Eugénia de kniraie Antologií! Pessoal ia Poesia Porluguesa Triste é comprar castanhas depois da tourada entre o fumo e o domingo na tarde de novembra e ter como futuro o asfalto e muita gente e atrás a vida sem nenhuma infäncia revendo tudo isto algum tempo depois A tarde morre pelos dias fora É muito triste andar por entre Deus ausente Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente ÁCIDOS EÓXIDOS É urna coisa estranha este veräo E no entanto ia jurar que estive aqui Näo me dói nada, näo. A tia como está? Claro que vale a pena, por que näo? Sim, sou eu, devo sem dúvida ser eu Podem contar comigo, eu tenho urna doutrina Näo é bonito o mar, as ondas, tudo isto? Até já soube formas de o dizer de outra maneira Há coisas importantes, umas mais que outras Bašta limpar os pés alheios ä entrada e só mandarmos nós neste templo de nada E o orgulho é a nossa verdadeira casa Nesta altura do ano quando o vento sopra sobre os nossos dias, sabes quem gostava de ser? Näo, cargos ou honras näo. Um simples gato ao sol, talvez urna maneira ou um sentido para as coisas Ó dias encobertos de veräo no meu país perdido mais certos do que o sol consumido nos charcos no inverno, estas ou outras formas de morrermos dia a dia como quem cumpre escrupulosamente o seu horário de trabalho Näo eras tu, nem isto, nem aqui. Mas está bem, estou pelos ajustes porque sei que näo há mais Pode ser que me engane, pode ser que seja eu e no entanto estou de pé, rebolo-me no sol, sou filho desta terra e vou fazendo anos pois näo se pode estar sem fazer nada Curriculum atestado testemunho opiniäo... que importa, se o veräo mesmo é urna čerta estacäo? Escolhe inscreve-te pertence, näo concordas que há cores mais bonitas do que outras? Sou homem de palavra e hei-de cumprir tudo häo-de encontrar coeréncia em cada gesto meu Ser isto e näo aquilo, amar perdidamente alguém alguma coisa as cláusulas do pacto Isto ou aquilo, ou ele ou eu, sem mais hesitagôes Estar aqui no veräo näo é tomar urna atitude? A minima palavra näo será como prestar em certo tipo de papel qualquer declaragäo? Há formulas, bem sei, e é preciso respeitá-las como o gato que cumpre o seu devido sol Säo horas, vamos lá, sorri, já as primeiras chuvas levam ou lávam corpos caras Sabemos que podemos bem contar contigo em tudo Amanhä, neste lugar, sob este sol e de aqui a um ano? Combinado Näo achas que a esplanada é urna pequena patria a que somos fiéis? Sentamo-nos aqui como quem nasce Será verdade que näo tens ninguém? Onde é o teu refúgio, ó sítio de siléncio e sofrimento indivisível? É necessário 524 525 Eugénio de Andrade Antológia Pessoal da Poesia Portuguesa Vais assim. Falam de ti e ficas nas palavras fixo, imóvel, dito para sempře, reduzido a um numero. Curriculum cadastro vizinhanca Acreditas no veráo? Teras licenca? Diz-me: seria isto, nada mais que isto? Tens um nome, bem sei. Se é ele que te reduz, aí é o inferno e nao achas saída Precário, provisório é o teu nome Lobos de sono atrás de ti nesses dez anos que nunca conseguiste e muito menos hoje Espingardas e uivos e regressos, um regaco redondo - o único verdadeiro espago, o sabor de nao estar só, natal antigo, o sol de inverno sobre as águas, tudo novo, a inspeccao minuciosa de paúis, de cómoros, marachas Viste noites e dias, estagoes, partidás E tao terrfvel tudo, porque tudo trazia no princfpio o fim de tudo A mořte é a promessa: estar todo num lugar, permanecer na transparéncia rápida do ser E perguntar será para ti responder Simples questao de tempo és e a certas circunstáncias de lugar circunscreves o corpo. Sentas-te, levantas-te e o sol bate por vezeš nessa fronte aonde o pensamento - que ao dominar-te deixa que domines - mora Estás e nunca estás e o vento vem e vergas e há também a chůva e por vezeš molhas-te, aceitas servidóes quotidianas, vais de aqui para ali, animas-te, esmoreces, há os outros, morres Mas quando foi? Aonde te doía? Dividias-te entre o fim do verao e a renda da casa Que fica dos teus passos dados e perdidos? 526 Horário de trabalho, urna família, o telefóne, a carta, o riso que resulta de seres vftima de olhares Que resto dás? Ou porventura deixas algum rasto? E assim e assado sofro tanto tempo gasto PORTUGAL SACRO-PROFANO LUGAR ONDE Neste pais sem olhos e sem boca hábito dos rios castanheiros costumados pais palavra húmida e translúcida palavra tensa e densa com čerta espessura (patria de palavra apenas tem a superffcie) os comboios säo mansos tém dorsos alvos engolem povoados limpamente tiram gente de aqui pöem-na ali retalham os campos congregam-se dividem-se nas várias direcgöes e os homens däo-lhes boas digestöes: cordeiros de metal ou talvez grilos que mäe aperta ao peito os filhos ao ouvi-los? Neste pais do espago raso do siléncio e solidäo solidäo da vidraca solidäo da chuva pais natal dos barcos e do mar do preto como cor profissional dos templos onde a devocäo se multiplica em luzes do natal que há no mar da póvoa de