LUIS DE BORJA OS NEFELIBATAS A LUIS DE BORJA Na gaza glauca abre o limbor d'uma falua Rainuncular: boia uma chaga na enseada Do lago de Jesus: — Que sera?! — Caiu a Lua No Sangue, como uma novica violada! Ergueu-se a äncora no c6u de betonilha Liquida, fluida, em onduläncias: väo ä tona Serafins, Santa Margarida de Cortona, E onze mil Virgens todas alvas d'escumilha... Vamos embora! Ergueu-se a äncora no Ceu! Äncora de prata, toda semeada De pedras finas: foi o Senhor quem Ih'as deu... Para a Alma! Vai partir a sagrada falua... Maos dadas, astros por turbante! — Caiu a Lua No Sangue, como uma Pureza apunhalada... R. MARIA 26 LUÍS DE BORJA LUIS DE BORJA V Agora, longe desse Grupo amigo, onde havia talento e origi-nalidade para espalhar em tantos livros das geracöes apagadas: agora, que tenho entre mim e esse cenäculo bizarro cadeias de montanhas toucadas de branco, rios e vales, e que me apetece evocar os meus companheiros de longe, a sua vida, fazer reviver cenas fantästicas das suas noites, cercado da minha tristeza de covento entre arvores, tendo diante dos olhos a feeria de outrora, — como uma cidade de sonho cercada de labaredas... A par do satanismo, da nevrose esquisita de quase todos, havia em nös uma simpatia inquebravel, uma admiracäo pelo que valia, e um raro desprezo heröico da Terra! Nessa casa da Se\ escolhida assim num bairro original e curioso, amodorrado na treva, com interiores de estupro, becos e nichos, foi por muito tempo o cenäculo, que mais diriam um covil de bandidos, que um lugar de reuniöes de homens ilustrados e honestos, tendo ape-nas visoes e pesadelos, horas doentias de lägrimas e uivos. A "sola das noites" ja Raul Brandäo a descreveu em tempo, numa carta acerca de outro nosso Amigo. Era ai que nos reuniamos, onde o Thereal D. Joäo de Castro e eu faziamos as invocacöes dos PossuMos, envoltos em häbitos negros, onde a luz dos tocheiros escorria livida. Da ultima vez R. Maria recitou os versos que ai väo no principio deste trabalho. Esse soneto foi-me consagrado pelo poeta, e 6 para mim de uma delicia infinita esta dedicatoria do seu ultimo trabalho em Portugal. As suas poesias podiam-se subordinar a duas fases: a fantästica e a da simplicidade. Este soneto, que sendo belo, näo da a ideia do altissimo talento de R. Maria, pertence ä corrente das cristalizacöes, da transparencia, como se v@. E curioso: no choque das paixöes e das teorias, nas rebuscas torturantes da Nova Arte, este Poeta de g6nio, aventuroso e sin-cero, ora tinha a melancolia e o negror do "Corvo", ora a diafa-neidade elisial e ondeante... Quem näo se lembra das estrofes da Debora, coriscantes de brasa no fundo negro de um remorso? Quem näo se lembra da Manhä do Ceu, onde havia o festim dos Puros, libando as tacas de leite, sob a lua, togados de linho?... Ouviam-se sempre atentamente as recitacöes de qualquer de nos, mas er am com certeza os versos de R. Maria, o misterioso R. Maria! que nos levantavam mais entusiasmo pela Arte, e que eram sempre mais abencoados: — näo eram palmas, nem ruído, o nosso aplauso — täo simplesmente uma béncäo, que caía lenta sobre o eco das últimas sílabas perdidas... Eu fui um dos Ultimos a aparecer no cenäculo, e um dos primeiros a abandoná-lo: — a abandoná-lo, mas a näo mais o esquecer. E agora que o vento canta nas folhas dos aloendros e o azul é transparente e de cobalto, sob esta paz do poente que expirou, na minha cela amada, vou contar as impressöes que tive de esses rapazes adoráveis, que com todo o seu macabrismo fize-ram de mim um crente, amortalhando no hábito as esperangas do Fugaz, depois de ter escrito os versiculos da Prece. Levantar äncoras do Mundo ! Onde o rumor seja o da Paz... Foi numa noite de inverno, que me levaram á Sé. Uma noite de inverno sinistra. Um vento gelado galgava e assobiava nos becos, como se levantasse espectros de desgraca. Os nichos apagavam-se; a luz dos lampeoes tremia. No alto, rouca, a tro-voada passava, rolando. O vento uivava; um cao uivava. — Para onde me leva? — perguntei eu ao meu apresentante. — Para ali — e indicou-me uma casa com varandas de pau, na garganta de uma vela esconsa. Estudei ligeiramente o bairro. As casas tinham contriccoes, dir-se-iam mendigas rezando, ajoelhadas nas trevas: um bébado obscenava — e uma taberna mais longe ressumava nas lajes um claráo de tocha, amarelento e peconhento. A trovoada rolava surdamente: oprirnia. Dir-se-ia que as casas piolhosas rezavam sempre... Era terca-feira, dia fatidico, escolhido para as reunióes. Quando entrei na sala pasmei, como transido de melancolia e de tortura. R. Maria ao meio, alumiado por um tocheiro, esguio, Ha um soneto machbético: o cabelo, besuntado de luz esverden-gada, parecia uma asa sinistra de corvo, batendo sobre um cadá- 28 LUÍS DE