lha: e a face de Afonso da Maia cobria-se de tristeza, quando ao voltar j de alguma caijada ou das mas de Londres, de entre o forte rumor da vida livre — ouvia no quarto dos estudos a voz dormente do řeve-rendo, perguntando como do fundo de uma treva: j — Quantos sao os inimigos da alma? | E o pequeno, mais dormente, lá ia murmurando: | — Trěs. Mundo, Diabo e Carne... Pobre Pedrinho! Inimigo da sua alma só havia ali o reverendo I Vasques, obeso e sórdido, arrotando do fundo da sua poltrona, com o 1 lenco do rape sobre o joelho... 1 Ás vezeš Afonso, indignado, vinna ao quarto, interrompia a dou. J trina, agarrava a mao do Pedrinho — para o levar, correr com elesob- \ as árvores do Tamisa, díssipar-lhe na grande luz do rio o pesadume I crasso da cartilha. Mas a mama acudia de dentro, em terror, a abaia- I -lo numa grande manta: depois lá fora o menino, acostumado ao coio % das criadas e aos recantos estofadós, tinha medo do vento e das árvo- I res: e pouco a pouco, num passo desconsolado, os dois iam pisando 'J em siléncio as folhas secas — o filho todo acobardado das sombras do I bosque vivo, o pai vergando os ombros, pensativo, triste daquela \ fraqueza do filho... \ Mas o menor esfonjo dele para arrancar o rapaz áqueles bracos dc mae que o amoleciam, áquela cartilha mortal do padre Vasques — [ř trazia logo á delicada senhora acessos de febre. E Afonso nao se atrevia já a contrariar a pobre doente, tao virtuosa, e que o amava \\ tanto! Ia entao lamentar-se para o pé da tia Fanny: a sábia irlandesa ' metia os óculos entre as folhas do seu livro, tratado de Adison ou poema de Pope, e encolhia melancolicamente os ombros. Que podia i ela fazer!... I Por fim a tosse de Maria Eduarda foi aumentando — como a jí tristeza das suas palavras. Já falava da «sua ambigao derradeira», que [ era ver o sol uma vez mais! Porque nao voltariam a Benfica, ao seu lat, agora que o Senhor Infante estava também desterrado e que havia uma grande paz? Mas a isso Afonso nao cedeu: nao queria ver outra vez as suas gavetas arrombadas a coronhadas — e os soldados do i Sr. D. Pedro nao lhe davam mais garantias que os malsins do j Sr. D. Miguel. , . • í Por esse tempo veio um grande desgosto á casa: a tia Fanny I morreu, de uma pneumonia, nos frios de Marco; e isto enegreccu' niaii a melancolia de Maria Eduarda, que a amava muko também — o0r ser irlandesa e católica. Para a distrair, Afonso levou-a para a Itália, para uma deliciosa ■ i\l\a a° de Roma. Aí näo lhe faltava o sol; tinha-o pontual e »eneroso todas as manhäs, banhando largamente os terracos, dou-rando loureirais e mirtos. E depois, lá em baixo, entre mármores, estava a coisa preciosa e šanta, o Papa! .? Mas a triste senhora continuava a choramingar. O que realmente apetecia era Lisboa, as suas novenas, os santos devotos do seu bairro, as procissöes passando num rumor de pachorrenta peniténcia por tarde«. de sol e de poeira... ■ Foi necessário calmá-la, voltar a Benfica. Aí comecou uma vida desconsolada. Maria Eduarda definhava lentamente, todos os dias mais pálida, levando semanas imóvel sobre um canapé, com as mäos transparentes cruzadas sobre as suas grossas peleš de Inglaterra. O padre Vasques, apoderando-se daquela alma aterrada para quem Deus era um amo feroz, tornara-se o grande hörnern da casa. De resto Afonso encontrava a cada momento pelos corredores outras figuras canónicas, de capote e solidéu, em que reconhecia antigos franciscanos, ou algum magro capuchinho parasi-tando no bairro; a casa tinha um bafio de sacristia; e dos quartos da senhora vinha constantemente, dolente e vago, um rumor de