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  Poemas de Miguel Torga  

Orfeu Rebelde/Prospecção/Liberdade/S.Leonardo da Galafura/Canção do Semeador/Maceração/Comunhão / Desfecho/Súplica/Livro de Horas/De Profundis/Tantum Ergo/Drama/Bucólica / Mirante/Lavram e semeiam/ Ibéria/Pátria/Imagem/Regresso Depoimento/Mudez/Descida aos Infernos

Orfeu Rebelde

 

Orfeu rebelde, canto como sou:

Canto como um possesso

Que na casca do tempo, a canivete,

Gravasse a fúria de cada momento;

Canto, a ver se o meu canto compromete

A eternidade do meu sofrimento.

 

Outros, felizes, sejam os rouxinóis...

 Eu ergo a voz assim, num desafio:

Que o céu e a terra, pedras conjugadas

Do moinho cruel que me tritura,

Saibam que há gritos como há nortadas,

Violências famintas de ternura.

 

Bicho instintivo que adivinha a morte

No corpo dum poeta que a recusa,

Canto como quem usa

 Os versos em legítima defesa.

Canto, sem perguntar à Musa

Se o canto é de terror ou de beleza.

 

São Leonardo da Galafura

À proa dum navio de penedos,

A navegar num doce mar de mosto,

 Capitão no seu posto

 De comando,

S. Leonardo vai sulcando

 As ondas

 Da eternidade,

Sem pressa de chegar ao seu destino.

Ancorado e feliz no cais humano,

É num antecipado desengano

Que ruma em direcção ao cais divino.

 

Lá não terá socalcos

Nem vinhedos

Na menina dos olhos deslumbrados;

Doiros desaguados

Serão charcos de luz Envelhecida;

Rasos, todos os montes

 Deixarão prolongar os horizontes

Até onde se extinga a cor da vida.

 

 Por isso, é devagar que se aproxima

Da bem-aventurança.

É lentamente que o rabelo avança

Debaixo dos seus pés de marinheiro.

 E cada hora a mais que gasta no caminho

É um sorvo a mais de cheiro

 A terra e a rosmaninho!

 

Descida aos Infernos

 

Desço aos infernos, a descer em mim.

Mas agora o meu canto não perfura

O coração da morte,

À procura

Da sombra

Dum amor perdido.

Agora

É o repetido

Aceno

Do próprio abismo

Que me seduz.

É ele, embriaguez nocturna da vontade,

Que me obriga a sair da claridade

E a caminhar sem luz.

 

Ergo a voz e mergulho

Dentro do poço,

Neste moço heroísmo

Dos poetas,

Que enfrentas confiantes

O interdito

Guardado por gigantes,

Cães vigilantes

Aos portões do mito.

 

E entro finalmente

No reino tenebroso

Das minhas trvas.

Quebra-se a lira,

Cessa a melodia;

E um medo triste, de vergonha e assombro,

Gela-me o sangue, rio sem nascente,

Onde o céu, lá no alto, se reflecte,

Inútil como a paz que me promete. 

 

Orpheu Rebelde ( 1958)

Súplica

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

 

Bucólica

A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
A espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;

De casas de moradia
Caiadas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra duma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma Mãe que faz a trança à filha.

      Diário I (1941)
 

Maceração

 

Pisa os meus versos, Musa insatisfeita!

Nenhum deles te merece.

São frutos acres que não apetece

Comer.

Falta-lhes génio, o sol que amadurece

O que sabe nascer.

 

Cospe de tédio e nojo

Em cada imagem que te desfigura.

Nega esta rima impura

Que  responde de ouvido. 

Denuncia estas sílabas contadas,

Vestígios digitais do evadido

Que deixa atrás de si as impressões marcadas.

 

E corta-me de vez as asas que me deste.

Mandaste-me voar;

E eu tinha um corpo inteiro a recusar

Esse ímpeto celeste.

 Penas do Purgatório (1954)

 

 

Drama

 

Todo de carne e osso

Como posso

Transfigurar-me?

A vara de condão que me levanta

Ergue o peso de um homem.

Sou maciço, animal.

Mas no céu, onde vejo

Formas como as da terra,

O aceno divino não sossega:

 _ Vem alada  semente doutra vida!

E não sei que metade ressentida

Me renega.

 

Mirante

 

Deixo passar os olhos na paisagem

Enquanto a flauta exalta o bucolismo¹;

Por sobre cada abismo,

Onde a luz mergulhou e se perdeu,

Lanço discretamente

Uma ponte de angústia levadiça;

Tolho de macicez² e de preguiça

a força temerosa dos penedos;

Teço castos enredos

à volta de corolas sensuais;

E na tarde sincera dos zagais³

sinceros

Mudos e austeros

Entre os matagais, 

assim fico a mentir e a sofismar4

a música, da vida que não sei tocar...


1- simplicidade da vida campestre

2 - qualidade do que é maciço

3- pequenos pastores, moços

4- dar interpretações falsas e defendê-las

 

Canção do semeador

 

Na terra negra da vida,

pousio do desespero,

é que o Poeta semeia

Poemas de confiança.

