214 Álvaro do Carvalhal mao. Mas já que vim coxeando até aqui, coxearei um pouco mais. Permite, leitor. No meio da repentina escuridao o terror nao poupou nin-guém. Havia ali foragidos da Sierra Mořena; mas, quem lhes divi-sasse o rosto, veria que estavam descorados. Tornava-se irregular a respiracáo; os coracoes batiam opressos; e cada qual se cosia com a parede para que algum ferro mal dirigido lhe nao entrasse nas carries. A luta andava travada. De quando era quando um rugido de dor, um móvel quebrado, o baque dum corpo, uma jura, uma praga. Dos pes á cabeca dos conchegados grupos, subiam contrac-coes, como correntes magnéticas, provocadas pelo receio, pela impaciéncia, pela incerteza do que ia suceder. O ouvido estava atento, os olhos sequiosos de luz. Duraram segundos as asřlxiantes aperturas. Depois sentiu-se surdo rumor e um grito rouco. Ninguém respira. Abre-se de mansinho a porta, e sai tranquilamente um vulto. Sobre ele caíram os morticos revérberos dum candeeiro, que es-clarecia a rua. Os ébrios, que de tropei haviam corrido á porta, soltam uma exclamacao de espanto. Era Lorenzo del Giocondo. — Everardo! Everardo! Embalde o chamam. Caíra de brucos sobre a mesa da taverna com o punhal de Rosaura atravessado na garganta. OS CANIBAIS Coimbra, 2 de Mar^o de 1866. I Disse a critica pela boca de Boileau: Rien n'est beau que le vrai, e näo tardou que as fábulas, arabescos exóticos e exageros, oriundos principalmente dos tempos heróicos, perdessem toda a soberania dantes exercida na ampla esfera das boas-letras. Os Prometeus, os Hercules, os Teseus e as Esfinges, se nao desapareceram em pó, lancados aos quatro ventos, é porque era necessário que se conser-vassem os padroes que deviam guiar o filósofo através dos labirin-tos do passado. Por isso lá estao firmes ainda em seus pedestais de pedrarias, mas ofuscados pela luz brilhante que só vem da verdade. Todavia nao deixarei eu de confessar o amor, que sempře tive por contos de fadas, para que se näo estranhem algumas murmu-racoes, acaso fugitivas, no acto de me sacriřlcar äs exigéncias desta gera5Žo pretensiosa. Sacrifico-me. Mas, como nao sou dado a transcendéncias, pois abomino tanto a incognita dos matemáticos, como a Dulcineia dos Quixotes, abro sobre os joelhos uma crónica, que casualmente me veio a mao, e, aproveitando os cabedais da minha escolha, deixarei děste modo de ser constrangido a inventář, no que iria grande perigo de volver costas a verdade. O meu conto é amador do sangue azul; adora a aristocracia. E o leitor há-de peregrinar comigo pela alta sociedade; hei-de levá-lo a um ou dois bailes, e despertar-lhe o interesse com miste- T218 ÁtVARO DO CARVALHAL Os Canibais 219 rios, amores e ciúmes dos que se armazenam por esses romances de armar ao efeito. Ora ouca, que eu principio moldando-me pela velha costumeira: A abóbada azul do céu alumiava com milhoes de estrelas os coruchéús, obeliscos e arcadas da decrépita arquitectura da cida-de. Estava sereníssima a noite. Porém a atmosféra fazia lembrar os gelos da Siberia. Para contraste brotava na sala do baile uma primavera aberta e resplendente. A vertigem das valsas despargia alentos que se iam transformando em insánias de febre. Quern náo sabe o que é um baile? E todavia sinto-me tenia-do a descrevé-lo, sem desconhecer que nisso irá falta de modéstia, e trabalho verdadeiramente ocioso. Mil poetas, no exagero de aprimorados versos, těm sabido pintá-lo, sem omissao de algum dos matizes, que o abrilhantam. Melhor será, portanto, que o leitor veja a descricao do meu baile em qualquer poema artisticamente fantasioso, porque nisto de descricoes nao há sair do mesmo terrene Senao, aqui Ihe dou os tracos de um aligeirado esboco! Flores das mais odorantes em gigantescos jarroes de esmalta-da porcelana; a arte a revelar-se por toda a parte, na moldura dos espelhos, nos painéis, nos tectos dourados; emanacoes balsámicas a exalarem-se por esses recintos encantados; ao longe uma música voluptuosa, nao sei de que maestro inspirado; e, sobressaindo a tudo, pares animados de muita vida e muito amor, abandonando--se á efervescéncia das dancas, correndo agora numa iriada mis-tura de cores, para ligeiros se separarem logo debaixo dos olhos curiosos dos que se contentam em ver, esteiados com certo ar es-tudado ao mármore das colunatas, ou recostados nas voluptuosas otomanas. O sol majestoso dum formoso dia de verao náo se projecta mais radiante sobre as asas e sobre as pétalas, ricamente variegadas de mil borboletas e de mil flores, do que aqueles centenares de sóis artificiais, dardejados dos cristais reluzentes, sobre as vestes sumptuosas, que as damas arrastavam pelos aveludados tapetes. Como nas libacoes em honra do esperto Baco, em que sacer-dotes e sacerdotisas entram mornos, ou mesmo arrefecidos, para depois, ao empunharem a vigésima taca do licor fervente, deixa-rem rebrilhar os olhos e desgrenhar os cabelos no «évohé!» do entu-siasmo, assim no baile tinha a ebriedade dos prazeres despertado adormecidos sentimentos. Avultava contudo ali uma vista dessocegada e inquieta, que, sobretudo, feria alguns observadores, que nem curavam de ocul-tar o frenesi, que os assoberbava. Histórias do coracao por certo. Margarida é uma das mulheres fatais, que atraem irresistivel-mente. Solteira, homem, que por desgra^a a fitou, quer ser um Romeu; casada, náo faltariam Werthers, que rebentassem o cranio para Ihe merecer uma saudade. No cortejo brilhante náo faltava desde o primeiro titular, ao brasileiro sem títulos, coisa rara em sublunares regioes. Ela era o ídolo acatado de todos os crentes. Mas para que estará no baile táo triste e distraida? Pousa me-lancolicamente a cabeca no ombro do par, e nem Ihe percebe as palavras amorosas, naquela reverie feminil, que é para o homem, que ama, um inferno de torturas. Soam onze horas. Ela treme, e relanceia pela ultima vez os olhos para a porta da entrada. Depois, desfalecida, desprende um suspiro, e deixa-se arrastar como insensivel no revolutear das mazurcas. Por este tempo, numa sala apartada, fumavam dois cavalhei-ros. Um apoiava-se com esquisito dandismo no friso de um íbgáo, rematado em floróes caprichosos; o outro, prostrado numa cadei- 220 Álvaro do Carvalhal Os Canibais 221 ra, e com as pernas comodamente cruzacias em frente das brasas vivas. Alimentavam diálogo medido e monótono. — Tenho esperancas, dizia com certo orgulho o que se con-servuva de pé, puxando das nascentes guias do bigode. — Vaidade, D. Joao! retorquia o outro. Sou veterano nessas campanhas. Glorio-me de ter fasgado com esta mao véus do mais sagrado pudor; e contudo Margarida... — Margarida é mulher. — Pois sim, mas quern te assegura a vitória? — Tudo; responde o denominado D. Joao, um tanto ofen-dido pela dúvida do interlocutor. Pequenos favores concedidos, um volver de olhos... — IlusÓes do amor-próprio. Olha, poděs dar-me crédito, a taca da ambrosia, que apaga sedes de amor, nao há-de ela levar-ta aos lábios. Margarida é das poucas mulheres, que těm só um co-racao, para ser dado uma vez só. — Donde te vem tanta sabedoria acerca da mulher? — Quando me náo sobrasse experiéncia propria, tinha aí Balzac. — Ah! e sorriu desdenhoso. Ainda assim, continuou: posso eu obter... — O que é doutro, decerto que náo. — Entáo Margarida... —-Ama. — A ti, baráo? — Nao, por minha miséria. — Pois a quem? — Ao visconde de... Interrompeu-o uma voz, que anunciava: — O senhor visconde de Aveleda! Os dois amigos estremeceram e precipitaram-se para a porta. A danca interrompera-se. Os cavalheiros agrupavam-se ä entrada do saläo. As damas ficaram turbadas e indecisas. Margarida virou o rosto jubiloso para um espelho, e, contente de si, abandonou-se sobre as almofadas duma otomana, escondendo por detrás do leque o rosto purpureado. Que será? Corrido um reposteiro, viu-se despontar no limiar da porta um hörnern estranho. Era desses homens que se nao descrevem e que devem de ser o desespero dos Van Dyck e dos Ticianos. Tanto poderíamos dar-lhe trinta, como quarenta anos de idade. Subia na estatura acima do regulär; e no rosto pálido, mais simpático pela barba negra, curta e fina, que o moldurava, deixava adivinhar uma longa peregrinacao de amarguras. Era a perfeita realizacao dum tipo ideal e misterioso, como os concebia Byron. E misteriosa era a história da sua vida. Dos mil extravagantes boatos, que corriam como para lhe alimentär o prestígio, só se sabia ao certo que viera da America, e que era benquisto dos doutos e dos sensatos. Avancou pausado e grave pelo meio da multidäo fascinada. Mas naquele movimento notava-se um esforco dissimulado; pare-cia um movimento mecánico, automático. E seus passos soavam no pavimento, a despeito dos finos tapetes, com extraordinário ruído. O impetuoso D. Joao, o moco apaixonado, que o leitor acaba de conhecer, fixava-o de olhar ardente. Tinha diante de si o hörnern que soubera arrancar-lhe a mais querida das suas esperancas. Passou-lhe na mentě um lampejo de raiva: aventurou-se a rocar por ele, indiscreto e temerário. Mas naqueles membros pa-receu-lhe encontrar, pelo tacto, a inércia do granito. Fixou-o mais, e recuou repassado de um irresistível pánico. Julgara ver a estdtua irónica do comendador. Álvaro do Carvalhai II Uma história qualquer, que se extraiu duma crónica, deve ter necessariamente em vista, ou a propagacao de acontecimentos memoráveis perdidos na variedade de muitos factos, ou a mani-festacao característica dos costumes dum povo numa época mar-cada. Colocar o facto no local, que lhe é próprio, é sem dúvida a primeira obrigacäo, que em ambos os casos compete ao narra-dor. Näo o desconheco. Porém de melhor grado me sujeitara eu ao rabujar da crítica, do que a fixar a accao do meu conto neste ou naquele pais, visto ignorar a qual pertenca, por uma omissäo desgracada no importante manuscrito que tenho ao lado. Amo a fidelidade. E nessas simples palavras deixo a explica-cäo da minha abstinencia no emprego de cores locais. Contudo, tornava-se preciso que a cena se passasse em algu-ma parte. Reflecti, com a madureza, que o caso pedia, e por rim, venci-do da necessidade, quase me resolvi a levar os meus heróis para o Japäo, onde qualquer sombra do extraordinário seria menos nota-da por sobrenatural; pois, quanto mais ao longe se véem as coisas, tanto mais elas avultam, medidas pela