O Milagre A mae, com o seu instinto agudo de mulher, a chorar, até ao ultimo momento lhe pediu: - Náo cases, filho. Pelo amor de Deus, náo cases com ela... Acredita que náo é por ser pobre: é por causa da casta... Adivinha-me o coracáo que vais ser muito infeliz. O rapaz, porém, estava cego. Metera-se--lhe a Raquel no pensamento e náo havia razáo que o vencesse. Sabia que náo era bo-nita, e via bem que nunca seria companheira para lhe jungir os bois e rocar um carro de mato. Mas gostava dela sem saber por-qué, doida e teimosamente. Rapariga da sua criacáo, fora sempře adoentada e sorumbá-tica. Apesar disso ganhara-lhe um tal amor que, náo obstante as outras o picarem com ditos e darem a demonstrar que estariam pelos ajustes, acabou por lhe pedir namoro. A rapariga atendeu-o sem grande entu-siasmo e deu-lhe um sim jjue deixaria outro qualquer desiludido. Ele é que náo precisou de mais. 156 j Miguel Torga Mai a notícia constou na terra, ninguém se resignou. - Um rapaz daqueles merecia coisa melhor! - protestavam todos. Embora ninguém pudesse apontar á ca-chopa tanto como urna unha em materia de honestidade e a pouca saúde náo fosse pro-priamente um defeito, havia vários casos de loucura na família. E como o Pedro era uma espécie de principe da aldeia, sáo, alegre e lindo como um S. Vicente, tal uniáo parecia--lhes um atentado contra a natureza. - Homem, vé lá... Pensa bem no que vais fazer... - ponderou-lhe o prior. - A Raquel náo é má pequena... Agora quanto ao resto... Tens de contar com a carga hereditaria... Olha, eu náo digo nada. Resolve tu... Deu-lhe a mesma resposta que dava aos outros: - Casamento e mortalha no céu se talha. A sortě quis assim, sej a o que for. E contra a vontade de todos - menos dos pais da rapariga, mortos por vé-la com dono -, casaram. A princípio correu tudo pelo melhor. Embora náo fosse a mulher de armas de que o rapaz necessitava no comeco da vida, a Raquel lá ia dando conta do recado. Cozinhava, tratava dos vivos, chegava praticamente onde as mais chegavam. Só náo engravidava. E a secura daquelas entranhas, que nos primeiros Novos Contos da Montanha 157 meses náo admirou ninguém, ao cabo de trés anos comecou a causar engulhos ao povo e a inquietar seriamente o marido. Um rebanho de filhos, numa casa de lavoura, é uma ri-queza com que o homem conta no bragal da mulher. E o Pedro, cansado de esperar secre-tamente e em váo o comego dessa colheita, náo pode reprimir a voz do instinto desiludido. - Comprei hoje o lameiro á Margarida... -anunciou certo dia. - Vendi o vinho cá por uma čerta conta... O pior éjse nos andamos a tr;aMlhjx_5MajUíispQ... A Raquel há muito já que empreendia, até aos limites do desespero, na sua infecundi-dade e fizera-se até benzer pela Ana Rosa. Por isso, ao ouvir a insinuacáo, abriu-se num pranto desfeito. - Bem, náo estejas a afligir-te... - consolou--a ele. - Ainda náo é tarde... Quantas há que só ao fim de cinco e mais anos... Desgracadamente, a Raquel sabia que o seu ventre nunca se abriria para nenhum fruto. Desde nova que o negro pressentimento da esterilidade a atormentava. Só por essa ra-záo náo se atrevera a olhar para nenhum rapaz com olhos de terra em pousio e aceitara o amor do Pedro sem dar mostras de conten-tamento. Na altura da declaragáo teve mesmo vontade de lhe confessar tudo. A natureza é que náo se resignou a tanto. Talvez estivesse enganada... Infelizmente, o tempo encarre- / 158 / Miguel Torga I i gara-se de confirmar as suspeitas. E agora sofria duplamente, por se ver incapaz e trai-dora. - Nao. Nunca hei-de ter JBlhos... - respondent entre dois solugos. - Tenho a certeza... 