a pensar no Guimaräes. Näo posso ir a Corgos desancá-lo como prometi. Näo odeio nin-guém. Os que se ergueram contra mim foram man-dados sem o saber; nada tenho com eles; as minhas contas säo outras. A face morta, a obsessäo: — O destino, sim. Há-de levar-me tudo: a família, os amigos, a quinta. Mas preparei-Ihe uma surpresa. Näo sou homem para ajoelhar, para pedir misericórdia. A saliva enchia-lhe a boca, borbulhava entre os Iábios: — Que tem o Guimaräes com isto? Pobre Guimaräes, pobres fabricantes de telha. Maria dos Anjos andava alarmada: — Näo fala doutra coisa. Passa as noites em cíaro, näo tolera nenhum barulho. Mandou Firmino recolher o gado na fábrica porque o mugido dos bois o irritava. Mal aguenta a zoada das räs. Senta-se, finca os coto-velos na mesa, tapa os ouvidos. Nunca o vi assim. O Dr. Seabra franzia a testa. Uma crise passa-geira? Näo. A doenca lavrava a fund o. E resolveu tratar do caso com Hilário. Foi encontrá-lo na fábrica. Pessoal reduzido a dois homens. Junto äs vigas de pinho, que seguravam o telhado, montes de palha e erva. Racôes do gado trazido para ali quando a noite chegava. Os dois trabalhadores acendiam o forno, fala-vam das festas á Senhora da Lagoa. Corria que o Bis- 717 mi po Conde tišlia proibido o arraial. Desolacáo em Cor-rocovo. A festa á porta e a notícia sem desmentido. Que mal havia se viessem ao largo ouvir a banda de S. Caetano, dancar em volta do coreto? Os mordo-mos tinham procurado o padre Alípio. Corrocovo que-ria arraial, foguetes pela noite fora, baile, amansar as raparigas nas barracas dos rebucados, dos refrescos. O Dr. Seabra expós a Hilário o estado de Mariano Paulo. Com franqueza, quase com brutalidade: — Ou o levamos a um especialista, ou temo-lo bom para um colete de forcas. Lembra-te do teu avó. — Quando quiser, doutor. Mas já agora, se nao ve inconveniente, deixa-se passar esta trapalhada da festa. — Em minha opiniáo, quanto mais depressa me- lhor. Hilário indicou-lhe os homens á boca do for no: — E isto? Também é urgente acabar com isto. Sempře houve alguma coisa em que tive razáo. — Náo mudes de conversa. Hilário šeřenou: — Quanto ao pai, ponho o assunto nas suas maos. Náo quero que me culpem de nada que possa acontecer. Saíram, subindo a rampa, lado a lado, Atraves-saram o pátio e, á porta do casaráo, o Dr. Seabra pediu-lhe: — Náo aparecas. Vou tentar convencé-Io. Mariano, sentado perto da janela, tinha-os visto subir e disse quando o amigo entrou: — Esteve na fábrica, já sei. Tudo ao desmazelo, ao abandono. Fecha-se qualquer dia. Estendeu o braco para a quinta. A máo fecha-da. Um dedo apenas, hirto, a apontar: — Náo me venha com argumentos de crianca. Os homens da Pampilhosa, o Guimaráes, tem tanto a ver com isto como o Papa, que está em Roma a abencoar-nos. O Dr. Seabra atalhou-o; — Oica, Mariano, voce anda cansado. E a saúde é como um relógio, convém afmá-la de vez em quando. Escreve-se a um especialista e aparecemos por lá. Mariano espantou-se: — Impossível sair daqui. Tenho de estar presen-te. A hora aproxima-se, a passos largos. Náo se aproxima. Já chegou. E o Dr. Seabra, sem querer, alteou a voz, gritou-lhe: — É preciso irmos, compreende? Mas ele vagueava por longe: — Ir aonde? Fechou os olhos, fez um esforgo de concentracáo. Maxilares cerrados, cabeca encostada ao espaldar da cadeira: — Aonde? Entáo, um sorriso breve, doloroso, iluminou-o: — Um médico, náo é? Valha-nos Deus, doutor. Nunca tive tanta saúde. E acrescentou: — Tudo foi escrito há séculos, letra a letra. O bom e o mau. A sua amizade também. Cá fico á espera do que falta, do pior com certeza. Mas náo me entrego de máos amarradas. Isso nao. A maldicáo dos Paulos, a névoa dum precipício sobre a profundidade desconhecida. Insistir, para quě? O Dr. Seabra desceu ao pátio, onde Hilário o esperava. Tirou do bolso as mortalhas, o tabaco, e enrolou vagarosamente um cigarro: — Julgo que acordámos tarde. 