imaginacäo, pródiga ordi-nariamente em ouropéis e garridices de todos os feitios. Demais, o abuso que por esse lado fizesse da boa-fé do leitor, näo conseguiria empalidecer o merecimento ä obra, porque sem ser patente nela o cunho dos estudos trabalhados, que abrem as portas das academi-as, lá lhe ficava a parte moral digna de se germanar a esses contos, luxo da infáncia, justamente denominados — tesouro de meninos. Oscilava neste piano quando me veio desviar do intento a lembranca desastrada de que vivemos em tempos civilizados, tempos em que Antonio José cedeu lugar ä alta comédia, no periodo áureo da circunspecta casaca e do chapéu alto. Os Canibais 223 Mal me serviria portanto o Japao. Filho da época, irei com ela. Fora mesmo atentado buscar modelo nos grotescos desasados do velho Portugal, quanto mais retroceder a ponto de me valer das roupagens cómicas dos japoneses. Enfim, quebro o fio äs divagacöes para me devotar ä história, que o merece. Escolha o leitor a capricho o local da accäo, que dai lavo eu minhas mäos, contanto que se näo ausente do pais em que sej am lidos Dumas e Kock, e onde abundem seminários, escándalos e sotainas. Suponha o baile — se lhe apraz, mesmo por comodidade ou propriedade — suponha-o em Lisboa, na faustosa habitacao duma Ninon de Lenclos contemporánea. Lá deixámos o vulto simpático do visconde de Aveleda, perturbando a harmónia da festa com a surpresa da sua aparicäo. Agora vamos encontrá-lo no meio do luxuoso bulício, oprimido de profunda melancolia; me-lancolia essa que parecia reflectir-se em todos os semblantes, como se o dele fosse um espelho animado. Tal era a vaga expressäo das nobres feicoes do visconde, que deixava perceber o quer que fosse de semelhante äs forcas atractivas e repulsivas do magnetismo. As damas sentiam-se fascinadas, os elegantes receosos e agastados, desse agastamento — antes mau humor •— que provém da humi-lhacäo; porque os humilhava a simples presenca daquele hörnern, que no dizer deles mais era um mito que outra coisa. Pouco se lhe dava ao visconde do efeito que produžia. Näo se erguera ainda da cadeira em que se havia deixado cair, e, afora algumas palavras delicadas, ou gestos a que o obrigava a cortesia, di-io-iam insensível estátua. — Falaste-lhe? perguntava Margarida com vivo interesse, de-signando-o a uma sua amiga, a quem saíra ao encontro. — Agora mesmo. ■—- Entao? 224 Álvaro do Carvalhal Os Canibais -225 — Ai, menina! Näo sei dizer-te o que sinto. Nunca encon-trei hörnern assim. Se soubesses como a expressao corria suave daqueles lábios, como o seu sorriso era triste... Näo me enganas-te: seio de mulher nao pode sem estremecer. Cortou-lhe a palavra um beijo afectuoso. Margarida näo pu-dera ouvir mais. Estava pálida, tremiam-lhe os lábios, e no seio ofegante sentia que lbe rebentavam paixoes desconhecidas. Deve de estar assim a mulher que, sem hesitar, desfolha as flores res-cendentes da virgindade aos pes do eleito do seu coracao. Caíra em langoroso desfalecimento, pregando os olhos negros, apaixo-nados, com que a natureza faz perigosas as mulheres do meio-dia, num ponto incerto, que ela nao divisava, porque andava longe, na morada das formosas quimeras. A orquestra comecava uma valsa. Margarida, a ardénte ama-dora das valsas, recusava desta vez a cintura delicada ao contacto libidinoso de mao masculina. E como nao? Junto ao visconde de Aveleda vira um lugar sem dono. O seu único pensamento fora apossar-se dele, esquecendo — ela täo cautelosa! —- que fran-queava passagem a eterna maledicéncia. Do pensamento ä realizacao näo decorreu um momento. Foram breves as palavras, que trocou com o visconde; porém, tais coisas disseram, que ficaram momentos — ele enlevado, ela comovida. — Sabe, visconde, diz ela afinal para quebrar o siléncio, que se tornava embaracoso, sabe que nos magoa a todos a sua triste-za? Porque está tao triste? — Näo é minha a culpa, minha senhora. Dera muito a quem me ensinasse a fingir alegrias que näo tenho. — Respeito os seus pesares. Mas creia que me sinto magoa-da se os eonsidero. — E poderei saber porqué? — Porque, vendo-o cercado de quanto é capaz de felicidade... — Um pouco de luxo aparente serve äs vezeš para ocultar a miséria. Admira-se de que haja risos, que escondam lágrimas? Pois há. — Punge-me essa desgraca que pressinto. — Näo me lastimo, Sr.a D. Margarida. — Nem eu o lastimo. Mas sofre, näo é verdade? Eu nao sou indiferente a sofrimentos alheios. Duvida? — Decerto. Pois para que me dá veneno nessa mäo formosa e branca como a inocéncia? — Eu?! ' —Vv Ex.a. Vejo-lhe o mel nos lábios e o travor do absinto, consinta-me que o diga, na voz angélica, no gesto, na formosura. — Haverá lisonjas nas suas palavras, haverá, mas näo sem muita irónia. Será tal a minha infelicidade, que até com a própria presenca Ihe agrave essa tristeza, essas dores? -—Faz mais que agravar. — Mais ainda?... — Se faz! Imagine V Ex.a um viajante sufocado peío calor, morrendo enfraquecido ä sede junto ä margem duma torrente, que ele nao pode tocar, e diga-me, se avalia a aŕlicäo do desgraca-do, como hei-de eu fitá-la, ouvir-lhe a linguagem celeste, sem que se me desila o coracao em lágrimas, sem que compare o que sou com o que ŕui e com o que podia ser? — Näo o compreendi talvez. Mas, meu amigo, o viajante do seu enigma nao séria täo desgra9ado que perdesse todas as espe-rancas no laňce difícil era que o coloca. E quando há esperanca, ainda näo é completa a... -— Esperanca! Eu supunha-o perdido num deserto. — Ainda assim podia valer-lhe a fé. A torrente poderia dei-xar o antigo leito para Ihe dar far tura de água. Álvaro do Carvalhal .-— Como? — Por um milagre da Providéncia. —V. Ex.a cré na Providéncia? Por mim cansei tanto a vista a procurá-la, que uma vez acordei cego. Como hei-de vé-la?... — Cego! diz Margarida, aproveitando-se graciosamente do equivoco, cego com os seus olhos!... — Antes os näo tivesse; porque sem a ver, Margarida, näo veria como o céu é longe da terra, o impossível entre nós ambos. Compreende-me agora? Margarida, vermelha de surpreendida, näo venceu a perturba-cao. Estava pálida e ansiada. Depois que recuperou alento, murmu-rou com aquele acento melodioso e trémulo, expressao de verdade e inocéncia, só sabido da mulher apaixonada: — Pois ainda näo adivinhou? É preciso que os lábios digam tudo o que se sente? Um sorriso amargo, doloroso, pungente, enerespou os lábios descorados do visconde. Margarida arquejava. '— De que servem, continua ela, de que servem certos enigmas, que inventa quando me fala, como se quisesse martirizar-me? Depende de mim a sua felicidade? Venha recebé-la, que é toda sua. Nao imagine entäo distäncias, nem dificuldades, que eu tenho co-ragem para me mostrar ao clarao dessas luzes, em frente de quan-tos aí tém lábios para o sarcasmo, ainda que o rubor haja de me queimar as faces, para dizer — aqui me tem, pertenco-lhe. —: Impossível. — Impossível! — O cego adivinha as maravilhas da natureza e adora-as, mas sem poder contemplá-las. Eu sou como o cego, Margarida; adoro-a, sem poder mais nada. — Quer matar-me? — Quero-lhe muito para a deixar numa vida de quimeras. Os Canibais 22y -— Entao que quimeras säo?.. Fale. Nao vé que estou aflita? — Resume-se tudo numa palavra, que teria a gravidade da situacao, se näo fosse consagrada pelo abuso ao desenlace de coli-sóes romanescas. Essa palavra é... — Diga-a. — Mistério. III Eu bem sei que um diálogo puramente dramático, semeado de interjeicóes e palavras grandes, mal se pode coadunar com a realidade da comédia humana. Náo foi sem grande dor de alma que coloquei o sibilino visconde em frente de Margarida, exposto ao rir palerma. dos que náo sabem nada do coracao e da sua lingua-gem, linguagem fantasiosa, que muitas vezeš desdenha o presente para ir colorir-se nas eras aventurosas em que a castelá aparecia, visao aérea, por entre os tufos floridos, que lhe enfeitavam o bal-cao, para ouvir á luz das estrelas as cancoes plangentes do trova-dor enamorado; eras, as mais sublimemente poéticas, que těm vindo. Senao, que o digam as mil novelas que por aí tresvariam a mocidade. Nao sei realmente a pena em que incorreram os prota-gonistas desta verídica história, como cada um cháma as suas imaginacóes, por irem, entre os prazeres celestiais dum baile, alargar asas a conversacóes das que só se alimentam declamando. Náo sei. Pode ser que fiquem para sempře afogados na alvar gar-galhada publica, táo inconsciente de ordinário como injuriosa. Se isto suceder é sobre um facto sucedido que deve cair o anátema. Por mim sou simples narrador. Tal calor e vivácidade desenvolvera o diálogo em Margarida e no visconde, que, esquecidos de quantos os cercavam, perderam 228 Á-lvaro do CaRVALHAL Os Canibais 229 de vista o mundo dos mortals. Já em excesso agucavam a curiosi-dade geral. Näo foi sem perturbacao que Margarida o reconhe-ceu. Mas, em lances destes, que inocente mulher näo sabe um subterfúgio? Foi com simulada alegria que ela estendeu a mao delicada a urna bela senhora, que se lhe avizinhara casualmente. Era a dona da casa. Suplico-lhe, minha senhora, exclama Margarida, verme-lha como uma roma, suplico-lhe que me ajude a convencer este cavalheiro. Há muito que estou a teimar com ele para que nos recite alguma daquelas adoráveis poesias, que nós lhe conhecemos. Aos rogos de V. Ex.a sei eu que náo há-de resistir. — Oh minha senhora!... acode o visconde, surpreendido da lembranca providente de Margarida. Quis valer-se de modesta esquivanca, mas neste tempo eram várias as vozes que o instigavam a recitar. Curvou a cabeca ven-cido. Formou-se repentino siléncio. As damas e os elegantes tinham-se confundido em mostras de pro í u n d o interesse. Todavia por detrás dum reposteiro, pódia um observador atento divisar um rosto de mancebo, cujos olhos esgazeados pare-ciam a espacos ŕuzilar relámpagos. Era D. Joao. Se isto, que para aqui escrevo, fosse um romance, havia de ele (D. Joäo) apertar com a dextra febril o cabo de ouro dum luzente punhal. Porém näo enodoemos a história. Mandemos o punhal para o velho tea-tro ou para a floresta erma. Era vistoso o quadro. O jorrar luminoso dos candelabros, re-flectido nos espelhos; nos painéis heráldicos; nas cabecas toucadas de rosas já emurchecidas; na carnadura rosada dos seios desvela-dos, ofegantes de cansa9o; o rosto nobre do visconde