0 homem olhou-a como se a visse pela pri-meira vez. Uma Raquel maninha nao entrava no sou amor. - fu nem a brincar me digas isso! Comecara reticente, benevolo, a interrogar e a compreender. Mas diante da negativa es-treme, irremediavel, passou a uma atitude de desilusao ofendida, revoltada e agreste. Humilhada no que havia de mais profundo na sua condicao de mulher, quanto mais o homem se recusava a encarar a verdade, mais ela, numa perversidade macerada, tei-mava em lhe varrer do espirito todas as es-perangas. - Digo, porque sei. - Como e que sabes? - Sei. Estavam no quarto ano de casados e co-mecou entao o profetizado inferno dos dois. - A Raquel nao pode ter filhos... - confi-denciou ele a mae. - Eu ja calculava... Via-se logo pelo anda-mento! Futurei sempre que dali nunca te vi-ria nada de bom... E se ainda se for aguen-tando assim com algum juizo, tens muita sorte... Novos Contos da Montanha 159 Era a obsessáo da pobre Filomena - a lou-cura da nora. Se iam ao mato juntas, se esco-lhiam batatas, se andavam sozinhas na des-pampa, olhava-a de soslaio de vez em quando, sempre á espera dum gesto, dum esgar, de qualquer manifestacáo do mal que a habitava. Conhecera-lhe um avo zaranza, ouvira falar de um antepassado também pouco católico da mioleira e á máe, embora náo fosse propria-mente maluca, faltava-lhe uma aduela. - Vossemecé para a consolagao... - Bern sei que te aflijo. Mas que queres? Agoura-me o pensamento que mais dia, me-nos dia, tens trabalhos... Oxalá que náo... E nem de propósito. Ou porque estava es-crito, ou apressado pela conversa da vesper a, o certo é que passado pouco tempo, depois de um periodo de exaltacáo em que as lágrimas e as gargalhadas se entremeavam numa vo-lubilidade de folha de olmo, o temporal desa-bou. Vinha o Pedro de ganhar a jorna, por sinal carregado de canhotas para o lume, abriu a porta, e voou-lhe uma faca ao peito. Des-viou-se e ficou transido. A desgraca de que to-dos o tinham prevenido estava á sua frente, absurda e terrível, na figura da mulher, sinistra, de olhos esbugalhados e a espumar. - Ah, Satanáš, que te hei-de matar! - gri-tava ela, como se visse o próprio demónio. E o infeliz, a estalar de angústia, desandou a chave e foi dormir da máe. 160 j Miguel Torgu No dia seguinte näo se falava na terra dou-tra coisa. Passavam a dolorosa notícia uns aos outros afanosamente, numa agridoce emocäo de prescientes e näo ouvidos conselheiros. A crise durou trés dias, repetiu-se pouco tempo depois, tornou a voltar, e alguns anos decorreram naquela triste vida. Em casa do Pedro nem havia paz, nem esperanca, nem nenhuma das alegrias a que tem direito o mais humilde lar deste mundo. As horas de-corriam ä espera de novo acesso, as semen-teiras e as colheitas andavam ä mercé das luas da Raquel, täo depressa cordata como enfurecida. Ate que num Inverno a escuridäo veio e fi-cou. Passou uma semana, passou um mes, passaram dois, e a demente aos gritos, var-rida, fechada no quarto como uma reca num cortelho. - Sou eu, mulher! O Pedro! Näo me conhe-ces? De nada valia. Atirava-se a ele, possessa, e eram precisas forcas sobre-humanas para lhe desprender as garras traigoeiras. O médico há muito que o desenganara da eura. E o desgracado, numa derradeira bra-cada de náufrago, resolveu levar a doente a Mondrôes, a S. Joäo Baptista. Tinha de ir só com ela, como expressamente recomendou a Ana Rosa, que bem ou mal fazia de bruxa do lugar. Espalhava sal em todas as encruzilha- Novos Contos da Montanha 161 das que encontrasse, rezavá a seguir uma oragáo que ela lhe ensinou, e dava dez voltas ao adro da ermida com a endemoninhada. Relutante a crendices, temente a Deus, o Pedro lutara até onde lhe fora possivel dentro das regras do bom-senso e da farmácia. E como nada conseguira, dispós-se a experi-mentar aquela mezinha sobrenatural. Com a ajuda dos vizinhos, amarrou a mulher bem amarrada sobre o macho, e meteu--se a