CORDELIA Mais n'est-tu pas toi-meme un jet d'eau qui s'irise Et qui vers ľinfini s'élance et puis se brise?... Philéas lebesgue'17 A s minhas relacôes com gente da Catalunha datam da infäncia, gracas a uns negociantes de cortica, de S. Feliú de Guixols que se estabeleceram na minha terra e de que ainda hoje lá existe descendéncia. Gente honrada, trabalhadora e bas-tante culta, mas sobretudo orgulhosa das virtudes da sua raca e belezas da sua provincia, do seu trato me veio o conhecimento dos seus poetas, e a curiosidade de lhe visitar a pátria e ver-lhe os monumentos. Numerosas foram, no decorrer da vida, as minhas excursóes pela Catalunha, dando-me ensejo de assistir ao extraordinário desenvolvimento da sua capital a que me afeicoei e onde repetidas vezes fui embarcar para Itália. Em uma dessas ocasióes, esperando vapor que näo apare-cia, a minha demora ali foi relativamente grande, permitindo--me penetrar um pouco mais na compreensäo do complicado problema cataläo, social, religioso e politico, ao passo que vagarosamente, e quase sempře a pé, ia explorando os curiosis-simos arredores da grande cidade. 93 Ao contrario do que me tem sucedido noutros sítios, dos quais a primeira impressäo sobrepuja a quantas me produziram visitas subsequentes, ficou-me desses dias, bem vivo na memoria, um quadro completo, que esmorece ou apaga a lembranca de todos os outros, com a agitacáo tumultuosa do operariado activo, o antagonismo das racas e das crencas, a propaganda sindicalista e a clerical; a expansäo fabril e o fanatismo diligente dos jesuítas e frades, que iam enchendo os arrabaldes de verda-deiros Escuriais18, onde a burguesia aprendia a detestar a liber-dade... alheia. Isto a par do variadíssimo pitoresco da paisa-gem, da prestigiosa Sé, das velhas e modernas igrejas, e do porto cujo movimento poucos igualam no Mediterráneo. Mas a pintura desse quadro (diversáo a que devo renunciar por grande que seja a tentacäo de a fazer) näo tem oportuni-dade neste relato, ao qual desejo dar o carácter de simplicidade maxima, em linhas sem atavios e tracadas rapidamente. Flanando uma bela manhä pelo cais, assisto ä chegada de um grande vapor, todo pintado de preto, em cuja popa tremu-lava a bandeira italiana. Tomo informacöes: chamava-se «Arno», vinha do Brasil, e seguia nessa tarde para Génova. Corro ä agéncia a comprar bilhete. — Passagens em primeira classe näo há, porque o vapor só tem segundas (alem das tercei-ras), porém muito melhores do que as primeiras de outros vapores — diz-me o empregado, mas num tom falho de con-viccáo, mole, e sem mostrar o mínimo interesse pelo caso. Resolvo-me, apesar de tudo. Ás trés horas embarquei e fico estarrecido com o espectáculo que o tombadilho do «Arno» me oferecia. Por todos os lados se viam grupos de criaturas esquálidas e andrajosas, em volta de fogareiros onde assavam sardinhas; grupos semelhantes aos que se topam nas vielas imundas de algumas das nossas aldeias marítimas, como Alvor... O criado de bordo, besuntáo e descortěs, mal me atende para declarar que nenhum camarote me fora reservado: — Se quiser espere pelo capitáo, que foi a terra e náo deve tardar — concluiu. Pelo que me informa um marujo da tripulacáo, o barco era exclusivamente destinado a emigrantes, e a gente que se encontrava na tolda consistia no refugo das Pui'lhas e das Sicílias, vomitado pelos Brasis e Uruguais. Decido voltar para terra, mas quando acenava a um bote para que viesse buscar-me, descubro outro bote, já perto do vapor, com duas elegantes senhoras sentadas trazendo molhos de ťlores nos regacos. Detenho-me a observar para onde iriam. Věm para o «Arno»! Atracam á escada. O mesmo marujo das inřormacóes anteriores afirma que sáo passa-geiras, para as quais há camarote reservado. Uma delas levant..