718 719 XXVIII Nossa Senhora da Lagoa třeme, coberta de tule. Os quatro homens que aguentam o andor sobem a duna aos solavancos. A banda de S. Caetano toca uma marcha arrastada; as mulheres, vestidas de negro, entoarrfladainhas; e por toda a parte o povo le-vanta o ultimo pó do out ono. O cheiro a pól vor a ex-cita a multidäo. Debaixo do pálio, o padre Alípio pass a o lenco no rosto suado, quebra por momentos a so-lenidade que o reveste. A loja do Miranda enche-se de jornaleiros. Em-borcam o carrascäo para refrescar. Discutem a noi-tada, de copo na mäo, limpam os beicos arroxeados. Sempre teräo coreto, baile, foguetes de lágrimas. Os mordomos pagaratn a licenca especial e o Bispo Con-de transigiu. O Miranda ajuda o marcano a dar vazäo ä fre-guesia. Tirou a andaina de cheviote e vestiu o guarda--pó em cima da camisa. De manga arregacada, lava os copos na selha, aperta.as torneiras dos cascos. A vida direita como um fuso. Näo pensa agora nos negócios do adubo, na panela de libras. Preocupa- 721 côes mais imediatas. De quando em quando, num olhar rápido á gaveta, calcula a receita da noite. A vida direita como um fuso. A estráda nova, aberta de Corgos para Corrocovo, foi a ultima sopa que lhe caiu no mel. O comércio rende como nunca e o Miranda aproveita a onda. Näo é preciso ir ä bru-xa. Das duas uma: ou acaba presidente da junta de freguesia ou dono dum armazém em Corgos. Os jor-naleiros bebem mais um copo. A sede é muita, já se vé. E nisto, a procissäo aproxima-se da loja. O Miranda despe o guarda-pó, puxa uma orelha ao marcano: — Olho na gaveta. A gaveta, rapaz, é sagrada. Ajusta os suspensórios, enfia o casaco assertoa- do, e vem ä porta ajoelhar dianie da Senhora e do pálio. A procissäo continua através da aldeia. O dia quente asfixia. Um cerco de nuvens pesadas fecha o horizonte. Cantilenas ä Virgem enchem Corrocovo. No alto há urna ameaca ä espera. E, de repente, a tarde abre-se em água. O povo dispersa, procurando o abrigo das ár-vores, das portas. A banda, o pálio e os homens do andor mantém-se a pé firme. Por enquanto. Mas a chuva aperta, exagera. E o padre Alípio, com a água a trespassá-lo da sobrepeliz ä camisola interior, dá ordem de retirada: — Corta-se um bocado ao percurso. Toca para a capela. A direito e depressa. Nossa Senhora da Lagoa apara na terra o dilú-vio dos seus reinos. Quatro homens arquejam aos va-rais. A šanta pesa, ainda assim. Pelo crepúsculo, a chuvada esmorece; um vento breve limpa as ultimas nuvens; e a noitada faz-se ás estrelas. Lobisomem vem da lagoa ver o fogo, os fogue-tes a abrirem-se em lágrimas de lume, azuis, verme-lhas, amarelas. Apetece dar palmas. Basta dizer que as estrelas-cadentes, bem bonitas, sáo só duma cor. Está tudo dito. Passa a noite no rebate da sacristia, de boca aberta, maravilhado. Mas a boca aberta tern inconvenientes. Por exemplo, a garganta cheia de ter-rica exige um copo ou dois. Levanta-se e aparece á porta do Miranda. Talvez deem por ele. E realmente dáo. O Basílio propoe-lhe: — Um copo, avó? — Nem se pergunta. Primeiro, o vinho emperra na garganta; pó e saliva encarocados; depois, lá remove o cuspo dur o e gorgoleja como um garrafáo de pernas para