Quando Afonso da Maia, Vilaca e o abade recolheram do $e I passeio pela freguesia, escurecera, havia luzes pelas salas, e tinhJ' ! chegado já as Silveiras, senhoras ricas da quinta da Lagoaca. ■ D. Ana Silveira, a solteira e mais velha, passava pela talentosad i família, e era em pontos de doutrina e de etiqueta urna grande autor; ■ dade em Resende. A viúva, D. Eugénia, limitava-se a ser uma cxce '< lente e pachorrenta senhora, de agradável nutrÍ9äo, trigueirota c pts ■ tanuda; tinha dois filhos, a Teresinha, a «noiva» de Carlos, um- ,' rapariguinha magra e viva com cabelos negros como tinta, e o morga. '■ dinho, o Eusebiozinho, uma maravilha muito falada naqUeles sitio-s ■ Quase desde o berco este notável menino revelara um edillcante i amor por alfarrábios e por todas as coisas do saber. Ainda gatinhavae i já a sua alegria era estar a urn canto, sobre uma esteira, embrulhado ' num cobertor, folheando in-fólios, com o craniozinho calvo de sábir curvado sobre as letras garrafais da boa doutrina; e depois de cresci-dinho tinha tal propósito que permanecia horas imóvel numa cadeira de perninhas bambas, esfuracando o nariz: nunca apetecera um tam-bor ou uma arma: mas cosiam-lhe cadernos de papel, onde o precoce letrado entre o pasmo da mama e da titi, passava dias a tracar aigaris-mos, com a linguazinha de fora. Assim na família tinha a sua carreira destinada: era rico, havia dc ser primeiro bacharel, e depois desembargador. Quando vinha a Santa Olávia, a tia Anica instalava-o logo ä mesa, ao pé do candctiro, a admirar as pinturas de um enorme e rico volume, Os Costmm . Todos os Povos do Universo. Já lá estava essa noite, vestido como sempre de escocés, com o plaid de flamejante xadrez Vermel ho e negro posto a tiracolo e preso ao ombro por uma dragona; para que conservasse o ar nobre de um Stuart, de um valoroso cavaleiro dc Walter Scott, nunca lhe tiravam o boné onde se arqueava coir, heroismo uma rutilante pena de galo; e nada havia mais melancólico que a sua facezinhä trombuda, a que o excesso de lombrigas dava uma moleza e uma amarelidäo de manteiga, os seus olhinhos vagos e azu-lados, sem pestanas como se a ciéncia lhas tivesse já consumido. pasmando com sisudez para as camponesas da Sicília, e para os guer-reiros ferozes do Montenegro apoiados a escopetas, em píncaro^ serranias. Diante do canapé das senhoras lá se achava também o fiel amigo,o doutor delegado, grave e digno homem, que havia cinco anos andava nderando e meditando o casamento com a Silveira viiiva, sem se jecitiir — contentando-se em comprar todos os anos meia duzia de tefic6is, °u uma Peca mais de bretanha, para arredondar o bragal. jjstas compras eram discutidas em casa das Silveiras, a braseira: e as lusoes recatadas, mas inevitaveis, as duas fronhazinhas, ao tamanho ,Qi jencois, aos cobertores de papa para os conchegos de Janeiro em lugar de inflamar o magistrado, inquietavam-no. Nos dias jeguintes aparecia preocupado — como se a perspectiva da santa ' ns,umacao do matrim6nio lhe desse o arrepio de uma facanha a ^ujpreender, ter de agarrar um touro, ou nadar nos cachoes do Douro. Entao, por qualquer razao especiosa, adiava-se o casamento atc ao S. Miguel seguinte. E aliviado, tranquilo, o respeitavel doutor •ontinttava a acompanhar as Silveiras a chas, festas de igreja ou pesa-roeS) vestido de preto, afavel, servical, sorrindo a D. Eugenia, nao Jesejando mais prazeres que os dessa convivencia paternal. Apenas Afonso entrou na sala deram-lhe logo noticias do contra-tempo: o Doutor Juiz de Direito e a senhora nao podiam vir, porque o magistrado tivera a dor; e as Brancos tinham mandado recado a jesculpar-se, coitadas, que era dia de tristeza em casa, por fazer Jevassete anos que morrera o mano Manuel... — Bern — disse Afonso — bem. A dor, a tristeza, o mano Manuel... Fazemos nos um voltaretezinho de quatro. Que diz o nosso doutor delegado? 0 excelente homem dobrou a sua fronte calva, murmurando que «estava as ordens». — Entao ao dever, ao dever! — exclamou logo o abade, esfre-gando as maos, no ardor ja da partida. Os parceiros dirigiram-se a saleta do jogo — que um reposteiro de damasco separava da sala, franzido agora, deixando ver a mesa verde, t no* circulos de luz que caiam dos abat-jours, os baralhos abertos em leque. Dai a um momento o doutor delegado voltou, risonho, dizendo que «os deixara para um roquezinho de tres»; e retomou o seu lugar ao lado de D. Eugenia, cruzando os pes debaixo da cadeira e as maos cm cima do ventre. As senhoras estavam falando da dor do Doutor Juiz de Direito. Costumava dar-lhe todos os tres meses: e era conde-navcl a sua teima em nao querer consultar medicos. Quanto mais que ele andava acabado, ressequido, amarelado — e a D. Augusta, a mulher, a nutrir a larga, a ganhar cores!... A viscondessa, enterrada 130 131 em toda a sua gordura ao canto do canape, com o leque aberto sobre peito, contou que em Espanha vira um caso igual: o hörnern chegarj. parecer um esqueleto, e a mulher uma pipa; e ao principio fora contrario; ate sobre isso se tinham feito uns versos... — Humores — disse com melancolia o doutor delegado. Depois falou-se nas Brancos; recordou-se a morte de Manila Branco, coitadinho, na flor da idade! E que perfeicäo de rapaz! K qUe rapaz de juizo! D. Ana Silveira näo se esquecera, como todos os anos! de lhe acender uma lamparina por alma, e de lhe rezar tres padres, -nossos. A viscondessa pareceu toda aflita por se näo ter lembrado., I E ela que tinha o proposito feito! — Pois estive para to mandar dizer! — exclamou D. Ana. — Eas Brancos que tanto o agradecem, filhal ' " — Ainda estä a tempo — observou o magistrado. D. Eugenia deu uma malha indolente no crochet de que nuncase separava, e murmurou com urn suspiro: — Cada urn tern os seus mortos. I E no silencio que se fez, saiu do canto do canape outro suspiro,