40 AGUSTINA BESSA-LUÍS Era o vestido. Parecia enorme, com folhos e saias de baixo, e uma lagada azul na cinta. — Uma coisa azul, para dar sorte... De facto, era uma extravagáncia de Ema. Quis sapatos azuis, para acompanhar. De qualquer forma, ficou espléndida, tendo frisado os cabelos e posto neles cachos de muguet. No peito brilhava o medalhao com turquesas, nao quis privar-se de o levar. — Outra coisa azul, para dar sorte; nunca é demais... Nelson, quando soube do casamento de Ema, chorou como uma vide e recostou-se na cadeira de palha como se fosse mor-rer. A mulher acariciou-lhe as fontes, que embranqueciam. — Deixa lá, náo te ponhas assim... Protegia-o com um enorme gosto da renúncia e despedia-se em cada prova de amor que lne dava. Nelson queria uma pro-priedade em Romesaí, para apagar a memória da sua mocidade pobre e da casa de Mabília, táo mal casada com um bébado que acabou no asilo e que a espancava. Nelson comprou, já a inclinar-se para a cova, velho e sombrio, uma quinta em Ger-vide. Ema náo morava mais lá, nem sabia mais do seu para-deiro. Lembrava-se da mocidade, de Branca que ele tivera nos bracos naquela mansarda onde se criavam periquitos e que, ao ouvirem os gemidos dos amantes, piavam de alegria. O sol entrava como um deus que se alimenta da matriz do corpo astral que é o homem. Um rouxinol cantava ao cair da noite, com um trinado táo genial que arrastava a alma de quem o ouvia. [ CAPÍTULO II \ O POBRE-NADA QUE EN AMORA Sim, é certo, das janelas do Romesal via-se o Vale Abraäo, terra de Paivas e de Semblanos, Destacavam-se as propriedades i mais sumptuosas, entre macicos das árvores de jardim; o resto : eram casas agaioladas com mansardas revestidas de lousa, mas 'r raras. Que o vale era sobretudo recatado na sua abastanca, que ; decaíra muito com a alta dos salários e as vocacôes migratórias. í As casas "maison", com estabelecimentos ao rés-do-chäo e f uma escada exposta como um fémur partido, nao eram do estilo I do vale, que se reduzia a trés ou quatro quintas ribeiras; para j cima da estráda era a encosta de Cambres, onde se exploravam I águas medicinais. A mäe de Ema tivera uma paixáo fulgurante t por um engenheirozinho polonés, que gerira em tempos a empresa falida e se distraía do fracasso construindo no quintal ■ "o poco da morte", onde girava na sua moto de grande potencia. Agora Cambres era pobre e sem recursos; ao sol de Maio, as raparigas sentavam-se nos muros, gozando a civilizacäo da ganga e da bota alta. Em Vale Abraao nao havia, como no Romesal, "o povo", com as suas escalavradas escadas de antigo solar e gente reme-xida que se insultava, a ponto de a Guarda achar Gervide cova de facmoras e Fontelas-de-Cima um lugar de maus ladrôes. Havia assassinos bem comportados, abades agiotas, rapazes viciosos mas pondo na libertinagem uma travagem que proporciona a 42';: AGUSTINA BESSA-LUIS cena ura viril, muito proxima da virtu de. Nao ha via nada pare-cido a venda do Alexandre, cheirosa de cascos de vinho, de iscas secas de bacalhau, de azeitonas em talha. O que havia era a Cavemeira, com o parque de cerejeiras do Japao e umas fon-tes que se ouviam de noite como risos de palacios encobertos. E, ainda impressionante na sua estrutura de velho alcazar, as Jacas, onde vivia com a mulher Pedro Lumiares, boemio arre-pendido e erudito sem carreira; amavam-se, aquele casal tene-broso que a miseria rondava, tendo no fio os rendimentos e os lencois da cama. Em Vale Abraao estava a casa de Carlos Paiva. Nada de orgu-lhar ninguem; urn amontoado de sobrados, de pequenas salas e alcovas, e eidos que se foram juntando, como para se aque-cerem, e que resultaranum incongruente encosto de telhados e goteiras, portas esconsas e janelas desiguais. Ema, que conhecia a casa dos domingos de piquenique, em que fora recebida pelas Paivoas, mulheres de cidade com correntes Chanel, achou-a mudada. Era um dia de vento, o lugar pareceu-lhe sinistro, com o estradao resvaladico de cascalho ate ao rio e um padrao das velhas demarcagoes postado a uma esquina como uma sentinela. Ela levava, como uma sultana dos emiratos, uma bagagem de sedas e de tapetes que alarmou Carlos; criado numa pequena abundancia de mesa, nao conhecia nada de elegancia e muito menos de luxos sibaritas. Tomava como estrategia a grandeza opipara dos Semblanos, com as suas peligas de vison e os blazer de botoes brasonados, Mas ele proprio, Carlos Paiva, vestia no Inverno uma samarra desbotada para se agasalhar das geadas. As Paivoas achavam Ema leviana encoberta e induziram o irrnao a tirar informacoes da vida dela. Ja casado, Carlos caiu na infamia legitima de investigar a moral de Ema, sobre a qual parecia pesar uma disfarcada opiniao de impostura. Mas nada encontrou de mal. Ela era pura como as estrelas. Compensou-a com extremos de galanteria que Ema estranhou, sabendo-o aca-nhado em inspiracoes de amor. VALE ABRAÄO 43 Se interrogasse, no entanto, o pai Cardeano, podia ficar algo mais esclarecido. Ele conhecia um secreto pendor de Ema para a exploracäo das ocasiôes e, sobretudo, a veia do orgulho que, as vezes, a enlouquecia. Como gostava de vestir bem e näo tinha os meios suficientes, entendeu um dia fazer chantagem com o pai e revelar os seus amores com mulheres da vinha ä pobre tia Augusta, que o tinha por často e viúvo exemplar. Cardeano fez-lhe frente, ameacado mas näo desprevenido. Rasteiras de mulheres näo lhe pareciam causa de susto. Achou que a filha pouco sabia de homens. Quando a viu casada, porque a amava, chorou e bebeu demais, o que o pôs mais sombrio ainda. Tinha a impressäo de que Carlos näo era marido que convinha a Ema. Era um desses homens, mais numer osos do que s e pensa, que, sem conhecer as paixóes, as tinham por denunciantes de segre-dos que é melhor guar dar. Ele venerava os valor es medianos, como a dignidade da profissäo e um lar de que nada constasse. Na véspera do casamento teve uma crise de duvida, esteve pres-tes a romper com Ema. Tomava cómo uma espécie de rivali-dade tanta beleza junta. Como ela se mostrava enervada com o efeito que podia causar, Carlos disse-lhe: — No fim de contas, näo vai estar lá gente que perceba muito disso. No dia da boda, Ema verificou quanta razäo ele tinha, ao ver chegar as primas de Além-Douro com as capelinas cheias de fitas e as horriveis bolsinhas bordadas. Teve de repente um baque; pareceu-lhe estar a dar um passo estouvado, embora Carlos fosse o mais sensato dos homens e bem cotado no quadro médico. "Um truta" näo era. Riam-se das suas receitas e do jeito dele para arrancar dentes a alicate. Mas essa mediocridade tomava-o simpático e fazia-lhe perdoar a mulher que mal apre-sentava, deixando-a atrás dele, como uma criada. Só o Sem-blano velho disse que ela era encantadora. Disse isso como se usasse um direito de anciäo; mas näo a desejava, por ser sacu-dida e talvez impertinente. Ele gostava de raparigas pobres em estado dě necessidade que é vizinho de Eros. Foi dizer a Maria 44 AGUSTINA BESSA-LUÍS VALE ABRAAO 45 Semblano, a esposa, que gozava de fama angelica, que Carlos Paiva tinha casado mal. — É uma mulherzinha que Ihe vai trazer dissabores — disse. — Que dissabores? — Maria Loreto Semblano era alta, ruiva, de porte "imperial", como diziam as suas inimigas. Escrevia contos exemplares e tinha algum sucesso com a sua erudicao pastoral. — Que dissabores? — Náo sei, o costume. Ele despiu o casaco e, dando conta de que nao arriscava essa intimidade ha muito tempo, junto da mulher, voltou a vesti-lo. Maria Semblano sentiu um arrepio de tristeza, incurável como uma maleita. Amara o marido com uma admirável dedicacáo de que as raparigas Mas těm o segredo. A infidelidade dele nao a desiludira; dera-lhe asas para uma certa vacuidade nobre que a surpreendia como um desejo suspenso. Carlos Paiva era o seu consultor ortográflco, nao o seu medico de cabeceira. Oferecia-lhe as suas horas mais especiais, de con-fiděncia intelectual e que ele achava arrasantes. Com o casa-mento, esperava livrar-se de Maria Semblano, que o convocava as sextas-feiras para jantar e rever provas tipográficas. Mas tal nao se deu. Maria continuou a convidá-lo, sem parecer notar a chegada de Ema, a quern, de resto, mandava regularmente morangos e bolos de fécula. — A minha mulher ficou encantada... Mas Maria Semblano náo deixava ocasiáo a maiores expan-soes. Levantava a colher da mesa e comia a sopa em siléncio. Vestia-se tao bem que parecia deslocada naquela orla de Vale Abraáo, servi da de trés criadas velhas e mentirosas que trou-xera da casa dos pais hi muitos anos. Ema invejava-lhe o trém discreto, a elegancia frugal, a raca, que era, de resto, atraves-sada de negociantes de Lugo e moageiros da Maia. "A farinha fé-la branca e com aquele ar de profetisa" — dizia Pedro Lumia-res. E falava do tempo em que Maria vendia beijos nas quer-messes, divina como Juno acolitada por pavoes reais. Ema näo conseguira que Branca a seguisse, temerosa que estava de perder casamento com um cabo da Guarda; e Marina também se escusou, porque estava noiva e passava as tardes nos tanques, a molhar pecas de pano. Só Ritinha, a muda, foí durante algum tempo para Vale Abraäo. Era urna espia extraor-dinária. A falta dos sentidos do ouvido e da fala desenvolvera nela faculdades finíssimas de entendimento. Nada lhe escapava. Conhecia toda a clientela de Carlos, säbia as doencas de que se queixavam, as contas que pagavam, as casas e os bens que tinham. Ema chamava-a como se chama a um cäo, entregava--Ihe tudo — chaves, garrafeira, jóias e correspondencia. Mas, um dia, as Paivoas acusaram-na de perder um lenco de bolso e Ritinha partiu, muito seca, sem dar explicagôes. De resto, Carlos achava-a inútil porque näo podia atender o telefone. Ema esteve um tempo amuada, Ritinha fazia-lhe falta. Era o seu bobo, a sua aia; era o elo que a ligava ainda ao Romesal, ao seu belo espaco de corredores e átrios grandes como gares. Em compa-racäo, a casa de Vale Abraäo parecia-lhe um labirinto de tabi-ques e tectos baixos demais. — Os tectos baixos favorecem as paixôes. — Pedro Lumia-res, que ela encontrava na missa das onze na capela das Jacas, informava-a de que era urna formula de Le Corbusier. — Olhe que se enganou. Paixôes säo ali coisa que näo há, nem nunca houve. Ema riu-se. Era um riso rasgado que lhe descobria os dentes brancos e sólidos; dentes que tornavam o riso agressivo e triunfal ao mesmo tempo, e que Marina dizia serem täo belos como posticos. Marina fazia-lhe falta, e as saias dela presas com um alfinete de seguranca para marcar melhor a cintura. Teve sau-dades de tudo, até do internato em Lamego e das licóes de esti-lística e de desenho com moldes de pés de gesso. A mesa do Romesal, sempře posta, com o queijo dentro duma redoma de vidro e a fruteira de estanho donde pendiam os cachos de uvas, que quando o pé secava éram retirados. As