o ar. A lingua de Lobisomem estala no céu da boca e o Basílio pergunta-lhe: — Outro? Morra quem se nega. Bebe-o devagar, em peque-nas goladas. Agora a garganta está limpa. Mas no poupar é que vai o ganho. Basílio entrega uma moe-da ao Miranda e o Miranda atira-lhe o troco, de má cara. Náo gosta de trocos. Sempře é dinheiro que sai da gaveta. Infelizmente. Cá for a, mais foguetes, a festa a florir sobre Corrocovo. Lobisomem senta-se no mesmo sítio. Calor, estómago confortado. Ajeita a perná esmagada pela dorna, trilha o cacete no sovaco. E o sono, onde é que ele anda? Vem ou náo vem? Que venha. Tem horném para o receber. Á meia-noite, a banda de S. Caetano sobe ao coreto. A música alegra o coracao: as raparigas aban-donam as barracas, os refrescos, as bebidas doces, e vem postar-se á beira do palanque; os rapazes 722 723 chegam-se também; e o primeiro par rompe no areal. A seguir, outro. E outros. Näo se podem contar. O mestre avanca com decisäo no reporterio, o baue aquece. Basílio enlaca Guilhermina. Tornam a dancar. Com os seus cabelos loiros, o seu riso a crescer len-tamente, a rapariga é um favo de mel. Chega um horném a esquecer-se que está na rua com mil olhos em cima. Forca, malta do coreto. Porrada nesse bombo, músicos dum raio. Basílio segreda-lhe ao ouvido: — Vamos ao que importa. Hilário, perto deles, tenta ganhar coragem para o afastar da rapariga. Como? Ora, pegar-lhe por um braco: poe-te a andar ou levas das que os cäes enjei-tam. Talvez näo. S. Pedro, a égua ä desfilada, Fir-mino, o Catrouxo, säo maus antecedentes. O baile entontece-o. Figuras desfeitas pelo movimento, cabelos de mulher no ar. Meia dúzia de cálices de aguar-dente antes de sair de casa. Tudo escuro, agressivo: jornaleiros, música, poeira. Basílio e Guilhermina dei-xam de dancar. Vé-os de braco dado atravessar o ar-raial e segue-os. Sabe para o que väo. Agora ou nun-ca. As gargalhadas da rapariga, o passado a explodir, a amargura que se torna selvagem? Que importäncia tem isso? Bate ferozmente. A égua, um hörnern, tan-to faz. É fácil, afinal. A pedra, bem segura na mäo, rasga-lhe os dedos, quase lhos descarna; mas conse-gue atingir a cabeca de Basílio e o outro, quando cai, é uma fonte de sangue. O baile desfaz-se. Firmino surge de cacete na mäo: — Alguma novidade? Homens torvos, quietos. Diz a Hilário: — Vamos indo. Guilhermina sumiu-se. Alguns camponeses levam Basílio, quase sem sentidos, ä loj a do Miranda. Deitam-lhe aguardente nas feridas, atiram-lha pelas goelas abaixo. Parece melhorar e rosná qualquer coisa. A festa recomeca. Hilário, ao cimo da ladeira, larga Firmino. Volta para trás. — Veja lá, paträo. Mas ele continua a descer. Deixá-lo ir. Basílio tem a sua conta, já ninguém lha tira. E Firmino re-gressa á quinta, descansado. Hilário encosta-se ao coreto. Quer saber quanto pesa a coragem. Quanto custa. Neste mundo tudo tem peso e preco. Um suor gordo corre-lhe na espinha, gela-o. A mäo escalavrada comeca a doer-lhe. Cerca--o a festa, o mundo turvo dos bébedos, das fémeas, do cio, caldeado num pobre temor religioso. Třeme a cada olhar que lhe deitam. A ternura näo existe de graca, é preciso consegui-la á forca, magoar, bater. Mas valerá a pena? A primeira gota de abandono. O veneno encharca-o pouco a pouco e o simples facto de viver transforma-se em repugnäncia física. Está nu diante de si mesmo. Escusa de fingir. E antes que o suor o petrifique ou o medo lhe dé volta ao esto-mago e o faca vomitar, ab ala para casa. As luzes do largo ocultas pelas árvores, o céu já sem estrelas, a madrugada ainda distante, rodeiam--no de treva. Apressa o passo, transpöe o portäo. E nunca mais saberá como a água turva de que é fei-to se perdeu no mar. Uma dor fuígurante detém-no por segundos; e oscila, ajoelha, sem consciéncia de nada. De manhä, os trabalhadores da quinta encon-tram-no ainda com a enxada que o matou enterrada de alto a baixo na cabeca. 