inundado dé luz; os grupos; as posicóes; tudo isto apresentava um aspecto muito ao paladar do desejo. E a voz do visconde ergueu-se do meio daquele siléncio, como voz de inspirado. Tinha nos olhos o sacro fulgor da sibila, e suas palavras eram devotamente escutadas como se fossem um oráculo. Eco! era o títuío da poesia. Partilhava do vigor da ode, do li-rismo terno do idílio, e da funda tristeza da elégia; porém, com tal arte, tal harmonia, que nao passava uma nota, que nao fosse certeira ao coracao. Todo o pensamento da poesia era tirado da metamorfose da desventurada ninfa. Ela a ver e a sentir que as formas delicadas lhe vao ganhando pouco a pouco as curvas broncas dum rochedo informe; e a sentir ainda o coracäo inflamado a pular-lhe lá dentro no seio de grani-to, com todas as paixóes e ardores do seu viver de anelos, fervente de luxúria; e o rochedo a engrossar, a engrossar... Eis o pensamento. Ouro mais fino, mais de lei, nunca o extraiu poeta dos veios explorados. Quando acabou a pen ultima estrofe, que pare-cia arrastar-lhe de envolta parte da propria alma, nao havia faces, que näo estivessem molhadas de lágrimas. Aquela voz impregnada de melancolia terna, aqueles formo-sos versos — que o eram — coavam, em cada peito, comofoes indefinidas, suavissimos venenos. Dir-se-ia que o visconde pranteava as próprias desgracas. Os versos traziam como que o selo da tremenda experiéncia. Margarida estava pálida como as camélias, que lhe desmaia-vam ao contacto do seio virginal. Escutou até ao fim sem res-pirar. Depois desapareceu por entre os grupos assombrados, e, apenas longe do bulício, desátou em solu^os, escondendo o rosto nas m aos. j Álvaro do Carvalhal A minha miopia burguesa nao lhe vé razao para tais extre-mos; mas, enfim, a verdade é lei duma só interpretacao. Tenho aqui a crónica que é de reconhecida autenticidade. Quando a donzela (como lhe chamaria qualquer cavalheiro-so romancista) voltou ao salao, já lá nao estava o visconde. Consternada, nao hesitou em interrogar uma sua amiga acerca de tao inesperada auséncia. Se porém foi breve a pergunta, nao lhe deveu nada a resposta, traduzida num riso cheio de mali-cia, e num gesto, que designava a saída para os jardins. Vinha proximo o alvor da madrugada. Estavam já abertas as janelas. Margarida vagueava no jardim de canteiro em canteiro, de gruta em gruta. Poderiam vé-la passar por entre o arvoredo e de-saparecer na sombra como um Undo fantasma, mas o que nin-guém decerto conseguiria era ouvir-lhe o suspirar comprimido. Estava na hora funesta, em que a mulher mais pura inveja o tála-mo das Messalinas. Bern via o precipício através das flores, que o encobriam, mas adorava-o. Na sombra, que uma das muitas árvores formava com os es-galhos espessos e descarnados, onde esvoacavam algumas aves saudosas da alvorada, foi deparar com o pensativo visconde. E, sentada sem receio ao lado dele no ermo daquele lugar, jurou consigo, crente no subido preco de suas seducoes, que havia de ler na alma daquele homem os segredos, que ele com tantO rebuco ocultava. —— Eu também amo, diz ela, este crepusculo vago, que precede a manha. A imaginacao arrouba-se mais viva, e vé em cada ob-jecto uma forma agigantada e indefinida. E este indefinido nao sei que alvorocos me desperta, com que suave aspiracáo me enle-vao espirito... Diga: nao sente isto mesmo? — Bern conheco esse enlevo de que me fala, minha senhora. Os Canibais 231 — Nem podia deixar de ser. Alguma voz íntima me diz bai-xinho que toda a alma tem uma irma, uma irmá gémea no sentir, nopensar... Será certo? — Que sei eu? Estou longe da abjeccáo do céptico, e, contu-do, duvido. — Na desgraca... cré. — Essa vejo-a, apalpo-a em cada membro do meu corpo. — Também duvida de mim?... — V. Ex.a! Pobre menina! Tem vicosas todas as ilusóes. En-contra atractivos neste mundo, porque só o viu por uma face, pela única prazenteira face. Julga V. Ex.a que se corteja aí a virtu-de, a grandeza da alma, a elevacao do espírito? Engana-se. O em-buste, a simples aparéncia é tudo; e a suprema desgraca da minha vida está nessas palavras. Tenho um coracao ardente para o amor, e uma cabeca para o compreender; mas nem uma mulher, nem uma só, poderá encóntrar em meus bracos carinhos de esposo, porque sao de barro quebradico ou táo doce, que facilmente se enquadra em todos os moldes. — Quando acabará essa linguagem de enigmas? Disse que tinha coracao para o amor. É entáo certo que ama? — Do fundo da alma. — E haverá mulher tao forte, ou tao abatida, que possa re-sistir-lhe? Deixe-me duvidar. — E porque V. Ex.a nao prevé que esta fidalguia, que me en-contra talvez no aspecto, pode abrigar um flibusteiro indigno. Quero mesmo deixar-me cegar pela vaidade para. crer que sou amado. Nao podia abrigar-se debaixo děste trajo o corpo corroí-do dum leproso? Nao poderiam lavrar aí cancros, gangrena e peste? Suponha; e veja que noite a do noivado para uma menina, verdadeira sensitiva em flor,.. Terminou com uma gargalhada alvar. Margarida teve medo. 232 Álvaro do Carvalhal Os Canibais 233 Donde concluo, aqui entre paréntesis, que o sistema nervoso das senhoras é mais melindroso do que o do leitor, que, certa-mente, nao vé motivos de susto. Possa a descoberta ser de provei-to ä ciéncia. — Nao julgue pela aparéncia, minha senhora, continuou o visconde com afabilidade. — Oh! Pressinto, náo duvide, pressinto que nao sou uma mulher vulgar, diz Margarida com orgulho. — Adivinhei-o. E como me consola ouvir-lho! Pois bem, consinta-me uma pergunta estranha, e mesmo original: se eu fosse um cadáver frio e inerte, animado por qualquer engenhoso mecanismo, embora me pulsasse no corpo morto um coracáo com vida, poderia V. Ex.a abracar-me sem repugnáncia? Quereria descansar a fronte no seio de um cadáver? — Que extravagáncia! Pois olhe, Aveleda, ä estranheza da pergunta vou eu dar uma resposta, que vale pelo menos outro tanto; e Deus sabe que nao minto. Margarida animava-se prosse-guindo: seja o leito nupcial no cemitério, que lá mesmo o aceito, lá mesmo o apeteco. Repare que nao corei. Se me třeme a voz é ao peso da verdade. Eu näo exagero. Quern sabe o que é o amor, sabe que nao exagero. O rosto do visconde iluminou-se de irradiante alegria. Bal-buciando, pode exclamar apenas: — Margarida, minha Margarida! E pousou os lábios reluzentes no seio seminu da donzela, que, söfrega, pagou a ousadia com outro beijo, em que se lhe foi esmorecida parte da existéncia. Depois, o feliz visconde embrenhou-se por entre as árvores com aquele caminhar medido do esqueleto das lendas populäres. Margarida ficou como que desfalecida; com o toucado des-feito, trancas desatadas e a cabeca pendente para as espáduas hu-medecidas pelo orvalho da manha. Di-la-iam sonho feiticeiro de imaginacao oriental. D. Joao ergueu-se entao em frente dela como obedecendo á evocacao satánica dum mago! IV ; . ■ Eu lhe digo, leitor: Acostado tragičamente ao resguardo dum tanque, que estava ali perto de Margarida, tinha surgido de repente um vulto de mancebo, como obedecendo ä evocacao satánica dum mago. Digo «tinha» porque o caso passara-se no pino do inverno, e, agora, já as amendoeiras comecavam a toucar-se das flores da primavera. Pelo trajo do mancebo, e pela postura pretensiosa e frívola, era fácil reconhecer D. Joao. — Perdao, minha senhora, havia ele exclamado numa into-nacäo fatal, perdäo por ousar importuná-la. Nao pude resistir ä tentacáo de vir eu mesmo lavrar o diploma da minha infámia, declarando-lhe que assisti, escondido, a tudo o que aqui se pas-sou; e só para me deliciar agora na sua vergonha. O seu amante, senhora D. Margarida... — Sr. D. Joao!... — Descanse. Sou muito generoso para sacudir injúrias sobre um rival ausente. Para eu ser discreto bastava-me a esperanca de que ao menos V. Ex.a transmitirá ao visconde de Aveleda esse mau pensamento em que ando. Diga-lhe, minha senhora, que me consomem desejos de experimentar se uma bala sabe abrir passagem através dum cranio. Um terceiro em cena teria rido talvez da teatresca farfalhada. Margarida emudeceu aterrada. Álvaro do Carvalhal Os primeiros raios de sol, frouxamente purpureados, caíram neste momento na face do mancebo, voltada ao oriente. Aos olhos dela, toldados por tantas comocöes juntas, pareceram laivos de sangue. Fugiu espavorida. Como é pois que D. Joao vai encontrar acolhimento no fes-tim do nosso visconde? E, de mais a mais, no espléndido festim do noivado? Aí está o que admira ao leitor sisudo, e a mim conjuntamente. O carácter do visconde explica o facto. Conhecia a mocida-de, que nasceu no fausto embalada por altas tradicôes de família para, ao despontar da adolescencia, comecar de correr aventuras por botequins e lupanares até cair adormecida de cansaco sobre páginas de perigosas novelas, e supunha-a para tao pouco que, in-diferente ä ameaca, recebeu D. Joao, como dantes, com as manei-ras simpáticas em que era pródigo. Quem sabe se fez mal! O certo e que o festim corria esplendoroso. Margarida, como näo estaria ela! Tinha em roda de si isso que se diz — a gema da melhor sociedade; as suas melhores amigas; seu velho e venturoso pai; e seus do is irmaos: um, que se havia lancado nos escabrosos caminhos da magistratura; outro, nas várzeas paludosas do peraltismo; e sobretudo tinha junto de si o esposo querido da sua alma. Que mais longe podem ir as ambicöes mundanas? Parece todavia mais desmaiada e pensativa. Doce cismar deve ser o dela. Cismar interpretado só — cuido eu — em véspe-ra de bodas pelas felizes meninas a quem a sorte deparou um noivo de formas vigorosamente arredondadas, boca vermelha, dentes brancos e olhos sensuais. Nós, os homens, somos ímpios em excesso para nos ser dado requentar a imaginativa ao fogo sacrossanto, nutrido por aquelas castíssimas vestais. Os Canibais —t-?c- Ora o que se notava ali era como que um perfume do oriente, rescendendo de todo aquele luxo, o menos europeu possível. Avultava também näo sei que desalinho, que fazia recordar con-fusamente a efeminada Roma, a escrava luxuriosa dos imperado-res. Petrónio nunca imaginara camilhas ou poltronas que mais provocassem paixôes da carne; nem Voltaire serviu no Eldorado täo deliciosos acepipes. Baixela daquele prečo, digo-o desafronta-do, näo circulou ainda em mesa de rei, nem mesmo talvez em orgia de pontínce. O gosto e a opuléncia de Lúculo perderam-se naquela imen-sidade de mitológicas ostentacóes. Em duas grandes urnas de metal precioso ardiam gomas aromáticas trazidas da Arabia, que tornavam embriagante a morna atmosféra. Cada civilizacao viera depor o seu tributo. Pelas inúmeras portas, abertas de par em par, que dávam para os jardins, viam os alegres convivas alguma coisa de surpre-endente. Monstros colossais de bronze, colocados em pedestais de már-more, lancavam das largas fauces golfadas de água pura numa vasta represa, toldada de muitas aves aquáticas. E, por cima da coma vicosa das laranjeiras e das acácias ŕlorentes divisava-se ao longe, no ocidente, mar imenso de labaredas, que, reflectidas, tingiam ao de leve a superfície límpida das águas com a tibia cor do sol poente. Chegara o festim ao ponto em que o amor do tom familiar, para o qual tendemos tarito nós, os portugueses, atropelando o código das etiquetas mais frívolas, tinha agrupado, e, por assim dizer, germanado as diferentes jerarquias que estavam ali repre-sentadas por homens e mulheres, entaladas em espartilhos, velu-dos, caxemiras, sedas e gazes. 