Orfeu Rebelde
Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a
canivete,
Gravasse a fúria de cada
momento;
Canto, a ver se o meu canto
compromete
A eternidade do meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam os
rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num
desafio:
Que o céu e a terra, pedras
conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há
nortadas,
Violências famintas de
ternura.
Bicho instintivo que adivinha a
morte
No corpo dum poeta que a
recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima
defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de
beleza.
São Leonardo da Galafura
À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de
mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu
destino.
Ancorado e feliz no cais
humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direcção ao cais
divino.
Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos
deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os
horizontes
Até onde se extinga a cor da
vida.
Por isso, é devagar que
se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de
marinheiro.
E cada hora a mais que
gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!
Descida aos Infernos
Desço aos infernos, a descer em mim.
Mas agora o meu canto não perfura
O coração da morte,
À procura
Da sombra
Dum amor perdido.
Agora
É o repetido
Aceno
Do próprio abismo
Que me seduz.
É ele, embriaguez nocturna da vontade,
Que me obriga a sair da claridade
E a caminhar sem luz.
Ergo a voz e mergulho
Dentro do poço,
Neste moço heroísmo
Dos poetas,
Que enfrentas
confiantes
O interdito
Guardado por
gigantes,
Cães vigilantes
Aos portões do
mito.
E entro finalmente
No reino tenebroso
Das minhas trvas.
Quebra-se a lira,
Cessa a melodia;
E um medo triste,
de vergonha e assombro,
Gela-me o sangue,
rio sem nascente,
Onde o céu, lá
no alto, se reflecte,
Inútil como a paz
que me promete.
Orpheu Rebelde
( 1958)
Súplica
Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.
Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.
Bucólica
A vida é feita de
nadas:
De grandes serras paradas
A espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de
moradia
Caiadas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira;
De sombra duma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma Mãe que faz a trança à filha.
Diário I (1941)
|
Maceração
Pisa os meus versos, Musa
insatisfeita!
Nenhum deles te merece.
São frutos acres que não
apetece
Comer.
Falta-lhes génio, o sol que
amadurece
O que sabe nascer.
Cospe de tédio e nojo
Em cada imagem que te
desfigura.
Nega esta rima impura Que
responde de ouvido. Denuncia
estas sílabas contadas, Vestígios
digitais do evadido Que
deixa atrás de si as impressões marcadas. E
corta-me de vez as asas que me deste. Mandaste-me
voar; E eu tinha um corpo
inteiro a recusar Esse
ímpeto celeste. Penas
do Purgatório (1954)
Drama
Todo de carne e osso
Como posso
Transfigurar-me?
A vara de condão que me
levanta
Ergue o peso de um homem.
Sou maciço, animal.
Mas no céu, onde vejo
Formas como as da terra,
O aceno divino não sossega:
_ Vem alada semente
doutra vida! E não sei que
metade ressentida Me renega. Mirante Deixo
passar os olhos na paisagem Enquanto
a flauta exalta o bucolismo¹; Por
sobre cada abismo, Onde a luz
mergulhou e se perdeu, Lanço
discretamente Uma ponte de
angústia levadiça; Tolho de
macicez² e de preguiça a
força temerosa dos penedos; Teço
castos enredos à volta de
corolas sensuais; E na tarde
sincera dos zagais³ sinceros Mudos
e austeros Entre os
matagais, assim fico a
mentir e a sofismar4 a
música, da vida que não sei tocar...
