Omeu quarto na hospedaria «Fra Giaccomo», em Smirna, era uma gaiola de vidro suspensa sobre o mar, e isso concorreu muito para que eu ai me demorasse mais do que projectara. Näo que o panorama fosse risonho; bem pelo contrario. A desarmonica imensidade do golfo, a disposicäo das esmagadoras montanhas vizinhas, a cidade que näo brilha, com o seu casario escuro apinhado nas encostas, nas alturas recortadas de ameias, restos de arruinadas fortificacöes antigas, todo este conjunto for-mava um quadro melancolico. E a pretensiosa fachada ita-liana da cidade (existirä ela ainda?) que levantaram sobre o cais, ä semelhanca de Messina, era mais urn engano que a ninguem alegrava nem contentava. Depois, a situacäo moral dos habitantes (dominio de dez mil turcos sobre tre-zentos mil italianos, gregos, armenios e judeus), os re-ceios, os terrores mal disfarcados da populacäo crista, a qual dir-se-ia que julgava proxima e inevitavel a chaci-na exterminadora com que os muculmanos a ameacavam, diariamente e sem rebuco, junto a uma profunda crise economica, alimentavam a atmosfera de tristeza que a 103 paisagem, com os seus inúmeros ciprestes, por seu turno acentuava. Porém o meu amor ao mar, e essa gaiola de vidro, onde eu pairava corao se andasse embarcado, retinham-me (em-bora um pouco a meu pesar) a ponto de conservar o quarto de minha conta durante as várias e clássicas excursóes, de que Smirna é o centro obrigatório e das quais as célebres e importantíssimas ruínas de Efeso constituem o principal objective Mas náo devo esquecer, como nota aprazível, as aldeias na margem do golfo fronteira a Smirna, onde amiúde ia espairecer; pontos de veraneio, desabitados na estagáo em que ali permaneci, mas recamados de jardins encantadores e bem tratados. Entáo floresciam as tulipas, os jacintos e os lirios, em longos canteiros ovais, como caudas paradas de fabulosos pavoes. Arranquei-me de Smirna com dificuldade, aproveitando o paquete russo «Tchikachoff», que por ali fez escala direito a Constantinopla, ponto extremo da minha viagem. Um agigantado marujo, no alto da escada de bordo, recebe a bagagem dos passageiros, brincando; apanhava e distribuía malas e caixas de enormes dimensoes como se fossem cartonagens de chocolates finos. Por todos os lados, na tolda do imenso barco, a confusáo e o movimento sáo intensos: há centenas de soldados russos que voltam da ilha de Creta (em cuja baia a esquadra do tzar permanece, pronta, dizem, para intervir no conflito turco-grego), e tantos ou mais peregrinos, da mesma nacionalidade, que regressam de Jerusalem. O tipo dos peregrinos, com o cabelo comprido e a barba em leque, tem um corte de rigorosa uniformidade que surpreende. Olhos cándidos na aparěncia, mas que se esquivam e cuja expressäo é absolutamente incoercível. O vapor levanta ferro lentamente e os soldados entoam um desses hinos corais de que os russos possuem o segredo, em harmoniosas massas de milagrosa disciplina; respondem--Ihe os peregrinos em largos cantos, mais vagarosos e profundos, de acentuado carácter religioso. Sobem todos os passageiros ao tombadilho, e ä frente dum cortejo de fardas reluzentes adianta-se uma criatura de lenda, figura de Brunehilde20, que julguei evocada dos «Nibelungen21» (eu andava entäo saturado de wagnerismo), cuja imagem nunca mais se me desvaneceu da memoria, tal qual a vi nessa tarde gloriosa. Será de mais dizer que os seus olhos brilhavam como estrelas? E o ritmo dos movimentos, a frescura da pele, a graga do riso! Sentia-se-lhe a carne firmě escorregar debaixo da roupa, que antes lhe descobria do que lhe vendava as formas. Tudo se adivinhava suavemente modelado mas livre. E o peito? sob a alvíssima seda da blusa os seios disparavam, como duas cidras, erguendo os bicos... Ela avanca, ä