236 Álvaro do Carvalhal Os Canibais 237 _Porque será, perguntava uma senhora a sua vizinha, por- que será que o visconde de Aveleda está hoje, num dia como o de hoje, mais tadturno ainda do que nos outros dias? Queria que me dissessem. — Já reparei, respondia a interrogada. O que eu desejava saber, sobretudo, é que originalidade é.aquela de vir sentar-se á mesa com as maos escondidas nas luvas. — Diz-se que nunca fora visto sem luvas. — É um homem bem extravagante. — E bem simpático, näo é? — Sem dúvidä. Ainda assim, havia de ter-lhe medo se acre-ditasse em nigromantes. Näo sei que ar de encantamento se res-pira em sua casa!... Säo distraídas por elegantes brindes aos noivos. Também D. Joäo se levantou com o copo de ouro na mäo. Calou-se tudo. Ninguém desconhecia o génio estouvado do mancebo, nem o amor a Margarida e o ódio ao visconde, senti-mentos que ele alardeava por toda a parte. Daí'veio'a surpresa geral, seguida do temor de alguma imprudéncia, acaso provocada pelos anos e pelo vinho. O baräo, aquele baräo que o leitor co-nheceu no baile, embalde se fatigou para o constranger a ficar quedo no seu lugar. Era tarde. D. Joäo exelama com voz ligeiramente trémula: —- Chegou-me a vez de queimar também um grao de incen-so no turíbulo santo da amizade. Gonsidero-me feliz. E muito mais porque, esgotando o meu copo, esqueco a costumeira de fazer votos pela perpetua felicidade do ditoso par, que aqui feste-jamos, para ir mais longe; para lhe profetizar urna longa série de júbilos e alegrias, iguais äs minhas alegrias de hoje. Saúdo-os com a resignacäo com que nos cirčos da ensanguentada Roma saudava César o cristäo votado äs feras. Sentou-se, acolhido de frio siléneio. Só os desposados se incli-naram agradecendo, sem que a irónia Ihes passasse desapercebida. — Ai estäo palavras que me parecem de mau agouro, mur-muravam algumas vozes, ao tempo que D. Joao, pousando sobre a mesa o copo vazio, dizia ao ouvido do baräo: — Encontrei-lhe o travor do absinto. — Näo se desvaneceu ainda esse fumo?... pergunta o baräo. — Adoro-a como nunca. — Desgracado. ■—— Há-de falar-se de mim amanhä. O meu amor é como o dos tigres, que, äs vezes, se tém fome, devoram. O baräo näo conteve uma gargalhada com que interrom-peu o amigo. — Oh, Baco! entoa ele na forca da hilaridade. Meia hora mais tarde abriam-se as portas do salao. Ia come-car o baile. D. Joäo, viram-no sair para o jardim, mas ninguém o viu voltar. Algum projecto meditava. Näo queiramos porém devassar o que se passa no íntimo dos outros. Nada temos com isso, em que pese, conforme diria um bem-falante, aos Torquemadas mo-dernos, que ainda os há em multiplieadas e furiosas catervas. O baile nao se desereve. Em tempos menos cultos séria tido na conta de milagre; e o visconde nem com água benta alcaň5aria esconjurar a sabida canonizacao. A meia-noite estava o salao deserto. E Margarida, derraman-do 1 ágrimas de pudica... de inefável docura, abracou seu velho pai e seus irmäos, que logo se retiraram aos aposentos, que lhes estavam destinados. Ao transpor o limiar do seu encantado aposento, Margarida estremeceu, dando com os olhos tímidos nos brancos cortinados de fina seda com grandes bordaduras de ouro puríssimo, que vela- Álvaro do Carvalhai vam o misterioso tálamo. Através das janelas abertas viu a lua no céu, infalível em tais casos, e viu também a folhagem compacta do laranjal, rescendente ao sopro ligeiro da embalsamada viracäo. Coracao de virgem, na primeira noite de amor, enlanguesce por forca, preso de encantadoras vertigens, em presenca destas se-ducóes, aumentadas pela vaga harmonia das esferas, que até essa se percebe entao, seja ditoem prosa. Mas onde está o esposo idolatrado, que nao vem cair-lhe aos pés? Caso estranho! O visconde, no rundo da cámara, inclinado no recosto duma poltrona, permanece imóvel a curta dištancia dum enorme fogao de estrutura particular, firmado num piano um pouco inferior ao pavimento. O fogao contém um brasido imenso, que lhe esparge no rosto sinistro um claräo avermelhado. Quem o visse a essa hora e em tal posicäo julgaria ver ressuscita-do algum dos alquimistas da Idade Média, para continuar so-nhando na transmutacao dos metais, ou no elixir da vida. Margarida adianta-se com timidez. — Henrique? murmura ela. O visconde fica imóvel. — Henrique, meu Henrique? continua. Porque me näo res-pondes? — Estava a pensar, Margarida. — Pode saber-se em que, sr. pensador? torna ela um tanto ferida no seu orgulho de mulher formosa. — Gonheces a história de Hero e Learidro? — Li-a em pequena. Bern me lembro. Mas, que pergunta!... — É que eu estava a encontrar paridade entre aquela história infeliz e a nossa história, Margarida. — Seriamente? Onde está entao a tempestade que nos há-de destruir num instante todas as nossas venturas?... Oh, Henrique! — Os Canibais 239 — A diferenca está em termos entre nós uma sepultura aber-ta em vez dum simples estreito. Feliz eu, se tivesse só a lutar com as tempestades do Helesponto! Pobre inocente, que as nao ves mais coléricas a estalarem-nos sobre a cabeca. — Jesus! Assustas-me. Que coisa no mundo pode opor-se ao nosso amor, pode vir separar-nos? — Olha, diz o visconde designando sobre um bufete uma garrafa de cristal, cheia de ácido prússico, uma só colher daquele veneno mata em menos de trés minutos. V Os vinhos extraidos das uvas sazonadas nos luxuriosos vi-nhedos de Quios e das margens pitorescas do Reno, a par dos de-liciosos vinhos do Porto, Xerez e Madeira, deslizando nos copos; as pedrarias serpejando nos seios alabastrinos das mulheres; as nuvens olorosas derramadas pelos recortados tectos; as sedes de amor inflamadas por olhos humedecidos ao volitar pecaminosos e turbidos desejos; a alegria da formosa donzela, que, tremula de ansiedade, espera o momento em que possa revolver-se delirante nos bracos do homem que soube vence-la; toda essa harmonica variedade, que poderia realizar as celestiais aspiracoes dum bom maometano, ateou no espirito conturbado de D. Joao quanto de extravagante pode conter um pesadelo.em noites de febre. Correndo de taca em taca em borbotoes de espuma, feria--lhe o vinho espumante a vista incerta, como se fora espadanar de sangue. E bebia, bebia sofrego, incansavel. Mas quanto mais bebia, mais crescia a sede. 240 Álvaro do Carvalhal Os Canibais 241 Margarida! era o nome que de continuo lhe perpassava na mente enferma, era o nome que lhe contraia os labios e que a garganta enrouquecida nao ousava desprender. Negros e repetidos pensamentos nasciam, atropelavam-se, lutavam no interior daquele cranio, por debaixo dos compridos cabelos loiros, que, frouxos, lhe pendiam sobre os ombros como abundantes flocos de seda. Foi nesse tempestuoso deliramento que ele deixou a mesa do banquete para, cambaleante, ir mitigar a febre nas flacidas moitas dos jardins. Ia receoso da multidao. Cuidava que todos os olhos lhe sole-travam nos dele os lugubres pensamentos de sua alma. Queria ver-se so, que lhe nao envenenassem viboras mundanas as lagri-mas represadas. Era um excelente rapaz este D. Joao. Generoso e amante nao o havia mais. Tisnara-lhe porem o halito quente da sociedade as mais belas flores de sua leal natureza. E nao se tome isto como fastidioso monologo de macudo moralizador. A sociedade, sim, senhores, foi a sociedade, que estio-lou com suas evaporacoes calidas a delicada eflorescencia daquela bela alma. Viu-o rico, galhardo, franco e perdulario, e abriu-lhe os seios fetidos, e prostituiu-se as paixoes do moco milionario. O dinheiro escorregava-lhe por entre os dedos sobre as mesas alcoolizadas dos cafes, sobre o Icito enxovalhado das perdidas, sobre o empoeirado labirinto do disturbio; e os folhetinistas ga-lantes, os futeis da moda, alguns homens de estudo mesmo, aplaudiam cupidos, lisonjeando-lhe os vicios. O prostibulo, voragem que a lei sanciona, foi a arena borri-fada com o vinho de suas primeiras proezas. Cansado enfim de se estorcer na crapula, no humido chao do lupanar, volveu os des-pertados apetites para a recatada burguesia. Se lhe resistia a inocéncia, a palavra dinheiro, pronunciada com voz anelante por lábios torpes, abandonava o pudor aos sol-tos caprichos do mancebo. E muitas foram as envergonhadas pe-quenas, que lhe venderam a virgindade em beijos frios, em dilúvios de sentidas lágrimas. No entanto D. Joao aumentava em audácia. Ös falados triun-fos sopravam-lhe o demónio da vaidade. Era ä elegancia de seu porte, segundo ele, era ä docura de suas falas, e nao ao ouro derra-mado, que devia as brilhantes conquistas. Assim parecia as vezes, com efeito, porque, entre a fina holanda e preciosa tela de bran-dos e custosos leitos, de frequéncia o esperavam também beijos aristocráticos, corpos em que a provocadora nudez ostentava ä luz da esmaltada lämpada, azuladas veias entumecidas de generoso sangue de gótica raca. Nao era por certo, ele o dizia, näo era o dinheiro, que lhe abria os portoes dos opulentes palácios. Tudo devia ä graca de seus requebros, ä loucania de seus donaires. Enganava-se. Mentia-lhe o amor-próprio. Nas classes superiores, como em todas as classes, é um e o mesmo o alvo a que se faz calculada pontaria; é urna a ideia cul-minante. O hörnern, que se refastela em encarquilhados títulos de fidalgo