O Poeta é uma criança

Que devaneia.

 

Mas todo o semeador

Semeia contra o presente.

Semeia como vidente

A seara do futuro,

Sem saber se o chão é duro

e lhe recebe a semente. 

Nihil Sibi (1948)

 

Ibéria

 

Terra.

Quanto a palavra der, e nada mais.

Só assim a resume

Quem a contempla do mais alto cume,

carregada se sol e pinhais.

 

Terra-tumor de angústia  de saber

Se o mar é fundo e ao fim deixa passar...

Uma antena da Europa a receber

a voz do longe que lhe quer falar...

 

Terra de pão e vinho

A fome e a sede só virão depois,

Quando a espuma salgada for caminho

Onde um caminha desdobrado em dois).

 

Terrra nua e tamanha

Que nela coube o Velho-Mundo e o Novo...

Que nela cabem Portugal e espanha

E a loucura com asas do seu povo.

 

Pátria

 

Serra!

e qualquer coisda dentro de mim se acalma...

Qualquer coisa profunda e dolorida,

Traída,

Feita de terra

e alma.

 

Uma paz de falcão na sua altura

A medir as fronteiras:

_ Sob a garra dos pés a fraga dura,

E o bicho a picar estrelas verdadeiras...

 

Tantum Ergo

 

Meu Deus: aqui, onde não chega o teu amor,

É tudo igual

Ao teu gesto de desprezo...

A Vida não tem sentido,

E o próprio sol que nos mandas

Nem regela nem aquece!

Nem a cor da tua força!

Parece!...

 

Tudo Lembra

A inútil persistência

Dum rio a correr pró mar:

O mar nunca fica doce...

( Ãh! se o teu amor viesse,

Outro tanto mar que fosse!...)

 

Assim,

Dizem que não vale a pena...

Apenas luto eu, por ser Poeta

E ser teu inimigo desde o berço.

Os outros,

Caídos pelos caminhos,

Nem são homens, nem são nada!

São apenas, cada um,

Aquela tua lastimosa ovelha

Tresmalhada...

 

O Outro livro de Job (1936)

 

Depoimento

 

Foi na vida real como nos sonhos:

Nunca pisei um chão de segurança.

Procuro na lembrança

Um sólido caminho percorrido,

E vejo sempre um barco sacudido

Pelas ondas raivosas do destino.

Um barco inconsciente de menino,

Um barco temerário de rapaz,

E um barco de homem, que já não domino

Entre os rochedos onde se desfaz.

 

Mas o céu era belo

quando à noite o seu dono o acendia;

E era belo o sorriso da poesia,

E belo o amor, dragão insatisfeito;

E era belo não ter dentro do peito

Nem medo, nem remorsos, nem vaidade.

Por isso digo que valeu a pena

A dura realidade

Desta viagem trágico-terrena

Sempre batida pela tempestade.

 

Prospecção

 Não são pepitas de oiro que procuro.

 Oiro dentro de mim, terra singela!

Busco apenas aquela

Universal riqueza

 Do homem que revolve a solidão:

O tesoiro sagrado

De nenhuma certeza,

Soterrado

Por mil certezas de aluvião.

Cavo,

Lavo,

Peneiro,

 Mas só quero a fortuna

 De me encontrar.

Poeta antes dos versos

E sede antes da fonte.

Puro como um deserto.

Inteiramente nu e descoberto.

 

Liberdade

-Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre nosso que sabia
A pedir-te, humildemente,
O pão de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.

-Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão de minha fome.
-Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.

 Diário XII (1977)
 

Regresso

(Coimbra, 20 de Junho de 1973)

 

Quanto mais longe vou, mais perto fico

De ti, berço infeliz onde nasci.

Tudo o que tenho, o tenho aqui

Plantado.

O coração e os pés, e as horas que vivi,

Ainda não sei se livre ou condenado.

 

Livro de Horas

(1936)

 

Aqui, diante de mim,

Eu, pecador, me confesso

De ser assim como sou.

Me confesso o bom e o mau

Que vão ao leme da nau

Nesta deriva em que vou.

 

Me confesso

Possesso

Das virtudes teologais,

Que são três,

E dos pecados mortais,

Que são sete,

Quando a terra não repete

Que são mais.

 

Me confesso

O dono das minhas horas.

O das facadas cegas e raivosas

E o das ternuras lúcidas e mansas.

E de ser de qualquer modo

Andanças

Do mesmo todo.

 

Me confesso de ser charco

E luar de charco, à mistura.

De ser a corda do arco

Que atira setas acima

E abaixo da minha altura.

 

Me confesso de ser tudo

Que possa nascer em mim.

De ter raízes no chão

Desta minha condição.

Me confesso de Abel e de Caim.

 

Me confesso de ser Homem.

De ser um anjo caído

Do tal céu que Deus governa;

De ser um monstro saído

Do buraco mais fundo da caverna.

 

Me confesso de ser eu.

Eu, tal e qual como vim

Para dizer que sou eu

Aqui, diante de mim!

 

Mudez

Que desgraça, meu Deus!