1-
simplicidade da vida campestre
2
- qualidade do que é maciço 3-
pequenos pastores, moços 4-
dar interpretações falsas e defendê-las Canção
do semeador Na
terra negra da vida, pousio
do desespero, é
que o Poeta semeia Poemas
de confiança. O
Poeta é uma criança Que
devaneia. Mas
todo o semeador Semeia
contra o presente. Semeia
como vidente A
seara do futuro, Sem
saber se o chão é duro e
lhe recebe a semente. Nihil
Sibi (1948) Ibéria Terra. Quanto
a palavra der, e nada mais. Só
assim a resume Quem a
contempla do mais alto cume, carregada
se sol e pinhais. Terra-tumor
de angústia de saber Se
o mar é fundo e ao fim deixa passar... Uma
antena da Europa a receber a
voz do longe que lhe quer falar... Terra
de pão e vinho A fome e
a sede só virão depois, Quando
a espuma salgada for caminho Onde
um caminha desdobrado em dois). Terrra
nua e tamanha Que nela
coube o Velho-Mundo e o Novo... Que
nela cabem Portugal e espanha E
a loucura com asas do seu povo. Pátria Serra! e
qualquer coisda dentro de mim se acalma... Qualquer
coisa profunda e dolorida, Traída, Feita
de terra e alma. Uma
paz de falcão na sua altura A
medir as fronteiras: _
Sob a garra dos pés a fraga dura, E
o bicho a picar estrelas verdadeiras... Tantum
Ergo Meu
Deus: aqui, onde não chega o teu amor, É
tudo igual Ao
teu gesto de desprezo... A
Vida não tem sentido, E
o próprio sol que nos mandas Nem
regela nem aquece! Nem
a cor da tua força! Parece!... Tudo
Lembra A
inútil persistência Dum
rio a correr pró mar: O
mar nunca fica doce... (
Ãh! se o teu amor viesse, Outro
tanto mar que fosse!...) Assim, Dizem
que não vale a pena... Apenas
luto eu, por ser Poeta E
ser teu inimigo desde o berço. Os
outros, Caídos
pelos caminhos, Nem
são homens, nem são nada! São
apenas, cada um, Aquela
tua lastimosa ovelha Tresmalhada... O
Outro livro de Job (1936) Depoimento Foi
na vida real como nos sonhos: Nunca
pisei um chão de segurança. Procuro
na lembrança Um
sólido caminho percorrido, E
vejo sempre um barco sacudido Pelas
ondas raivosas do destino. Um
barco inconsciente de menino, Um
barco temerário de rapaz, E
um barco de homem, que já não domino Entre
os rochedos onde se desfaz. Mas
o céu era belo quando
à noite o seu dono o acendia; E
era belo o sorriso da poesia, E
belo o amor, dragão insatisfeito; E
era belo não ter dentro do peito Nem
medo, nem remorsos, nem vaidade. Por
isso digo que valeu a pena A
dura realidade Desta
viagem trágico-terrena Sempre
batida pela tempestade. |
Prospecção
Não são pepitas de oiro
que procuro.
Oiro dentro de mim, terra
singela!
Busco apenas aquela
Universal riqueza
Do homem que revolve a
solidão:
O tesoiro sagrado
De nenhuma certeza,
Soterrado
Por mil certezas de aluvião.
Cavo,
Lavo,
Peneiro,
Mas só quero a fortuna
De me encontrar.
Poeta antes dos versos
E sede antes da fonte.
Puro como um deserto.
Inteiramente nu e descoberto.
Liberdade
-Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre nosso que sabia
A pedir-te, humildemente,
O pão de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.
-Liberdade, que estais na
terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.
Até que um dia,
corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão de minha fome.
-Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.
Diário XII (1977)
Regresso
(Coimbra, 20 de Junho de 1973)
Quanto mais longe vou, mais perto fico
De ti, berço infeliz onde nasci.
Tudo o que tenho, o tenho aqui
Plantado.
O coração e os pés, e as horas que vivi,
Ainda não sei se livre ou condenado.
Livro de Horas
(1936)
Aqui,
diante de mim,
Eu,
pecador, me confesso
De
ser assim como sou.
Me
confesso o bom e o mau
Que
vão ao leme da nau
Nesta
deriva em que vou.
Me
confesso
Possesso
Das
virtudes teologais,
Que
são três,
E
dos pecados mortais,
Que
são sete,
Quando
a terra não repete
Que
são mais.
Me
confesso
O
dono das minhas horas.
O
das facadas cegas e raivosas
E o
das ternuras lúcidas e mansas.
E
de ser de qualquer modo
Andanças
Do
mesmo todo.
Me
confesso de ser charco
E
luar de charco, à mistura.
De
ser a corda do arco
Que
atira setas acima
E
abaixo da minha altura.
Me
confesso de ser tudo
Que
possa nascer em mim.
De
ter raízes no chão
Desta
minha condição.
Me
confesso de Abel e de Caim.
Me
confesso de ser Homem.
De
ser um anjo caído
Do
tal céu que Deus governa;
De
ser um monstro saído
Do
buraco mais fundo da caverna.
Me
confesso de ser eu.
Eu,
tal e qual como vim
Para
dizer que sou eu
Aqui,
diante de mim!
Mudez
Que desgraça, meu Deus!
Tenho a Ilíada aberta à minha
frente,
Tenho a memória cheia de
poemas,
Tenho os versos que fiz ,
E todo o santo dia me rasguei
À procura não seu
De que palavra, síntese ou
imagem!
Desço dentro de mim, olho a
paisagem,
Analiso o que sou, penso o que
vejo,
E sempre o mesmo trágico
desejo
De dar outra expressão ao que
foi dito!