e capitalista, também näo tem dúvida em dizer a. con-sorte, nas expressöes da sua conveniéncia, como o hörnern do povo na aber ta lingüagem das privacöes, nao tem dúvida em dizer-lhe, deitando olhar oblíquo sobre a descuidada filha: D. Joäó é mo90 de subido merecimento. A par de colossal riqueza, tem um dos mais fidalgos brasöes. Bom casamento, na verdade, bom casa-mento para urna menina honesta!... E em seguida apresenta o moco äs senhoras. A menina cora. D. Joäo deseja. O pai indigita-lhe, matreiro, o casamento da 42 Álvaro do Carvalhal Os Canibais 243 filha, e sai em cata do primo marques com o cheiro numa sabo-rosa partida de xadrez. Mal acostumado, como estava, supunha o mancebo utopia a pudica resistencia numa mulher; supunha-a flexivel a seus cari-nhos como a junca ondulante ao sopro morno dos ventos. Mar-garida, porem, incumbiu-se de vingar p afrontado sexo. Com o desdem assanhara a vaidade do mancebo, e infiltrara-lhe no peito, vazio de crencas, o mais perigoso dos sentimentos — o amor ca-pricho, que, ä maneira da ebulicäo, poe em alvoroco as fezes adormecidas no fundo esterquilmio das humanas paixöes. A in-veja, o ödio, o desespero, a insänia, a vanglöria, precipitam-se em redemoinho como satelites daquele nefando e frfvolo amor. Dai ä loucura e escorregadia a estrada. D. Joäo, depois de absorvidas torrentes de vinho, recordava como um sonho baralhado, para ele, lacerante tripudio no fabu-loso banquete. Repousara a cabeca num feixe de trepadeiras que se atiravam em festoes vigorosos aos enfeitados ramos duma olaia, e deixara pender o corpo sobre a areia fina tapizada de esfolhadas petalas. Os olhos entreabertos demorava-os, absorto, no clarao irradiado dos salöes iluminados. E as sombras voltejantes, que se desenhavam ao longe, em ondas de gaze, no cristal dos espelhos, dali percebidos no fim das salas, julgava-as etereas e silfidicas visoes. As ondas sonoro-sas das afastadas müsicas reboavam-lhe no tfmpano como lamenta-veis e prolongados suspiros. Por outro lado embalavam-no os trinos do rouxinol, flutuantes no cerrado laranjal. Mas tudo isto näo fazia senäo avivar a dor daquela pobre alma em penas. Ter vinte anos sem conhecer apetite irrealizavel; ser orgulho-so e volüvel, e ver-se condenado ao suplicio de Täntalo; sentir a alma manchada no viver de alvorocados desvarios, exaltada de re-pente num sentimento puro; amar entao, e ser repelido; e amar com mais forca ainda, de raiva, de vergonha, por capricho; e que-rer afogar esse amor, agora impossível, querer afogá-lo em vinho, é compreender a angustia por que passava D. Joao. Margarida era venturosa, quanto o pode ser uma formosa filha de Eva. Bern o sentira ele, que a contemplara com a voluptuo-sidade da pantera, que espreita a apetitosa res; ele que lhe medira os movimentos, a intensa morbidez dos olhos, a entumescéncia dos seios brancos, o descorar dos lábios. Quisera, mas nao podia duvidar: o visconde de Aveleda era amado com todo o faminto impulso dum peito virgem, enquan-to ele, o herdeiro infamado dum celebrado nome, ali tao perto, contava na efervescéncia da imaginacao, na febre de seu delírio, o pressuroso arfar dos coracoes amantes sem poder quebrar os lacos, que os uniam para sempre! E que os quebrasse? Nao lhe coubera, em partilha, o desprezo? D. Joao chorava, chorava de humilhado. Na falta de cómo-das barbas, arrepelava os cabelos como um tirano de dramalhao, medindo a superioridade que lhe levava o visconde. Faltava-lhe a tristeza do rosto, a dignidade do gesto, a suave melancolia da palavra, e, sobretudo, aquela misteriosa sombra, em que se envolvia o visconde, que é para o sexo curioso uma tentacao irresistivel. Que era ele, D. Joao? Um moco afeminado, doido, leviano, de lábios frescos e olhos bonitos, amante de vinhos e de mulhe-res, aventureiro, sonhador; era o que sao muitos rapazes, o que todos podem ser. Que rumo era o seu? qual o seu destino? Abismou os olhos pelas trevas do futuro e julgou ver, como num espelho nigromán-tico, as horas, os dias, anos, lustros, caindo plácidos uns sobre os outros, monótonos, sempre os mesmos. Encontrou-se no fim, quando menos o cuidava, no despertar de imundas sensualida- 244 Álvaro do Carvalhal Os Canibais 245 des, encanecido, velho. Fitava triste o passado e admirava-se de ter vivido. Era um triste sonhar aquele. Náo via uma pegada na areia móvel do caminho, que marcasse sua passagem. E pergunta-va, supondo-se com efeito desperto na decrepitude, perguntava — para que vivi? Pensava no suicídio. — Se a minha vida futura há-de assemelhar-se ä que levo passada, süspirava o moco, vivi de mais. Experimentei o gozo, compulsei as amarguras. Estou saciado. Aspiracöes de gloria, aspiracöes generosas, em que ouco falar tanto, náo me prendem ao mundo, nada me prende, morrerei. Mas um sopro da esperanca vinha entäo, ao de leve, refres-car-lhe o espírito, e aspiracöes nunca sentidas douravam-lhe por instantes a requentada imaginativa. É que o iludiam passageiras crencas, que, se fossem duradou-ras, operariam um milagre de reabilitacáo. O que pode a mulher! Assaltava-o esse borbulhar de ideias, enquanto se contorcia, numa agonia mortal, no frio leito, que o acolhera. Era tarde e bem tarde quando se ergueu vacilante. Tinha sede. Gemiam em torno multiplicadas fontes. A represa parecia uma grande lamina de esta-nho caida no regaco de pampanosas verduras. Descia a lua perpendicular sobre as águas. Aquela formosíssima solidäo tinha contudo náo sei que pálida frieza de cemitério; coava nas veias alguma coisa de pavoroso. Sentia-o D. Joáo quando, curvando-se, bebia. Mas porque estremece como tornado de súbito terror? O des-gracado era vítima de algum pesadelo infernal. Do fundo do lí-quido cristal notou que se destacavam imagens monstruosas e horrendas, que näo despregavam dele os olhos imóvěis, inertes, brilhantes como de reluzente metal, e quase ao mesmo tempo vi-brou-lhe aos ouvidos argentina gargalhada. Quis fugir, mas pren-dia-o como que um poderoso magnete. Breve, porém, reconheceu envergonhado a fraqueza supersti-ciosa, que o dominara. As imagens náo eram mais que estátuas do jardim, que se retratavam na face límpida das águas. Quando em nosso espírito acalentamos porventura um negro pensamento, negros e feios vemos os objectos, que nos circundam. Um espírito cándido em tudo descobre rosas e perfumes; fantas-mas e perseguicoes o que se rojou nos cuidados do crime, *r; A verdade dessas palavras sopeou-a D. Joáo. Mas a gargalhada, aquela gargalhada que lhe soara aos ouvidos como soka do ciciar das brisas, ou dos lábios de cetim de alguma fada invisível, donde viria ela? Talvez das salaš do baile. Para lá voltou o moco a escandeci-da fronte. Quebrara-se o en cam o. Como um templo em que, depois da festa e das harmonias místicas do órgäo e dos súplices cánticos, se estende pelas naves imensas melancólico e funéreo siléncio, assim nos dourados saloes, há pouco banhados de luz, agora, fechadas as escuras janelas, des-cera sepulcral siléncio. D. Joäo despediu um guincho de espanto como o do cerdo ao sentir-se nas garras do lo'bo, e pulou desnorteado, pelo teor e forma por que Dinis, no Hissope, faz pular, em certo picaresco transe, o deäo de Elvas, clamando — vingan9a! E que tinha seriamente meditado uma história de sangue. Medira o esforco de sua alma e sentira que lhe quedava bem o nome de assassino. Qual será a vítima escolhida para o cruendo holocausto? Chegara o terrivel moment o. Coroada de brancas flores, semelhando adormecidas pombas, erguia os valentes ramos para uma janela do palácio uma odorosa Álvaro do Carvalhal Siř agnólia. A seu tronco estava arrimado um homem com olhos chamejantes, mergulhados, através dessa janela ainda aberta, na escuridao interior. Era D. Joao. Estava ali como um fragmento de granito, firmě, sem respi-rar, mas febril e ardente. Soara a hora fatal em que, nao longe dele, iam unir-se, con-substanciar-se num corpo só, dois seres, que o infeliz quisera ver separados pela incomensurável distáncia dum túmulo; dois ven-turosos, que entre suspiros, carícias, contorcóes e beijos, iam, nus de trajos e de mágoas, celebrar celestiais mistérios do noivado... Pohře D. Joao! Que assanhada iepra te lavrava o peito! De repente jorraram lá dentro raios de luz brilhante, e sus-surraram passos indistintos. O mancebo apertou a desvairada cabeca nas maos trémulas. Pulava-lhe o coracao na ánsia febril. Recalcada um tanto a desesperacáo endireitou-se ameacador. Lampejará-lhe na mentě uma ideia atroz. As janelas, que agora resplandeciam abertas, podiam ser trancadas em pouco tempo, e entao a esperada vinganca teria de se represar ainda uma noite nas lavas do seu cránio. Mas nao. Era impossível. Numa noite perfu-mada como aquela, em que a natureza se desprende em harmonias, em que as auras sussurram, beijando as folhas dos arvoredos, em que as fontes suspiram e as aves cantam; numa noite de amores, noite como aquela, é estreito o recinto duma cámara para duas almas, que, řundidas, vao erguer sensuais oblatas aos pés da amo-rosa deusa. Nao, as janelas permaneceriam abertas. Assim pensava o mancebo, quando a leve sombra duma mu-lher se esbocou transparente no mármore de um muro fronteiro. Era certamente a ingrata, que afanbsa corria aos ferventes beijos do cobicado esposo. — E eu, desgracado, murmurou D. Joao, só, sem luz, sem esperancas, só, cercado de trevas e de abismos... Os Canibais „ x_ 247 Deslizou-lhe a aflicao num riso. Recalcou novamente a dor, e, com mao segura, apegou-se ao tronco da magnólia, atrepando por ela com movimento arrastado e ligeiro, como de serpente. Apertou contra o peito o cano de suas pistolas, sacudiu os orva-lhados cabelos, e sumiu-se na folhagem. Entäo mil aves, acordadas na verde guarida, esvoacaram assus-tadas, e ŕugiram soltando pios, até se perder no desmaiado do luar. VI Agora, que a minha autoridade de verdadeiro contra-regra de teatrinho aldeäo chamou convenientemente a postos os esqui-sitos personagens, que hao-de figurar no presente capitulo, volte-mos ao ponto em que deixei os suspirosos noivos na critica posi^äo de todos os noivos. Avalia-se, nao se descreve, o alvoroco de Margarida em face de baralhadas suspeitas, mais e mais condensadas pelas fatais pa-lavras do visconde. Que horrivel linguagem era aquela, com que a acolhia o esposo, no momento em que toda