romäs abertas mos- 46 AGUSTINA BESSA-LUÍS VALE ABRAÄO 47 travam o roseo grao, e a pelicula brilhava como algo de arran-cado a profundeza da terra e aos seus veios diamantinos. Sobretudo Ema estranhou o dinheiro contado ate ao ultimo tostao, o peixe congelado que lhe sabia a papel, todos os tru-ques da economia que a primeira mulher implantara e que Carlos seguia como um testamento. Os mimos, os pequenos sonhos perdularios que o pai lhe permitia, estavam proibidos naquela casa que era pior do que pobre, era mesquinha. Ema tinha sau-dades de tia Augusta e do tempo em que se sentava nos joelhos dela para tomar o cafe e se fingia distraida para exasperar a boa criatura. Olhava para a parede, como se pela primeira vez visse o besugo e os mexilhoes da litografia. — Bebe, menina... —-Tia Augusta era ainda nova mas parecia pronta para um lar da terceira idade, com o seu grosso e dis forme nariz crivado de buracos como um dedal. Nunca se zangava, excepto se lhe toca-vam na reputacao dos seus santos e santas, o que ate o profes-, sor Carmezim evitava fazer, apesar da sua vulgaridade laica. Tia Augusta, se apoquentada, limitava-se a abanar repetidamente a cabeca, dizendo "que mania...", com uma expressao afiigida que Ema queria logo apagar da cara dela. Nao suportava ver tia Augusta molestada peias infimas doses de malicia que fazem o centro de gravidade das familias felizes. As alteragoes do genio contribuiam para criar formas de convivencia e alianca. Ema era na casa um polo afectivo seguro, tocado de azedume e com-peticao que produzem movimentos constantes de reconcilia-cao, animando as almas para o trabalho e dando-lhes mereci-mento para suportar a ideia da morte. A trama carnal de todos esses sentimentos servia a composicao do quadro do cresci-mento moral e conduzia as vezes a um desfecho imprevisivel. Marina foi praticamente violada pelo noivo, que a deixou depois de perceber que as suas relagoes eram infecundas. "Quern nao faz filhos nao faz vontades", disse, cruelmente. Quis oferecer--Ihe uma gargantilha de ouro, mas Marina recusou. — Quern es tu para me pagares favor es? — disse-lhe. E o cora-cao dela estava oprimido porque o amava muito. Era o mais belo mancebo de Gervide, mas Marina tinha orgulho em o esque-cer. "Sem ofensa" — disse ela. "So porque é justo". Ema pensou nestas coisas, uma vez que foi ao Romesal, tendo o pai já falecido. Tia Augusta também já nao existia e a bugan-vilia roxa crescera desmedidamente ao longo do gradeamento do jar dim. As camélias anas desfolhavam-se tristemente e as péta-las secas rodeavam o pé como papel queimado. Os objectos Kitch que pertenciam aos seus lugares e seria um sacrilégio mudar, estavam, ou perdidos ou fora do sítio. Talvez aiguém os roubasse, ou entao Paulino Cardeano os oferecera as amigas como presentes de emergéncia. Ouviam-se as varejas como um pelotáo inimigo, e Ema chorou de cólera quando deu com a troca do oratorio. Nao era o mesmo. O pai tinha-o vendido para fazer dinheiro e substituira--o por portadas miseráveis pintadas de verde garrafa. Pegou no Menino Jesus, ainda intacto na manjedoura com palhas de trigo, e, embrulhando-o numa toalha de altar, levou-o com ela. — Que levas ai? — disse Lolota, que tinha sete anos e era uma crianca pouco dotada. — Nada... umas coisas... — Ema nunca entregaria as filhas as suas recordacoes mais profundas, nem deixaria que tocassem no Menino que so raramente tia Augusta lhe deixava pegar. Ema sentava-se com ele no colo no degrau do oratorio, e o Menino parecia olhar para ela, risonho e pronto a falar. Dessa vez teve a impressao de deíxar o Romesal para sempře. Estava casada há perto de dez anos e caia nessa vulgaridade ritual que era fazer um balanco da sua vida. Aborrecia-se e tomava isso como uma capacidade de se emancipar das suas desilusoes; Tivera duas filhas, Lolota e Luisona, mas nao aprofundara as alegrias da maternidade. Antes disso revelou-se-lhe o cora-cao para as paixoes do risco, desprender-se dos mediocres tra-jectos que o casamento lhe oferecia. Sem repelir Carlos, achava-o cada vez mais desinteressante, e essa lucidez de opiniáo parecia--lhe funesta para o equilfbrio que pretendia. Porque em tudo 48 AGUSTINA BESSA-LUÍS VALE ABRAÄO 49 punha uma febre de ambigöes que näo sabia qualificar, pois näo eram de indole social nem se preocupava por igualar as mulheres mais afortunadas. Era urn delirio que se tornava cada vez mais exigente e que a langava por caminhos desconhecidos. Tudo comecara hä muito tempo quando Carlos Paiva a levou ao baile das Jacas. Teve um convite expresso dos Lumiares que, de resto, aproveitavam para conhecer Ema sem se comprome-terem a aceita-la. A casa, iluminada, florida, com o seu celebre centro de vermeil atribuido a um discipulo de Celini, pareceu a Ema urn cas-telo que se abria por efeito de mägica. A grande älea de pläta-nos, cuja folha caia lentamente, estava cheia de carros cujos pneus rangiam no areäo molhado. Tinha chovido mas fazia luar. O brilho das estrelas percebia-se por entre os ramos das ärvo-res e dava ä noite urn torn de compaixäo sublime. Ema vestia uma toilette de seda cor de acafräo, e o modesto colar de pero-las envergonhava-a. Mas os cabelos escuros, repuxados para träs, deixavam a descoberto o formoso rosto, täo pälido e regular como o de um manequim. As longas pestanas, que ela prolon-gara mais com uma franja postiga, tocavam-lhe as faces dando--lhe uma expressäo voluptuosa mas näo vulgar. Os homens acharam-na deslumbrante, e durante toda a noite evitaram-na. So urn deles, Fernando Osörio, um primo dos Lumiares, a foi buscar para dancar. Ela näo sabia andar nos saltos altos, e os pes enrolaram-se num tapetecurto, esteve em riscos de cair. Osörio segurou-a pela cinta, e a mäo dele, mäo nervosa de rapaz, pareceu-lhe familiar; como quando o filho de Mabilia, o mais novo, a agarrava nos bragos, ajudando-a a pular dos muros quando iam ambos em busca de miscaros pelas matas de Ger-vide. Um outrö hörnern a notou e lhe deu atencäo. Era o dono da casa, Pedro Lumiares, um excentrico, com efeitos lendärios na regiäo. Viviam na propriedade das Jacas, ele e a mulher, sonsa e de tipo flamengo, que o adorava. A casa das Jacas, de estilo acastelado, estava em ruinas. Pairava aigo de repugnante sobre esse idilio dos Lumiares: ele erudito e jogador, ela obediente como um cäo, fazendo tarefas despreziveis, dispensando cria-das para qualquer servico. Era o amor a dois, täo maligno como um ódio puro. Em volta deles näo crescia nada, os animais mor-riam, as vinhas secavam, os frutos apodreciam. Paixäo täo absoluta convertia tudo em pó. Ouviam-se pela casa os passos de Simona, que andava descalga mesmo com o tempo mais frio. Näo recebiam. So Pedro Lumiares tinha algumas visitas, mas näo as retribuia. Parecia esperar urn acontecimento que por fim decidisse a sua vida separada do mundo como por uma rede de prisäo. Ha via um carro abandonado no pátio e há muito que näo funcionava. Era um carro grande, verde, com assentos de couro, e fora posto em marcha a ultima vez, há mais de dez anos. A buzina de prata anunciava como um arauto a che-gada desse Magrigo inteligente que era o dono das Jacas. O baile, o ultimo, ficou presente no imaginário sensual que a sociedade comanda. Reuniu na maioria as burguesas com "muito de seu", como se dizia no Romesal para referir bens de fortuna; eías con-sideravam o baile uma trégua no silěncio do corpo e da alma, siléncio em que, entre elas, se reconheciam. Sem deixar de ser neurotica, a mulher quebrou em parte esse siléncio. O tom de inimizade, que identificava a sua "impureza", prontamente notada quando se aproximavam entre si, se näo foi abolido, também näo tornou proporgöes maiores. Justamente porque o siléncio foi quebrado e o símbolo tornou-se desnecessário. Entre os quais, o baile. O baile, tal como o das Jacas, tinha ainda o carácter de entre-ter a fábula sexual e confirmar o conselho das famílias. Ema, que provinha duma casa onde ela era soberana e onde näo tinha que justificar os impulsos, e em que bater em Ritinha era täo natural como sentá-la ä mesa e servi-la ela propria, sentiu-se desadaptada. E, no entanto, o baile fez nela uma impressäo fulminante. Mediu, de repente, a sua situagäo de jovem esposa de um hörnern mediocre, cujas peúgas escorregavam para os tornozelos e que usava sapatöes de marcha com o smoking mal 50 AGUSTINA BESSA-LUÍS VALE ABRAÄO 51 talhado. Ela propria, bonita como era, irritou-se com a figura que via nos espelhos: uma provinciana demasiado enfeitada e cujos brincos de minas pareciam um ex-voto da Senhora das Dores. De nada valeu a danca com Osorio que, farto de a ten-tar distrair sem que ela sorrisse, a largou junto de duas senho-ras que falavam agitadamente das doencas dos filhos peque-nos. Punham na conversa tanto empenho, que ela soava falso. Estavam decerto assustadas com a ideia de ninguem reparar nelas e parecerem abaixo da condicao que desejavam representar. "Sao, como eu, modelos de domesticas, e o livro de cabeceira delas e uma agenda com calendario e horario dos comboios" — pensou Ema. A sua pr6pria insignificancia apresentou-se com nitidez tal, que Ema sacudiu com forca os cabelos, donde se desprendeu um ramo de rosas-cha. Foi nessa altura que Pedro Lumiares passou e levantou do chao as flores. Olhou com des-prezo as rosas fingidas, mas entregou-as duma maneira cordial. A beleza de Ema pareceu-lhe deliciosa, e os olhos dele semi--cerraram-se para a apreciar. As duas senhoras calaram-se ins-tantaneamente, expulsas do seu dominio pratico onde se refu-giavam com alcofas de criangas e uma dignidade domingueira. Pedro disse: — Nao e tipo de pessoa que se espera encontrar aqui, apesar de eu a ter convidado. — Porque? — Ela estava tao infeliz que a sua originalidade sobressaia, como a de alguem que nao tem nada a perder. — E um baile como outro qualquer. — Conhece outro qualquer? — Nao. For isso digo "outro qualquer". Nao se parecem todos? No cinema, sao todos iguais. Lumiares nao a estava a ouvir. Pensava que se Ema apren-desse a vestir-se ia causar algum sobressalto naquela sociedade que nem se dignava pronunciar-lhe o nome. Era a "mulher do doutor", e Carlos Paiva recebia assim um tratamento inconfun-divel, que o ligava a Caverneira para sempre, embora nao fosse jamais consultado em casos graves. Mas Maria Semblano con- cedia-lhe a sua protecgäo ao confiar-lhe os seus manuscritos. Ele corrigia-lhe os Originals com uma discrigäo tumular, näo lhe divulgando os erros de ortografia. Ela passou, Berenice arras-tando a fulgurante cabeleira, e havia um murmúrio extasiado atrás dela, feito de sincero amor e adulacäo áulica. Maria Loreto veštia uma espécie de túnica pesada, dum beije escuro que agia na pele como uma maquilhagem. Os seus famosos brincos de esmeraldas percebiam-se entre o crespo cabelo. Era uma ruiva grande, de