caminho. Saiu de madrugada, num dia de sincelo que embranquecia todas as espe-rancas. Cuidadosamente, mal chegava a qual-quer cruzamento, atirava a máo-cheia de sal e rezavá a prece. Depois, alheio aos olhares invisíveis e rancorosos dos espiritos maus, que a feiticeira lhe garantiu que o espreitavam, se-guia. Apanhou-os o alvorecer em plena serra, no Alto Cabeco, um ermo de causar calafrios. A doida, cansada dos arrancos que dera, ia agora mais calma, a monologar tolices que ele nem queria ouvir. O macho choutava sobre o codo, resignado. E o Pedro, á frente, de rabeira no braco e máos nos bolsos, arrastava animosamente a sua cruz. Pelas alturas da Tamargueira, a Raquel teve nova fúria. Esti-cava as cordas, fazia oscilar o animal, dava gritos desmedidos e pavorosos, que as fragas devolviam num eco de arrepiar. Outro escon-juro e outra salgadela ao terreno lá fizeram 162 I Miguel Torgu amainar a tempestade, e a peregrinagao podo continuar. Chegaram tarde a capela. E, depois das vol-tas do preceito e das rezas recomendadas, a doente nao parecia a mesma. - Estou boa, homem! Estou curada! Podes--me desamarrar... Farto de desilus5es, o Pedro fez ouvidos de mercador. Deu grao ao macho, estendeu a mulher um pedago de frango do farnel, comeu ele, e resolveu aguardar os acontecimentos, a ver se o milagre tinha solidez. Entretanto, o tempo comecara a enfarrus-car-se e leves flocos de neve surgiram no es-paco a dangar. Mau! 0 programa nao previa um regresso atormentado, de mais a mais depois dos resultados auspiciosos da romagem. E, para abreviar caminho, resolveram voltar por Justes. Havia o perigo da ponte, mas era mais perto. Partiram como chegaram, ele a arreata e a mulher empoleirada na azemola. E quando, passada uma hora de serra, dobraram a lomba de Moira Morta e pensavam ter esca-pado ao temporal que os perseguia, acharam--se com espanto num mar de brancura. - Ih! com Deus! Como isto se pos! A besta enterrava-se ate a barriga, o arri-eiro via-se e desejava-se para dar uma passada, e a Raquel ia como uma moleira, no seu trono. Novos Contos da Montanha 163 - 0 pior e se nos anoitece aqui! - Näo te aflijas, homem. La para baixo hä--de estar melhor. Mas desata-me, que näo posso mais dos pes... - Daqui a bocado... Vamos a ver se rompe-mos... Guiados pelas mariolas de sinalizagäo -marcas de pedra solta, que o rapazio do gado desfizera, aqui e ali, para confusäo e pänico dos viandantes -, ao cabo de algum tempo de luta avistaram a garganta do Cabril. - Se conseguirmos atravessar, estamos safes! - disse o condutor da caravana. - Mas desata-me. Desata-me, que estou ge-lada... Tudo quanto se avistava era branco e calmo. As penedias, majestosas no seu manto de ar-minho, pareciam deusas tutelares. 0 proprio fragor da torrente, que espraiada ate ali se despenhava subitamente num desfiladeiro apertado e a pique, morria abafado nas pare-des almofadadas da escarpa. - Tu sentes-te mesmo boa, boa de todo? - perguntou ele, inseguro. - Sinto, homem. Acredita! - E que passavamos melhor se descesses... 0 pontäo e estreito e o macho pode escorre-gar... Estavam perto do passadigo, duas lajes des-guarnecidas atravessadas sobre o precipicio. - Estou curada. Podes crer... 164 Miguel Torga Novos Contos da Montanha 165 Nunca, desde o primeiro dia da doenga, a mulher lhe falara com tanta naturalidade e propósito. E, como isso acontecia depois da visita devota, o companheiro acreditou no bafej o divino. - Entáo apeia-te. Parou o animal, desátou a corda, e ofere-ceu os bragos abertos á mulher. A doida, entáo, saltou da albarda, sacudřu--se e caminhou calmamente até ao pontáo. Mas antes que o homem pudesse sequer fazer um gesto, viu-a voar de saias abertas sobre o despenhadeiro. - Satanáš! - ouviu ele, como um último adeus maldito. - Satanáš... - repetiu o eco, escarninha-mente. 