se absorvia na morbidez de um requintado afecto? Se acordasse dum sonhado paraiso, entre as ensanguentadas mäos de enraivecido carrasco, que a arrastasse sem dó pelos igno-minosos degraus de um patíbulo, por certo nao sentira a donzela mais pavorosa surpresa. Para que negros pensamentos, pensamentos de morte, quando ela, esquecida, como nunca, da fragilidade da matéria, se ar-roubava ditosa no antegosto de incognitos prazeres? Voavam-lhe nos alquebrados membros repetidos calafrios de susto. Como magnetizada prendera atónitos os olhos no visconde, 248 Álvaro do Carvalhal Os Canibais 249 e, entäo, naquela frieza de estátua, embalde procurava o atractivo, que a tinha cativado. Näo sei o que lhe viu nas mudadas feiges. E certo porém que, apavorada, longe de se avizinhar, como ainda há poueo, se afastou oprimida de supersticiosos terrores. — Foges-me, Margarida! diz ele com dolorido acento. Amar-guras-te de me ver a teu lado! Devia ser assim. Como eu te quero, näo o sabes tu. Nao sabes como o moribundo ama o ultimo dia da existencia que lhe foge. — Ama-me! Näo me dizem o contrario tuas palavras, teu hálito gelado, a gelada atmosféra que te circunda? Eu mesma sinto-me repassada de frio, e de... — E de medo. — E de medo, sim; e de medo, que nao sei explicar. — Quebrou-se bem depressa o encantado prisma, que me mostrava a teus olhos sem os tracos carregados, que a desgraca sulca na fronte de seus escolhidos. E todavia ainda nao se rasgou o espesso věu, que me salva do escárnio, do teu escárnio. — Henrique, Henrique! Sinto que se dá entre nos alguma coisa de muito extraordinário. Perde-se-me a cabeca em mil estra-nhas conjecturas. Encontro-te na imobilidade do cadáver. Diz-me quem és, quem tu és, Henrique, que eu näo sei conhecer-te... ■—- Nem queiras. Bašta saber que sou uma pobre alma, em busca dum corpo, que me abrigue; um coracäo ardente num peito gelado como a pedra duma vala funérea. Vi-te, debil criatu-ra, através das lágrimas que me empanavam a vista; e, tal qual sou, cuidei que minhas cruciantes penas poderiam encontrar re-frigério nas tuas consolacöes. Aparecias-me com a aureola divinal da mulher superior em volta da tua bela cabeca. Näo era muito que te supusesse capaz dě lavar, sem repugnáncia, com os bálsa-mos do amor, minhas leprosas e sangrentas chagas. E que aos grandes desgracados nunca deixou de sorrir, na insónia de suas noites, uma imagem de mulher. Ahasverus lá encontra a reden-cáo de seu triste fadário na Candida Raquel. Eu entrevia-a em ti. Julgaste-me tu pelo que parecia, e näo decerto pelo que eu era. Venceu-te a aparéncia, que mais duma vez nivela o vício com a virtude. Amaste-me. Ai que longa série de gozos me veio do teu amor, Margarida! Quis declarar-te tudo. Náo pude. Tive medo que se desvanecesse num sopro a minha angelica visäo. E só agora reconheco que te sacrifiquei, que te arrastei talvez na minha queda, infeliz! — Na tua queda!! -— Mas näo. Conservo a ultima esperanca. Se a perder, já te mostrei o veneno que escolhi. Deixar-te-ei viúva e virgem, e rica, muito rica. Das multidoes, que, famintas, se häo-de atropelar ä entrada do teu palácio, podes eleger um esposo que te mereca, que te dé na terra venturas do céu. Näo chores, anjo... — E eu tao inocente, tao descuidada!... Só sabia das minhas queridas ilusoes. Como poderia suspeitar que o homem, que me escravizava!... E que fosses, no teu passado, um grande criminoso, Henrique?! As lágrimas, que te regam as faces, näo significariam arrependimento e absolvicao? Bem sinto que te comoves... A boca do visconde escancarou-se, como a desmenti-la, numa satánica gargalhada. Margarida tremeu até ä mais recôndita fibra. Neste tempo ouviu-se lá fora um estalido, que tanto poderia provir dum ramo seco quebrado violentamente, como duma pis-tola armada por oculta mao. A assustada menina correu ä janela. A lua permanecia serena, prateada, no recurvado firmamento. As aves esmoreciam em tri-nados nas francas das olorosas selvas. Só se havia erguido certa desinquieta aragem, que baloucava os arvoredos de tal sorte, que a coma lustrosa da magnólia quase rocava na janela. Uma lufada de vento acabava de entrar na cámara, e a lám-pada de alabastre., suspensa de rico velador, crepitando, quase a apagar-se, diřundiu fantástico claráo pelo rosto do visconde, que se destacava inerte num fundo avermelhado pela cháma sacudida do gigantesco fogao. — Criminoso, disseste tu, Margarida, exclama o visconde de Aveleda, pesando a pala vra que ela proferira. Enganaste-te. Fui sempre honesto e virtuoso. Nao" näo estou manchado de crimes. Antes estivesse, que traria, quando muito, o meu castigo no rundo impenetrável da consciéncia. Mas viveria, pois, através do ouro; crimes näo os vé a sociedade, e, se os vé, respeita-os. — Que labirinto! — Horroroso! prosseguiu em tom de expansiva ternura. Vbu ser franco, é tempo. Vem, Margarida, minha esposa, vem para o pé de mim. Reveste-te de toda a tua coragem e eseuta. — Fala, (ala! — Lembras-te duma promessa, que me fizeste, transbordan-do afectos, como agora tremendo de receio, promessa que eu aceitei? —- Se fiz tantas promessas!... — Muitas, por certo. Filhas de leviana exaítacáo. Pois bem, entre essas todas, prometeste seguir-me ao cemitério, se lá fosse minha morada... -— Virgem Santa! - —- Ěsqueces? continua com voz cavernosa. Mentiste?... Lábios de anjo nao mentem. É teu esposo que te estende os bracos... — Mas quem és, quem serás tu? —- Vem perguntá-lo ao contacto do meu corpo iríanimado e frio, como o de um defunto. Receias? Os Canibais 251 — Oh Henrique! — Vem. — Desfaleco. Nao posso mais. Tenho medo. Se ao menos fosse isto um sonho! — Adivinhaste. Isto é um sonho. Poděs voltar para casa de teu pai. Eu näo sou um homem. — Pois que és, desgracado? — Uma estátua. Por absurda, que parecesse a resposta, acompanhara-a tao firme acentuacao de verdade, que só de si fora bastante a enrodi-lhar trés sábios e um compéndio de logica, e sobretudo o mais in-crédulo e chegado parente de S. Torné. Näo é pois de estranhar a credulidade de Margarida, que, logo em continente, sem acordar da mal-ajeitada surpresa, viu que as luvas do visconde, pela primeira vez arrancadas, lhe deixa-vam as mäos a descoberto. O mesmo foi que vergar-lhe sobre os joelhos o corpo alquebrado, e sufocar um grito na garganta. As mäos descarnadas, que a estreitavam, eram feitas de marfim. — Desmaias? exclama ele na forga do desespero. Que é da coragem, que me prometias? Säo todas assim as mulheres. Aman-te, seguias-me ao cemitério; esposa, horrorizas-te de meus afagos, porque me näo encontras calor nos membros, porque sou uma estátua. E a cabeca, que harmonizou estrofes que te embriagaram, é esta mesma, que agora repeles. E os lábios, que avivaram nos teus ánsias de beijos com segredos, que tu decoravas, para os repetir sonhando, para acordar repetindo-os, säo os meus. Eu sou ainda o mesmo, que era, se me derem a perdida esperanca do teu amor. Que te falta, mulher? Aqui me tens. Fez um movimento. Ressoaram estalos como de molas. Horror! Sobre a poltrona caiu um corpo mutilado, disforme, mons-truoso. Pernas, bracos, os próprios denies do visconde, brancos 252 Álvaro do Carvalhal Os Canibais 253 como formosos fios de pérolas, tombaram sobre os felpudos tape-tes da Turquia, e perderam-se nas dobras de seu robe de chambre, que naturalmente se lhe desprendeu dos ombros. Ö infeliz era um fenómeno, um aborto estupendo, que, em nossos dias Valeria muito dinheiro a quem quisesse especular. Era ele poeta de mais para isso. A tudo porém dera remédio a civilizacäo de seu tempo. Afortunados tempos! Margarida sentiu-se como petrificada. Mas, de repente, ful-gurou-lhe a loucura nos olhos. Comprimiu com violéncia o cora-cäo, e, veloz como o pensamento, desapareceu por uma janela, desprendendo um grito agudo, dolorido, que se perdeu ä dištancia, ao tempo que, por outra janela, se precipitava no aposento um hörnern com uma pistola em cada mao. Era D. Joao. Por seu lado o visconde sopesara a queda de suas sonhadas aspiracoes. Borbulharam-lhe duas lágrimas dos olhos embaciados, que, desvairado, dirigira para o bufete em que tinha depositado o veneno, ultima esperanca. Impotente porém para o aproximar dos lábios, näo hesitou. Numa contorsäo de agonia extrema ati-rou-se ao pavimento e rolou sobre as brasas vivas do fogäo. Cin-giu-o bem depressa uma azulada, ténue, mas crescente labareda, e nem um gemido soltou. É bem certo que as dores da alma nem deixam perceber as da matéria. Tanto as excedem. Ouco-o dizer aos piegas, que na-moram, folgam, comem e engordam. Nas complicadas cenas, ä laia desta, habituaram-se os ro-mancistas ao emprego das sacramentais palavras: tudo foi obra dum segundo. Eu digo desta vez como eles, mas sem mentir; o que é para ser notado, porque quando D. Joäo, furioso, buscava alguém, que lhe absorvesse as iras, divisou entre ondas de fumo uma in- forme massa em medonhas contraccoes. Parou ali. Mas recuou logo repassado de horror. Volvera-se para ele um rosto coroado de labaredas. E crava-ram-se nos seus uns olhos que, rebentados pela viveza ardente das chamas, se revolviam ainda nas ensanguentadas órbitas. VII «Pois essas divertidas e caprichosas cenas, täo exóticas como pueris, que, enrodilhadas e com feia catadura, tém devorado pá-ginas e páginas em frases de todos os tamanhos, teräo alguma coisa de comum com a suave e desafectada narracäo dum pro-metido conto näo só verdadeiro, mas até elegante!? Um conto! Chama-se isto um conto! Dos que se dizem nos serôes de inverno com pásmo das imaginacóes rudes ou infantis, poderá ser. Mas contó para gente fina e séria, para gente, que sabe de cor Edgar Poe e Hoffmann! Oh, oh! Sobretudo imperdoável é o desaire com que o demónio do escrevinhador deixa transluzir das combinacôes do seu espantoso imbróglio o presuncoso intento de fazer um romance, que lhe dé azo a fingir-se modesto, chamarido conto ao que, no juízo dele, vale bem um romance. Ora, meu senhor, se queria rabiscar coisa como romance, sofreasse um tanto os ímpetos com que os seus esfalfados heróis se precipitam no epílogo; demorasse as situacôes com peripécias, episódios e tudo o que lhe lembrasse, capaž de aumentar o interesse e aperfeÍ9oar o lavór artístico da obra. Näo bašta encadear dois dissaboridos diálogos e alguns ditinhos sim-plórios e afectados. Diálogos! Nada