nariz curvo e olhos amendoados, a quem näo fal-tava uma simplicidade trágica, tomando por modelo as márti-res dos primeiros tempos do cristianismo, Santa Petronilla e Santa Justa avancando no meio da turba agitada. Mas ali pouco faltava para se pórem de joelhos e pedirem a sua béncäo. Ela parou uma fracgao de segundo quando viu Ema. Mas, decerto incomodada com a presenca de Pedro Lumiares, seguiu, dispen-sando-lhe um sorriso áspero. — Que foí que eu lhe fiz? — disse Ema. — Oh! Näo pense que ela se preocupasse com qualquer coisa que lhe fízesse. É um tigre de circo, nunca conheceu a selva nem sabia como comportar-se lá. O mal é só um terna de homi-lia; näo sabe se existe. — É assim täo invulnerävel? — Todos gostam dela. Até os inimigos dela os conta como amigos. Ema viu o marido que dormitava, tendo uma das horriveis peúgas com baguete a descobrir a pele branca em que se eno-velavam pélos brilhantes. Pedro Lumiares, distraido ou insolente, näo o reconheceu. — Este aqui parece um enfermeiro da noite — disse. Ema agarrrou-lhe rapidamente o braco, e esse gesto parecia ousado demais para outro que näo fosse Pedro Lumiares. Para ele, parecia uma súplica; e era o que realmente era. O baile das Jacas, que nunca mais se repetiu, ficou muito tempo no pensamento de Ema. Via-se dangar airosamente (mais airosamente do que dangara de facto) nos bragos de Fernando 52 AGUSTINA BESSA-LUÍS VALE ABRAÄO 53 Osorio; o cheiro dele, cheiro de bom tabaco e de sabao caro, lembrava-lhe como algo de distinto que so a ele pertencesse. O seu ar pachorrento e masculo fazia-lhe saltar as lagrimas. Devia ser bom ter em casa um homem assim, que a ouvisse durante todo o tempo que ela tivesse para se queixar das suas decep-coes. Ele tirava do bolso a bolsa do tabaco e lentamente enchla o cachimbo, pondo na operacao um fleumatico enlevo que podia parecer prazer de compartilhar a festa intima do casa-mento, os seus pequenos segredos de financas a que o amor imprimia um efeito de risco e desafio comum. Carlos nao se parecia com esse retrato que ela todos os dias embelezava com novos pormenores. Como Fernando Osorio se esquecera da bolsa do tabaco em cima duma mesa, Ema apoderou-se dela e meteu-a no saco de mao disfarcadamente. Durante muito tempo aspirava o cheiro do tabaco, e o ventre comovia-se com um desejo brutal, que ela so acalmava saindo de casa e dando pelos arredores um passeio que a fatigava. la ate ao rio e vol-tava, muito palida, com um fio de febre, calada, Carlos nao repa-rava nesses sintomas a nao ser para lhe receitar vitaminas. Vivia ocupado com os doentes e as intrigas da profissao; sentia-se feliz porque a mulher nao parecia exigente nem se queria jun-tar aos casais cristaos que a Semblano aplaudia sem nunca cap-tar o marido para esse exercicio. O velho Semblano, lubrico como um macaco mas espirituoso em coisas da carne, disse que nao apreciava os retiros espirituais dos casais. — Tenho medo de perder a graca. — E fez uma pirueta, rodando sobre um pe so, como sempre que estava contente consigo proprio. A casa que Ema encontrou em Vale Abraao nao se compa-rava com o Romesal. Era mais acanhada, mais escura, com moveis baratos, louceiros de algado onde se viam muitas xica-ras rachadas e pires soltos. As cortinas pingavam dos varoes e nao se tinham substituido desde que a ultima Paivoa se casara e fora viver para Lisboa. Ha uns bons vinte anos. Ema fez algu-mas transformacoes, mas Carlos cortava nas despesas porque o consultório era caro e tinha uma empregada que lhe exigia sempre aumentos e que ele lhe pagasse um curso de informá-tica. Ele lembrava-se de quando o avó, médico também, fazia circuncisoes em casa e fervia seringas na chama duma vela. Esses tempos históricos pareciam-lhe bem melhores. O cliente entrava pela porta da cozinha e deixava azeite e vinho para todo o ano. Agora a burocracia abafava a iniciativa, o doente nao era mais um convidado para o rito nobre da doenca e cura. Era man-dado para um terminal de saúde onde lhe faziam exames e donde saía munido de papéis que se acumulavam sobre o seu caso como provas dum crime. O telefone tocava só para Carlos, chamando-o á sua clien-tela; ou entao eram vendedores de adubos que lhe propunham novos compostos. Ema cansava-se de nada fazer, as fiihas nao a interessavam, achava-as um pouco tolas, com caras de anjos de barro mal cozido, embirrando, sujando tudo. O belo sofa forrado de linho ingles, que Ema copiara dum que havia nas Jacas, aparecera rasgado e imundo. Pilhas de roupa suja amon-toavam-se no quarto, e a cama ficava o dia inteiro por fazer. Carlos, para a contentar, deixou que ela comprasse um carri-nho amarelo, em segunda máo, um carro de rapaz, descapotá-vel e muito rápido. Ema achou que devia usar roupa a condi-zer, e quis vestir-se duma maneira mais ousada. Pedro Dossém, que era seu pajem, embora casado com uma inglesa aficcio-nada ao golf, deu-lhe alguns conselhos. Depress a Ema tomou o gosto duma extravagáncia que, para nao ser de má nota, tinha que ser dispendiosa. Apareceram no seu guarda-fato os casacos de alpaca, de caxemira e de couro. Os sapatos eram táo caros que Carlos nunca soube o preco; tinha luvas que a propria Maria Semblano nao suspeitava existirem. Trazia-lhas Pedro Dossém de Paris, e Ema tornou-se conhecedora do seu talhe, da pele, do forro, e recusava tudo que nao tivesse marca estrangeira. Os Dior, os Hermes, os objectos de toilette com monograma, os lencos de cambraia com bordado expressamente encomen-dado para ela. Lendo um dia o romance da Dama das Camélias, 54 AGUSTINA BESSA-LUÍS VALE ABRAÄO 55 ficou impressionada com o íeiläo, depois da sua morte, onde só havia ouro e prata nas coisas pessoais dela. E ouvindo dizer que näo há nada mais vulgar do que um falso Chanel, ria-se das cunhadas que usavam em profusäo imitacôes desse tipo, cinturadas1 com cadeias de metal. Pedro Dossém era o seu guia, o seu confidente, o seu compere, no espectáculo que Ema se dava a si propria. E ele, homen-zinho snobe mas sem o atractivo dos Ieóes do gosto, revia-se naquele manequim admirável em que Ema se transformava. Pare-cia mais alta, as botas e as calcas escondiam-lhe a perna alei-jada; e a beleza dela mostrava-se como algo de impróprio no quadro vegetal da provincia, vaidosa, cínica e cheia de com-promissos de opiniäo. Ema näo era ainda alguém de quem se espera uma surpresa má; mas comegavam a olhá-la com um pouco de interesse, que era o comego duma ameaca. Ema ia regularmente ao Porto, e Pedro Dossém acompanhava--a äs passagens de modelos e apontava-lhe o que devia usar. Ela contrariava-o, movida por urna arrogäncia de tímida que a levava a comprar ä toa coisas que näo usava porque era dema-siado inteligente para se cobrir de bagatelas. Também era dema-siado insegura dela propria para acreditar em Deus. Isso dizia--Ihe Pedro Lumiares, que lia, sem intencôes piedosas, Inácio de Antioquia e que a crivava de conversas exigentes. Se ela näo seguia o seu pensamento, pelo menos criava urna elevagäo de meios que cada vez mais a afastavam de Carlos. Só trés anos depois do casamento "ficou de esperancas", como dizia Maria Semblano, a quem repugnava um vocabulá-rio popular. Estar prenhe era para as gatas, e cheia para as vacas; e as raparigas que se deitavam com o velho Semblano, no chalé ao fundo do jardim, essas podia-se dizer que engravidavam. Enquanto que o termo "alcancar", antiquado e piebeu, se des-tinava a recém-casadas de baixa condicäo, mas honestas. Carlos pareceu apropriar-se da gestacäo da crianga. Engor-dou, fez-se preguigoso, saía tarde de casa; e havia nele singula-ridades que eram a convalescenga do primeiro casamento, que náo gozara e que o deixara ignorante das coisas da cama, como uma experiéncia má ou, pelo menos, um pouco incómoda. Com Ema, percebeu que a felicidade estava ao alcance das suas posses e dos seus direitos. Era aquela mulher turbulenta e sempre em vias de o deixar ficar mal, com inconveniěncias que náo eram vulgares, mas espirituosas. E que a beleza dela tornava menos agressivas. Quando a crianga nasceu, Ema mandou vir Ritinha e teve-a em casa só como engomadeira da menina. Depois quis uma nurse que alojou fora de casa com a pequena Lolota, que teve a sua area privada, decorada com um luxo desconhecido até nas familias mais abastadas. Só os filhos de Maria Semblano tinham tido ama e um pónei de crinas douradas. Vendo Carlos preocupado com as despesas que se tornavam excessivas, ofereceu-se para falar com Ema e chamá-la á razao. Carlos recu-sou. Receava que se fechassem mais as fronteiras do seu enten-dimento com a mulher. Náo sabia o que esperar dela. Mas amava--a muito; amava as suas extravagáncias, os seus penteados, e até a ligeira insinuagáo de pecados que eia usava como se fos-sem perfumes. Outro dos seus delirios eram os perfumes. A casa rescendia a incenso, a aloes, a sándalo, a nardo, a almiscar. Um relógio floral girava á volta dela, e Ema foi das primeiras mulhe-res a pintar os olhos como Jezebel quando esperava Jehu. Maria Semblano, quando ela saia, ia abrir de par em par as janelas. Raramente recebta Ema, mas o perfume dela ficava por to da a parte, nos guardanapos, que, depois de muito lavados, ainda denunciavam o cheiro de jasmim e da rosa damasquina. Carlos viu-a fumar e entrar tarde; viu-a com amigos que ele nao conhe-cia e que mal o cumprimentavam, tratando-o de alto, bebendo--lhe o seu bom vinho e deixando queimadelas de cigarro nas toalhas. Paulino Cardeano disse-lhe: — Voce é um bodas. Deixa-a fazer tudo quanto ela quer e pede-lhe desculpa por existir. As mulheres sáo como os cava-los: rédea curta e antolhos, cilha apertada. 