BORJA LUÍS DE BORJA 29 ver: a voz feria em gume, o braco direito cortava no ar uma linha estranha, — e nao sei porqug lembrei-me do esqueleto de Goya, num fundo acarvoado, com laivos de gangrena onde escorriam larvas... Fiz entao conhecimento de todo esse grupo de novos, cheios de talento, de originalidade e de bondade. Compreendi-lhes a este-sia, examinei-lhes os processos, por vezes tao variados — e disse--Ihes urn trecho inedito, que foi coberto de bSncaos. No interior de essa sala saudosa, eu ouvi discutir teorias de arte, sempre nobremente, sempre radiantemente. Nao eram nefe-libatas, nome que demos a este opusculo, pois que o publico assim deliberou classificar qualquer novo de talento, que em pouco que seja se afaste da rota banal, que seja mais subtil ou mais sicero, o que tanto basta para que o riso alvar escancare as guelas ver-melhas do indigena. Nefelibata e pois um nome ad hoc, mas que nao reproduz de certo a ideia geral que dao a esse vocabulo, de uma bizarria e de um escolismo cantarolante: eram novos que. ali se reuniam, amando e rezando a Arte, ao Amor, ao fugidio ideal... E ai voltei eu sempre, enquanto me nao vi necessitado a aban-donar o Porto, por este sitio sem o ruido do Odio, onde a agua canta como uma oracao melodiosa, as flores abrem s6 para Deus, e o ma! nao existe e so a graca e so a candura biblical... Das nossas reunioes cheias de misterio e de simpatia, nao se apagou nem se apagard em mim um traco apenas. E ai vao algumas impressoes esparsas, um ou outro caso a relatar agora, que deixou na minha alma impressionavel um leve rocar electrico de misterio. As vezes, ja tarde, quando nas ruelas esmoreciam as ultimas passadas de bebado, quando as tascas ficavam sem marujos e sem mulheres, em noites claras, abriamos as janelas, os tocheiros apagavam-se, e todos ficavamos alumiados pelo luar fosfores-cente, azulejando, quase gorduroso, o cetim negro do diva. Um de n6s tocava orgao: o c6u estava inefavel, incensado de nebulosas, estrelado: e a musica alava-se, ondeava como um perfume no ar diafano, no ar fundo e imenso como o Coracao humano... A musica caia nas Almas, molhava-as, aspergia-as de Sonho, como de um nevoeiro lilas: uma esperanca renascia — e na musselina do Luar fugiam, cortavam-se, fundiam-se em clari-dades vagas perfis antessonhados, esquisitos, esparsos, que davam afinal um perfil já visto, amado algures, — que era quase a flor de lótus da Lua... Mas a música morria, como um físico expira, e como a despertar-nos da révasserie, no telhado fronteiro um gato miava, os olhos como grandes pirilampos, acesos, fitando-nos esfingica-mente. O animal querido de Charles Baudelaire vinha avivar recor-dacoes do Poeta, os seus mios glácidos cortando a pacificacao do bairro antigo: — e daí nasciam, vinham á tona, pontos de vista de bizarria, anedotas e crítica sobre o estranho autor das Flores do Mal, sobre o dawamesk, sobre Edgar Poě... O gato entretanto parecia magnetizado por nós, e, como a rua era estreita, num salto, veio cair no telhado da nossa casa, como um agouro, como um prenúncio inadivinhado e triste. Depois saltava á varanda, e ei-lo na sala, rocando-nos as pernas, miando, como um ébrio... — Pouco depois aconchegado no divá talvez sonhasse, abrindo quando a quando os olhos lúgubres de velho mocho esfomeado... ... E a mao afagante de Raul Brandao corria-lhe no dorso, esguia e mais pálida do luar... Outra noite, de inverno áspero e lóbrego, estávamos todos tristes como a treva, e dir-se-ia que em nossa alma passava o arre-pio da ventania crua, assobiante e desolada. Alguns tinham lágri-mas nos olhos. Chovia. — Bateram á porta? — perguntou alguém. Era o vento: devia ser o vento. Mas de novo duas pancadas soaram, espacadas, distintas. Nessa noite náo faltava ninguém do nosso cercle. Quem era o importuno, áquela hora adiantada da noite hibernal, que nos descobrira as pegadas? A porta abriu-se, e a luz dos tocheiros iluminou em cheio a figura viciosa e pequenina de uma velha, toda molhada da chůva, de melenas horrivelmente desgrenhadas. E a velha entrou, em passos macabros de danca, a esganicar uma cancao diabóUca, arrepiante e fria como vidros que se par-tissem, gelando os nossos ouvidos. E pela janela aberta o som 30 LUIS DE BORJA esgueirava-se pelos recessos do bairro sujo, como se fosse um mocho ferido a piar, uivos de cadelas com fome, arrastando a prenhez. E a velha, de em torno ao tocheiro do centro, esgarabulhante, em ziguezagues aduncos de esqueleto, continuava dancando, tocada de um claräo h'vido, lancando esgares de espectro levan-tado, — enquanto a chuva cafa agora no lajedo com a lentidäo triste de uma recordacäo de crime que renasce! Nös estävamos perplexos, olhando, como se fössemos acor-dados de um pesadelo negro, a um tantä