mais fácil. Duas pessoas que falam, uma depois da outra, com intermédio de pausas e reticén-cias... Se queria fazer-se notado saísse a campo com seis, oko, vinte palradores, prendesse-os a uma geral conversacäo em que Älvaro do Carvalhal falassem todos, alternados e simultaneamente, em grita e com moderacao. Entäo, sim. Ai encontraria oportunidade de desvendar a sua mestria nas dificuldades da arte. Mestria essa, que ninguem ousaria contestar uma vez que alcancasse meios de se esquivar a mostrar-nos, pela extravagäncia da algaravia, de que fabuloso modo se digerem bojudas vasilhas de alcool. Nesse caso näo nos opunhamos a que levantasse uma estatua de barro em paga da sua Estdtua viva. Apenas se atreveu, porem, com a parte mais plebeia e chilra deste genero de literatura — o diälogo, coisa que ho je nem os dois mais triviais interlocutores quereriam alimentär; embora iluda um tanto a paradoxal aparen-cia da proposicäo. Quanto ao visconde de Aveleda e ele, diga-se a verdade, a mais simpatica criacäo, que pode deduzir-se de inexper-to cinzel. Porem, que destino! A astucia depravada do autor faz que o vejamos na parte luminosa do quadro; que nos ganhe, näo direi simpatia, mas um pouco de benevolencia... Depois acende um fogao monstro e de particular estrutura que estava preparado de encomenda para receber um hörnern in-teiro, e lanca-o, com bastante pena nossa, ao meio das chamas, e assa-o, nao sei bem se com tencao de o comer. Palpita-me que o vai comer. Isto nao se faz em pais civilizado e liberal! Enfim, seja como for, ja gastamos mais cera do que e de lei com ruins defun-tos. Oxalä que, aproveitando-lhe a licäo, venha a convencer-se de que nao sobra quem se empenhe nos progressos präticos da agri-cultura, e deixe de andar tresmalhado nestes dificeis caminhos, que nunca pes mazorros lograram percorrer sem sangue.» Säo assim, pouco mais ou menos, as sibilantes expressöes da maledicencia, que eu desprezo, sem que, todavia, deixe de vir a indignacäo das grandes almas ofendidas inflamar-me as nacaradas bochechas. Os Canibais 233 Critica cordata e justa escutei-a sempre respeitoso. Insolencias, ä laia das supraditas, näo sao lancas que fa^am saltar da sela cava-leiros do meu jaez, nem hao-de ser em tempo algum admoesta-5Öes, que corrijam defeitos. A minha generosa indignacäo näo me deixa responder, como pedia o caso, se bem me estä borbu-Ihando a ideia de confundir os linguareiros por meio duma di-gressäo ideolögica, em que podia patentear os tesouros, que tenho amontoados no meu celeiro. Näo quero fazer escandalo. E o que lhes vale. Em desforra, apenas prometo esmerar-me a fim de ser mais natural e correcto no seguimento do conto, que prossegue do seguinte modo: Quando o Sr. Urbano Solar, beatifico pai de Margarida, des-cerrava as preguicosas pälpebras ainda saudosas dos afagos do confortativo sono, marcava o ponteiro dum relögio, que pendia graciosamente da parede, dez horas e alguns minutos. O santo varäo näo acordaria täo cedo, se o estomago com irreguläres rugi-dos näo acusasse certo vazio que o horrorizava. O Sr. Solar tinha horror ao väcuo; e tanto que, na deliciosa perspectiva de um substancial almoco, que lhe deslizava na mente fecunda e liberal, endireitou azafamado o colarinho, enlacou a gravata, deu a ultima demäo aos ingratos cabelos, e foi incorporar-se a seus filhos, que, ja preparados, conversavam, aproveitando os raios vivifican-tes do sol matutino. O dia estava duma formosura a derramar alegrias nos espiri-tos mais atribulados. Parecia concertada a natureza para acompa-nhar os doces enleios, que deviam ser entäo a alma animadora da ampla majestade daquela habitacäo. O proprio Sr. Urbano sen-tia-se enfeiticado. — O visconde? pergunta ele, admirado de que o näo acom-panhassem em continente para a anelada mesa do almoco. Ainda näo vistes a nossa Margarida?... 256 Álvaro do Carvalhal Os Canibais 257 A resposta resolveu-se em dois sorrisos frouxos, maliciosos, equívocos. Solar compreendeu-os, quis revestir-se de gravidade, mas, em conclusao, nao teve remédio senäo imitá-los. Para os inocentes, como eu, esses sorrisos nao seriam mesmo obscuros. Tenho fé> porém, que näo faltariam honrados pais de família, que, no dia seguinte ao do noivado de suas filhas, perspi-cazes como Urbano Solar, šoubessem dar explicacöes. Deus me defenda de sabé-las dar alguma vez por minha parte. Travaram os trés insignificante conversa, que ameacava pro-longar-se com sério detrimento do aparelho digestivo do Sr. Solar. Mas como nem o visconde de Aveleda, nem Margarida pareciam ainda dispostos, segundo suspeitas dum criado interrogado, a vir livrá-lo deste suplício, tirou-se de seus cuidados, e, resolvido a nao esperar por ninguém, saiu na tencao de farejar por si mesmo certos conhecidos escaninhos de gordurenta memoria. Ao rocar na porta da cámara nupcial näo pôde veneer a curio-sidade, e apurou o ouvido. Nem o mais leve sussurro. De dentro vinha uma réstia da luz pura do sol, que mosqueava o pavimento, denunciando assim que éram já abertas as janelas do interior, e que, portanto, os feli-zes habitantes daquele estreito paraíso näo continuavam esqueci-dos em amorosos delíquios, e além disso, que estava mal cerrada a porta, que, por esse motivo, dava passagem a réstia do sol. Aventurou-sc a empurrá-la suavemente; e sem resisténcia nem rumor rodou ela sobre os flexíveis gonzos, e pôs a descoberto a parte interna da cámara, inteiramente solitária. Entrou o bom hörnern despejando da garganta exclamacöes de pásmo, lancou a vista em roda e dilatou as cartilagens do nariz, tocado dum especial odor daquela atmosféra, que era um deses-pero para o ambicioso e esfaimado estômago de S. Ex.a. Afiava-lhe o apetite aquele odor. É fácií de ver portanto que nao podia satisfazé-lo o simples conhecimento do efeito. Ao seu estado convinha, mais que tudo, palpar a causa. Breve a desco-briu ele no fogao, onde entre algumas amortecidas brasas, cerca-dade cinza e de carvoes, avultava uma massa compacta de carne, a este tempo quase carbonizada. Revolveu-a de todos os lados, naturalmente admirado da estranheza, e no fim da investiga^So concluiu que náo era fácil determinar a casta de animal, a que pertencia aquele torresmo, mas que, feitas as contas, tinha na parte superior um provocante pedaco de loirejada polpa. Solar era um hörnern de muito siso para nao saber explicar a esquisitice do facto com a esquisitice do génio do visconde de Aveleda. Foi de semblante prazenteiro que seus filhos o viram voltar, convidando-os a acompanhá-lo. — O visconde, diz ele com afectado mistério, parecia que de propósito se recusava a aparecer para nos obrigar a espera-lo para o almoco. Mas eu que sou velho e matreiro achei meios de me vingar. Fui procurá-lo ao proprio quarto. — E assanhou-lhe o masculino pudor, diz sorrindo o peral-ta. Esta visto. — Pelo contrario. Nao encontrei lá sombras disso. — Como assim. Pois... — O quarto estava deserto, mas saturado dum cheiro... — A ambrosia, provavelmente? — Nao. A carne assada. Meu genro, cada vez estou mais convencido, é um hörnern de inqualificáveis caprichos, duma rara excentricidade. Saiu, ninguém sabe quando, nem para onde; ao menos näo há criado que o diga; saiu com a noiva e deixou nas brasas do fogäo um imenso pedaco de carne, quase reduzido Álvaro do Carvalhal i cinzas, com excepcao da parte superior, que repele o mais so-rumbático fastio. — Eentäo?.. _Entao aquilo deve ser alguma preciosidade da inventiva culinária do visconde. E para seu castigo lembrei-me de lhe pre-gar uma pirraca, que, por cima, há-de fazé-lo rir. Vinde almocar comigo. — Mas näo será indiscricao?... observa o magistrado. — Sou eu o responsável. Depressa! que nao venha ele no en-tretanto. Pouco depois entrava o velho folgazao com os dois filhos na cámara dos desposados, munido ele proprio dos apetrechos indis-pensáveis para o notávef festim. O sabor da carne nao correspondia ä aparéncia. Era excessi-vamente insulsa, viscosa e adocicada. Urbano Solar, desiludido, afirmava que só a sua experiéncia saberia esburgar os ossos con-venientemente, assim como só o apetite saberia tolerar o dissa-borido manjar. O magistrado acabava de cair num reflexivo abatimento, en-carando com olhos desvairados já na configuracao da insulsa iguaria, já no lugar em que fora encontrada. Supunha ter tocado com a faca alguma coisa, como uma caveira humana transforma-da pela accao do fogo. — Meu pai! exclama ele de repente com voz espavorida, aqui há um terrível segredo, um segredo muko espantoso. Este leito näo dá sinais de que alguém se recostasse nele. Os criados afian-cam que näo saiu ninguém desta casa, e... Todos estremeceram. Ressoara a detonacäo dum tiro e, em seguida, sussurro e gritos no interior do palácio. Os Canibais 259 VIII Esopo, Fedro, La Fontaine e mil outros ilustres colegas, que me precederam, costumavam consagrar os Ultimos trechos das suas pingues histórias ä deducäo da moralidade nelas contida. Por mim, inimigo figadal de relhas tradicöes, fiz protesto de os näo imitar, embora receoso de cair em alguma das originalida-des sandias, que väo por esse mundo, factos enfezados desta época inqualificável, em que cada sujeito que tem uma luneta e certo sorriso, e sofre do nervoso, e tem fantasias lúgubres, julga sorver a imortalidade pelo facto simples dessas fendas e desses achaques. Apesar do bem fundado receio näo quero ser imitador. A parte o ódio ao ramerräo clássico, e a louvável ambicäo de conquistar direitos a original, e näo sei que mais, sinto meu fraco por fechar um conto num laňce desastrado, assombroso, nunca visto, tal que só de si possa tirar o sono por trés noites äs sensíveis meninas, e chupar as excrescéncias adiposas e os mesmos volu-mosos redenhos aos graves papáš interessados na leitura. Faco de conta que os há interessados na leitura. Posto isto, facilmente se reconhece que por forma alguma convinha ao meu intento reservar para o remate a fria moralidade, segundo usanca dos meus defuntos confrades, acima cita-dos. Mas, para que me näo censurem por leigo na missäo, que escolhi, aí a dou (a moralidade) em duas palavras suculentas, conceituosas e profundas como se me empertigasse sobre a sa-grada tripode da sibila. É ao formoso sexo que me dirijo, pois que näo sei corrigir o vaidoso impulso de fundar toda a minha aspiracäo em