la-dainha. Todos aqueles santos varôes comiam, bebiam o seu vinho do Porto na copa. As contas do administrador apareciam sobrecarrega-das com as mesadas piedosas que dava a senhora: um Frei Patrício surripiara-lhe duzentas missas de cruzado por alma do Sr. D. Jose I... Esta carolice que o cercava ia lancahdo Afonso num ateísmo ran-coroso: quereria as igrejas fechadas como os mosteiros, as imagens escavacadas a machado, uma matanca de reverendos... Quando sentia na casa a voz de rezas, fugia, ia para o fundo da quinta, sob as trepadeiras do mirante, ler o seu Voltaire: ou entao partia a desabafar com o seu velho amigo, p coronel Sequeira, que vivia numa quinta a Queluz. O Pedrinho no entanto estava quase um hörnern. Ficara peque-nino e nervoso como Maria Eduarda, tendo pouco da ra$a, da for§a dos Maias; a sua linda face oval de um trigueiro cálido, dois olhos maravilhosos e irresistíveis, prontos sempře a humedecer-se, faziam- 86 87 -no assemelhar a um belo árabe. Desenvolvera-se lentamente, sem curiosidades, indiferente a brinquedos, a animais, a flores, a livros Nenhum desejo forte parecera jamais vibrar naquela alma niei0 adormecida e passiva: só as vezeš dizia que gostaria muito de voltar para a Itália. Tomara birra ao padre Vasques, mas näo ousava desobfe. decer-lhe. Era em tudo um fraco; e esse abatimento contínuo de todo o seu ser resolvia-se a espacos em crises de melancolia negra, que o traziam dias e dias mudo, murcho, amarelo, com as olheiras fundas e já velho. O seu único sentimento vivo, intenso, até aí, fora a paixäll pela mäe. Afonso quisera-o mandar para Coimbra. Mas, ä ideia de se sepa-rar do seu Pedro, a pobre senhora caíra de joelhos diante de Afonso, balbuciando e tremendo: e ele, naturalmente, lá cedeu perante essafj mäos suplicantes, essas lágrimas que caíam quatro a quatro peljl pobre face de cera. O menino continuou em Benfica dando os seufj lentos passeios a cavalo, de criado de farda atrás, come§ando já a ir beber a sua genebra aos botequins de Lisboa... Depois foi despon-tando naquela organizacäo uma grande tendencia amorosa: aos deza§ nove anos teve o seu bastardozinho. Afonso da Maia consolava-se pensando que, apesar de täo desgra-cados mimos, näo faltavam ao rapaz qualidades: era muito espertof säo, e, como todos os Maias, valente: näo havia muito que ele só, coif um chicote, dispersara na estráda trés saloios de varapau que lhř tinham chamado «palmito». Quando a mäe morreu, numa agonia terrível de devota, debal tendo-se dias nos pavores do Inferno, Pedro teve na sua dor os arref batamentos de uma loucura. Fizera a promessa histérica, se ela esca-passe, de dormir durante um ano sobre as laješ do pátio: e levado o caixäo, saídos os padres, caiu numa angústia soturna, obtusa, seiti) lágrimas, de que näo queria emergir, estirado de bru?os sobre a camf numa obstinacäo de penitente. Muitos meses ainda näo o deixou umí tristeza vaga: e Afonso da Maia já se desesperava de ver aquele rapaz, seu filho e seu herdeiro, sair todos os dias a passos de monge, lúgubre no seu luto pesado, para ir visitar a sepultura da mama... Esta dor exagerada e mórbida cessou por fim; e sucedeu-lhe, quase sem transicäo, um periodo de vida dissipada e turbulentí, estroinice banal, em que Pedro, levado por um romantismo torpe, procurava afogar em lupanares e botequins as saudades da mama. jVlas essa exuberáncia ansíosa que se desencadeara tao subitamente, tjj0 tumultuosamente, na sua natureza desequilibrada, gastou-se depressa também. Ao fim de um ano de distúrbios no Marrare, de facanhas nas esperas de touros, de cavalos esfalfados, de pateadas