de ossadas, e ao caden-ciado abanar dos ciprestes, — uma danca macabra de Saint-Saens. Ofegante, a velha parou. Os olhos grandes, de gata, no sul-cado do rosto, resplandeciam como bugalhos de febre: o cabelo caira-lhe para a fronte larga — e, lentamente, comecou a despir--se, hediondamente, ate ficar numa nudez de cadaver, espectral e cor de marfim amarelado, jä sem tetas, como a figura desde-nhada e galvänica da estancada luxuria. O tocheiro bamboava ä brisa da viela, fazendo esvoacar as sombras dos ängulos. O corpo dela escorria de uma gordura esver-dinhada de decomposicäo subterrea, lambida da luz fünebre. — Entäo, assim ignöbil, abriu os bracos, cacarejou um riso, e foi cair sobre R. Maria, a quem envolveu nos bracos crispados, colando-lhe aos läbios brancos a cartilagem seca dos seus beicos gläcidos... R. Maria debatia-se, pävido, enleado nos ossos da velha que rangiam; e nös, vagamente aterrados, tivemos a visäo de um pesadelo execrävel, em que a Morte nos enlaca no hirto dos seus bracos, num fundo de catacumba, — e naquela horrivel alucinacäo de treva, naquele sonambülico estrebuchar da alma, a chuva caia no bairro cheio de lepra, de violacöes, de miseria, de roubo! ... Quando partimos dali, opressos e nostälgicos, jä danca-vam na escuridäo, como velhas esguias, os primeiros esgarcos de luz da madrugada invernica. Näo sei jä hoje, entre a ambiSncia de esquecimento que o meu espirito criou para extinguir a memoria das Gales, se nesse esconso e lezardento bairro da S6, onde outrora convivi no cenä-culo, os meus antigos Camaradas se reünem ainda, ou se ao fundo 1 LUÍS DE BOR J A 31 I I 3 da estreita sala o leito de alguma zabaneira substituiu o altar negro J das invocacôes de entäo. I Dois livros deste ano, os Versos de Alberto de Oliveira e Alma : Póstuma de D, Joäo de Castro, a que a curiosidade nostálgica I do meu espírito näo pôde resistir e que nervosamente venho de I ler, fazem-me visionar, reviver, todo esse irial grupo dos Novos, 1 as suas fisionomias e atitudes com a minúcia e a frisante nitidez i de uma recordacäo de ontem. I Será um paréntesis de revivescéncia de anos mortos no meu diário, e na luz que alvoresce num glacis cor-de-rosa e oiaia e na indecisa perspectiva comeca a recortar as primeiras silhuetas dos rebanhos e dos pastores que descem alem as veredas dos monies Hermínios, um dia ainda passado em comum com os distan-tes Amigos que frequentei: depois, que o Senhor traga de novo ■ á minha alma a paz e a meditacäo dos seus santos Evangelhos. Entre o trepidar da Cidade, a agitacäo dos Bancos e das Salaš, entre todas as misérias e prostituigôes deste circo de vaidades de redactores de almanaques de toda a cavalhada nacionál de políti-cos hidrocéfalos e nuhdades, levando em pompa através da mul-I tidäo o cartaz da sua glória como um lampeäo de casa de penho-L res — isolado, esse grupo formava uma sociedade á parte, uma legiäo indisciplinada, näo inscrita no recenseamento da Tradicäo j ou no recenseamento da Academia, fofa da Manual do Bom-Tom, I em revolta com o Padre-Eterno e o Dicionário de Rimas de Cas-f tilho — vivendo somente dos seus sonhos frementes, das radiaís j criacôes dos seus cérebros, na sagrada emocäo de alma da Arte. I Näo tendo nem as ideias nem o coracäo dos demais! Näo falando I a mesma lingua! Comungando todos na alegria e no orgulho de I serem incompreendidos, odiados, olhados de invés pelos Bárba-I ros e jornalismo; e no orgulhoso desdém do seu mudo isolamento, I sabendo os julgamentos deles rancorosos e mesquinhos, banais I e desgostantes como uma caixa de música, decidindo do valor f de uma obra pela qualidade do papel e o capachismo da oferta, I sem consciencia e sem camisas, sem educacäo e sem roupa branca, J cretinos e sujos: — carroca de Domingo Gordo em que a Falta I de Carácter, travestida de Pasquino vai puxada a bodes de Panúr-1 gio. Ateus do Preconceito e da Opiniäo Publica — esse zabumba j de barracäo Guinhol, — näo professando nenhum culto, nenhum 32 LUÍS DE BORJA LUÍS DE BORJA 33 Evangelho, nem o do Classicismo nem o do Catolicismo, cus-pindo em todas as hóstias consagradas dos ritos burgueses. Anar-quistas das Letras, petroleiros do Ideal, desfraldando ao vento sobre os uivos e os apupos dos sebastianismos retóricos o estan-darte de seda branca da Arte Moderna!... A Arte, aí estava o único Altar em frente do qual se ajoelhava, a única Biblia, a única Religiäo pela qual pregava, pela qual fazia a santa cruzada essa legiäo marchando através de todos os combates e todas as pes-tes, os olhos fitos por sobre a Academia e S. Bento na estrela dos magos do seu grande Ideal. Oh! os belos tiroteios, o soberbo drapejar de ideias agitando--se por cima da esgrima dos gestos, dos olhos que brilhavam, das bocas que troavam, como