0 corpo perdeu-se no fundo do boqueiráo, e o Pedro ficou em cima, especado, atónito, de boča aberta. O macho encolhia as orelhas á neve, que recomegara a cair. - Seja feita a vontade de Deus... - disse por fim o infeliz, como que a lavar as máos da des-graga. O seu desespero náo cabia numa fórmula rituál, a que faltava verdadeira palpitagáo hu-mana. A dor que sentia náo achava lenitivo numa passiva aceitagáo da vontade do Criá-dor. Mas submetia-se humildemente ao seu arbítrio. Jogara e perdera. Porqué? Náo sabia, nem poderia talvez sabé-lo nunca. Era um po-bre de Cristo a tropegar no mundo. 0 destino servira-se do seu coragáo como dum castigal, onde fizera arder até ao fim do pavio a vela da ilusáo e da esperanga. Justa ou injusta-mente? Como se quisesse ouvir a resposta da boča da propria morta, debrugou-se sobre o abismo. - Raquel! - gemeu em carne viva, quando o siléncio se tornou cruciante. - Raquel! Do fundo do pogo, porém, só regressava o eco deformado do seu apelo. Desvairado, tentou entáo descer o desfila-deiro, num cego impulso de fidelidade ao amor e ao dever. Mas aos primeiros passos ia-se pre-cipitando também no tómulo maldito. A neve adogara os acidentes e cada palmo de cháo era uma armadilha disfargada. - Náo lhe posso acudir de maneira nenhu-ma... - confessou, vencido. - É tudo contra!... As palavras de desalento soaram como pe-dradas na muda serenidade que o rodeava. Anoitecera, e a serra, que no crepúsculo de há pouco perdera a brancura de cal e a quietude, á luz do luar nascente tornara-se lívida e pe-trificada. - Náo sei o que hei-de fazer... Abobalhado, sem poder reencontrar na ir- realidade do que se passara a sua propria realidade, acabou por descobrir na presenga viva do macho uma espécie de irmandade protectora. E num automatismo de sonám- 166 Í Miguel Torga i bulo, cavalgou-o e deixou-se levar passiva-mente. Só na Chá de Panóias o rasto de uma nova violéncia, marcado no fofo pergaminho da neve, o acordou. - Lobo... - murmurou calmamente. O muar estremeceu-lhe debaixo dos joelhos e uma massa viva, familiar, apareceu na ve-zeira ao fundo, abandonada. - Que é aquilo? - perguntou alto, como se o pobre animal seu companheiro tivesse en-tendimento e fala. A resposta entrou-lhe pelos olhos, apenas se aproximou: era uma vitela estendida e es-quadrilhada entre duas urgueiras. - Foi ele, o malvado! Agadanhou-a mesmo agora. Nem teve tempo de a acabar. Largou--a quando sentiu gente... Sem se poder erguer, a rés jazia moribunda á beira do curral deserto, a que náo chegara a tempo de o pastor a levar. Tinha uma grande ferida na cernelha, onde a fera ferrara os denies quando lhe saltou ao lombo. A articulacáo das máos estava desfeita, todo o corpo san-grava dos golpes abertos pelas garras agres-soras, e a vida teimava era persistir ali, ar-quejante e sem esperanca. No pensamento atribulado do Pedro, a ima-gem repousada da mulher, liberta no fundo do abismo, sobrepós-se subitamente á imagem crispada que o acompanhava. Humana e com- Novos Contos da Montanha 167 preensivamente, viu a doida serena e feliz pela eternidade for a. Num relance, avivou-se--lhe na memoria o ingreme calvario da com-panheira, subido entre noites negras de dementia e dias claros de incerteza. Ao menos agora o corpo e o espirito da desgracada es-tavam em paz. Uma paz conquistada a deses-pero, mas que forga nenhuma podia mais perturb ar. Iluminado por esse clarao revelador, que lhe tornava inteligivel o que ate ali fora apenas no seu entendimento um designio oculto do destino, desceu entao os olhos calmos e fraternos sobre o corpo mutilado e sofredor da toira, apeou-se do macho, tirou do bolso a na-valha de ponta e mola e, piedosamente, san-grou aquela alma dorida.