em S. Carlos, coniecaram a reaparecer as antigas crises de melancolia nervosa; vol-tavam esses dias taciturnos, longos como desertos, passados em casa a bocejar pelas salaš, ou sob alguma árvore da quinta todo estirado de brucos, como despenhado num fundo de amargura. Nesses periodos tornava-se também devoto: lia Vidas de Santos, visitava o lausperene: eram desses bruscos abatimentos de alma que outrora levavam os fracos aos mosteiros. ----Isto penalizava Afonso da Maia: preferia saber que ele recolhera de Lisboa, de madrugada, exausto e bébedo — do que vě-lo, de ripanco debaixo do braco, com um ar velho, marchando para a Igreja de Benfica. E havia agora uma ideia que, a seu pesar, ás vezeš o torturava: descobrira a grande parecenca de Pedro com um avó de sua mulher, um Runa, de quem existia um retrato em Benfica: este homem extraordinário, com que na casa se metia medo as criancas, enlouque-cera — e julgando-se Judas enforcara-se numa figueira... Mas um dia, excessos e crises findaram. Pedro da Maia amava! Era um amor á Romeu, vindo de repente numa trpca de olhares fatal e deslumbradora, uma dessas paixoes que assaltam uma existěncia, a assolam como um furacao, arrancando a vontade, a razao, os respeitos humanos e empurrando-os de roldao aos abismos. Numa tarde, estando no Marrare, vira parar defronte, á porta de Madame Levaillant, uma caleche azul onde vinha um velho de chapéu branco, e uma senhora loura, embrulhada num xale de Caxemira. O velho, baixote e reforcado, de barba muito grisalha talhada por baixo do queixo, uma face tisnada de antigo embarcadico e o ar goche, desceu todo encostado ao trintanário como se um reumatismo o tolhesse, entrou arrastando a perná o portal da modista; e ela voltando devagar a cabecja olhou um momento o Marrare. Sob as rosinhas que ornavam o seu chapéu preto, os cabelos lou-ros, de um ouro fulvo, ondeavam de leve sobre a testa curta e clássica: os olhos maravilhosos iluminavam-na toda; a friagem fazia-lhe mais pálida a carna?ao de mármore: e com o seu perfil grave de estátua, o 89 modelado nobre dos ombros e dos bragos que o xale cingia — parcccu a Pedro nesse instante alguma coisa de imortal e superior ä Terra. Näo a conhecia. Mas urn rapaz alto, macilento, de bigodes negros, vestido de negro, que fumava encostado ä outra ombreira, numa pose de tédio — vendo o violento interesse de Pedro, o olhar aceso c perturbado com que seguia a caleche trotando Chiado acima, veio tomar-lhe o braco, murmurou-lhe junto ä face na sua voz grossa c lenta: — Queres que te diga o nome, meu Pedro? O nome, as origens. as datas e os feitos principals? E pagas ao teu amigo Alencar, ao teu sequioso Alencar, uma garrafa de champanhe? Veio o champanhe. E o Alencar, depois de passar os dedos magros pelos anéis da cabeleira e pelas pontas do bigode, comeeou, iodo~" recostado e dando um puxäo aos punhos: — Por uma dourada tarde de Outono... — André — gritou Pedro ao criado, martelando o mármore da mesa —, retira o champanhe! O Alencar bradou, imitando o actor Epifänio: — O qué! Sem saciar a avidez do meu lábio?... Pois bem, o champanhe ficaria: mas o amigo Alencar, esqueci-ndo que era o poeta das Vozes de Aurora, explicaria aquela gente da caleche azul numa linguagem crista e prática!... — Aí vai, meu Pedro, aí vai! Havia dois anos, justamente quando Pedro perdera a mami, aquele velho, o papá Monforte, uma manhä rompera subitamente pelas ruas e pela sociedade de Lisboa naquela mesma caleche com essa bela filha ao seu lado. Ninguém os conhecia. Tinham alugado a Arroios um primeiro andar no palacete dos Vargas; e a rapariga