106 | Miguel Torga mava sempre. E o balido insistente acabou por acorda-lo para a realidade simples da sua vida de pastor. Ergueu-se, desceu da alta fraga engana-dora, e, de ouvido atento, foi direito ao quei-xume. - Olha, era a Rola... Um cordeiro acabara de nascer e a mae lambia-o. 0 outro estava ainda la dentro, no misterio do ventre fechado. Mariana - Meu rico fllho! Dava-o agora assim de mao beijada! Nao que ele custou-me a parir e a criar!... Julho, era por toda a parte a mesma ver-dura a ondular e a mesma esperanga a sorrir. A terra bebia o sol e a humidade, espremia--se depois quanto podia, e atulhava o mundo de folhas, de flores e de frutos. Mariana, com o filho ao colo de cabeca a reluzir, ia andando e monologando. - Nao me faltava mais nada! Tenham-nos. Facam por eles, ora o canudo! No Caleirao, mesmo a beira do caminho, o Julio Pessanha regava. - Deus o ajude! - Vem com Deus... A enxada nas maos do trabalhador deu o gol-pe, e a terra fofa, como uma mulher sofrega de amor, bebeu de um tragb a levada que a beijou. - Aonde e a ida? - perguntou o Julio, da leira, enquanto a nascente ia acalmando a embelga. 108 Miguel Torga >i(ivos Contos da Montanha 109 - Justes - respondeu Mariana, sem convic-cao. - Justes ou Gache, conforme. Parara e olhava enlevada o rego de agua a correr. Esteve assim algum tempo, enquanto o Julio a olhava a ela por sua vez, abrasado de calor. - Sao horas... - Tens tempo, mulher!... Espera um miga-lho, que te acompanho ate ai acima... - 0 que voce quer bem sei eu... - E entao?... Mariana riu-se, meteu o bico do peito na boca do filho e esperou. - Sao so mais tres talhadoiros - prometeu o Julio, apressado no desejo. - Ande la... Calma, sentou-se entao numa anteira, com a mao direita a alisar docemente a penugem da crianga. Depois, quando o Juno acabou, er-gueu-se e foi caminhando a seu lado, na paz simples de quern ia por bom caminho. Nas mi-nas, pos a crianga a sombra de um carvalho, sobre o chaile, e deitou-se um pouco adiante entre as giestas, onde o Julio a esperava ja... - Adeus - disse no fun, sem olhar o homem. - Entao adeus... Pelo caminho fora, na tarde quente, o seu corpo tinha agora uma frescura de terra mo-lhada. 0 filho, farto, dormia-lhe no colo. E Mariana, feliz, continuou o monologo inter-rompido. - Hä cada uma! Dar-lhe o menino! Näo fal-uiva mais nada! Umas a te-los e outras a gozä--]os... A gente ve coisas!... Na veiga de Justes, com olmos ä beira do caminho, o corpo e as palavras que dizia per-deram-se na sombra da ramagem espessa. I- so tres anos decorridos e que passou nova-mente por all, agora acompanhada de duas criancas, uma menina de peito, e um perl ueno, descalco e ruco, que ia levando pela mäo. - Deus o ajude! - Vem com Deus... Era o Joaquim Fortunato, no lameiro, a ar-ralar milhäo. Nos bracos rijos do cavador, o molho de verdura tümida era como um corpo de mulher a tentä-lo. - Ate onde e a ida? - Pedralva - respondeu Mariana ao calhar. - Ou Jurjais. E conforme... A pequenita, a babar-se, dormia. 0 rapazi-nho, extenuado, aninhou-se na relva do caminho. - Tu sentas-te? - ralhou Mariana, carinho-samente. - Tou canchado... - Deixa descansar o rapaz - disse de lä o Joaquim Fortunato. - Ele merendou? 0 pequeno acenou com a cabega a dizer que näo, e o mondador pousou a bracada de relva e foi-lhe buscar päo e queijo. 110 I MiguelTorga i - Também queres? - perguntou depois a Mariana. - Se faz favor... - Mas hás-de entáo vir cá... Tinha o farnel ao fundo da leira, á sombra de um freixo que cobria a poca, com a cabaga de vinho metida na água a refrescar. Mariana deitou a filha adormecida no xaile, ao pé do irmáo, e saltou a pare de. - Volto já. Náo me demoro. Foi, comeu, e em seguida o mesmo calor que já duas vezeš a inundara apareceu-lhe no sangue a uma palavra do Joaquim. - Com esta náo contava eu... - comecou ele, a olhá-la e a passar a máo pelo cachaco. Ela riu-se. E pouco tardou que náo sentisse extinto o lume que principiava a queimá-la também. - Vamos lá embora, meus filhos. A pequenita olhou-a com os