estandartes ao vento, duelos de opiniôes e de f rases que se chocam, se embatem, ripostam como läminas de floretes, e lutam e se saúdam ao fim com o leal aperto de mäo de briosos e altivos cavaleiros que se bateram por um sorriso ou por uma flor!... E noutras vezes essa vaga melancolia, a nostalgia vaga e intraduzível que se comunica como um perfume se evoliza, as horas murmurantes em que cada um dizia em surdina desbotadas já e afastadas sonatas de amores extintos, preludios de beijos que se calam em luar... Uma íntíma, profunda fraternidade ligava a todos, apesar das contraditórias opiniôes, dos diversos temperamentos e comu-nhôes literárias. E é sobre tudo isso que hoje, de entre a desolada paisagem da minha vida finada, mal cicatrizadas ainda as feridas que a Sociedade — a Fera Humana — retalhou na minha Alma — me atrai e encantadoramente me é doce relembrar as vezes, as horas em que a Nostalgia desperta: essa clara e irial radiacäo de Pureza e Lealdade, täo raras e distantes. Tempos vieram, novas ideias, ardentes peniténcias da velha mácula sacrílega, o arrependimento e a contricäo do miserável Possuído que eu fui — mas os meus votos säo bem ardentes, bem sinceros para que a Divina Providencia irradie e faca resgatar do Pecado e do Erro em que porventura as suas pobres almas ainda estejam agrilhoadas no pesadelo das malévolas sugestôes de Mitra, para que elas conhecam a doce, a pacificante sereni-dade que emana da vossa Luz, Senhor! * Biblia do Sonho: a obra bem logica desse espiritualista melan-cólico, rezando longe dos áditos pagáos da Carne o breviário do Amor Imaterial, aspirando ao Infinito, vivendo um sonho que se eteriza entre as espirituais brancuras da Via Láctea: — a Via Látea, tebaida das almas eleitas, Eliseu das castas deh'cias e das claridades da pureza, vitral do Céu para onde os olhos num reli-gioso espasmo vao com a extasiada ánsia, o bistérico misticismo dos fiéis para a Virgem Santíssima. Oh! a agonia das lutas do coracao do homem e a ignóbil ilusáo da mulher, estao bem longe do seu poema em cujo hierático ritmo vibra a alma contempla-tiva de um budista. Toda esta primeira parte do livro de Alberto de Oliveira, — a mais radiante — é o fervoroso Psaltério de um Levita do Luar, isolado na sua cela longe dos homens, no delírio embriagado e pleno de uncao de um crente extasiado através das grades, a vista da sua alma deslumbrada na comtemplacao do Céu, á hora a que a Lua vem subindo com o vago espiendor de uma patena de prata sobre um altar, e os astros um a um se acendem num doirado tremeluzir de círios. Uma sensitiva suavidade de impres-sáo aliada á cromatia de um paisagista de Outono — é a segunda parte, Pores de Sol, um Missal de Bysantium em que agonizam em trenos de nunces de lilás e olaia céus arroxeados e doentios como seios de virgens ciliciadas, aromas brancos como leite, sere-nos como sorrisos de Infáncia, desmaios de violinos, gemidos de violetas, folhas de choupo que caem como lágrimas de ouro velho, e ao longe, num campanário de ermida o tintinir das Ave-Marias, ecoando na anemia do poente como uma voz de Irma de Caridade. Diversa, absolutamente, é a sensacao que fica desse livro cac-tual e bizarro Alma Póstuma. Dom Joao de Castřo, um sombrio de retina implacável em cuja água-gelada uma indizível expres-sao, quase terrível de indizível, metalíza dur os reflexos: uma ati-tude a um tempo altiva e morgue, que deveria ser inalterável per ante as baixezas e todos os heroísmos, ao entrar um saláo real ou uma enxovia. A sua arte espanta e encanta, a inspiracáo tem paroxismos, gritos, maldicoes — e a espacos cantos serenos de FICgÄO - 2 34 LUÍS DE BORJA LUIS DE BORJA 35 aspiracao que se resigna, votos de alma que se ajoelha. Excessivo e satSnico, debatendo-se com a came e rogando-lhe pragas, subindo toda a áurea escada do amor ainda puro para se despe-nhar no tédio e na agonia da saciedade, na tortura do remorso; chorando a Pureza poluída, o seu Sonho esfacelado, como um Paraíso que se perdeu e nunca mais se vera, feito de imprecacoes e de lágrimas, de litanias e de psalmos — íal é esse livro desco-nexo e estranho, excessivo mesmo na forma onde a esparsos, entre o cántico de deliciosas imagens, o inédito bizarro e cinzelado do estilo, qualificativos irrompem como knouts. Do seu paco de Azu-rara o poeta atirou os seus versos á face do mundo, e pelas gaze-tas foi entao uma vasa de insolencias reles, raivas e mordeduras viscosas de invejas impotentes, alastrando no publico insciente, ecoando na espessa ignoráncia de leitores para quern a frase do jornal é o dogma bíblico que se náo discute e se adopta, — uma girándola de facécias, paródias de almanaque, piadas de Revista de Ano, pontos de exclamacáo, vaias de viela em frente de uma honestidade que