56 AG U STÍNA BESSA-LUÍS VALE ABRAÄO 57 — Näo, Ema é diference. Damo-nos bem, afinal. Näo me posso queixar, damo-nos bem. Paulino Cardeano achava que era melhor näo interferir. Tinha um fraco por Ema, estava pronto a acusar Carlos e a receber de bragos abertos a filha, se ela se separasse. Mas quando a via, vis-tosa como urna actriz, com écbarpes que voavam em voita dela e vestida com uma elegancia exasperante, arrependia-se de a imaginär de volta ao Romesal. Apetecia-lhe consolá-la da manqueira de que ela sofria; até sentia um certo gosto azedo em reparar naquele defeito e atribuir-lhe o sentido dum castigo. Carlos habi-tuou-se a ver duplicadas as despesas, trabalhou mais, fez dívi-das e pagou-as. As pessoas viam na sua obstinacao profissional o sinal duma competencia. Ema era o seu emblema, a pluma no seu chapéu, a flor na sua lapěla. Da jovem que ele qualificara como angelica e a quem oferecera um prato de figos no restaurante, em Lamego, já näo restava nada. Äs vezeš, porém, enter-necia-se a contemplá-la, vindo-lhe ä memoria a mäe dela, de quem Ema tinha a beleza casta e o porte levemente distante. Ela era uma Guedes, de Loureiro, gente que nunca enriquecera mas tinha casa de sobrado e alpendre desde o século XV. Com o tempo, degeneraram, sem perder um acabamento polido como o que se dá aos móveis de alta marcenaria. Os cabelos tornavam--se finos demais, os dentes ficavam acavalados, as mäos e os pés reduziam-se. Mas tinham uma graca que é parente da morte que se tem por perfectionista. Os Guedes de Loureiro, de ori-gem bretä, eram todos indolentes, "uns perdidos", no entender das formidáveis Paivoas, as irmäs de Carlos. Mas ha via uma inveja opiniosa nessas consideracöes. A inveja era o carácter das Paivoas; se a cobiga näo fosse o medo de näo corresponderem ao respeito e apreco do seu publico, elas näo eram senäo sacos de tripas, como o senhor de Talleyrand. Uma coisa Ema apreciava na casa de Vale Abraäo: a varanda. Dizem que varanda é uma palavra celta, que significa barreira. Talvez seja. Näo se sabe porque teve täo alto crédito na arqui-tectura rural e urbana. É uma espécie de ventre que se projecta sobre a rua; é uma demonstragäo de poder e afectagäo de dese-jos, Serve para cortejar o mundo e dar prova das condigôes do indivíduo, comparando-o ao imaginário em que a sociedade cresce e perdura. A varanda, tanto permite o olhar que avalia, até ser pecami-noso (a varanda onde Goya instala a Celestina, velha observa-dora e profunda nas suas rapacidades, encobre na sombra a virginal pécora, que se destina a ser descoberta para gloria dos desejos humanos), como serve de recreio äs mulheres dema-siado fechadas e consumidas de obrigagöes. A varanda é mais sensual do que licenciosa. É um lugar de aprazível pausa; enquanto que a reixa é uma forma de confessionário e um obs-táculo permissivo dos apetites. A varanda de Vale Abraäo, pintada de zarcäo e em mau estado, sendo que os barrotes de madeira estavam podres e toda ela em vias de ruina, conheceu, com a chegada de Erna, um novo afecto. Ela deu-lhe serventia e até gosto que prolongava o con-forto do interior, abrindo para a sala nobre através de portadas com maganetas de porcelana e que Ema se apressou a mudar por outras, de vidro verde facetado. Na varanda Ema passou os dias cálidos, com as filhas recém--nascidas no regago, Lolota, que era uma crianga grande demais e que parecia atrasada; e Luisona, a mais bonita, doce e täo sossegada que näo chorava nunca, mesmo quando contrariada ou doente. Ema perguntava-se que género de insuficiéncia ela teria, lembrando-se que as Guedes eram todas estranhas e a propria mäe de Ema näo ti vera dores de parto e, se magoada, näo sentia nada, nem pelo fogo, nem pelo ferro. Aos poucos, a memoria dessa gente, insigne alguma dela, os do senhorio de Murga, por exemplo, apagara-se. Ema näo tinha particular respeito por eles; antes os achava um peso nos seus ombros, que ela sacudia sempre que podia. Outras vezeš, já quando arreba-tada pelas suas desastrosas aventuras, falava dos Guedes como se os trouxesse no sangue e gozasse da sua investidura e grandes feitos. Quanto mais sentia que descia no respeito da opiniäo, 58 AGUSTINA BESSA-LUÍS VALE ABRAÄO 59 mais se vingava em bater-se, tendo por parceiros os Guedes de Murca e os de Loureiro, de quern nada se sabia senao que um deles morrera em Alcacer-Quibir e outro tivera amores no Pago. Da varanda Ema ouvia o salto das bogas no rio e via os Pescadores retirar os muges mortos dos ceiroes de ouricos que se acumulavam no fundo das margens quando do tempo das castanhas. Ofereciam-lhe o peixe, ao passar no caminho; e ela nao respondia, pousando o braco na barra da varanda, deixando--se amar num olhar de gula que lhe dirigiam os homens, pali-dos das primeiras nevoas de Outubro, Vencidas as febres da denticao, livres ja das doencas da infan-cia, tanto Lolota como Luisona foram muito requisitadas pelas Paivoas, que deram em ser maes de papel e as levaram para Lisboa e as educaram quase de contmuo. Ema nao reagiu. Ficava livre para uma especie de solidao que cultivava como uma pro-messa. Carlos nao a importunava; habituara-se a andar sem ela e a dispensar-lhe a companhia. Se a senhora Semblano, da Caver-neira, lhe pedia que a levasse aos jantares que dava todas as primeiras quintas-feiras do mes, Carlos desculpava Ema. Che-gava a dizer que ela sofria duma depressao singular e incuravel devido ao defeito da sua manqueira. — Nao a posso obrigar. E timida e tern problemas muito com-plicados — dizia. Mas como Ema atava relacoes com as pessoas mais desabusa-das da regiao, ou as mais excentricas, Carlos Paiva caia no ridi-culo. Ultimamente ela visitava muito Tomasia do Fafel, que era feia mas extraordinaria em brios que so aos homens compe-tiam. Era cacadora e bom ginete; e foi a primeira mulher da alta a ter um filho de solteira e a cria-lo a vista de todos, com honra e vagares de muita filosofia. Gostava de andar pela serra em tempo de trovoadas e cheirar o enxofre das descargas. Ema admi-rava-a, como admirava tudo que era desordenado e atrevido. Carlos so conseguia viver em paz porque lhe tolerava todos os caprichos, esperando que a idade fizesse de Ema uma senhora, já esquecida da época de provocacáo que atravessava. As vezes pensava que ela náo era de todo normal; era uma escapatória para náo ter que se desiludir sobre si próprio. Ema usava a arma dos profetas, que é assustar para obter atencáo. O seu defeito, a leve manqueira, era as vezes mais pronunciado, como quando estava mais perturbada e infeliz. E nunca parecia coisa de que ela gostasse de privar-se; despertava, com a deformidade, uma inquietacao súbita nos outros, o que nao poderia conseguir com uma presenca banal. A casa tomara um aspecto irrealista, introduzira nela modi-ficacoes, como a cozinha modelo, com balcoes de aco e uma geiadeira onde cabia uma pessoa de pé. A cozinha modelo e o quarto de banho estilo anúncio de sais e sabonetes, ou mesmo como lugar onde se bebe um whisky de make, entra-vam nos costumes burgueses com a embriaguez da promocao pessoai. Ema mandou fazer cadeiras de espaldar alto, forradas de cetim branco, para a sala de jantar. Passou a adquirir qua-dros e, um dia, dando de cara com o seu desenho de Minerva, mandou-o para o sótao onde es ta varn também quase todas as prendas de casamento, tacas para azeitonas com colher de prata perfurada, e um servico de louca aos raminhos. Quis pratos de prata para.marcar os lugares, e Carlos teve que desdobrar a sua cirurgia para pagar em prestacóes essa extravagáncia. Mas tirava algum proveito dessas fantasias; corria o boato de que Ema era muito rica e que herdara muitos bens de tios e tias. A confianca tomava proporcoes sólidas, pois há uma conexáo logica entre as razóes e os actos. Se os Paivas gastavam assim, era porque havia uma fonte de rendimento por detrás. Nao sendo o volfrámio e a emigracao, motivos de riqueza já injusti-ficáveis, restava o favor politico e as suas combinacoes reden-toras. Mas Carlos fazia o seu trabalho, dormia muito e confiava na sortě. Ema desempenhava um papel cada vez mais excitaňte, embora náo se lne conhecessem aventuras. Os homens sao gra-tos para com as mulheres que servem de pretexto sem querer servir de prova. 60 AGUSTINA BESSA-LUÍS VALE ABRAÄO 61 Äs vezeš pensava na Candida nobreza do Romesal, nos quartos onde a castanha se amontoava, no cepo ä entrada da cozi-nha onde dantes se sentavam os mendigos e que servia de degrau para o cardenho das mulheres. Parecia-lhe tudo muito distante e näo sabia se lhe interessava recuperar aquilo. A corte de mulheres, que a amavam, que a penteavam lentamente falando dos amantes que estavam em Africa, dos irmäos que voltavam e se drogavam. Morriam uns e outros no tumulto dos aconteci-mentos e, passados alguns meses, mo se falava mais deles. Enterravam-se os caixöes com pedras dentro, ficavam os cor-pos ao crepitar do sol abundante e justo. Urn sol kantiano, de acordo com a liberdade de todos e de cada um, para fazer ger-minar e para fazer apodrecer. Ema perguntava äs vezes por eles, os jovens maridos, os primos que escreviam cartas urn pouco futeis, de näo ter que dizer nem motivos morais para o dizer. Ema soube por Ritinha que Nelson dera um tiro nele proprio para o trazerem depressa para casa. As condicöes näo eram favo-ráveis para o heroísmo, morria-se errremboscadas, por simples azar. Francisco era piloto aviador, foi vender um aviäo roubado a Pretoria. Era inconcebível como ele se safava daquelas histó-rias, a näo ser que houvesse uma ordern que se opunha ä razäo de direito, que fundava um preceito novo da razäo prática; assim, era possivel Francisco, que fora mau aluno do seminário e filho extremoso da Mabilia, entrar numa relacäo de convenién-cia em tudo contraria aos principios morais. Como ele nunca se filiara.pro fundamente numa regra de vida nem se importava com actos virtuosos senäo como condescenděncias aos transposes histéricos da mäe, näo sofrera com a passagem a urn mundo sacrílego, mundo de crime em que nem sequer se vis-lumbrava a colisäo de direitos: tudo era possivel se näo era abo-lido pela morte. Erna sentia alguma fascinagäo por esse mundo se pensava em Francisco, que, de resto, vivia impunemente a sua carreira de piloto, convencido de que a forca criava o direito, embora näo se devesse subestimar a eficácia natural que resulta dos contratos e do poder afectivo das pessoas. Casara e costu- mava censurar a anarquia geral em que o país estava compro-metido. Francisco era ainda um dos seus suportes sentimentais, um elo com a juventude no Romesal e, de certo modo, um ideál de companheiro, fora de qualquer intencäo sedutora. Homens como Francisco podem ser, como ele era, inteligentes e delica-dos, capazes de desempenhar um cargo com competéncia, mas totalmente cegos ä moral. Isto foi o que Ema conservou daquela licäo que fora a sua convivéncia com Francisco, no Romesal. Ele foi o seu protótipo que a infäncia absorveu com singulár paixäo. De certo modo, era o protótipo da sua época. Ema tinha ainda presentes as festas de Lamego, decorridas na concha do Veräo abismado no disco do sol, e lembrava-se das corridas de cavalos de amadores em que concorria uma mulher: Tomásia de Fafel. Näo era feia, mas só hombruna e desabrida. Corria sem selim e sem estribos, e mesmo assim ganhava com grande avan^o; numa nuvem de pó branco Ema via-a, mal vestida com umas calcas de algodao e calcando sapa-tilhas. Tomásia era chegada äs casas melhores da regiäo, e teve um filho sem pai conhecido que ela criou para lorde, deixando--lhe uma fortuna. Nunca se quis casar. Era mais velha do que Ema um par de anos e representava uma casta de mulheres que nžo sabem medir a forca das suas paixôes senäo pela capaci-dade de as debelar. Ema sentia-se mesquinha e insignificante face ä fogosa personalidade da Fafel que, na realidade, se cha-mava Maria Tomásia Bernardina. Essas mulheres originais desa-pareceram cedo da face da sociedade, que näo alimenta bocas ociosas. Aos quarenta anos já ninguém falava