olhos azuis do Júlio Pessanha, sem ver nada. O rapaz é que reparou que a máe tinha terra nas costas. - Adeus. - Até qualquer dia... O Joaquim Fortunato flcou com o gosto na boča daquele momento inesperado e sabo-roso. Por isso despediu-se reticente e, sempře que podia, vinha até á veiga na esperanca de ver outra vez passar o corpo aberto e gene-roso de Mariana. Novos Contos da Montanha 111 Mas o milho amadureceu, chegou o Inverno, a terra cobriu-se novamente de verdura, e nada de a mulher aparecer. Andava longe, por termos de Vessadios, e [oi em plena serra dos Corvos que uma mail ha o Lopo deu por ela a atravessar o reba-nho. - Deus o ajude! - Vem com Deus... Trazia agora tres filhos, um casal a pe, e nos bracos um terroso cachopinho, a car a do Joaquim Fortunato por uma pena. Era Marco e fazia ainda frio. No monte or-valhado, que o palido sol da manha ia enxu-gando devagar, brilhavam teias de aranha, es-tendidas, a corar sobre os tojos. 0 pastor acendera uma fogueira. E o fumo das car-quejas molhadas subia ao ceu lentamente, lasso e voluptuoso. - Aquecam-se. Chegaram-se todos as lambras. Agasalhadas na la, placidas, as ovelhas pas-tavam. 0 laboreiro, deitado ao pe do borralho, dormitava. Uma contida paz cobria tudo. - Nao te fazia agora por estes sitios - co-megou o Lopo, a enrolar um cigarro forte. Mariana sentiu outra vez o sangue a ferver--lhe pelas veias fora. A fogueira precisava de lenha. - E se nds fossemos a uma meda de rama, que ha ali adiante, buscar um bragado dela? 112 j Miguel Torga i Mariana calou-se. 0 lume, por dentro, con-tinuava a queimá-la. - Pôe aí o pequeno - ordenou ele. Ela obedeceu. E, logo adiante, num valado, sobre gabelas secas de mato, o seu corpo šeřenou. - Vamos, meus filhos - disse pouco depois, antes mesmo de deixar cair sobre os ticôes apagados a caruma que trazia. - Vamos, meus filhos. Os dois maiores ergueram-se, e o peque-nino ficou a olhá-la do chäo, inquieto, sôfrego de colo e de peito. - O rapaz já podia comegar a servir... Eu, com a idade dele, guardava cabras... Queres tu deixá-lo comigo? - propos o Lopo. -Deixá-lo?! Pelo caminho fora a palavra soava-lhe co-mo um zumbido atroz nos ouvidos escandali-zados. - Deixá-lo! Há cada uma! Ia agora deixar--lhe o menino! Nas matas do Vale-Fundeiro o protesto ti-nha o tamanho e o vigor dos castanheiros sem idade que ali cresciam. E só ao chegarem ä veiga de Constantim é que aquela revolta se atenuou, desvanecida pouco a pouco pela ver-dura sedatíva dos lameiros. - Isto é que é terra! - riäo se conteve o pequeno mais velho, com o instinto campónio do Custódio, o pai, a brilhar-lhe nos olhos. Novos Contos da Montanha 113 - E como as outras, que mais tern? - res-pondeu Mariana, sem atingir a fundura do grito. - Olhe la que nao seja! Mariana nao podia entender a voz ancestral que irrompia da natureza virginal do fi-|ho. A terra parecia-lhe uma, indivisivel, ni-velada na mesma serenidade e no mesmo destino de criar. Aqui, ali, acola, cerros ou descampados, varzeas ou costeiras, eram si-tios iguais, que calcorreava sem distinguir a qualidade do barro que se lhe agarrava aos pes. Compreendia tudo, menos o afeicoamento da perdiz ao monte nativo. Todos os horizon-tes lhe acenavam da mesma maneira. Em qualquer mata miiida paria naturalmente e atras de qualquer parede recebia a seiva de uma nova vida. Nao. Nem entendia o rapaz a gabar os lameiros de Constantim, nem a sen-sualidade do Jeremias Manso a querer fazer dela um simples instrumento de prazer. - Outra vez... - pedia ele, ao ve-la erguer--se, honesta e pura como uma leiva semeada. Nem sequer respondeu. Saiu do centeio, pos-se.a frente da ninhada, e retomou o caminho da sua aventura. So em Ordonho abrandou a marcha. - Quantos sao ao todo? - perguntou o Paul, que ja nao via bem, quando o rancho lhe pas-sou a porta. - Sete - respondeu o cunhado. 