frente do cortejo de fardas doiradas, como que embalada nas harmonias do coro, tal uma imperatriz asiática, ou uma deusa. Percorre assim uma boa parte do convés; todos lhe abrem caminho e seguem-na com olhares acesos em lascívia. Evidentemente o seu corpo exala eflúvios de amor; a sua presenga é afrodisíaca e levanta nos coracoes revoadas de desejos. Lentamente, assim como apareceu, após repetido circuito, desaparece, levando consigo todo o cortejo de fardas doiradas, ao som de um patético coral que já parece lamentar-lhe a auséncia... Na sala de jantar os oficiais sentam-se em volta de uma grande mesa oblonga, a cujo topo, a presiděncia, está a poltrona reservada para a formosa Brunehilde. Faz-se 104 105 esperar, e é de ver a repentina e concertada rapidez com que as fardas doiradas se erguem ä sua chegada, as respeitosas cortesias com que a acolhem, e o gesto de soberana com que ela Ihes ordena que se assentem. Vem ricamente vestida. Sobre o corpete de brocado roxo, em redor do pescogo e caindo-lhe até meio do peito, uma artística renda de oiro e pérolas; os braceletes, mais largos que a mäo travessa, de platina fosca e iluminados por esmaltes bizantinos, no mesmo estilo do enorme diadema que lhe cinge a cabeca e dos brincos desmedidos que lhe tocam nos ombros. Con-junto hierático, suavizado pela docura do seu sorriso, e pelo modo como os seus dedos brancos, de luar, acariciam tudo em que tocam... Sorrindo encontra o meu olhar idólatra... Sorri mais docemente? Sorri sempre. Sorri aos que a adoram e como que lhe dirigem oracöes; sorri com um sorriso de parada, disfarcando o pensamen to que roda näo se sabe por onde; sorri lá do outro mundo, como deusa que é; mas por vezeš endurecem-se-lhe as feicöes, numa expressäo de orgulho, fugaz como um relämpago... E evidentemente uma criatura excepcional, e causa surpresa ve-la comer como qualquer outra mulher o faria. Levanta-se antes de findar a sobremesa, e reaparece no convés ao por do Sol, cercada dos seus escravos cujas fardas ainda mais reluzem, enquanto soldados e peregrinos en-toam outro hino, de sedas agitadas sobre mares de violeta, ao sol que morre... Os meus olhos perseguem-na, ela porém näo os pressente, alias o seu sorriso näo seria assim cada vez mais doce... Quem é esta mulher; a que jerarquia pertence; como se chama? Nenhuma das pessoas que interrogo, incluindo o imediato, me podem ou querem informar; julgo até des- cobrir no modo como este ultimo acolhe o meu inquérito o quer que seja de misteriosamente zombeteiro... Á noite, no saläo, reclina-se num divá e os oficiais cercam-na como triplice muralha doirada a defender um tesoiro unico no mundo. Para melhor a contemplar vou espreitá-la, do tombadilho, pelas janelas do saläo. No seio da noite os meus olhos devem fuzilar, porque de repente ela sustém o sorriso e aponta para onde eu estou, com ar alucinado, como quem vé um espectro. Mas o seu rosto logo Serena, sem que nenhum dos seus escravos aperceba o olhar de fogo com que, da escuridäo da noite, lhe abraso a carne. Essa calma foi talvez um disfarce, para desviar a atencäo do séquito, do espectro que divisou; todavia näo a pode manter; altera-se-lhe novamente a expressäo da fisionomia; inquieta, medrosa, fixa ansiosamente a janela donde a contemplo, busca penetrar o mistério da minha presenca; e subitamente, tapan-do os olhos com ambas as mäos, levanta-se e despede-se, fazendo sinal de que a deixem ir sozinha, porém nenhum dos oficiais a abandona e toda a escolta desce com ela a escada, acompanhando-a, sem dúvida, até ä porta do seu camarote... Fico ardendo em luxuria, e fumando sem cessar entre-tenho a minha insónia passeando no convés até quase manhä. Para complicar a situacäo, a atmosféra de sensua-lidade intensifica-se com a presenca