--se. E alta, grácii, serpentina. Acompanham-nas dois homens ainda novos e bem postos. E toda esta gente para o «Arno»? Entáo eu também posso ir nele. Os homens sáo o médico de bordo, rapaz de trinta anos e um primo de vinte, tipos venezianos, loiros, quase imber-bes, com ares — e o aprumo — de S. Jorges19 que já venceram dragóes. A senhora alta, que primeiro se levantou, é mulher dum oficial de marinha e regressa a Itália, após longo cruzeiro em navio de vela para fortalecer os pulmóes; a outra que se cháma Cordelia — rapariga muito nova, de cabelos adamascados, pescogo delgado, cintura fina, quadris largos e rebeldes, harmonizando-se na curva das coxas — é dancarina e trabalhou todo o Inverno como «corifea» do corpo de baile do teatro «Lyceu». Ambas piemontesas e naturais da mesma terra, aonde agora váo em curta visita. O capitáo chega em seguida e designa-me um camarote de oficial, excelente. Mas que figura, esse capitáo! A assime- 94 95 tria natural do rosto, aumentada por urn enorme inchaco da face direita, dá-lhe aspecto monstruoso, e os olhos, cuja luz desfalecia, apagando-se por vezes, eram como dois pequenos calhaus humidos, tanchados em sanguinolentas cristas de galo. Também pouco nos sečou com a sua presenca; sumiu-se para só reaparecer quando chegámos a Génová. As senhoras e eu somos os únicos passageiros, e além de nós trés só o médico e o primo assistem äs refeÍ£Óes. Quando nos sentámos ä mesa para jantar já nos conhe-cíamos, conversávamos, e ríamos como se fôssemos todos amigos de anos. A bailarina fica ao meu lado e eu näo me farto de a remirar, encantado sobretudo com o seu ar infantil e bondoso, e näo sei o qué de carinhoso na curva do seio que me enternecia. Nos seus olhos garcos a luz reflectia-se em cam-biantes. Cordelia! este nome shakespeariano vai-lhe a matar. A mulher do oficial de marinha, senhora de mais de quarenta anos, simpática, de aspecto padecente mas re-signado, conserva tra§os de grande beleza; é amável, faz o possível para nos pôr ä vontade e recolhe cedo ä cama. Jogamos o sete e mezzo todo o seräo, a bailarina sempre a meu lado: as nossas mäos tocam-se, os olhares empecam-se; eu quero perscrutar-lhes a ternura e ela näo se esquiva; um intensíssimo desejo me assalta, secando-me a garganta e a boca... O prestígio que desde moco pequeno atribuí äs bailarinas ateia o amor que comeca; durmo pouco e mal, sempre com a visäo do que séria o seu corpo nu, a perpassar--me na mente... O dia seguinte foi todo de jogos e brincadeiras, näo faltando o inevitável sete e mezzo. Dois beijos dados a furto, logo de manhä, abrem caminho ä intimidade. Desconfio que a «oficiala» näo gosta da minha corte a Cordelia, ou pelo menos que a faca täo descabelada na sua presenca, mas para a tarde já nos isolamos. O mar está mais doce do que seda, porém o ar esfria e eu abafo-a debaixo da minha capa; as nossas mäos prendem-se; a sua voz tem o timbre velado, longínquo e často, mas pressinto que se lhe tocasse no seio desmaiava... Combinámos um encontro, a data čerta, em Turím, onde ela passará duas semanas com a família que a criou e a sua velha ama de leite, que estima ainda mais do que a propria mäe. Cai a noite; os nossos lábios unem-se, e eu pásmo de que se possam separar, de que se näo soldem... Devemos chegar de manhä cedo a Génová, e ofereco-me para a ir acordar ao camarote. Aceita. Naturalmente näo consigo dormir. Ás trés horas bato-lhe ä porta muito de mansinho. — Entre — murmura a sua voz quase apagada. Empurro a porta que range levemente, o que me sobressalta e agónia; porém nenhum rumor se ouve. Os meus olhos, acos-tumados ä escuridäo, distinguem um braco nu cuja mäo acena pela