114 I Miguel Torga - Valha-nos Deus! Que desgraca! As rapa-rigas estäo mulheres feitas e a mäe a dar-lhes um exemplo daqueles... Mas já Mariana ia longe, alheia ao zelo do velho satiro. Pedia: se davam, davam; se näo davam, deixava os filhos matar a fome nos soutos, nos pomares ou nas vinhas, e a quem tentava, de uma maneira ou doutra, dividir a perfeita unidade que formava com a prole, respondia a rugir como uma leoa ferida. - Criada?! Ia-lhe agora dar a menina para criada! A gente ve cada uma! De lhe comprar um farrapo para se vestir, näo se lembrou a senhora. Criada! Que conveniéncia!... Aservir ponha as filhas, se näo lhes tem amor... Agora as minhas, está bem livre! Ia já nas matas do Bouco e a indignacäo continuava ainda. - Criada! A palavra, dita por intencäo da sua Zul-mira, parecia-lhe um insulto sem perdäo. - Fala ä gente!... Mariana nem o olhar se dignou concentrar no rosto desejoso do Lopo. O seu ventre estava já fecundado pelo Guilherme da Póvoa, e o Lopo, como os outros, passada a hora, näo sig-nificava nada, nada, na sua lembranca. A pu-reza com que se entregava tocava-os de uma forca criadora e irresponsável que os imateria-lizava como deuses distantes. A terra humilde era ela. Eles actuavam apenas como o vento, Novos Contos da Montanha 115 que traz a semeňte, e passa. Mas todos teima-vam em permanecer ligados ao doce sabor de um minuto, e queriam-na segunda vez. - Nos montes de Vessadios, näo te lembras? - Vossemecé está maluco! Eu conheco-o lá! 0 Lopo näo queria acreditar no que ouvia. E por orgulho ofendido, frouxo aceno do san-gue e mágoa de solitário, teve um gesto: - Conhecas ou näo conhegas, já pariste de mim. Por isso, quero o pequeno. - Que pequeno?!! - perguntou Mariana, as-sombrada. - Aquele. O chegado ä de vestido as riscas. - O meu Jorge?! O homem é doidinho! Os filhos säo meus, muito meus! Atreva-se a pôr--lhes a mäo, se quer ver... 0 pastor tinha-se aproximado, num desejo irresoluto de tirar da touceira a vergôntea que lhe pertencia. Näo o empurrava nenhum im-pulso profundo. Era uma reaccäo de momente, sem calor verdadeiro. E como Mariana parecia uma cabra das dele, pronta a marrar äs cegas contra o cäo que lhe farejasse a cria, rleleve os passos que dera sem conviccäo. - Bem, está bem... Mais perde... - disse en-läo, a justificar a debilidade do seu apego ao andrajoso ser a que tinha ajudado a dar vida. - lis parva... Mariana sorriu. E seguida do rebanho in-teiro, lá partiu para Valongueiras, ä esmola de sábado em casa do Sr. Vitorino. 116 Miguel Torga - Essa mulher continua na mesma vida? -perguntou na sala a Marília, que acabara de chegar do colégio com um selo branco na vir-gindade. - Pois continua... - Pouca vergonha maior! - Que se lhe há-de fazer? * - Tirar-lhe as criangas e meté-las num asilo. - Deixa-te de asilos! - reprovou o Sr. Vito-rino, que tivera uma meninice aperreada. - Entáo chamar á ordem os responsáveis! - Vai-lhe lá falar nisso!... - E é que vou mesmo! Ergueu-se cheia de zelo, e foi direita como uma heroina ao encontro do lodacal. Rodeada do bando, Mariana comia em paz na cozinha o caldo caridoso. - Estás boa? - Muito agradecida. Cá vou andando... - Olha lá, os pais dos pequenos náo tomam conta deles? Mariana sorriu, cheia de uma inocéncia que a outra náo entendia. E respondeu, na sua pureza: - Saiba a menina que náo tem pai... Sáo só meus. Natal De sacola e bordáo, o velho Garrinchas fa-zia os possíveis por se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe de mais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Nin-guém dá nada. Tenha paciéncia, Deus o favo-rega, hoje náo pode ser - e beba um desgra-gado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senáo alargar os horizontes, e estender a máo á caridade de gente desco-nhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma codea a um hörnern a meio do pa-dre-nosso. Sim, rezavá quando batia a qual-quer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na ora-gáo, isso era outra conversa. As boas acgöes é que nos salvám. Náo se entra no céu com la-dainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia vi-ver. E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse doutra ma-neira. Muito embora trouxesse dez réis no