prin-cipiou a aparecer em S. Carlos, fazendo uma impressäo — uma impressäo de causar aneurismas, dizia o Alencar! Quando ela atraves-sava o saläo, os ombros vergavam-se no deslumbramento de auroilä que vinha daquela magnífica criatura, arrastando com um pas>>o dc deusa a sua cauda de corte, sempře decotada como em noites de gala.! e apesar de solteira resplartdecente de jóias. O papá nunca lhe dava al braco: seguia atrás, entalado numa grande gravata branca de mor-domo, parecendo mais tisnado e mais embarcadico na claridade loura que saía da filha, encolhido e quase apavorado, trazendo nas mäos e óculo, o libretto, um saco de bombons, o leque e o seu proprio guarda- .chuva. Mas era no camarote, quando a luz caía sobre o seu colo .búriK° e as suas trancas de ouro, que ela oferecia verdadeiramente a -ncarnacäo de um ideal da Renascenca, um modelo de Ticiano... Ele, Mcncar, na primeira noite em que a vira, exclamara, mostrando-a a |a o äs outras, äs trigueirotas de assinatura: —- Rapazes! E como um ducado de öuro novo entre velhos pata-cos do tempo do Sr. D. Joäo VI! 0 Magalhäes, esse torpe piráta, pusera o dito num folhetim do PortuguSs. Mas o dito era dele, Alencar! Os rapazes, naturalmente, comecaram logo a rondar o palacete de Arroios. Mas nunca naquela casa se abria urna janela. Os criados, jnterrogados, disseram apenas que a menina se chamava Maria, e que o scnhor.se chamava Manuel. Enfim urna criada, amaciada com seis pintos, soltou mais: o hörnern era taciturno, tremia diante da filha, e dormia numa rede; a senhora, essa, vivia num ninho de sedas todo azul-ťerrete, e passava o seu dia a ler novelas. Isto näo podia satisfazer a sofreguidäo de Lisboa. Fez-se urna devassa metódica, hábil, paciente... Ele, Alencar, pertencera ä devassa. h souberam-se horrores. O papá Monforte era dos Azores; muito moco, uma facada numa rixa, um cadaver a uma esquina tinham-no forcado a fugir a bordo de um brigue americano. Tempos depois urn ccrto Silva, procurador da Casa de Taveira, que o conhecera nos Acores, estando na Havana a estudar a cultura do tabaco que os Taveiras queriam implantar nas Uhas, encontrara lá o Monforte (que verdadeiramente se chamava Forte) rondando pelo cais, de chinelas Je esparto, ä procura de embarque para a Nova Orleäes. Aqui havia uma treva na história do Monforte. Paréce que servira algum tempo de feitor numa plantacäo da Virginia... Enfim, quando reapareceu ä ;'acc dos céus, comandava o brigue Nova Linda, e levava cargas de pretos para o Brasil, para a Havana e para a Nova Orleäes. Ľscapara aos cruzeiros ingleses, arrancara uma fortuna da pele do africano, e agora rico, hörnern de bem, proprietário, ia ouvir a Corelli a S. Carlos. Todavia esta terrível erónica, como dizia o Alencar, ohscura e mal provada, claudicava aqui e além... — E a filha? — perguntou Pedro, que o escutara, sério e pálido. Mas isso näo o sabia o amigo Alencar. Onde a arraňjara assim täo ioura e bela? Quem fora a mama? Onde estava? Quern a ensinara a embrulhar-se com aquele gesto real no seu xale de Caxemira?... 90 91 vira Maria Monforte e Pedro passeando a cavalo, «ambos muito hen, e muito distingués», Afonso, depois de um siléncio, disse com um ar enfastiado: — Enfim, todos os rapazes těm as suas amantes... Os costumes sao assim, a vida é assim, e seria absurdo querer reprimir tais coisas Mas essa mulher com um pai desses, mesmo para amante acho má. O Vilaga suspendeu o baralhar das cartas, e ajeitando os óculos de ouro exclamou com espanto: — Amante! Mas a rapariga é solteira, meu senhor, é uma menina honesta!... Afonso da Maia enchia o seu cachimbo; as