abertura da cortina do leito inferior. Aproximo-me de rastos e beijo a mäo, o braco. A mäo puxa por mim. Abro a cortina e beijo-a toda: o seio, o ventre, as coxas... Sonho? näo; loucura, transporte, éxtase... Os bra$os frágeis, os seios pequeninos e túmidos, as coxas volumosas e marmóreas... Mas a companheira acorda, ou julga oportuno dar-se por acordada. — Cordelia, quem está aí? — exclama. Siléncio; a mäo que por mim puxou acaricia-me demoradamente o rosto e logo assinala a necessidade de me ir embora. Desembarcámos juntos e acompanho-as ä gare onde nos despedimos. — Até breve, em Turím... — segreda-me ela. Sob a impressäo daquele corpo airoso e leve, Génová parece-me outra. Nem reparo na frialdade rígida dos seus imensos palácios de granito. Corro ä igreja da «Annunziata» 96 97 onde passo quase o dia todo, deliciando-me com a alegria do seu faustuosíssimo barroco, a que táo intimamente se casam as pinturas... e o estado da minha alma. Ao dia seguinte ponho-me a caminho de Turim, pas-sando por Miláo, Brecia, Verona, Vicenza e Padova. Aqui encontro, no café «Pedroechi», o médico de bordo, o primo, e a irmá děste, que é noiva daquele e cuja fisionomia nunca mais esqueci: těsta de cinco pontas, olhos ridentes, lábios vermelhos corao gomos de laranja de sangue. Jantámos juntos, visitámos a feira e assistimos ao espectáculo do circo, onde descubro uma «voltigeuse» que muito faz lembrar Cordélia, o que mais me exacerba o desejo, a ánsia de a rever. Será isso depois de amanhá, sem falta; conforme as indicacóes precisas que me deu, vou chegar a Turim trés dias depois de ela lá estar e procurá-la-ei ás cinco horas da tarde, como expressamente recomendou. Apeei-me em Turim já perto da meia-noite; dormi regaladamente, despertando tarde com o coracáo e alma em pleno azul. Mas o dia foi horrorosamente longo. Vou ao museu que é encantador mas nao me distrai; subo ao posto alpino cujo panorama táo-pouco me entretém; a cidade, sombria e regular como tábua de xadrez, parece que torna as horas mais compridas... Os jornais da terra anunciam uma série de catástrofes, onde figura um pavoroso incěndio; que diabo me importa a mim que o mundo arda! Porém o mais escandaloso foi a indiferenca — quase irritacáo — com que li no Petit Journal a notícia do suicídio do meu amigo Marechal, o elegante oficial belga, companheiro de tantos meses seguidos de alegre vida mundana: — Podia muito bem ter-se matado noutra ocasiáo — foi a oracáo fúnebre que lhe rezei... Alfim aproximam-se as cinco horas da tarde. Torno um trem, leio, soletrando, na carteira o complicado endereco, e tenho uma inconsciente surpresa, de que so depois me lembrei, ao ver a facilidade com que o cocheiro o entendeu, exclamando: — Ah! ja sei — e partindo sem mais explicates... Quando entravamos numa larga e extensa rua, onde o movimento de carros e de gente era intenso, o cocheiro voltou-se para mim e indicando um alto predio bradou: — Ali esta a casa do incendio... Apeei-me meio tonto, mas ainda sem perceber clara-mente que ligacao haveria entre a casa incendiada e o endereco que buscava; pronto porem me esclareci: o numero era o mesmo. Entrei ja tornado de panico, e quando estava pedindo informagoes a alguem que parecia representar a autoridade, uma velha lavada em lagrimas, que nos escutava de um banco proximo, levantou-se e encarando-me balbucia entre solucos: — Eo senhor... e o senhor aquele que a minha desgra-cadinha esperava... Era a ama de Cordelia. Soube entao que a bailarina fora uma das vitimas da catastrofe, e do seu Undo corpo torrescado so escapara, intacto, o braco direito, aquele mesmo que pendia nu, a beira da cama, quando eu entrei no camarote para a acordar... Djidjelli, Fevereiro, 1934. 98 99