dela; nem bem nem mal. Era um enterro sem epitáfio, e Tomásia caiu num poco de siléncio onde se amarrou äs antigas virtudes raciais que desprezara antes. De resto, a revolugäo de 1974 sepultou essas vistosas marcas de elegancia feudál e substituiu-as pela devocäo partidária. Näo se admirava mais ninguém, trocava-se o voto pelos benefícios do supermercado e os servicos sociais. Tomásia via o filho crescer para a vida diplomática e sentia-se 62 AGUSTINA BESSA-LUÍS VALE ABRAÄO 63 feliz em té-lo feito tao rico que o consideravam apto para ser tratado londrinamente, como um inútil de carreira. Esta Tomásia foi mais tarde confidente de Ema, quando a confidéncia era urna operacäo indolor e näo significava mais do que um derivativo da alma que ganhava cabelos brancos. Viu Tomásia em Lamego, pela primeira vez. Na r omaria de Lamego, Branca contara-lhe que perdera a virgindade e um brinco de bolinha. A mata, como o bosque de Arícia, guardava segredos que näo cabiam no eucológico pastorál. Era imensa, de grande poder testemunhal quanto a prazeres e a seducóes. Trés quartos das raparigas da regiäo tinham passado p or lá com mais ou menos objecgôes e proveito. Até Carlos, que se podia nomear como virtuoso, que é urna palavra indizível para homens triunfais, levara ä mata dos Remédios duas enfermeiras com quem teve amores passageiros ou simples entrevistas que o garantiram na lista dos licenciosos da família hospitalar; o que era falso, porque Carlos nunca conhecera a viruléncia das pai-xôes da adolescéncia, e como rapaz adulto nem sequer era sen-sível äs coisas malsäs que äs vezes corrigem os efeitos das coi-sas säs. Näo era um Tartufo, mas desprezava as condicóes falsas do amor clandestino. A imaginagäo näo era o seu forte, e ele dava mais ouvidos ao orguľho da sua consciéncia de quadro. E, além do mais, Ema bastava-lhe, Amava-a com a teimosia que as pessoas do campo pôem nas coisas da sua propriedade; näo se via como infiel, assim como näo se veria ladräo ou falsá-rio. Era uma questäo de desconfianca por caminhos que näo cabiam na sua aritmética existencial. Há coisas que se aprende serem para os outros, e isso permite um domínio dos nervos e um toque de má f é para com o género humano. Estamos senis quando nos consideramos defínitivamente amadurecidos. A partir dos sete anos de casamento, Carlos tornava-se, sujeito a desesperos brutais com respeito aos colegas mais bem situa-dos na carreira ou que tinham subido muito depressa. Atribuía--Ihes carácter duvidoso e um comportamento dúbio e corrupto. Näo perdoava as menores faltas, sobretudo aquelas que podiam significar para ele qualquer humilhacäo. Encarava a vida do ponto de vista do defunto, como disse Simona um dia, olhando--o com näo se sabe que celerados pensamentos. Carlos tinha--lhe medo mas, como era mais forte do que o medo a passa-gem curiosa pela casa das Jacas, perdia-se entre a repulsa e a atracgäo daquela mulher. Quase por efeito duma soma de desesperos conjugais que näo chegam a significar um desgosto, mas só a inibicäo do proprio desgosto, Carlos comecou a entrar nas Jacas com uma natu-ralidade "branqueada". Como dinheiro de origem crapulosa entra num banco e sai limpo das suas máculas. Ele queria che-gar ao fundo dum enigma, Ema, que ele näo ousava interrogar nunca, sob que pretexto fosse. Constituíam um casal feliz, com vidas um pouco separadas e sustentadas por urna tonalidade irónica que diz bem a todos os casais. A ridicularizar-se esse limbo premeditado do casamento, consegue-se iludir urna consciéncia abissal dos seus perigos. Éram desconhecidos bem inten-cionados, interessados num sonambulismo em pantufas que par-tilhavam, näo partilhando mais nada. Quando, pela mäo do marido, Ema entrou na casa das Jacas, aparentemente näo fez mais do que uma visita de cortesia. Era um jantar simples, mas täo bem organizado e servido, que des-pertou em Ema urna fascinacäo singulár. Simona estava vestida como se acabasse de alinhavar o vestido que lhe caía com uma sumptuosidade merecida. Era magra, e a sua nudez näo devia resultar muito atractiva; mas havia nela um desprezo pela feli-cidade mesquinha, e a sua beleza era apenas isso. "Como é? — disse Ema — Ela percebe que todos nos estamos aqui reuni-dos ä custa de mutilacöes terríveis." Recuou para o fundo do seu cadeiräo, e um frio viscoso percorreu-a. Nessa mesma noite declarou a Carlos que Simona lhe desa-gradara e que achava o marido dela urna espécie de corvo, ä cabeceira da mesa, crocitando. — Näo percebi nada do que ele dizia. Tem uma cul tura acima do vulgär, mas tem também qualquer coisa de criminoso. 64 AGU STÍNA BESSA-LUÍS VALE ABRAÄO 65 Carlos, que desatava os cordóes dos sapatos, mostrou-se dis-■traido-.com essa operacäo. As conversas de carácter íntimo causavam-lhe apreensäo e até medo. Mas gostava de propor-cionar a Ema ocasiáo para ela desenvolver as suas aptidôes, oferecendo-lhe um luxo de imaginagáo que ele próprio náo era capaz de lhe dar. Receava talvez perdé-Ia se ficassem demasiado a sós. Por isso, em dado momento, foi täo importante para ele sair com amigos e entabular novas relagôes, arrastando Ema com ele, como a vítima para o holocausto. A casa das Jacas parecia o local apropriado para nele se efectuar um sacrifício: para que o amor de Carlos por Ema fosse degolado e daí resul-tasse um renascimento. As paixôes tém que ser feridas de morte para atingirem a encarnagäo de qualquer outra relagäo humana, como a que a cultura proporciona ou o dinheiro admite. Há uma história de bestialidade vencida em todo o sucesso dum argentário ou dum filosof o. Carlos percebia que Ema estava perto de cometer uma lou-cura, e achou que devia premeditar outra loucura mais con-forme o piano da família. Deu-lhe a escolher Pedro Lumiares, que era, no seu entender, um robot com vantagens sobre os outros homens: sabia falar de amor. Era de Pedro Lumiares que Ema precisava para näo se sentir inferior ä casta de mulheres amadas. Duma maneira astuta, mas sem grandes prodigios psi-cologicos, Carlos conhecia Ema. Amava-a, mas era irredutivel a qualquer originalidade; como o amor é e será sempře. Como conservar Ema, até que o sexo se tornasse menos vingativo, era a sua preocupagäo. Chegara ao ponto do casamento em que o consentimento da mulher é pior do que a recusa; é uma sacie-dade ainda inocente. Percebia que Ema estava prestes a cair nos ciúmes persecutórios que säo afinal um desänimo do amor. Já lhe fazia perguntas intempestivas, lia-lhe as cartas, tentava encontrar-lhes um sentido dúbio e comprometedor. Estava alte-rada, tinha crises de indoléncia, näo se vestia durante dois dias. Depois arranjava-se de ponto em branco, pintava-se como se fosse pisár um palco e descia a escada com passo desafiador. As filhas olhavam-na maravilhadas, e Lolota, que era um pouco paráda, balbuciava: Como tu estás linda ! — Como tu és tola, minha filha ! Nao amava as criangas, mas queria-as bem tratadas, servidas, mantidas com luxo para náo destoarem da casa e dela própria que parecia um quadro, como Ritinha dizia por gestos largos e espaventosos. De facto, a beleza de Ema tornara-se táo evi-dente que causava uma espécie de paralisia. Aquilo que se nao critica desenvolve uma obediéncia capaz de, para encontrar saída, cair noutras reprovagoes. Ema passou a ser pasto de male-dicéncia e ainda nao tinha feito nada de condenável. Foi nessa altura que lhe inventaram o título de madame Bovary. — A Bovarinha — disse Lumiares, divertido. Nunca tinha repa-rado nessa mulher senáo para comentar consigo mesmo que ela era bonita demais para as suas posses. A beleza que náo se ajusta aos meios que a garantem entra no temor de ofen-dida. Para provař esse pensamento, na linha das suas denún-cias morais, Lumiares convidou Carlos e a mulher quando deu o baile; foi a última vez que se abriram os velhos saloes das Jacas. Depois a Revolugáo mudou tudo, fortunas e paisagens. Lumiares e a mulher deixaram de receber e fecharam-se para o mundo. — Eu — disse Lumiares — orgulho-me de ser um robot bem afinado, muito alem do meu século. E do meu sexo. — Ele riu-se. A mulher ouvia-o com uma deliciada frieza; percebia-se que eram inseparáveis, mas que se privavam um do outro no que em geral as pessoas julgam ter em comum: os desejos, que tan-tas informagóes falsas dao sobre a pessoa. Lumiares e Simona eram pessoas duma espécie incalculável, em contraste com os casais que eles consideravam apenas como um sonho fantás-tico. Na casa das Jacas, tao solitária como convinha áquele par "colado á parede", como dizia Lumiares, quase náo se sentiam passos. Ás vezeš, uma porta fechava-se devagar. A um lado, no terrago, estava um velho Buick que se ia desfazendo sem que 66 AGUSTINA BESSA-LUÍS VALE ABRAAO 67 sčŕvis.se senäo para abrigo dos gatos vadios. Urna crianca pas-sava, de raspäo, sem se deixar ver bem, filho ou filha dos casei-ros e, como eles, com um subtil passo de veado, que os levava como que para a densidade do bosque silencioso. Lumiares apa-recia ä entrada, alto e desengoncado, sempre com um livro na mäo; o portäo ferrugento estava entreaberto, mas, se reparás-semos, urna cadeia de ferro impedia a passagem. Parecia que as Jacas estavam sob o efeito dum feitigo; os caseiros, ao menos, diziara isso. Mas näo. Lumiares era um sábio, ä sua maneira, e tinha urna disposigäo íntima para urna letargia quase seme-lhante a um estado de senilidade. Foi ele que quase levou Ema pela mäo ä casa da Caverneira e a apresentou, antes de Carlos pensar nisso. Mas Carlos acompanhou-os. As vinhas, com oliveiras a cercá-las, estavam carregadas ainda da uva de mesa, a ultima a ser cortada. Foram a pé, a dištancia era curta, bastava subir uma estráda entre bar-dos; a noite näo caíra ainda. Ela sentia-se tremer no vestido de seda clara, que Lumiares escolhera para ela. Dera-lhe instru-côes de como devia vestir-se, era como se a preparasse para cometer um crime. — Tens frio? — disse Carlos. Ela negou, mas chegou-se ao brago dele, e sentiu com indignagäo o cheiro do seu tabaco vulgar e da locäo da barba, urna logäo de anúncio, quase pesti-lenta. Ele nunca se habituaria a gastar, embora fosse já rico e fizesse operacóes bancárias bastante avultadas. Dízia-se que extraía mais lucros do jogo da Bolsa, do que pedras das suas vesículas. A fadiga tornava-o macilento e envelhecido. Além disso, nunca dangara na vida, a näo ser um twist nas festas de curso, com colegas ligeiramente embriagadas que o tratavam como irmäo. Ela lembrava-se: que fora ele fazer äquele baile, com o smoking apertado nas cavas e os sapatos de grossas solas de celeiro? Por economia näo comprara outros, de polimento. Ema pensou que iam dar triste espectáculo da sua mediania, e carregou o semblante; isto fé-Ia parecer altiva e favoreceu-lhe o ros to miúdo, os olhos largos puxados para as fontes. No meio de tantas mulheres desenvoltas