passa, toda a fétida zanguizarra de uma tasca em delírio. — Mas decerto Dom Joáo terá dito ao seu velho cou-teiro que faca de tudo isso buchas de caca para a sua velha espin-garda de mato. Um dos mais raros frequentadores do Cenáculo era Julio Brandao, perfil caprino e trovadoresco, em que dois olhos largos e sombrios como almas, tem reiampagos de febre que se facetam num monóculo, névoas infinitas de infinita nostalgia doente, e as vezeš grandes centelhas de hilaridade que blagueia, entre o ruivo ondeamento da cabeleira frígia e a barba ruiva, uma barbicha em sarca de Mefisto-fauno. O poeta da claridade e das magias do luar. O pavilháo da sua galéra, que palpita ás viracoes do mar e alvamente vai tremu-lando sobre a formilhante Realidade, é de seda branca e prata, e tem esta legenda: Simplicidade. Numa lingua calma e idílica, como a dos velhos profetas da Bíblia poética, o seu sonho elanca-se para os ideais horizontes da Pureza e da Suavidade, numa revoada polvilhada de asas de arminhos, sob a luisáncia das estreladas e luarentas noites, e err ante na diamantina floracao dos Astros a sua alma entoa os cánticos da Noite, salmos místicos rogando a Graca e o Livramento. O Misticismo invocante de Verlaine, o Poeta Santo, tem nos seus versos resignados e onde chorá já serenizada uma grande saudade e uma aspiracäo de brancuras, a espacos reiampagos de Heine, o humorista lírico. Mas o poeta da Bíblia do Amor, o poeta da Simplicidade, certos dias, parecia outro, transformado num ser acabrunhado e misantropo, sonambulizando a um canto, mudo, pesadelos de nevrose negra, cujo reflexo turvava as suas pupilas e as fazia cruéis. Nesses dias de tristura, o Poeta estranho aparecia no terror petrificante de um homem que luta com um espectro: gestos de um pavor de agonia revolviam-no, e na crise alucinada, da sua garganta rouquejante br otavám como novelos vivos de víboras, palavras de crime, interjeigôes satänicas. — O poeta debatia-se com o mal. Algumas vezeš aparecia Just de Montalväo, uma organiza-cao oriental de artista, como os orientals compreendendo a inuti-lidade de toda a Accäo, e encarando a Arte com o delicado egoísmo de um sibarita cultivando-a ineditamente e longe da macu-lante Prostituigäo do publico, indagando na velha Alma Humana filôes ainda inexplorados, cinzelando o seu Sadismo com o lento prazer e a aspiracäo de o acabar o mais tarde possível pelo único prazer de o ir sonhando. Sentado numa embriagada lassitude de faquir, extasiava o olhar a seguir os avatares do fumo, as bafo-radas espiraladas em serpentes azuis, aureolando os tocheiros de um halo de névoa, que ondulando, iam morrer, perder-se nas ondulacôes de crepe da tenda que cantoava a sala. Raul Brandao chegava, a sua silhueta de piráta nostálgico elancada sobre as esguias pernas que arqueiam como as de Plintz, tesourando o chäo a largas passadas sonämbulas, a mäo espal-mada na larga franqueza, de um aperto de mäo de lobo do mar, pendente o brule-gueute do lábio alvorado de um sorriso beato, de um sorriso que todo o banhava na claridade de alma de um simples — e com o alto e loiro filho de marinheiros parecia no Cenáculo entrar, flutuar no ar de treva vibrionado de círios da longa sala, urna fragräncia iodada de algas e peixes ainda todos vivos, arquejando na areia de creme crepitante de paletas de mica e de sol, em escamas de hidrargírio e níquel que saltam. 36 LUÍS DE BORJA Uma fluidizada reveria, a alucinacáo colorida extasiada nos olhos de uma esfinge que a vida, o trepidar das vagas fizesse viver no búdico extatismo de um sonho de sacerdotisa hindu, afogava a sua retina cor de lago gelado, fazia o seu oíhar longínquo, esparso na visáo cerebral dos piácidos horizontes cobalto do mar, — ou nas carcassas apodrecidas de náufragos sobre que os corvos se abatem, retalhando-as com as garras, sugando a sánie verde-roxa das chagas que os rochedos fenderam, a massa amorfa e cinzenta de um cranio rachado, escancarando os parietais como as cascas de uma abobora podře. Porque na compósita intelectualidade de Raul Brandáo essas duas fases se manifestam: na primeira, a das claras e azuis vagas, a esplanada das praias ardendo amarelas, as manchas de sol, a das frescas raparigas gráceis de cabelos de messe e sorrisos cheirando a camélias, lácteas e ainda impúberes ingenuidades aldeanas, lem-brando Novenas e cravos, carnacoes de nesperas, fragrancias de pessegueiro, rubores de camoesa e flores de romázeira — e no claro-escuro pesadelo da sua outra fase, a fase torcionada e alu-cjnada da sua nevrose, a paleta macabra de todos os Sabats da Cor, verdes repelentes de cancros, esbeicados de cristas roxea-das, de sinistras prostitutas que a gangrena e a lepra roeram, tin-tas de pus e de esgoto suando crime, chagas de lampeoes san-grando