maos comegaram a tremer-lhe; e voltando-se para o administrador, numa voz que tremia • um poueo também:~~~ — O Vilaga decerto nao supoe que meu filho queira casar com essa criatura... O outro emudeceu. E foi o Sequeira que murmurou: — Isso náo, está claro que nao... E o jogo continuou algum tempo em silěncio. Mas Afonso da Maia principiou a andar descontente. Passavam-; semanas que Pedro nao jantava em Benfica. De manhá, se o via, et! urn momento, quando ele descia ao almoco, já com uma luva calcada,. apressado e radiante, gritando para dentro se estava selado o cavalo; depois, mesmo de pé, bebia um gole de chá, perguntava a correr «seo papá queria alguma coisa», dava um jeito ao bigode diante do grandi espelho de Veneza sobre o fogáo, e lá partia, enlevado. Outras vezes todo o dia nao saia do quarto: a tarde descia, acendiam-se as luzes; até que o pai, inquieto, subia, ia encontrá-lo estirado sobre ó leito, coma cabega enterrada nos bragos. — Que tens tu? — perguntava-lhe. — Enxaqueca — respondia num tom surdo e rouco. E Afonso descia indignado, vendo em toda aquela angusiii cobarde alguma carta que nao viera, ou talvez uma rosa oferecida qui nao fora posta nos cabelos... Depois, por vezes, entre dois robbers ou conversando em volta Ji bandeja do chá, os seus amigos tinham observances que o inquiela-varn, partindo daqueles homens que habitavam Lisboa, lhe conhe-ciam os rumores — enquanto ele passava ali, Inverno e Verao, cntrs os seus livros e as suas rosas. Era o excelente Sequeira que perguntavs porque näo faria Pedro uma viagem longa, para se instruir, ä Alema-„ha, a° Oriente? Ou o velho Luis Runa, o primo de Afonso, que a propósito de coisas indiferentes, rompia lamentando os tempos em que o intendente da polícia podia livremente expulsar de Lisboa as pessoas importunas... Evidentemente aludiam á Monforte, evidente-mente julgavam-na perigosa. No Veräo, Pedro partiu para Sintra; Afonso soube que os Mon-fortes tinham lá alugado uma casa. Dias depois o Vilaga apareceu em Benfica, muito preocupado: na véspera Pedro visitara-o no cartório, pedira-lhe informagôes sobre as suas propriedades, sobre o meio de levantar dinheiro. Ele lá lhe dissera que em Setembro, chegando ä sua maioridade, tinha a legítima da mama... — Mas näo gostei disto, meu senhor, näo gostei disto... — E porquě, Vilaga? O rapaz quererá dinheiro, quererá dar pre-sentes ä criatura... O amor é um luxo caro, Vilaga. — Deus queira que seja isso, meu senhor, Deus o ouga! E aquela confianga täo npbre de Afonso da Maia no orgulho patrício, nos brios de raga de seu filho, chegava a tranquilizar Vilaga. Daí a dias, Afonso da Maia viu enfim Maria Monforte. Tinha jantado na quinta do Sequeira ao pé de Queluz, e tomavam ambos o scu café no mirante, quando entrou pelo caminho estreito que seguia o muro a caleche azul com os cavalos cobertos de redes. Maria, abri-gada sob uma sombrinha escarlate, trazia um vestido cor-de-rosa cuja roda, toda em folhos, quase cobria os joelhos de Pedro, sentado ao seu lado: as fitas do seu chapéu, apertadas num grande lago que lhe enchia o peito, eram também cor-de-rosa: e a sua face, grave e pura como um mármore grego, aparecia realmente adorável, iluminada pelos olhos de um azul sombrio, entre aqueles tons rosados. No assento defronte, quase todo tornádo por cartôes de modista, enco-lhia-se o Monforte, de grande chapéu panamá, calga de ganga, o mantelete da filha no brago, o guarda-sol entre os joelhos. lam cala-dos, näo viram o mirante; e, no caminho verde e fresco, a caleche passou com balangos lentos, sob os ramos que rogavam a sombrinha de