e picantes, que, no seu meio, parodiavam as mulheres galantes e até as rameiras, Ema sentiu--se ignorada. De facto, dávam pela presenga dela, mas séria abrir urna brechá no baluarte de defesa, se o manifestassem. Pedro veio era socorro dela, e nunca Ema percebeu melhor as incoe-rentes fases da amizade, fabricada äs vezes por intermédio duma infelicidade imediata. Estava apavorada e aceitou a companhia de Lumiares com uma sofreguidäo que a ela propria surpreen-deu. Carlos deixou-a entregue e foi beber o seu whisky aguado que ele recomendava como vaso-dilatador. Ema disse-lhe, em voz um pouco alta demais, que fosse prudente. — Ah, sim, está descansada. — Ele sorriu, ternamente tocado por aquele aviso, e ficou um momento mergulhado na doce persuasäo de que aquilo era urna demonstragäo de amor da parte duma mulher bonita, a sua mulher. Pedro Lumiares, com o lago meio desfeito, que ele usava para se distinguir, os míseros populous hirtos e prontos a servir, encaminhou Ema para um canto da sala onde um grupo ria de maneira hilariante, com esse riso de provincia, bem humorado e abengoado pelo paträo da casa, o parente rico com quern é possível fazer gragas. Imediatamente tomaram Ema como centr o de apetites velados por urna malí-cia irrefiectida. Lumiares disse: — Calem-se lá! Vocés näo tém órgäo espiritual, e os outros näo säo assunto de conversa diante de senhoras. — Ó Lumiares, as senhoras säo urna ideia que já näo é deste tempo. Usas chapéu de plumas e gola de renda? Näo. — Há quem use. Satanáš usa, mas vocés que sabem disso ? — Ora esta, Satanáš ! Ele que disse ? Vais falar das forgas do mal? Eu fujo — disse um rapaz franzino, de olhos claros. Chamava-se Fernando Osório e tinha uma quinta na foz do rio Tedo; estava arruinado, e isso dava-lhe direito äs suas fantasias abusivas. Mas arruinado, para um Osório, era estar enterrado em our o até aos joelhos em vez de nadar nele. Lumiares deu por acabada a conversa e levou Ema com ele. Quisera só mostrar que ela lhe obedecia e que dispunha da sua 68 AGUSTINA BESSA-LUÍS VALE ABRAAO 69 neleza, embora näo a desejasse. Nesse ponto, ele sofria por näo arriar as mulheres, inclusive a dele. Para dizer doutra maneira, as mulheres eram o que ele menos amava, embora as tomasse a sério. Elas retribuiam-lhe com reconhecimento, porque pre-feriam ser levadas a sério, a ser amadas. Desejadas, sim, que-riam ser; e alimentavam essa condigäo satänica nos homens que era o desejo indestrutível, dócil, afogado na escravidäo que tem algo de espiritual porque, ao servir a matéria, projecta para além dela o fantasma da sua alma. Lumíares entendeu depressa que Ema tinha a capacidade, muito rara, de iluminar o desejo e fazé-lo correr coraoum fogo fátuo sobre os cadáveres da virilidade mítica e obstinada mas, de facto, sofredora, dos homens. Ele podia aptoveitar Ema no sen-tido de subornar os outros homens. Era só questäo de a oferecer e distribuir em doses proporcionadas e ligeiramente venenosas. Agora tratava-se de a fazer gozar o baile, mostrar-lhe os pri-meiros passos na ambigäo, comegar a produzir a obstinagáo que principia com a melancolia duma alma sem corpo. E Ema, embora tivesse um corpo delicioso, estava separada dele por uma série de tristezas, umas fornecidas como educagáo moral, inflexível äs maquinagôes dos apetites, outras exploradas no sentido de manter até ä morte a mulher amorosa, visionária duma felicidade incorruptível. Fě la andar pelos salôes, trés salôes com tectos brancos, debruados a ouro, e onde se dangava alegremente. Aígumas rapa-rigas usavam sapatos de tenis para se destacarem da formal toilette de noite; mas näo eram por isso menos soberbas, e os vestidos compridos eram caros e bem cortados. Quando Ema passava, seguiam-na com um olhar de repente batido e can-sado. Reconheciam nela uma irrealidade que produz a capacidade do sofrimento para quem a descobre. E aquela pele ligeiramente cinza, onde brilhavam os olhos castanhos, sem lamentagäo e sem medo, fazia com que, de repente, se alias-sem com ela. Os rapazes sentiam, de imediato, um ciúme pro-fundo; e tratavam de as cortejar, profundamente. Tal era o efeito que Ema causava. Sentia-se feliz, mas tam-bém surpreendida com tantas emogóes, entre as quais se desta-cava um desejo absoluto e constante. Tudo era inferior ao seu desejo e, ao mesmo tempo, tudo lhe parecia inatingível. Tal é a forga do desejo, que mais imagina do que consome. — Está feliz, Ema? — perguntou-lhe Lumiares. — Sim, estou... — Mas deixou-o ignorar aquele tormento que se ia tornar familiar, a avidez permanente para uso da sua fome de luxo. Nao só de luxo, mas de oposigáo ao vazio, á castragao de que a ameagava a vida conjugal e a sociedade no seu con-junto. Uma imensa vontade de lesar, de fazer mal, levantava-se nela como uma onda de frescura, de vitalidade. Voltou para casa peto brago de Carlos, deixando que a cauda do vestido se esfiapasse no areáo do jar dim. — Olha que estragas a saia — disse Carlos, meio repreensivo. Ela parou, náo deu resposta alguma. Depois olhou para o céu escuro e coalhado de estrelas. — É uma coroa por cima da minha cabega. Um sentimento negro, que lhe aparecia em toda a sua limpi-dez e grandeza, revelou-a nesse momento único de sinceridade. Quando acordou, no dia seguinte, o quarto pareceu-lhe pobre-táo e a cama de bilros desproporcionada nas quatro paredes exíguas sobre a alcatifa que tinha manchas da papa das crian-gas. Ralhou porque descobriu uma nódoa de café na dobra do lengol. Durante oito dias quis que se tomasse o primeiro almogo na sala de jantar, preparando um bufete com ovos e fiambre. Resultava caro e ninguém apreciava. A fruta cortada náo tinha mais proveito e acabava por ser deitada fora. Carlos reprovou aquilo timidamente. Gostava de almogar no quarto, fumando depois o primeiro cigarro, antes de fazer a barba. Ema mostrou--se, de repente, incompatível com esse hábito, falou em ter quarto á parte. — É mais saudável e náo tenho que acordar quando chegas tarde. — Foi um goípe para o marido. Amava a intimidade da 70 AGUSTINA BESSA-LUIS VALE ABRAAO 71 mulher, a carne nua, a carfcia que o sono torna pueril; amava o todo desejävel que completa a vida conjugal, a conversa de cama, a felicidade de bergärio que se respira num quarto de casal nas horas em que reina uma ordern espiritual, de paz profunda, ininteligivel, em que todas as humilhacöes fleam ofus-cadas, em que o orgulho negro de amantes desaparece. Säo ape-nas dois seres inocentes, a alma e o risco proposto pelo corpo, mas um risco suspenso e reduzido apenas a uma ferida secreta, adormecida. Ema manteve a ideia dos quartos separados, mas seria preciso fazer obras na casa e reduzir mais as proporcöes da entrada, ja assim acanhada. Preferiu deixar as coisas como estavam. Mas um sem nümero de caprichos assakaram-na. Quis viajar, mas näo tinha paciencia para correr as estradas nem admirar catedrais. Ficava, sedenta e irritada, nas esplanadas, a beber, como um hörnern, um whisky puro ou urn cafe muito forte. A beleza de Ema era notada, ela parecia ofendida, saia de rom-pante; Carlos tinha que levar~lhe a bolsa e os öculos de sol que ela abandonara. Outras vezes gastava doidamente em produtos de maquilha-gem, pintava-se como uma actriz, usava cabeleiras e pestanas posticas. Tinha o ar duma deusa egipcia, os enormes olhos ras-gados pelo lapis negro, as sombras azuis das pälpebras a carregar--Ihe o olhar. Voltavam-se para a ver, Carlos comecou a receber indirectas dos colegas, outros mostravam urn empenho insi-nuante em frequentar-lhe a casa, e a mulher. Ele tinha civimes mas guardava recato e, sobretudo, näo deixava perceber a Ema quanto o afligiam as suas fantasias e como ela o fazia sofrer. Chegava a per der o interesse pelo corpo de Ema, de tanto que a via exposta ao desejo dos outros homens. So confiava em Pedro Lumiares, e pedia-Ihe humildemente que se ocupasse de Ema. Vagamente, deixava perceber que ela era frigida e que näo era ameaga para os casais bem ligados. Pedro ouvia-o com alguma reserva; os principios incoerentes que Carlos manifes-tava näo deixavam de o preocupar. — Que quer dizer com os casais bem ligados? Por acaso o casamento é uma maionese? Deve ser. O dele destalhou e näo sabe o que há-de fazer. Simona, sempře agachada no chäo a limpar calcado ou a mudar plantas dos vasos, näo respondeu. .Os cabelos lisos cobriam-lhe a cara e näo se via a expressäo que ela tinha. Possivelmente näo estava interessada senäo em dar brilho aos sapatos, fazendo entrar a graxa nos finos vincos do cabedal. Simona sempře fora educada para näo temer as rivais. Näo era capaz dum pensamento virulento contra ninguém, näo por generosidade mas por coesäo indestrutivel com o seu proprio meio. Tudo o que acontecia fora dele näo lhe dizia respeito. — Que vou fazer, näo me dizes? Simona levantou a cabega e olhou para ele com aqueles olhos pálidos, nobres e incapazes de ironia. Äs vezes, Pedro Lumiares achava-a poderosa em demasia e, por isso, fechada numa espécie de letargia. O duelo com Simona era impossível; o amor, com o seu infinito comportamento batalhador, era impossível. Sentiu uma tentacao quase dolorosa de conhecer de perto a história contemporánea dos seus vizinhos. Carlos parecia esperar dele auxílio. Mas que espécie de auxflio ? Via-se a bracos com uma mulher que se lhe opunha inteiramente, como uma mulher faz quando está possuida de forcas sobre-humanas. Enfei-tigada, possessa, como se dizia em tempos mais experientes e em que o fogo era um recurso contra a resisténcia da materia. Pedro Lumiares foi ver Ema. Encontrou-a pronta para sair, como estava sempre, tendo umas luvas de conduzir nas mäos pequenas e que, Pedro reparou, näo eram bonitas. Esse pormenor, que escapava ao milagre de tanta beleza, tranquilizou-o. . — Venho falar consigo— comegou, sem préambulos. — Para prineipiar, acho:que está a passar-se consigo o que se chama 72 AGUSTINA BESSA-LUÍS VALE ABRAÄO 73 a febre da ascensáo. Náo tem asas, nem podereš sobrenaturais, e náo quer arriscar-se a atirar-se dum quinto andar porque acre-dita na lei da gravidade. Em suma, precisa dum psiquiatra ou dum amante. — Está muito enganado. Essa ideia imbecil de que tu do se resolve com uma queda ou com um banho frio! Náo é assim táo simples. Ela pareceu derrotada por ter usado palavras duma urgéncia que lhe repugnava. Ofereceu-lhe lugar no sofa, mas náo se sen-tou. Aborrecia-a que alguém a perturbasse táo pacatamente quando o seu estado era o de alguém que sabe ter a vida pot-urn fio. Que se pode dizer a alguém, nesse caso? Nao podia explicar-Ihe que uma mulher, ao ser engendrada no ventre da máe, está já marcada para o insucesso. Enquanto o homem trata de se aplicar á vida por diferentes meios, a arte, a guerra e os negócios, a mulher náo tem hipótese de escapar ao brago de ferro que acabará por destruir todas