de um marujo que, eu já notára de dia, adolescente de expressäo felina, imberbe, com a boca de delicado recorte (cujas comissuras comprime sem descanso) se cruza comigo centenas de vezes, na estreita passagem entre a amurada e a parede do saläo. O seu olhar fosforece, provoca-me, persegue-me, acaricia-me... Ao dia seguinte magnificéncia azul de mar e céu espe-lhados. Desse luminoso quadro a deusa surge, sempre com o seu cortejo rutilante. Vem envolta nas pregas dum roupäo de 106 107 í veludo cinzento, bordado a azeviche, a cabeca descoberta, com dois fartos bandós de cabelos loiros muito alisados, onde brílham aqueles mesmos tons argé.nteos que o Velasquez punha no penteado das suas infantas. Vem fresca, vicosa — rociada como rosa de Abril. De longe o meu olhar a saúda; reconhece-me? sorri para mim? mas foi um reläm-pago: ilusäo, certamente. Cerra-se-lhe em volta, mais ciosamente, o círculo de oiro das fardas submissas. Essa impenetrável muralha, porém, já a näo isola nem a defende do meu olhar desejoso, ávido... Mas vamos entrar no Bósforo; eu fico em Constan-tinopla e ela decerto segue para a Russia. Näo tem pois nada de estranho que aceite ou corresponda agora äs oracôes que Ihe reza o meu olhar. Conheco a cruel artimanha, de que a experiéncia da vida me deu já tantos exemplos, com essas mulheres de acaso que, sentindo-se desejadas, adoradas, correspondem sem pejo aos olhares gulosos de quem sabem ou supôem que vai partir e nunca mais se encontrará, só pelo prazer de lhe envenenar a existencia. Deixá-lo; gozemos o mom ento presente, que o futuro a Deus pertence. Há instantes em que os nossos olhares se prendem e percorre-me o corpo uma onda de fogo... Comecam a divisar-se os minaretes de Constantinopla; o panorama sem par da prodigiosa cidade desenrola-se lentamente, aos clarôes de um sol que brilha entre as pompas fulgurantes que lhe preparam o ocaso. O «Tchikachoff» lanca ferro. Já os criados trouxeram para o tombadilho a bagagem dos passageiros que väo desembarcar e estäo pegados äs amuradas, embevecidos no maravilhoso espectáculo. Eu vou ao meu camarote, mais para me despedir do que para verificar se lá me ficou alguma coisa esquecida. Volto com as lágrimas nos olhos. Mas ao chegar á escada, que é de dois lancos e forma uma espécie de gruta imersa em trevas, enxergo o seu vulto. Vem sozinha. Como um louco, desvairado, vou para ela, tomo-a nos bracos, deito-a sobre o divá; as minhas máos sófregas percorrem-lhe o corpo, os meus lábios ardentes desalteram-se na fonte clara dos seus cabelos, no perfume dos seus olhos, no sumo da sua boča, e parám um instante no seu pescoco com um táo violento beijo de vampiro que ela recua e parece querer fugir. Mas eu tenho-a bem presa nos bracos que sáo de ferro. Mordo-a na boca que se abre e cede como um fruto maduro; mordo-a brutalmente e chupo--lhe os dentes como se fosse bagos de laranja. Ela solta um profundíssimo suspiro, beija-me e... desmaia. Que tempo důrou esse delírio?... Ela levanta-se arreba-tadamente e como que voa pela escada acima; eu fico ainda um momento pasmado, o corpo todo embalsamado em gozo, mas com o sentimento de que cometera uma accáo má, envergonhado de lhe aparecer. Na máo fechada tenho um punhado de cabelos (arrepelados brutalmente num derra-deiro e insensato esforco para a reter) que remexem como se estivessem vivos..., guardo-os junto ao peito, recordacáo para o resto da vida. Subo ao tombadilho, gratifico o criado, embarco no bote onde me espera a bagagem, tudo maquinalmente, como se esti-vesse sonámbulo. Sentado no bote nem ouso levantar os olhos para o vapor, mas faco-o, por fim, a medo, e vejo-a que me acena com o seu lenco de rendas, com grande espanto dos escravos que a encaram escandalizados... Bougie, Margo, 1934. 108 109