no mistério fervilhante de larvas dos becos crivados de facadas e uivos de estupros. Impressa em Paris, uma obra de um original valor, o missal de um torturado, deve em breve aparecer de um dos nossos — Confissóes, de Antonio Nobre, esse monge Cakiamunista, de um pálido perfil de velha medalha, a face ascética e cheia de Alma. Lento, com os olhos que sonham, dizia os dramas e as quimeras da Existéncia — e o seu fim sereno, o fim que ele sonhava, na quietude imortal de um claustro, da Trapa, entre os seus Irmáos em negros capuzes, todas as manhás cavando uma pazada de terra da sua cova — ou entáo dizia a sua perspectiva de viver, numa alta e sombria torre, sobre um rochedo, for rada de negro onde um tocheiro arde escutando o ulular do mar, o eco das vagas rolando sob a noite sem astros. LUÍS DE BORJA 37 H. Pereira da Cunha, um emotivista do Passado, a quem á nausea do Presente, do banal e fétido escorrer da Vida Actual, sem sorriso e sem Alma, arrebata para o seio da Lenda, a estesiar--se na hierática, flordelisada pompa da Meia-Idade, na graca sensitiva e frágil do século da Pompadour, no tilintar de espadins de oiro, no esvoacar de alvas plúmulas, no ritmo cambrado e heráldico dos minuetes de corte — quase subjectivando este livro grave e de Saudade: Vida Morta. Igo de Pinho, um colorista brochando num deboche de ver-melháo e amarelo os escampados onde o sol morde e cabriola aos gritos, numa borracheira de luz, — e quando a Melancolia que todas as moder nas almas desmaia, vela de tintas de crepús-culo a sua retina de nictálope, aquatintando a um canto de tela, ermos tristes de paisagens ungidas de indigo e luar e onde um campanário dobra a finados. De resto, um dilettanti. Celso Hermínio, o seu Amigo, o amigo de nós todos pela seráfica suavidade da sua alma, habitando uma água-furtada no beco do imaginário com os seus gatos e uma arara, e apenas des-cendo ás ruas de Lisboa para falar com Deus no Alto da Graca ou para colher entre a teia de aranha de Alfama o tic de um íadista, o esmadrigamento de uma pataqueira num portal de casa de penhores, o ventre hidrópico de uma comadre a catar-se, o ziguezague de um bébado á porta de um café de lepes, a silhouette de um noctámbulo, a uma esquina, sob um lampiao. A anatomia de Gavarni dentro da decoracáo de Goya. * Alguns outros ainda, estranhos ao Cenáculo, novos pela intui-cao e uma técnica nova, e de que através de revistas literárias e as obras publicadas, várias afinidades os diziam comungando na mesma arte. Alberto Osório de Castro, um fioriturista de pequeninas mara-vilhas, de um heráldico manierisme, de vagas melodias estesian- 3« LUÍS DE BORJA tes de poentes em que angelus agonizam em delicados retintínu-los de rimas cinzeladas. Algumas prosas de Joáo Barreira, urn gouacheur impressivo, empastando apesar um pouco demais tintas de pesadelo em con-cepcSes baudelairianas. Eduardo d'Artayett, cujo sonambulizante idealismo rendi-lha as vezeš numa trama confusa de estilo, deliciosas gamas, ima-gens de uma inedita preciosidade. Camilo Pessanha, craionando bem alguns aspectos de Exterior. E os mais afastados da nossa intuicao de Arte, de todos nos que consideramos unicamente o valor de uma obra pela vibracao de uma Alma pessoalmente e originalmente emotiva, independente de Escola, formula ou coterie, eram apesar de a todos os novos a espessa ignoráncia do publico e do jornalismo portugués eti-quetar sob a mesma tabuleta, Eugénio de Castro e Oliveira-Soares, simbolistas — nefelibatas, pois que assim o queira o ouvido alvar para quern este adjectivo exprime melhor a feicáo literária destes dois Poetas, superiores no entanto a todos os membros do capa-chismo em que a literatura simpática ás massas se vai eternizando, na cauda da Tradigáo. Pelo seu firme desprendimento do pas-sado esses dois artistas sobretudo těm a nossa estima, apesar da sobreposse de um procurado inédito do primeiro, adulterando um pouco a Arte pelo Cartaz, mas em que um fino talento cin-tila em preciosas joalharias de vitrais, o segundo ainda pela orien-tacao nova que assegura na sua tentativa um tanto vagissante. * A Arte é a Sinceridade: cada um deve escrever como numa confissáo a Jesus, Nosso Pai. Nesta simples elucidacáo, ligeira e breve como a Alegria, eu nao quero deixar mais do que apon-tamentos sobre o génio dos novos. Assim náo me alongarei estu-dando o misticismo dos novos — a volta á religiao crista que Raul Brandáo atribui á influěncia de R. Maria (*). No entanto far-se-ia (') Portugal, 7 de Agosto, Dom Joao de Castro. | LUfS DE BORJA 39 I | I um curioso trabalho analisando a influencia da religiao crista em ? Julio Brandao, cuja Poesia, pura como a agua, tern o cheiro suges- ■ tivo de um ramo bento e o sabor ing&iuo de um solau. | A nevrose agucava-o: a tensao de espirito em que vivia fazia-o ; ansiar uma pacificacao. Foi R. Maria que pela serenidade lim-l pida da sua alma Ihe fez amar a Simplicidade. Esse homem casto I atraia-o: tinha a branca serenidade de um altar a Virgem. Depois : nao era um egoista: combatente, falava no perdao de Jesus, no amor de Jesus; mostrava-lhe uma vida simples, num caminho de ; luz como a estrada de S. Tiago. Ainda pela sua feicao artfstica, i pela solenidade do seu ritual, pelo oiro amortecido dos velhos ■ missais, pela intimidade das suas ermidas aldeas, a religiao crista | atraia-o. Sofria e a oracao era um refugio — um copo de agua f de bica, ao fim de um dia de canseira, no Verao: de mais a mais perseguida pelos Barbaros, que a desprestigiavam, ela aparecia-[ -Ihe feita para ser adorada... I Vem aqui a proposito dizer quern fosse R. Maria, que ainda recentemente, no mesmo artigo ja citado, Raul Brandao supoe ser A. Rimbaud. 1 R. Maria era da P6voa de Varzim, e aqui a minha beira tenho eu duas cartas do meu amigo — hoje em S. Rafael, vivendo como um pescador, ao sol, sobre o mar azul... Nunca conheci ninguem " que tivesse vivido e que tivesse sofrido como R. Maria. Amava ; o mar, vivia no pongo "Vai com Deus", uma vida de preguica, embalada pelo bater da onda no costado da embarcacao. j Conheciam-no e amavam-no os Pescadores, pela coragem com que ele acudia aos mareantes em perigo. — Nossa Senhora dos Navegantes proteja os que andam sobre as aguas do mar... Depois ! o seu genio aventureiro, o seu amor a Jesus e a Virgem, que ele i se acostumara a invocar nos dias de temporal — fizeram-no via-jar, correr ao deus-dard pelos areais do MediterrSneo, pelas cos-tas brumosas dos paises do Norte. Por ai ficara, vivendo nurn mosteiro, entre penedia que o mar batia higubre nove meses no ano. A aridez da paisagem, a aridez do clima fizeram-no ter uma vida interior. A severidade da ordem, a intimidade da sua cela, muitas vezes Ihe lembraram depois. R. Maria nao era, porem, um egoista. Foi, assim, que deci- | diu converter os novos a religiao crista, e foi assim que ele apare- | ceu, um dia, no cenaculo. 40 LUÍS DE BORJA LUIS DE BORJA 41 O que os novos querem é a Arte livre. A literatura dos outros, quase sempre näo sentida, as mais das vezeš sem probidade, arrastava-se. Os parnasianos desconsolavam-se cocando adjecti-vos bonitos: o naturalismo, que em Portugal se sustentara pelo humour de Eca de Queirós e pelo seu génio de fantasista — só . encontrara seguidores medíocres. Depois, como J. K.-Huysmans o reconhecia, a banalidade do naturalismo feito por um escritor probo assustava. Foi entäo que os novos fizeram a Arte livre. Os poetas queriam o verso musical, sem o idiota cantado dos outros, nada retórico, sugestivo. O caminho em prosa estava tam-bém tracado: näo se tratava já de escrever uma história mais ou menos complicada, um estudo de várias personagens em mais diversos; um livro devia ser uma confissäo, com uma persona-gem única, o autor: — A autobiografia, bem simplificada, é em breves linhas a teoria de Arte que me parece a mais simples, a mais natural, a mais humana. Ninguém como K. Maurício pôs em prática esta teoria de arte. K. Maurício era beiräo e fidalgo. Timido, näo tinha amigos, nem os queria. Poucas vezes falava — e nunca o vi alegre... Vivia para a Arte. Creio que era virgem — e essa estranha figura de histórico, só por si, daria um magnífico, um largo estudo. K. Maurício entendia que nada na literatura era bem vivido — e assim decidiu deixar um livro sofrido. A ele, como muitas vezes dizia, era-lhe delicioso sofrer, sentir a alma dolo-rida. Assim o seu livro Confissäo é uma autobiografia estranha, de uma tristeza indefinida. K. Maurício para escrever esse livro fez-se uma doenca de medula. A autobiografia é dividida em trés partes: a sua vida até ao momento em que ele decide dar-se ä doenca; os meios porque ele fez a lesao na medula, com a nota-gäo miúda da sua alma; a doenca, o seu sofrimento, a análise da nevrose feita dia-a-dia. Esta parte, a ultima, só será concluída no dia da sua morte, calculada para daqui a dois meses — e é, talvez, o trecho mais melancólico, mais estranho que eu conheco. No princípio vem logo a alucinacäo da morte — e assim que a doenca avanca, assim que a Morte é čerta e próxima — despedaca--o um pavor enorme: atira as palavras para o seu diário num frenesi, desalinhavadas, mas vividas: tem horror á literatura que o matou — e quem lhe dera a saúde, a vida rústica de um simples de aldeia!... Ele quer viver ao sol, nas risadas das rapari-gas — e a mořte avanca fria, implacável: quer duvidar — mas o estudo da sua doenga que ele fez antes nao lho deixa, e todos os dias é uma luta horrível, que o faz chorar ou que o enche de um tédio enorme... O tempo