as suas partículas. Ela sabc que está protegida da materia exterior pela manipulacáo dos sentidos e pelas fraudes da oposicao a si mesma. Mas tudo c inu til. Ema usava para com Pedro o metodo que se usa para com os doidos: a simulacáo. Discutiam de maneira inteligente, mas nada daquilo se ajustava á realidade. Para Ema, tratava-se dum profundo fracasso que ele, como homem, náo podia compreen-der. Ema dava-lhe conta dos seus movimentos, que apenas atin-giam um raio muito breve dos seus objectivos; como comprar um objecto caro, mais uma vez imitar a independéncia econó-mica e, com ela, toda uma independéncia física de que o casa-mento a privara. Čada vez estava mais distraída dos seus deve-res, Carlos já náo sabia como falar-lhe, e as fílhas escapavam dessa instabilidade com promessas de compensacoes, mais Iivros ilustrados, mais aparelhos de video e mais roupas de marca. Já náo suportavam nada que náo fosse garantido por um estilo, eram criadas para ser belas e decorar uma empresa como dan- tes se decorava um harém, Ema, quando cruzava com Lolota, que era tímida e assustada, pensava, como uma treinadora, o que poderia ser feito por ela no sentido duma carreira. Mas Lolota só tinha. dez anos, era melhor náo se preocupar dema-siado. Náo se preocupar era o estribilho de Ema, que, entretanto, aumentava as suas queixas, nunca estava em casa e arranjava divertimentos no vos. Carlos via-a sair com estranhos, quase implorava a Pedro Lumiares que travasse aquela vadiagem sempře justificada com ocupacóes que se multiplicavam. Ia ao Porto pentear-se e fazer ginástica aerobiótica. Era tudo bastante ino-cente; Pedro Lumiares dizia que as mulheres professavam no seu quadro de criatividades, como dantes professavam num con-vento. Mas Carlos náo ficava convencido. Para ele, Ema tinha amantes e, o que era mais grave, podia a todo o momento abandoná-Io. Ignorava que os homens se tinham tornado com-pletamente ofuscados pelo jogo dos determinismos, e a paixáo já náo tinha para eles o mérito dum acontecimento. Uma beleza como a de Ema náo era vista como uma revelagáo dalguma coisa inspiradora. A época tudo absorvia, náo havia em circulagáo obsessoes que produzissem o amor lírico; os prazeres da hipo-crisia superavam os prazeres do leito. Náo havia sequer sensi-bilidade para um ciclo histórico, que se fecha: como a batalha de Alcácer-Quibir ou o cerco de Leninegrado; ou Waterloo e Trafalgar. O peso das instituigóes e a transferéncia rápida das classes impediam os sonhos, calculados ou só románticos, das pessoas de cuJtura. Havia toda uma composigáo de atitudes novas sobre o dinheiro, a doenga, a vida sexual. Náo se vivia para ser feliz, para suportar uma angústia, para medir forgas com o destino; vivia-se para entrar numa estatística. Ema queria saborear ainda um horror qualquer, detestar o marido mediocre e for a das leis do sucesso; amar um desco-nhecido que encontrasse na gare, enquanto ela, por detrás dos vidros da carruagem, pousasse nele os olhos profundos, como 74 AGUSTINA BESSA-LUÍS VALE ABRAÄO 75 se nao quisesse mais acabar de olhar para ele. Quern era? Onde vivia? Ema pensava que podia amar assim, mas logo era inter-rompida por um telefonema, tinha hora marcada no massagista, passavam-se os modelos de Prima ver a num hotel, ela tinha que correr, beber o seu Campari, ir ä garagem buscar o carro, ficar presa no engarrafamento das sete da tarde. Chegava a casa des-feita, comia um bacalhau com natas já repousado, abria os con-vites para exposicôes, concertos e sessôes de animacäo ou recep-gôes consulares. Nem sequer estava ao par do servico da casa, as criadas pareciam todas iguais, só as batas lhes assentavam melhor ou pior. Já näo se lembrava de ter despedido urna criada; elas é que saíam, nervosas, far tas, cheias de exigencias com que superavam a sua necessidade de mudanca e as catástrofes da inseducäo de tu do. Quase sem reparar, Ema aceitou a corte de Fernando Osó-rio, e deixou-se conquistar a ponto de pensar e m separar-se e comecar outra vez com um homem rico, comprometido na política e que tinha aliangas apreciáveis. Ele divorciara--se e tinha trés filhos a estudar. Ema pediu a Lumiares informa-gôes. — É um parvo e bebe muito — disse Pedro, pondo de lado o livro e tirando os óculos devagar. Ema tinha chegado äs Jacas como um furacäo e deltou para cima do tapete o casaco ver-melho forrado de peles pretas. Mostrar desprezo pelo luxo parecia-lhe dum refinado gosto. — Como é? Andas a dormir com ele? — Näo, estás doido. Näo é isso. Mas confessou que Fernando Osório Ihe soltara as algas do vestido, urna vez, na piscina, ä noite. Näo estava ninguém, e a água negra brilhava com pequenos sulcos como se fosse agi-tada desde o fundo. — As algas do vestido? Näo deixes fazer a nenhum homem o que podes fazer sozinha. Doutro modo, nunca te vais eman-cipar na vida. Que queres dele? É um unhas-de-fome e tem trés filhos como trés carragas, que lhe levam tudo. Acho que comprou no nome deles os prédios no Porto. Gasta com eles o que tem e o que näo tem, para os subornar. Onde o conhe-ceste? — No baile, aqui mesmo. Foste tu que mo apresentaste. — O baile... Só sabes falar desse baile. Parece que näo te acon-teceu mais nada na vida. Foi como o primeiro Congresso para um medico da Assisténcia. Melhor-. para urna médica da Assis-téncia. O Fernando Osório é burro. Nem sabe quem escreveu Os Lusíadas. — Para ti näo há ninguém que preste, ninguém que valha nada. É um desespero falar contigo. Ela baixou-se para pegar no casaco, um pouco corrida, sem saber como manter as suas propostas de vivacidade e de auda-ciosos amores. Lumiares cortava pela base o que ela tinha por seguro e, mais ainda: impedia-lhe imagihar afinidades com qual-quer coisa de provocador. Näo era a concupiscéncia que a movia, era a provocagäo que dela se socorria, o que a langava no seu romance com Osório, ou com outro. Levou por diante essa história, urna história dum julgamento em que, de antemäo, o réu, o amante, estava condenado. Enquanto o amou, näo deixou de acumuíar na memória factos que pudessem um dia servir para instruir-lhe o processo e para o levar ao fracasso. Isto era nela o contraponto da änsia de poder que os homens lhe ensinavam. "O amor tem má memória" — dizia Lumiares. Mas estava desconcertado; via Ema agir fora das suas instrugôes, dos seus panfletos contra o sentimento inculto do heroísmo. O que Ema propunha era sair do seu papel de desapontamentos feitos de opgôes ligeiras, ocupagóes duma nova integridade, a distribuigäo do tempo na sua vida que já näo era materna nem marital; era urna vida com espagos que era preciso preencher com horários, esperas, encontros, bole-tins, para ser comparável a urna profissäo e um cargo. Mas a arte da liberdade, que qualquer pessoa obscura inventava; a arte 76 AGUSTINA BESSA-LUÍS VALE ABRAÄO 77 de agradar que näo era a intencäo de conseguir uma clientela, isso tinha dcsaparecido. Que heroísmo havia nessa bonita mulherzinha que, se nem todos evitavam, muitos deixavam no seu canto porque ela era o que menos sugestiona o pagäo civili-zado — era uma desconhecida? Simona deixava que ela entrasse e saísse da casa das jacas, porque a considerava inofensiva. Lumiares nunca ia ficar tocado por ela, uma vez que só a libido livresca lhe interessava. O que näo fosse escrito, passado pela ortografia correcta, fazia-o bocejar, Quando estava com ele na sala de entrada, Ema ouvia os pés nus de Simona no corredor esteirado; ou ouvia-a lá fora regar as flores, deixando correr a água nas lousas, muito tempo, como se esse desleixo fosse interromper o colóquio deles. O que decidira a intimidade de Ema com as Jacas fora, antes de tudo, a vizinhanca e também o assombro incutido pela grande fachada escurialesca da casa velha. Havia outro edifício nas traseiras, datado dos anos qua-renta e que representava uma eufória financeira, a última, dos Lumiares. Era um piso térreo, confortável, combinado com um estilo que fora audacioso e que subitamente envelhecera e que parecia subsistir apenas nas comédias de Hollywood. Tudo se degradara, mas era ainda bela a porta de ferro forjado e o quarto de Simona todo em palissandro, a cama sobre um estrádo alca-tifado. O que impressionava mais era a avenida dos plátanos e a ruina insidiosa dos espacos entregues ao movimento das estacóes. Ouvia-se, claro, o apito dos comboios do outro lado do rio; e um bater de barcos no ancoradouro da Caverneira, que tinha sempře duas lanchas ao servico dos hóspedes em tränsito para o Moíedo, defronte. Ema deixou-se deslumbrar peía grandeza secreta dos lugares, esse Vale Abraäo, derrotado, mas soberbo, com o seu padräo de demarcacäo ao canto do caminho solitá-rio. Achou que näo era tolice amar todo esse adereco de riqueza, que lhe dava esperanca para ela própria ser candidata a qual-quer forma de gloria. Depois, Pedro Lumiares revelou-se um bom conversador e um mestre que lhe serviu para näo ter de se ignorar a ela própria. Foi ele que lhe chamou a Bovarinha, com o desprendimento senhorial de quem pöe nome a um cäo. E, ouvindo-o, rapidamente Maria Semblano divulgou a alcunha, sem esquecer retirar-lhe o fei da maledicéncia. Era uma brinca-deira, embora cruel, mas näo mais do que isso. Ela achava-se por demais senhora da sua vontade, para se diminuir com a malícia. Que podia fazer Ema quando estava presa numa era de alqui-mia sentimental, meias verdades e paixöes difusas? Queria amar e repartir-se em amor profundo, sob qualquer pretexto, sendo o conjugal o menos a propósito. Carlos Paiva teria preferido que ela passasse dez anos de infidelidade, junto dele, sem o incomodar muito, recebendo bem os amigos e dando äs filhas um bom exemplo entre os notáveis, guardas da sua imagem, pecadora mas näo funesta. Quem ia levantar o véu das suas escapadelas, tocar abertamente nos seus prazeres que garantiam a mensagem libidinosa em circulacäo? Mensagem que era ao mesmo tempo implacável e saborosa; que permitia a visäo duma alianga de grupo muito mais vasta e profunda que os elos familiäres e as combinagöes parentais. Mas Ema estava pronta a estragar essa rede de boa vizinhanga com algo de revelador, longe de qualquer cumplicidade. Ela queria amar duma maneira heróica, abusiva, selvagem. O amor assim é blasfemo. A emergéncia dum amor pessoal, que levanta a suspeíta antiquíssima da feitigaria, era insuportável e era iní-qua. Porque a sociedade cada vez mais procura estar precavida contra a paixäo cega que sintoniza o desejo de dominar a mořte, de deter o envelhecimento, de prolongar o prazer carnal como um direito divino. As multidöes tem que estar cada vez mais submetidas, capazes de optar pelo fim sem sofrimento, desapa-recendo modelarmente nas rampas que conduzem ä morgue e aos fornos crematórios. Rapidamente, sem deixar vestígios. Entretanto a permissividade, tanto mais efémera quanto näo é 