Tenho a Ilíada aberta à minha frente,

Tenho a memória cheia de poemas,

Tenho os versos que fiz ,

E todo o santo dia me rasguei

À procura não seu

De que palavra, síntese ou imagem!

Desço dentro de mim, olho a paisagem,

Analiso o que sou, penso o que vejo,

E sempre o mesmo trágico desejo

De dar outra expressão ao que foi dito!

Sempre a mesma vontade de gritar, Embora de antemão a duvidar

Da exactidão e força desse grito.

 

Mudo, mesmo se falo, e mudo ainda

Na voz dos outros, todo eu me afogo

Neste mar de silêncio, íntima noite

Sem madrugada.

Silêncio de criança que ficasse

Toda a vida criança

E nunca conseguisse semelhança

Entre o pavor e pranto que chorasse.

 

Orpheu Rebelde (1962)

 

Comunhão

 

Tal como o camponês, que canta a semear

A terra,

Ou como tu, pastor, que cantas a bordar

A serra

De brancura,

Assim eu canto, sem me ouvir cantar,

Livre e à minha altura.

 

Semear trigo e apascentar ovelhas

É oficiar à vida

Numa missal campa.

Mas como sobra desse ritual

Uma leve e gratuita melodia,

Junto o meu canto de homem natural

ao grande coro dessa poesia. 

 

Cântico do Homem ( 1950)

 

Lavram e semeiam aqui ao lado

 

Anda a terra no cio:

Chegou a lua.

E é como um falus de aço maciço

A ponta aguda da charrua.

Com a certeza de procriar

Cai a semente da mão do vento...

E tudo lento,

Num ritual,

Como se o homem pachorrento,

Realizasse o casamento

Do natural.

 

(Diário V)

 

Condição

 

Ergo os braços ao céu, desesperado,

Lama rasteira, nem ao menos posso

Ter a nobreza altiva dos penedos!

Em vez de lanças de granito, dedos

De carne e osso

Num leque de impotência!...).

 

Com a corda ao pescoço,

 pelo clemência

a quem, a que tirano?

a nenhum Deus que veja

Ou anteveja...

Peço clemência, só por ser humano.

  Diário IX (1962)

 

Cântico de Humanidade

 

Hinos aos deuses, não.

Os homens é que merecem

Que se lhes cante a virtude.

Bichos que lavram no chão,

Actuam como parecem,

Sem um disfarce que os mude.

 

Apenas se os deuses querem

Ser homens, nós os cantemos.

E à soga do mesmo carro,

Com os aguillões que nos ferem,

Nós também lhes demonstremos

Que são mortais e de barro.

 

Nihil Sibi (1948)

 

Imagem

 

Este é o poema de uma macieira.

Quem quiser lê-lo,

Quem quiser lê-lo, Venha olhá-lo daqui a tarde inteira.

 

Floriu assim pela primeira vez.

Deu-lhe um sol de noivado,

E toda a virgindade se desfez

Neste lirismo fecundado.

 

São dois braços abertos de brancura;

Mas em redor

Não há coisa mais pura,

Nem promessa maior.

 

Diário I (1941)

 

De profundis

Senhor, que sabes quem sou,

Sabe lá também o resto:

Sabe lá que o meu protesto

Não é isto que tu vês...

Não é isto...

Nem a facada do teu filho Cristo...

Nem o pranto que tens visto

Correr em lava a teus pés...

 

Não é isto,

Nem o sonho de Babel...

Nem o bombo que fiz da minha pele...

Nem o Credo num Deus que me perdeu...

Foram gestos que passaram

Pelo meu corpo e roubaram

Um perfume que julgaram

Que era meu...

 

Não é isto, nem aquilo

Que um mocho a cantar de grilo

Te mandou como um sinal

Da grande dor que me dói...

Só é sinal do meu todo

Esta elegia do lodo,

Que não foi...

 

Não é isto,

Nem o muito que há-de vir:

O sarro que há-de sair

Da vasante da maré...

O fundo do mar é sujo,

Mas nos olhos do marujo

Não se vê...

 

Não é isto, nem é nada

Que chegue à tua morada

Se, a minha assinatura,

Que sou eu...

Eu, esta ovelha ranhosa

Que remói silenciosa

a lembrança dolorosa

do pastor que lhe bateu...

 

O Outro livro de Job (1936)

 

Desfecho

 

Nâo tenho mais palavras.

Gastei-as a negar-te...

(Só a negar-te eu pude combater

O terror de te ver

Em toda a parte.)

 

Fosse qual fosse o chão da caminhada,

Era certa a meu lado

A divina presença impertinente

do teu vulto calado

E paciente...

 

E lutei, como luta um solitário

Quando alguém lhe perturba a solidão.

Fechado num ouriço de recusas,

Soltei a voz, arma que tu não usas,

Sempre silencioso na agressão.

 

Mas o tempo moeu na sua mó

O joio amargo do que te dizia...

Agora somos dois obstinados,

Mudos e malogrados,

Que apenas vão a par da teimosia.

 

Câmara Ardente (1962)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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