Maria. O Sequeira ficara com a chávena de café junto aos lábios, de olho esgazeado, murmurando: — Caramba! É bonita! Afonso näo respondeu: olhava cabisbaixo aquela sombrinha escarlate que agora se inclinava sobre Pedro, quase o escondia, parecia 94 95 envolvě-lo todo — como uma larga mancha de sangue alastrando a ! caleche sob o verde triste das ramas. j O Outono passou, chegou o Inverno, frigidíssimo. Uma manha, : Pedro entrou na livraria onde o pai estava lendo junto ao l'ogä0 recebeu-lhe a běncao, passou um momento os olhos por um jornai aberto, e voltando-se bruscamente para ele: — Meu pai — disse, esforcando-se por ser claro e decidido venho pedir-lhe licenca para casar com uma senhora que se cháma Maria Monforte. ! Afonso pousou o livro aberto sobre os joelhos, e numá voz gravee i lenta: — Näo me tinhas falado disso... Creio que é a filha de um assas-síno, de um hégreiro, äT quem chamam também a «negrcira».rr — Meu pai!... Afonso ergueu-se diante dele, rígido e inexorável como a enearna-cäo mesma da honra doméstica. — Que tens a dizer-me mais? Fazes-me corar de vergonha. Pedro, mais branco que o lenco que tinha na mäo, exclamou todc. a tremer, quase em solucos: — Pois pode estar certo, meu pai, que hei-de casar! Saiu, atirando furiosamente com a porta. No corredor gritou pelo escudeiro, muito alto para que o pai ouvisse, e deu-lhe ordem para levar as suas malas ao Hotel Europa. Dois dias depois Vilaca entrou em Benfica, com as lágrimas nes olhos, contando que o menino casara nessa madrugada — e segur.de lhe dissera o Sérgio, procurador do Monforte, ia partir com a noiva para a Itália. Afonso da Maia sentara-se nesse instante ä mesa do almoco, po?G ao pé do fogäo: ao centro, um ramo esfolhava-se num vaso do Japäo.i cháma forte da lenha: e junto ao talher de Pedro estava o numero dí Grinalda, jornai de versos que ele costumava receber... Afonso uuvii o procurador, grave e mudo, continuando a desdobrar lentamente o seu guardanapo. — Já almocou, Vilaca? O procurador, assombrado daquela serenidade, balbuciou: — Já almocei, meu senhor... Entäo Afonso, apontandb para o talher de Pedro, disse ao escudeiro: __ Pode tirar dali esse talher, Teixeira. Daqui por diante há só um talher á mesa... Sente-se, Vilaca, sente-se. 0 Teixeira, ainda novo na casa, levantou com indiferenca o talher jo menino. Vilaca sentara-se. Tudo em redor era correcto e calmo como nas outras manhas em que almocara em Benfica. Os passos do cscudeiro nao faziam ruído no tapetě fofo; o lume estalava alegre-mente, pondo retoques de ouro nas pratas polidas; o sol disereto que brilhava fóra no azul de Inverno fazia cintilar eristais de geada nas ramas secas; e á janela o papagaio, muito patuleia e educado por Pcdro, rosnava injúrias aos Cabrais. Por fim Afonso ergueu-se; esteve olhando abstraidamente a quinta, os pavoes no terraco; depois ao sair da sala tornou o braco de Vilaca, apoiou-se nele com forca, como se lhe tivesse chegado a pri-tneira tremura da velhice, e no seu abandono sentisse ali uma amizade segura. Seguiram o corredor, calados. Na livraria Afonso foi ocupar a sua poltrona ao pé da janela, comecou a encher devagar o seu cachimbo. Vilaca, de cabega baixa, passeava ao comprido das altas estantes, nas pontas dos pés, como no quarto de um doente. Um bando de pardais veio gralhar um momento nos ramos de uma alta árvore que rocava a varanda. Depois houve um siléncio, e Afonso da Maia disse: — Entao, Vilaca, o Saldanha lá foi demitido do Paco?... O outro respondeu, vaga e maquinalmente: — E verdade, meu senhor, é verdade... E nao se falou mais de Pedro da Maia. 96 97