ser-lhe de préstimo, como director espiritual. Aprendam pois desta fúnebre história as donzelas inexperi-entes a temperar os amorados impetos com o sal da desconfianca 260 Álvaro do Carvalhal Os Canibais 261 para que nao vao encontrar äs vezes, como no exemplo exposto, algum rude madeiro, que se transforme em cruz de suplício, em lugar de um galhardo marido, aparentemente cheio de vigor, de energia e seiva fluente de mocidade. A experiéncia anterior, a análi-se microscópica antecipada, é a meu ver a verdadeira tábua de salvacäo. Pobre visconde de Aveleda! Quem sonhara, ao ver-te espléndido, imponente e adorado, que cruel fim te reservava o avesso destino, sujeitando teu requei-mado tronco aos apetites vorazes de famintos canibais, que, ainda na véspera, te abracavam no desafogo duma amizade pura! Altos juizos de Deus! E sirva-me essa vulgar exclamacao, täo avezada a cortar pela raiz atadas questöes de metafisica e teológia, a deixar nesta altura minhas fastidiosas divagacoes. E de justica que näo esquecamos o nosso simpático amigo Urbano Solar. Pede-o a propria caridade. Além de excessivamente encanecido e debil, oprime-o neste momento a mais incurável das arlicöes para lhe näo levarmos já nossos benéficos socorros. Podem os egoístas clamar que lá tem ele os filhos, que o aturem. Esses mesmos, declare eu, em despeito da robustez da idade, mal podem com a propria consternacao para que atentem no acabrunhado pai. E se näo haja vista ao que sucedeu no eurto es-paco do meu tardo diseurso. Nadá mais espantoso. Ouviu-se, como fica dito, a detonacáo dum tiro. Estremece-ram as vidracas, reboaram os ecos, e no interior do palácio reeres-ceram os gritos. Os nossos gulosos interromperam assustados o ensosso ban-quete, em que o primeiro e único prato se compunha de carne de visconde, que deve ser mais estimada do que a de outro qual-quer animal menos fidalgo, e presos, todos ao mesmo tempo, nao sei de que terrivel pressentimento, como por intervencäo dalguma invisivel corrente electrica, trocaram entre si ligeiras e apavoradas vistas, e voaram velozes para o lado em que recrudes-cia o rufdo. Salvaram quatro a quatro os degraus das elegantes escadarias, que descem para os jardins, e so pararam no meio duma multidäo de domesticos, que lacrimosos e dando pungen-tfssimos gritos se acercaram deles como pretendendo impedi-los de passarem adiante. — Que e isto? Que aconteceu? perguntavam confundidos e impacientados. -— Desgraca! — Senhores, senhores! — Por Deus nao queiram saber! — Väo-se, väo-se. Näo e aqui o seu lugar. Tais säo as baralhadas vozes, que regougam dos diferentes pontos do circulo humano, que os apertava. Urbano Solar com-pulsava ja a realizaeäo de seus medonhos pressägios, mas estava longe de suspeitar toda a enorme fealdade do acontecimento. — Digam-me tudo, bradava ele. Quero saber tudo. Que foi? Digam. Falem. Anselmo, continua voltando-se para urn velho cria-do, tu, que nunca mentiste, tu, que nunca me desobedeceste, por-que nao respondes quando eu estou a perguntar?... — Senhor. V. a vozearia continuava. — Fala, Anselmo. — A senhora D. Margarida... -— Morreu? — Estämorta! — Morta! Adivinham-se os läbios que pronunciaram esta pungitiva pa-lavra, e a acentuafäo dolorosa, de que vinha impregnada. Os dois „ Álvaro do Carvalhal mancebos, que por sua parte näo tinham cessado de sondar a causa de tao grande alvoroco, mal a conheceram, abriram cami-nho, impelindo desvairados a multidao, tanto que lhes passou o atordoamento momentáneo do violento choque. Urbano seguiu--os precipitado com as faculdades em manifesta desordem. Era ao pé da magnolia que os esperava o funéreo quadro. D. Joao com os cabelos empastados, rotas e amarrotadas as vestes, repousava a face lívida e desfigurada nos joelhos do velho capelao do visconde de Aveleda, que se azafamava em estancar o sangue, que em borbotöes lhe espirrava do peito. Ao lado jazia Margarida, submersa no sono da bem-aventuranca, com a fronte despedacada, pálida, mas sempře bela. Sobre ela caiu em desprendidos solucos o estonteado pai. — D. Joao! Também D. Joao!? exclama o mais novo dos ir-mäos, que em ménos solené lugar denominámos peralta. — Vive, responde o padre. Talvez seja ainda tempo de o sal-varmos. Mandei a toda a pressa chamar um médico. — Quem matou minha irmä? pergunta entao pela terceira vez cego de furor, o magistrado. — Suicidou-se, diz ainda o capelao. — Suicidou-se! Porque seria? — Está aqui, designando o moribundo, quem pode expli-cá-lo. — E esse? Também se suicidou? Suicida-se toda a gente!?... Nesse instante descerraram-se as amortecidas pálpebras de D. Joao. Tremeram-lhe os lábios como num esforco para falar, até que fez ouvir algumas palavras soltas, precedidas de guturais e inarticulados sons. -— Veio? murmurou enřim. — O médico? pergunta compadecido o padre. Há-de vir. Agora descanse que vamos levá-lo daqui. Animo! Os Canibais ~, — Morre-se bem em qualqüer parte, torna a debil voz do mancebo, enquanto ä flor dos läbios lhe esvoacava urn sorriso cortante e irönico, como em resposta äs palavras intencionalmen-te animadoras do capeläo. De que me pode servir o medico?... E ele näo veio? —• Ele! Mas quern? — Quem!... o pai da infeliz. Tragam-mo, väo chamä-lo, tenho que pedir-lhe. Seguia o velho urn lamentoso queixume, estreitando ao peito o cadaver da filha. Foi com muito custo que alcancaram separatio dela, e traze-lo ä presenca do moribundo suplicante. Apenas D. Joäo o encara, deixa transparecer uma indecifrä-vel alegria. Assoma-lhe passageiro colorido äs faces, ilumina-se--lhe a fisionomia, e num esforco impossivel consegue erguer a meio o corpo. Mas bem depressa, extenuado, volve ä primeira posicäo com os extremos da boca levemente tingidos de averme-lhada espuma. Todos se aglomeraram em roda, calados e comovidos, e so-bretudo curiosos do que ia passar-se. — Senhor Solar, consegue dizer por hm, o momento da minha tremenda viagem seria de incalculäveis agonias, se na des-pedida me näo fosse dado implorar o perdäo, näo do mal que fiz, mas do mal que esta minha fraca e leviana cabeca empreendeu fazer-lhe. Confio que näo hä-de recusar-me a absolvicäo. Bem sabe quanto e pouco azada para enganosos ardis a hora do passa-mento. Eu confesso singelamente o meu crime. Adorei sua filha. Adorei-a com o desenfreado fmpeto de rapaz ocioso. Näo teria recuado diante da violencia, se me fosse necessäria para a possuir. E ja que a minha consciencia o exige, vou dizer-lhe, a que ponto me levou urn desvario do coracao. Quando eu supunha a senhora D. Margarida, cedendo a posse de todas as suas gracas, de toda a 264 Álvaro do Carvalhal Os Canibais 265 juvenil formosura aos caprichos suaves do visconde, perdido, fe-bricitante, lacerado de mil diabólicos pensamentos, atrepei da magnólia ao peitoril daquela janela. Soou ao mesmo tempo um grito de agónia e de terror, que me fez vacilar, e senti como que o baque de um corpo no fundo dum abismo. Lá dentro o visconde... Ai! o visconde... Fugi, rolando de ramo em ramo do cimo da magnólia, mais louco, mais perdido do que tinha entrado. Mai aventurei dois passos, tropecei num cadaver. Era Margarida. Ao claräo da lua vi que tinha despedacado o cranio de encontro ä aresta desse banco. Depois... Sei só que me queimava o cérebro este sol escandecente, quando dei acordo de mim e me encontrei ao lado dela. Entäo, receoso de que se me conglobasse o sangue no coracao, quis excitá-lo com uma bala. Esta breve narracao, interrompida com as pausas e reticéncias do costume, que eu omito, diga-se baixinho, para que nao fique picaresco um lance que a.todo o custo quero muito sério, quase lhe exauriu o pouco de vida, que ainda lhe restava. -— Mas o visconde? Que fazia no entretanto o visconde? per-gunta o atribulado velho. D. Joao abriu pela ultima vez as pálpebras, e desprendeu a existencia nestas ultimas palavras: — Procurem-no nas chamas do... — Nas chamas?... Ah! E, tornado dum acesso de loucura, Urbano Solar arrasta vio-lentamente consigo os dpis filhos, que, estupificados, se deixam conduzir sem resisténcia. Assim entraram nuraa sala. O velho fe-chou a porta e caminhou sereno e erecto para os mancebos que se prostraram quebrantados num sofá. — Medistes, diz, medistes toda a grosseira fragilidade, toda a acanhada contextura da comédia humana, em que, por zombarias do acaso, tivemos o nosso papel. Aprendestes de mais para rir na adversidade. Coragem, pois! A vida é um sangrento escárnio, que se paga com outro escárnio. Deixai as lágrimas as mulheres, para que se nao diga que tudo lhes tiramos. Eu estou sereno. Que im-porta que...? Margarida... o visconde... Sabeis?... — Comemo-lo, respondem os dois com voz de dentro. — Comemo-lo, repete o venerando anciao. Eu, aproveitando-me de meus privilégios de narrador, ri-me por detrás dos bastidores. Urbano Solar prossegue, trocando o estilo seco, nervoso e constrangido, em que comecara, por outro mais apaixonado e aguado de lágrimas: — Perdi-a... a minha Margarida, a filha querida da minha alma... E como a perdi eu, e quando, e em que lugar!... De que me serviu a enlevada crenca na sublime bondade de Deus, desse Espírito, tao poderoso como tiránico, que desfecha cego toda a sua cólera sobre um pobre velho piedoso e honrado? Porque me nao escuta, ao menos, quando Ihe peco a mořte? Implorei-a do fundo da alma com fé, com amor, e desprezou-me os rogos. Pre-fere blasfémias. Serao breves as minhas. Filhos, meus filhos, um ultimo abraco. Vbii morrer. — Morrer! — Necessito descanso. Suicido-me. — Havemos de acompanhá-lo, meu pai, diz enfático, erguen-do-se, o mais novo. — Seja. Que se risque da terra nosso nome de família. — Uma palavra, diz ö magistrado com solené gesto. — Breve. — O visconde de Aveleda era milionário. — Que mais? —Näo sei de parentes mais chegados do que nós. — Mas... *66 Alvaro do Carvalhal — Somos seus legitimos herdeiros. —• Nos!! ......Oh! Calaram-se. Nesse curto espaco de silencio observou o mag-nanimo doutor que as fraternas e paternas feicoes iam resplande-cendo pouco e pouco, como se um sol esperancoso acabasse de rasgar tempestuosas nuvens. — Gloria a Deus! clamam ambos. Estamos salvos! Bendito sejas tu, que nos salvaste! E encanzinaram-se no magistrado, como molossos esfaima-dos num couro rijo de pernil de Lamego. ALVARO DO CARVALHAL Coimbra, Abril de 1866. GI AN LUC A Ml RAG LI A