General — Olha o canalha! Lojista — Ainda no ano passado ele comeu bolos de borla e a farta durante a Quaresma e, perto das Endoencas, quando Ihe foram pedir esmola para o «Senhor morto», respondeu: «La dinheiro, nao. Nao posso. . . Mas man-dem-me o santo ca para casa um mes que eu lhe darei cama e mesa...» General — Irra que já é mos ao gamäo? Doutor — Pois vamos lá. . . Ó, doutor, e se nós fôsse- VENUS MOMENTANEA Vento mareiro fresco, encapelando levemente a água em ondas verdes, floridas de espuma efémera. Aragem que sacia os pulmóes . . . A sombra de um leixäo, deitado na areia seca e fina, eu lia versos, respirando o ar iodado, ou corria com a vista a curva do vasto horizonte, embalado pela cangäo cristalina do mar. Perto da praia, o casco todo negro, pesado e sem graga, de um vapor, com uma grande bandeira vermelha des-fraldada ä popa, e logo o contraste: um iate cinzento-claro, que se balouga com elegancia. De todos os pontos do horizonte surgem a cada instante as velas dos batéis de pesca, velas agudas, que se cruzam como asas simbólicas, que se perseguem, que se reviram e parám, que prosseguem dispersas, precipitadas numa de- 102 103 sordem de fuga, ou caminham regularmente em grupos, de conserva, e tudo vai direito ä barra, cuja entrada estreita um rochedo esconde. Outro batel, com a vela toda panda, sai, sozinho, a barra e entra no mar saltando sobre as ondas de vidro verde, franjadas de espuma, como cavalo fogoso que atra-vessa um prado cheio de erva. O céu, de um azul intensíssimo, esrá como que espon-jado de pequenas nuvens; a Ponta do Altar perfila-se com o seu recorte siracusano, e pouco a pouco, ao declinar do Sol, acende-se em oiro. Vai vazando a maré, alargando-se a mais e mais a faixa de areia molhada onde o céu se reflecte como num infínito espelho . . . Era a hora da tarde em que os banhos recomecam, e como de costume, naquela praia cheia de recortados lei-xoes, os banhistas despiam-se junto äs rochas, pendurando nelas o seu fato. Em volta do leixáo, a cuja sombra eu me acolhera, havia roupas de mulheres, que sem dúvida pertenciam ao grupo de serrenhas que ali próximo, de mäos dadas e soltando gritos selvagens, tomavam ä babugem da água um desses infindáveis banhos aconselhados pelos preceitos da higiene sertaneja. Pareceu-me reconhecer nelas umas criaturas sem interesse, com quem amiúde me cruzara pelos caminhos, entre as quais sobressaía čerta moca forte, feia e espadaáda, que andava sempře de olhos baixos, exibindo um pudor que ninguém, certamente, desejaria ofender. Naturalmente, a minha vista näo se distrafa do encanto da paisagem ou da intimidade do livro, para seguir no banho as evolugöes mais ou menos grotescas daquelas sereias, quanto a mim muito pouco ou nada voluptuarias, e foi assim que elas safram do mar, e vieram para o leixäo onde estava a sua roupa, e ao qual voltava costas, sem eu dar por tal. De repente senti que alguem tossia, fazendo-o para chamar a minha atengäo. Voltei-me instintivamente: era a serrenha pudenda que se limpava, acocorada, numa an-fractuosidade da rocha que formava nicho. Täo depressa verificou que se encontrava em foco, ergueu-se, abriu os bracos e soltou o lencol. Prodigio de elegäncia, perfeicäo e graca escultural, se me patenteou entäo o seu corpo enrijecido pela frialdade da ägua, cujas gotas ainda Ihe escorriam pela carne marmörea. O peso da ägua afeigoara-lhe na cabeca hirsuta um toucado de estatua antiga, e os seios disparavam como duas pombas que väo voar. Impassivel, sem um sorriso, e lentamente — tal uma estatua em pedestal mövel —, ela rodou sobre si mesma, franqueando ä minha vista söfrega as mais secretas maravi-lhas do seu corpo. Terminada a volta, agachou-se, meteu-se no lencol e chamou por outra mulher, que a veio limpar. Dai a nada passava por mim ja vestida — entrouxada nas suas vestimentas de serrenha lorpa —, arrastando os sapatos de bezerro, estüpida, a boca mole e inexpressiva, os olhos baixos . . . 104 105 í Espreitei-a depois, no banho, vezeš sem conto, a ver se a cena se repetia, mas inutilmente. Outras tentativas, de natureza mais prática, foram igualmente infrutíferas . . . Concluí que assistira, por acaso, á passagem pelo seu corpo de uma alma de nereida encontrada dentro de água e enganada pelo aspecto helénico daquela praia. . . DE LONGE . . . Melancólico domingo de Páscoa, aberto com a leitura de uma dessas enternecedoras cartas, ingenuamente senti-mentais, onde vém marcadas as palpitacôes do coracäo que as ditou. Concentrou-se-me a alma gravemente, logo limpa de todo o aparato inútil. . . O pensamento levou-me entäo para muito longe de aqui, a reconstituir cenas de uma grande intimidade, que melhor me fizeram sentir este duro isolamento, entre muitos milhôes de criaturas a quern me näo liga afeicäo alguma. Saí. Num square proximo — onde os rebentos verdes já pungem, aveludadamente, a superfície tosquiada da sebe negra que acompanha a grade — algumas criancas brinca-vam sobre a relva, vestidas de claro, os cabelos soltos. 106 107