varzim pais do sino objecto inútil única coisa a mais sobre estes dias Aqui é que eu coisa feita de dias única razäo vou polindo o poema sensacäo de seguranca com a saúde de um grito ao sol 527 Eugénio de Andrade Antológia Pessoal da Poisia Portuguesa combalido tirito imito a dor de se poder estar só e haver casas cuidados mastigados coisas sérias o bafo sobre o ago como o vento na água Pais poéma homem matéria para mais esquecimento do fundo deste dia solitário e triste após as sucessivas quebras de calor antes da morte pequenina celular e muito pessoal natural como descer da camioneta ao fim da rua neste pais sem olhos e sem boca UMA FORMA DE ME DESPEDIR Ha o mar ha a mulher quer urn quer o outro me chegam em acessiveis baias abertas talvez no adro amplo das tardes dos domingos Oico chamar mas nao de uma forma qualquer chamar mas de uma certa maneira talvez urn apelo ou uma presenca ou urn sofrimento Ora eu que no fundo apesar das muitas palavras vindas nas muitas paginas dos dicionarios bem vistas as coisas disponho somente de duas palavras desde a primeira manha do mundo para nomear so duas coisas apenas preciso de as atribuir Nao sei se gosto mais do mar se gosto mais da mulher Sei que gosto do mar sei que gosto da mulher e quando digo o mar a mulher näo digo mar ou mulher só por dizer Ao dizer o mar a mulher há penso eu um certo tom na minha voz sinto urn certo travo na boca que mostram que mais que palavras usadas para falar dizer como eu digo a mulher o mar mar mulher assim ditos säo uma maneira talvez de gostar e a consciéncia de que se gosta e um prazer em o dizer urn gosto afinal em gostar Enfim o mar a mulher pode num dos casos ser a/mar a mulher mera forma talvez de uniformizar o artigo definido do singular Há ondas no mar o mar rebenta em ondas espraiadas nos compridos cabelos da mulher que ela faz ondular melhor de tarde em tarde no més de setembro nas marés vivas O melhor da mulher talvez o olhar é para mim o mar da mulher e ä mulher que um só dia encontro na vida de passagem urn simples momento num sftio qualquer talvez a muitos quilómetros do mar mas mulher que näo mais consigo esquecer mesmo imerso na dor ou submerso em cuidados a essa mulher qualquer eu chamo mulher do mar Nos fins de setembro quando eu partir de uma cidade seja ela qual for quando eu pressentir que alguém morre que alguma coisa fica para sempre nos dias e ou nuns olhos ou numa água num pouco de água ou em muita água 528 529 Eugenia de Andrade Antologia Pessoal da Poesia Portuguese! onda do mar lägrima ou brilho do olhar eu recear seriamente vir-me a submergir direi alto ou baixo conforme puder com a boca toda ou ja a custar-me a engolir as palavras mar ou mulher com certo vagar e cada vez mais devagar mulher mar depois quase ja so a pensar o mar a mulher Näo sei mas serä talvez mais que outra coisa qualquer uma forma de me despedir MURIEL Äs vezeš se te lembras procurava-te retinha-te esgotava-te e se te näo perdia era só por haver-te já perdido ao encontrar-te Nada no fundo tinha que dizer-te e para ver-te verdadeiramente e na tua visäo me comprazer indispensável era evitar ter-te Era tudo täo simples quando te esperava täo disponivel como entäo eu estava Mas hoje há os papéis há as voltas a dar há gente ä minha volta há a gravata Misturei muitas coisas com a tua imagem Tu és a mesma mas nem imaginas como mudou aquele que te esperava Tu sabes como era se soubesses como é Numa vida täo curta mudei tanto que é com certo espanto que no espelho de manhä distraído diviso a cara que me resta depois de tudo quanto o tempo me levou Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid havia as ruas as pessoas o anonimato os bares os cinemas os museus um dia vi-te e desde entao madrid se porventura tem ainda para mim sentido é ser a solidao que te rodeia a ti Mas o preco que pago por te ter é ter-te apenas quanto poder ver-te e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te Sou muito pobre tenho só por mim no meio destas ruas e do pao e dos jornais este sol de Janeiro e alguns amigos mais Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te nao te vejo pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te Eu aprendi a ver na minha infáncia vim a saber mais tarde a importáncia desse verbo para os gregos e penso que se bach hoje nascesse em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior que esta mesma tarde num concerto ouvi teria concebido aqueles sweet hunters que esta noite vi no cinema rosales Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem e penso que se nunca a bem dizer te vejo se fosse alem de ver-te sem remédio te perdia Mas eu dizia que te via aqui e acolá e quando te nao via dependia do momento marcado para ver-te Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te e antes de chegares já lá estavas naquele preciso sftio combinado onde sempře chegavas sempře tarde ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses 530 531