confusao social, no tumulto da Meia Idade! Mas numa sociedade burguesa, bem policiada, bem escriturada, garantida por tantas lejs documentada por tantos papéis, com tanto registo de baptismo, conj tanta certidao de casamento, nao podia ser! Nao, nao estava no feiti0 da vida contemporanea que duas criancas, separadas por uma loucura da mae, depois de dormirem um instante no mesmo berco, cresijam em terras distantes, se eduquem, descrevam as parabolas remoias dos seus destinos — para qué? Para virem tornar a dormir juntas, no mesmo ponto, num leito de cbncubinagem! Nao era possivel. Tais coisas pertencem só aos livros, onde vém, como invencdes subtis da arte, para dar á alma humana um terror novo... Depois levantavaos olhos para a janela alumiada — onde o Sr. Guimaráes, deccrto, rebuscava os papéis na mala. Ali estava porém esse homem com a sua história — em que nao havia uma discordincia, por onde ela pudcsse ser abalada!... E pouco a pouco aquela luz viva, saida do alto, parecia ao Ega penetrar nessa intrincada desgraca, aclará-la toda, mostrar-lhc bem a lenta evolucao. Sim, tudo isso era provável no fundo! Essa crianga, filha de uma senhora que a levara consigo, cresce, é amante de um brasileiro, vem a Lisboa, habita Lisboa. Num bairro vizinho vive outro filho dessa mulher, por ela deixado, que cresceu, é um homem. Pela sua figura, o seu luxo, ele destaca nesta cidade provin-ciana e pelintra. Ela, por seu lado, loura, alta, espléndida, vestida pela Laferriěre, flor de uma civilizacao superior, faz relevo nesta multidao de mulheres miudinhas e morenas. Na pequenez da Baixa e do Aterro, onde todos se acotovelavam, os dois fatalmente se cruzam: c com o seu brilho pessoal, muito fatalmente se atraém! Há nada mais natural? Se ela fosse feia e trouxesse aos ombros uma confeqáo barata da loja da America, se ele fosse um mocinho encolhido de chapéu-coco, nunca se notariam e seguiriam diversamente nos seus destinos diversos. Assim, o conhecerem-se era certo, o amarem-seera provável... E um dia o Sr. Guimaráes passa, a verdade terrível estala! A porta do Hotel rangeu no escuro, o Sr. Guimaráes adiantou-se, de boné de seda na cabeca, com o embrulho na mao. — Nao podia dar com a chave da mala, desculpe Vossa Extelén-cia. É sempře assim quando há pressa... E aqui temos o famoso cofre! — Perfeitamente, perfeitamente... Era uma caixa que parecia de charutos e que o democrata cmlru-lhara num velho numero do Rappel. Ega meteu-a no bolso largo do ieu paletot: e imediatamente, como se qualquer outra pala vra entre i f[es fosse vá, estendeu a mao ao Sr. Guimaráes. Mas o outro insistiu £ifl o acompanhar até á esquina da Rua do Arsenal, apesar de estar de 1 boné- A noite, para quem vinha de Paris, tinha uma dócura orien- ,3i — e ele, com os seus hábitos de jornalista, nunca se deitava senao ; tarde, ás duas, trés horas da madrugada... E entao, caminhando devagar, com as maos nos bolsos e o charuto tntre os dentes, o Sr. Guimaráes voltou á política e ao sarau. A poesia joAlencar (de que esperara muito por causa do título A Democraciá), i saíra-lhe consideravelmente chocha. j — Muita flor, muita farófia, muita liberdade, mas nao havia ali - .jmataque em forma, duas ou trés boas estocadas nesta choldra da monarquia c da cořte... Pois nao é verdade? — Sim, com efeito... — murmurou Ega, olhando ao longe, na i esperanca de uma tipóia. | — E como os jornais republicanos que por aí há... Tudo uma jalhada, senhores, tudo uma balofice!... E o que eu lhes digo a i e[es: — «Ó almas do diabo, atacai as questoes sociais!» Felizmente um trem avancava, rolando devagar, ao lado do Ter- ' leiro do Paco. Ega, precipitadamente, deu um aperto de mao ao jcmocrata, desejou-lhe uma «boa viagem», atirou ao cocheiro a i éresse do Ramalhete. Mas o Sr. Guimaráes ainda se apoderou da portinhola — para aeonselhar ao Ega que fosse a Paris. Ap^a, que : tinham feito amizade, havia de o apresentar a toda aquela gente... E o Sr. Ega veria! Nao era cá a grande pose portuguesa, destes imbecis, destes pelintras a darem-se ares, torcendo os bigodes. Lá, na primeira ; ib{Io do mundo, tudo era alegria e fraternidade e espírito a rodos... ] — E a minha adresse, na redaccáo do Rappel/ Bem conhecida no aiundo! Em quanto ao embrulhozinho, fíco descansado... — Pode Vossa Excelěncia ficar descansado! — Criado de Vossa Excelěncia... Os meus cumprimentos a < Sr.'D. Maria! Na carruagem, através do Aterro, a ansiosa interrogagao do Ega a íi mesmo foi — «que hei-de fazer?» Que faria, Santo Deus, com aquele segredo terrível que possuía, de que só ele era senhor, agora : que o Guimaráes partia, desaparecia para sempře? E antevendo, com lerror. todas as angústias em que essa revelagao ia langar o homem íuemais cstimava no mundo a sua instintiva ideia foi guardar para 598 | 599