deixaria a Deus mais algumas semanas o privilégio exclusivo de saber o segredo das coisas — como ele dizia rindo ao avó. Logo pela manhs cedo ia fazer as suas duas horas de armas com o velho Randon; ik'n0j, via alguns doentes no bairro, onde se espalhara, com um brilho de legenda, a eura da Marcelina — e as garrafas de bordéus qi.iC |l mandara Afonso. Comecava a ser conhecido como médico. Tinha visitas no consultório — ordinariamente bacharéis, seus contenip()r5 neos, que sabendo-o rico o consideravam gratuito, e lá entravam murchos e com má cara, a contar a velha e mal disfargada história (],. ternuras funestas. Salvara de um garrotilho a filha de um brasileirn ao Aterro— e ganhara aí a sua primeira libra, a primeira que pelo sc„ trabalho ganhava um homem da sua família. O Dr. Barbedo amvi-dara-o á assistir á uma ópera^ao ovariotómica.E enfim (mas ěsta consagracao nao a esperava realmente Carlos tao cedo), algum dos seus bons colegas, que até aí, vendo-o só a governar os seus cavafo. ingleses, falavam do «talento do Maia» — agora, percebendo-lfce estas migalhas de clientela, comecavam a dizer «que o Maia era um asno». Carlos já falava a sério da sua carreira. Ešcrevera, com lahorio-sos requintes de estilista, dois artigos para a Gazeta Médica;'e pi-nsava em fazer um livro de ideias, que se devia chamar Medicína Antika c Moderna. De resto ocupava-se sempře dos seus cavalos, do seu luxo. do seu bric-á-brac. E através de tudo isto, em virtude dessa fatal dispersao de curiosidade que, no meio do caso mais interessantc de patologia, lhe fazia voltar a cabe<;a se ouvia falar de uma estátua ou de um poeta, atraía-o singularmente a antiga ideia do Ega, a eriaciio de uma revista, que dirigisse o gosto, pesasse na política, regulasse a sociedade, fosse a forca pensante de Lisboa... Era, porém, inútil lembrar ao Ega este belo piano. Abria um olho vago, respondia: — Ah, a Revista... Sim, está claro, pensar nisso! Havemos de falar, eu aparecerei... Mas nao aparecia no Ramalhete, nem no consultório; apL-nas^c avistavam, ás vezeš, em S. Carlos, onde o Ega, todo o tempo que nao passava no camarote dos Gohens, vinha invariavelmente refugiar-se no fundo da frisa de Carlos, por trás de Taveira ou do Crugcs, dc onde pudesse olhar dě vez em quando Raquel Cohen — e ali ficava, silencioso, com a cabe?a apoiada ao tabique, repousando e como satu-rado de felicidade... 180 I i 0 dia (dizia ele) tinha-o todo tornado; andava procurando casa, 1 „Jáva estudando mobilias... Mas era fácil encontrá-lo pelo Chiado e ,|0 Loreto, a rondar e a farejar — ou entäo no fundo de tipóias de ta?3' hatendo a meio galope, num espalhafato de aventura. ^ 0 seu dandismo requintava; arvorara, com o desplante soberbo de Brummel, casaca de botôes amarelos sobre colete de cetim hpinco; e Carlos entrando urna manhä cedo no Universal, deu com j je pálido de cólera, a despropositar com um criado, por causa de uns j ;apatos ma' envernizados. Os seus companheiros constantes, agora, I ram um Dämaso Salcede, amigo do Cohen, e um primo da Raquel f i\)hen, mocinho imberbe, de olho esperto e duro, já com ares de 1 emPrestar a trmta Por cento. í Entre os amigos, no Ramalhete, sobretudo na frisa, discutia-se as '• rtZCs Raquel, e as opiniôes discordavam. Taveira achava-a «deli-;iosa!» — e dizia-o rilhando o dente; ao marques näo deixáva de í earccer apetitosa, para urna vez, aquela carnezinha faisandée de i Jnulher de trinta anos; Cruges chamava-lhe urna «lambisgóia relam-i bória». Nos jornais, na sec?äo do High Life, ela era «uma das nossas primeiras elegantes»: e toda a Lisboa a conhecia, e a sua luneta de ouro preša por um fio de ouro, e a sua caleche azul com cavalos nrctos. Era alta, muito pálida, sobretudo äs luzes, delicada de saúde, com um quebranto nos olhos pisados, uma infinita languidez em toda a sua pessoa, um ar de romance e de lirio meio murcho: a sua maior 1 '-cleza estava nos cabelos, magnificamente negros, ondeados, muito i pc