passou, e os seus dramas, e a lenta poeira fazendo a sua tarefa silenciosa sobre as coisas e as memórias. Longe dos Bárbaros, recluso no meu claustramento de velho monge misantropo da Arte, entre a escarpada, clara-escura pai-sagem desta fronteira do fétido Pais Natal onde arrastei a tunica das minhas idealidades azuis pelo asfalto — túnica de Cristo que a Vida jógou aos dados, — como eu reconheco bem a grande vantagem do Enfado em que no mundo se cai enfim do alto do Prazer! Pois que só o absoluto tédio nos li vra de esperar, de inda-gar ainda fontes novas, veredas novas, de desilusöes. Ah! o pesadelo, o coma espiritual das madrugadas de orgias, em que na alma parece lenta escorrer a nevoenta cinza dos céus de Outubro, e que fazem sonhar num sonho carregado de aspira-cäo nas meditativas venturas da Prisäo Celular!... Como eu vos conheci, como a saciedade infinita dos vossos cálices de fel me livrou de vós, amargos dias-seguintes, e hoje na minha Paz que só despertam — vozes da Paisagem, — o íongínquo carrilhäo de um campanário tintinabulando em ciaras manhäs festivas, o eco que agoniza alguma melancólica e gutural cantilena de pegureiro e pelas noites um pinhal ululando ä la Lua, — como eu reconheco que a relativa Felicidade děste mundo somente reside no Isolamento e na esperanca do Céu! Tudo é falso e väo, tudo é mau aqui em baixo! Só Deus é verdadeiro, e sobre a mentira dos lábios, sobre a mentira das lágrimas, sobre a fatuidade e o nada das nossas ideias, conjectu-ras, ambicöes, paixöes: quimeras a que chamam verdades, sobre todas as misérias de que compöem o hörnern que passa e o instante que foge, só as práticas cristas realmente ocupam o vazio 42 LUÍS DE BORJA LUÍS DE BORJA 43 desta Vida: vista atrav6s da Fe ela e menos triste, menos dolo-rida: caminho de duros pedregulhos onde os pes se retalham e sangram as carnes nas Urzes e nos Silvados, mas que ao fim tem abertos sobre a Luz os portöes de ouro que resplandem da celeste Jerusalem! — Divorciai-vos deste mundo de Vaidade no Asilo da Crenca, vös todos que conheceis o extase e os espasmos, o friselante arre-pio do Verbo, vös todos que modulais ate ao zenite todo o teclado das Sensacöes e esgotastes ate äs fezes o calix de jaspe do Ideal: todos os que como nös, artistas, vivemos em comunhäo atraves dos livros com Almas melhores de outras eras: a quem a änsia do Infinito constrange entre os quatro muros do Real e a quem os horizontes da Terra näo bastam ä visäo-espiritual. Vös todos a quem a Arte e cauterio da cancro-existencia, fugi da multidäo porque ela sö ama aqueles que se Ihe asseme-Iham: os miseräveis e os mediocres... A Gloria e falsa como uma moeda falsa, mercenäria como uma prostitura! Afastai-vos da Humanidade num voluntärio exüio de Arte, e na nave augusta do seu templo que os Corintios ignoram e onde as suas brutais vozes näo perturbam a sagrada solitude, facetai como jöias de Custodia obras que sejam agradäveis ao Senhor, ünicas dignas de Almas, Arte que seja para Ele como a lämpada sempre acesa do Santo Sepulcro, como um turibulo de religiosos perfumes do Lausperene, como um örgäo de hieräticos hinärios, sempre soando! Lede a Bfblia, Livro em que todos os livros se contem! Tambem eu, tambem eu vindimei na Vinha negra do Pecado, e os meus olhos ofuscou a radiosa cegueira do Inferno: conheci as satänicas volüpias do Sacrüegio, os parafsos profanos da Carne. Mas a Infinita Clemencia do Senhor atendeu äs süplicas do meu coragäo naufragado, e como nos lomginquos anos em que Ele me falou num velho altar de Seminärio, de novo a Graca me ungiu e as suas suaves delicias, suaves como uma onda de ambrösias inefäveis banhando a minha aima que entre as tormentäs bra-dava por Seu Auxüio. Veio-me a näusea do Renome terreno, a consci&icia de outra Gloria, bem mais Alta, extase de supra-humanos jübilos, a cons- ciencia da Glória-Eterna. Mergulhei na Ventura da Esperanca. Näo tornei a ver a face de alguém, a escutar a falsidade humana. Assim ö meu prazer de hoje, ao desmaiar o dia, neste téte-a-těte dos crepúsculos lentos de campo em que a nossa recordacäo fala com b passado, é ir ao acaso pelas veredas de que a sombra sobe para ö alto, como um fumo leve de turibulo indistinto. Ao longe, na aldeia cheia de serenidade, acende-se o claräo da primeira janela, depois outra mais longe responde, como o despertar na treva do eco de um canto de galos — e eu vou na minha meditacäo taci-turna, contemplando no firmamento a floragäo de ouro dos Astros, caracteres do grande Livro onde o Senhor todas as noites fala aos Humanos, na profunda escuridäo da Terra. A ribeira vai ruisselando como um repercutido, inextinto eco do Passado... Oh! as lágrimas que a este momento os Exilados da Vida iräo chorando neste Vale de Agonia... [ J { t i f