Sempre a mesma vontade de
gritar, Embora de antemão a duvidar
Da exactidão e força desse
grito.
Mudo, mesmo se falo, e mudo
ainda
Na voz dos outros, todo eu me
afogo
Neste mar de silêncio, íntima
noite
Sem madrugada.
Silêncio de criança que
ficasse
Toda a vida criança
E nunca conseguisse semelhança
Entre o pavor e pranto que
chorasse.
Orpheu Rebelde (1962)
Comunhão
Tal como o camponês, que canta
a semear
A terra,
Ou como tu, pastor, que cantas
a bordar
A serra
De brancura,
Assim eu canto, sem me ouvir
cantar,
Livre e à minha altura.
Semear trigo e apascentar
ovelhas
É oficiar à vida
Numa missal campa.
Mas como sobra desse ritual
Uma leve e gratuita melodia,
Junto o meu canto de homem
natural
ao grande coro dessa
poesia.
Cântico do Homem ( 1950)
Lavram e semeiam aqui ao lado
Anda a terra no cio:
Chegou a lua.
E é como um falus de
aço maciço
A ponta aguda da charrua.
Com a certeza de procriar
Cai a semente da mão do
vento...
E tudo lento,
Num ritual,
Como se o homem pachorrento,
Realizasse o casamento
Do natural.
(Diário V)
Condição
Ergo os braços ao céu,
desesperado,
Lama rasteira, nem ao menos
posso
Ter a nobreza altiva dos
penedos!
Em vez de lanças de granito,
dedos
De carne e osso
Num leque de impotência!...).
Com a corda ao pescoço,
pelo clemência
a quem, a que tirano?
a nenhum Deus que veja
Ou anteveja...
Peço clemência, só por ser
humano.
Diário IX (1962)
Cântico de Humanidade
Hinos aos deuses, não.
Os homens é que merecem
Que se lhes cante a virtude.
Bichos que lavram no chão,
Actuam como parecem,
Sem um disfarce que os mude.
Apenas se os deuses querem
Ser homens, nós os cantemos.
E à soga do mesmo carro,
Com os aguillões que nos
ferem,
Nós também lhes demonstremos
Que são mortais e de barro.
Nihil Sibi (1948)
Imagem
Este é o poema de uma
macieira.
Quem quiser lê-lo,
Quem quiser lê-lo, Venha
olhá-lo daqui a tarde inteira.
Floriu assim pela primeira vez.
Deu-lhe um sol de noivado,
E toda a virgindade se desfez
Neste lirismo fecundado.
São dois braços abertos de
brancura;
Mas em redor
Não há coisa mais pura,
Nem promessa maior.
Diário I (1941)
De
profundis Senhor,
que sabes quem sou, Sabe lá
também o resto: Sabe lá que o
meu protesto Não é isto que tu
vês... Não é isto... Nem
a facada do teu filho Cristo... Nem
o pranto que tens visto Correr
em lava a teus pés... Não
é isto, Nem o sonho de Babel... Nem
o bombo que fiz da minha pele... Nem
o Credo num Deus que me perdeu... Foram
gestos que passaram Pelo meu
corpo e roubaram Um perfume que
julgaram Que era meu... Não
é isto, nem aquilo Que um mocho
a cantar de grilo Te mandou como
um sinal Da grande dor que me
dói... Só é sinal do meu todo Esta
elegia do lodo, Que não foi... Não
é isto, Nem o muito que há-de
vir: O sarro que há-de sair Da
vasante da maré... O fundo do
mar é sujo, Mas nos olhos do
marujo Não se vê... Não
é isto, nem é nada Que chegue
à tua morada Se, a minha
assinatura, Que sou eu... Eu,
esta ovelha ranhosa Que remói
silenciosa a lembrança dolorosa do
pastor que lhe bateu... O
Outro livro de Job (1936)
Desfecho
Nâo tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te... (Só
a negar-te eu pude combater O
terror de te ver Em toda a
parte.) Fosse
qual fosse o chão da caminhada, Era
certa a meu lado A divina
presença impertinente do teu
vulto calado E paciente... E
lutei, como luta um solitário Quando
alguém lhe perturba a solidão. Fechado
num ouriço de recusas, Soltei a
voz, arma que tu não usas, Sempre
silencioso na agressão. Mas
o tempo moeu na sua mó O joio
amargo do que te dizia... Agora
somos dois obstinados, Mudos e
malogrados, Que apenas vão a
par da teimosia. Câmara
Ardente (1962)
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