78 AGUSTINA BESSA-LUÍS VALE ABRAÄO 79 consultada a sensualidade do indivíduo, empobrecido nos ele-mentos naturals que a sugerem, é imposta como uma nova alqui-mia fáustica. Os limites do prazer parecem ser vencidos e levar a melhor sobre a autoridade de Deus. Mas o que na realidade acontece é que o hörnern se dištancia do desejo, mo habitando mais a sua alma que se alimenta da paixäo pelo absoluto. A ime-diatez técnica basta-lhe, os segredos da volúpia näo lhe interes-sam, parecendo estar desvendado com o texto duma pedago-gia sexual. Ema adivinhava que, nela, a obsessäo do prazer era muito mais do que uma história de costumes. Subitamente entregou--se a uma espécie de doenca que estava enraizada na insatisfa-cäo profunda do seu ser. Julgou que a libertacao sexual a ia curar, mas durou pouco esse convencimento. Desde o primeiro momento em que caiu nos bragos de Osório. percebeu uma coisa: ele näo ia senäo tentar deslumbrá-la com palavras, como de resto Pedro Lumiares fazia, ä sua maneira fáustica. Os primeiros tempos foram compensadores, tendo em vista o esforgo poético, o lugar, a quantidade de liberdade conce-dida ä sua imagem social. Osório levou Ema para uma proprie-dade que tinha na regiäo mais solitária do Douro, e ficaram sós trés dias. Era tenebroso o rio, altas paredes de granito negro modelavam as águas; e eles saíam na lancha a motor, das mar-gens nem viv'alma os pódia surpreender. Só, ao longe, uns res-tos de muros, que foram em tempos casa de pequenos fidalgos arruinados pela filoxera. Ainda se viam as vinhas devastadas, como dentes podres na fauce da montanha. Tudo era silencioso, e as águas, mais proŕundas pela descarga das barragens, deixa-vam suspeitar um abismo mole, de lodos que se acumulam e que a corrente näo logra vencer. Ema sentia-se abordar por um pequeno atentado de loucura; a loucura que todos trazemos connosco e que precisa só dum composto de representagôes humanas, a suspeita dum crime, uma troca de libertinagem, uma companhia do desencanto, para se manifestar. Ema estava feliz, Osório näo a decepcionava. Era um homem de boa indole e estava apaixonado. Aqui podíamos manifestar um gosto de bordel privado, como acontece quando o amor se torna assunto educativo. Mas, ä parte o despertar, äs nove da manhä, em que o mordomo Cai-res intervinha, levando ao quarto um almogo de chá e torra-das, näo se passava nada de escandaloso na casa do rio. É ver-dade que, debaixo do mosquiteiro de tule, que o mordomo ia descer ä tarde, pondo novas toalhas nos toalheiros, pódia surpreender os amantes nus, mas, mesmo assim, decentemente velados. Caires, só quando a cozinha estava arrumada e quando a mulher se recolhia aos quartos exteriores, que tinham nomes como Vintage e Tawny, para melhor os situarem, é que ele contava aquelas cenas íntimas de que näo era grande aprecia-dor. Gostava muito mais de dinheiro e tinha um jeito rapace de receber as gorgetas, fazendo-as desaparecer no bolso da farda de sarjäo branco, com ferrugem na base dos botóes de latäo. Ema veštia to do o dia um macacäo azul deslavado e Iangava-se em corridas no barco a motor, os cabelos desfeitos e um riso quase feroz na linda boca. O perigo e as coisas um pouco desabusadas agradavam-lhe, como se provasse ao experimentá--las o seu Iado exasperado de rapaz de liceu, uma virilidade capaz de proezas como doutras tantas sedugôes para mulhe-res. Ä noite, porém, Ema dava largas ao seu luxo de interior, veštia grandes roupóes com lagos e golas de rendas, mostrava, nos decotes profundos, um deslumbrante claräo de seda, que era a sua lingerie dum prego exorbitante. Jantavam ä luz das velas, Caires servia, a chama amarela a reflectir-se na sua cabega calva. — Näo parece um espiäo russo ? — murmurava Ema. O olhar saciado acendia-se com os vinhos quentes e adamados. Näo pen-sava se era feliz; aquela história picante e deliciosa de gosto, com boa comida e a preguiga de férias, deixava-a agradecida, um pouco enervada, também. Telefonou para casa, Carlos estava 80 AGUST1NA BESSA-LUÍS VALE ABRAAO 81 fora; as criangas alegraram-se, contaram as doces banalidades do dia. — Tenham juízo. Eu vou na quarta-feira; aviso antes. — Onde estás, mama ? — Lolota, que era a mais sensata, tinha a voz embaragada. Ema voltou-se para o lado, para que Osório näo visse que estava comovida. A fílha tinha andado febril, éram anginas e um pouco da morbidez do crescimento. — Os teus fiľhos näo vém para aqui ? — perguntou. Rolava nos dedos bolinhas de päo; há muito tempo que se esquecera de fazer isso. Uma onda de recordagôes veio misturar-se äquela hora em que, como um dever, os amantes se entendiam para os gozos de alcova. Ouvia-se rir na cozinha, apareceu ä porta o procurador, rapaz loiro e com olhos desbotados, que se encarre-gava dos visitantes e dos negócios conduzidos por eles. A quinta era bastante importante, situada já no limite do Cachäo. Um ermo. Um pequeno comboio de desvio passava-lhe em frente, e o jardim da estagäo, florido de cristas de galo, punha na pai-sagem um sorriso carnal. Ema näo punha o pé fora de casa que näo recebesse a impressäo duma cratera esfriada dum vulcäo. De resto, o lugar chamava-se o Vesúvio. Causava admiragäo que täo solitários e agrestes caminhos fossem um dia explorados por gente aparentada na corte e com hábitos de cultura. Éram juízes corregedores, fidalgos de luva e espora. Osório tinha-se por herdeiro dessa gente rústica mas que näo desleixava certas práticas cristalizadas em rotinas fantasmas. Chamavam canto-res célebres para, com as janelas abertas sobre o rio, entäo cris-talino e pedregoso, darem concertos espirituais. Dizia-se que a Banti fora ao Vesúvio, assim como Caruso fora a Manaus. Ema ouvia contar a Osório essas coisas, caia num cismar respeitoso, deixando-se aparentar ä família com o que tinha de saudoso pelo Romesal, as salas de Veräo, com esquadrilhas de moscas e os estores brancos corridos. Exagerava o gosto e o luxo da solteiria, descrevia o pai como um titular e a mäe uma senhora fina dos Guedes de Loureiro. — Morreu tinha eu seis anos, mas ainda me lembro dela. Entrava em descrigôes, com uma tal doutrina de família, que Osório se entediava. Amava-a, mas fazia um esforgo para suportar certos aspectos da provinciana ensaboada, como classificava Ema. Ela näo ignorava o desprezo que, como cavalheiro euro-peu, Osório tinha por quem näo guardava as distäncias. Só no leito ele tolerava a igualdade de casta. Embora amasse Ema e a achasse uma beleza difícil de igualar, o seu snobismo latente vinha ao de cima quando tinha que a ouvir falar de dona Augusta, o protótipo da papa-hóstias, cuja bondade era uma história de cordel. Osório tinha espírito, mas só o manifestava quando a sua consciéncia de classe acordava; ou quando estava bébado. Ema viu depressa que ele bebia demais, o que o tor nava um amante arrependido, quase často. Deitava-se na cama tendo um ar incompatível com o amor, e dormia toda a noite, enrolando-se no mosquiteiro no tumulto dos sonhos. No outro leito, Ema esperava; se näo fosse a imprevisível energia sensual de Osório, ela teria partido mais cedo. Ele sabia demorá-la com a sur-presa duma ligäo em coisas do sentimento, ofereceu-lhe urna pulseira de pedras, de prego módico, mandou vir lagostas da sua peixeira na Foz, e um goraz grande como o peixe de Jonas. Mas há, pensava Ema, uma felicidade para noivos e outra para amantes. Para uns as regras da iniciagao, talhadas numa expe-riéncia do desconhecido; para outros a liberdade que se abre ao improvável, um desregramento que significa um rapto em relagäo ä existencia conhecida e da qual se receberam avisos desoladores. Ema saía para o cais, um pontäo de tábuas onde a água batia com um rumor sinistro; e fazia-se ao largo do rio, langando-se numa corrida que tinha muito de imprudente. O mordomo olhava do terrago e achava-a maluca. Era diferente das outras, estranhava em Ema as iras repentinas que faziam parte do seu misterioso poder de atracgäo. Essa veeméncia fazia supor for-mas inimitáveis de paixäo. Mas depressa se estancava o delírio 82 AGUSTINA BESSA-LUÍS VALE ABRAÄO 83 que a acometia. Aparecia para jantar, vestida e decotada a rigor, as unhas pintadas de ocre ou de prata, táo bela que o mor-domo Caires se distraía e servia pela direita o famoso goraz de pinta num molho de alcaparras. Havia visitas, os amigos de Osó-rio, entre eles, Pedro Dossém, que se dizia parente de Santo Antonio de Lisboa. A prova era fraca, baseava-se no testemu-nho do cronista paduano Giulielmo Ongarello, que em 1441 referiu Doson como sendo o seu nome de família. Pedro Dossém tinha propriedade valiosa em pleno Douro vinhateiro, no Pinháo, na estráda das Covas. Era um homem de bom sangue, mas um pouco desleixado pela Natureza naquilo em que a Natureza é todo-poderosa: o sexo e a mořte. Pedro Dossém náo pensava nem no amor nem na mořte; era uma alma--de-cántaro, como se diz, oco e soando a vazio. Mas naquela sua visita ao Vesúvio a vida dele transformou-se. Nunca acredi-tara que uma mulher pudesse ser táo bela e táo desenganadora. Ema náo iludia ninguém, náo tinha táctica, tinha só o sentido do espectáculo. Vestia-se e agia como se tivesse de conquistar Holofernes no seu arraial, mas, na realidade, náo passava dum erotismo tabelado pela utopia do poder e da importáncia sociál. Ainda que temporariamente ela fosse a companheira sentimen-tal de Osório, tinha um marido que a tutelava em muitos aspec-tos e que podia reivindicar os seus direitos a todo o momento. Pedro Dossém pensou imediatamente entrar nas boas gracas do marido, o que lhe oferecia vantagens no sentido de frequentar a mulher. Nao seria um rival, mas um coadjutor do casamento, papel mais útil e necessário do que se pode supor. Com as suas acanhadas luzes, foi Pedro Dossém que afastou Ema de Osório e a encaminhou para a vida que ela ambicio-nava. Limitado como era, tinha, no entanto, pelo lado das afi-nidades de sangue, relagoes numerosas e escolhidas que ultra-passavam as fronteiras. Ia cagar para as coutadas reais em Espanha, e era recebido pela aristocracia romana, ao abrigo duma sensibilidade ortodoxa que se apegava á sotaina de Monsenhor Lefebvre. Pedro Dossém gostava de gloriar-se, ainda que sem perder a discrigáo que é timbre dos auténticos áulicos. Como era desprovido de humor, o sentimento que tinha por Ema pare-cia profundo. Mas era um sentimento como a arte musical, uma maneira de modelár as paixóes. Ema dedicou-se a ele, e com ele atingiu paradeiros diferentes dos da vida física. Nao havia senáo um jogo, mais inocente do que se fosse embebido de sonhos Hbidinosos. Pedro Dossém tinha uma esposa e nume-rosa família; nunca faltou ä lealdade que lhes jurara; mas con-traiu com Ema uma espécie de segundas núpcias, levando-a ao altar mundano, com a promessa de lhe dar a conhecer as ale-grias da vaidade e das finezas.