724 725 XXIX O casaráo, a duna, parecem sepultados em cin-za. Névoa rala como o luar. Mariano Paulo destapa os ouvidos. A toada das ras continua. De quando em quando, a cantilena de-cresce até se extinguir. Intervalos de siléncio extreme A luz dos círios dilui-se no longo corredor, mal chega ao quarto. Só. O luar de Corrocovo é sujo, pardo. Na sála, o Dr. Seabra, Firmino, Maria dos An-jos, Palmira Taipa e Lobisomem velam o corpo de Hilário. Hilário, de maos no peito, entre os círios que se derretem. Os jornaleiros desfilaram diante dele, benzendo-se, arrastando os tamancos num andar grave mas ruidoso, e foram-se quando Maria dos Anjos lhes disse que Mariano Paulo precisava de paz: — Voltem amanha. O enterro é ao fim da tarde. Passos no corredor. O Dr. Seabra aparece á porta do quarto: •— Entao, Mariano? Responde, e é a primeira vez que fala ao fim de muitas horas: — Nada. 727 O Dr. Seabra aconselha-o: — Deite-se e veja se adormece. Os passos do amigo afastam-se. Sente depois, lä para dentro, uma conversa rrmrmurada, urn sus-surro ä toa, em que a voz de Maria dos Anjos paira vagamente. E, ao lembrar-se dela, os projectos de ca-samento, as ilusöes, fazem-no sorrir. Urn sorriso di-ffeil. Rugas penosas a contrair-se. Ao longe, hä outra imagem demulher, desfocada, sumida. Terä sido urn sonho? Se ao menos a desgraca ficasse por ali, mas näo, näo pode esperar nenhum milagre. Maria dos Anjos sera lancada contra ele. Maria dos Anjos e os que res-tam: o Dr. Seabra, Firmino. Mais alguem? Ve Palmira Taipa entrar no casaräo, subir ä sala e atirar-se a chorar sobre o corpo de Hilärio. Lobisomem tam-bem: o toiro, de lägrimas nos olhos. Rostos familiäres mas breves. Fulguram um momento e comecam ja a regressar ao passado, a apagar-se. Entorpecido na cadeira de lona, sem urn gesto, nem sequer acendeu o cigarro, que a saliva, os denies, lhe desfizeram ao canto da boca. Basilio? Claro que näo pode odia-lo. Foi atira-do ao jogo como o Guimaräes e os homens da Pam-pilhosa. Mais urn trunfo no momento exacto. Ape-nas is so. Quando a manhä romper por fim desta ultima noite, virä o medico da Cämara fazer a autöpsia a Hilärio, retalhar um Paulo como quern desventra uma res. O destino a cumprir-se, sem piedade, com o seu relogio sempre certo. Repisa ainda uma vez o piano que tanto mace-rou nos Ultimos meses: a lenha da cozinha, as latas de petröleo que Maria dos Anjos guarda na despen- sa, a palha dos currais, os fósforos. E imagina o res-to: chamas a crescer dos dois lados do pátio, a de-vorar a casa, a adega, as tulhas, a nogueira plantada por Silvério Coxo, fundador da quinta. Perde a nocao do tempo, um fluir vagaroso de momentos entre o toar das ras, parecido com o proprio silencio. Mas a janela comeca a clarear fosca-mente. E ele descobre entäo que a manhä se aproxi-ma, que é preciso levantar-se da cadeira de lona e dar os poucos passos que faltam. Desce ao rés~do-chao, pé ante pé, como os la-dröes ou as criancas, receoso de o ouvirem na sala onde Hilário repousa. Abre a despensa e pega na primeira lata de pe-tróleo. Tem de alcancar a sua vitória sobre o destino antes que o dia nasca e o médico da Cämara chegue a Corrocovo. i 729