OVIAJANTK CLANDESTINO Nesse ano — hoje tao distante no tempo e nos usos dos ho-fnens, que por vezes julgamos viver noutro mundo - o Dezembro correu muito menos frio do que habitualmente ao longo da costa do Adantico: nevoento e chuvoso, e morno ate, como se a corrente, vinda la de baixo, do Golfo, antes de se alongar a caminho da Europa, tives-sc querido acercar-se do litotal para o aquecer e abrigar melhor das dguas gelidas que descem da Gronelandia. O Natal estava a porta, e a neve sem chegar. Ora, um Natal sent neve nem frio nao e festa nem e nada. Nao rangem trenos nas en-tostas e caminhos, nao se veem homens de neve com um chapeu velho ria cabeca e o cachimbo entre os dentes imaginarios, nao ha batalhas Be bolas de neve, e nos tanques e lagos, que nao gelaram, nao pode a gente patinar de maos dadas, com as faces vermelhas, o cabelo solto, e o cachecol a esvoacar ao vento; nao ha gritos de jubilo e susto no ar cristalino, nem o tinir das guizalhadas — Jingle bells, jingle bells, |S:.. Jingle all the way... - que enche as noites estreladas dum eco de tempos lendarios. Nos rel-vados, em frente das moradias, as arvores de Natal nao espalham na alvura fofa do chao os reflexos silenciosos e multicores das suas lumi-narias, a sugerir calor, intimidade e hospitalidade. A natureza escura e molhada, a nevoa e a chuva, os arvoredos hirtos e desnudados, tudo amortece o resplendor das casas, e abafa os repiques dos campanarios, que de outro modo encheriam a vitrea sonoridade da noite. Atraves 193 das janelas irrompem no escuro os doirados claroes da festa; Iá derrtrr> há sempře o mesmo entusiasmo e a mesma gula pelos presem e.s dn Santa Klaus, empilhados em torno da árvore fulgurante de fuzes, nás suas embalagens de luxo e fantasia. E o viajante solitário e sem famíli;l que passa na estráda pode entrever com melancolia os pares que dan-cam, ou os rostos saciados e felizes em volta da mesa bem guarnecida, a que preside um gordo e tostado peru. O Natal fica doméstico e recolhido, e perde a alegria paga que ecoa de risos e apelos juvenis nos bosques e nos vales. Nao, um Natal sem neve, um Natal que náo seja «branco», náo é festa nem é nada: parece um Thanksgiving que se atrasou no cafendário. Ora isto deu-se (ou melhor, comecou) em Baltimore, que é uma cidade algo sombria, pacata e ordeira, embora muko menos tristc do que a visionou o nosso Poeta — «cidade triste entre as cidades, ó Baltimore!* Ou talvez os seus sinos tenham esquecido a rima do sinistra Never more, never more, que ele julgou ouvi-los clamar, ecoando o Poe. É preciso sair do centra, e percorrer os subúrbios, para se encon-trar a atmosféra propria da «estacáo festiva». Quanto aos cais, sáo sotur-nos, caóticos, confusos, e aqui e alem ameacam ruina os hangares c barracoes grisalhos, como velhos pardieiros ou igrejas rusticas aban-donadas. Sao tristes os portos decadentes, sobretudo de noite c nas épocas de crise! Mas respira-se uma poesia sugestiva nestes mollies de estacaria luminosa e negra, onde as marés, cansadas e oleosas, vém bater de manso o ritmo da sua cancáo de amor a terra. Há cidades que parecem viver na intimidade dos dramas e segredos do mar; ondc este está sempře presente, em convivio com os homens. E nada fala tan to ao coracao do errante solitário, como este apelo eterno do mar, junto aos cais. Foi a um destes molhes meio esbarrondados que o navio atra-cou pela manha de vinte e quatro de Dezembro, vindo do mar abcrto e azul, da Africa e dos trópicos. Era um velho cargueiro esgalgado, de alta diamine enfarruscada, com grandes remendos no casco a desfa-v zer-se em ferrugem, e a linha de flutuacao muitos palmos acima das ondas: uma dessas ruinas obscuras que singram vagarosamente os sete mares do mundo, coxeando em busca de fregues, com roupas mal lava-das a enxugar pelos cordames, e alguns marujos esqualidos acotove-lados as amuradas, a olhar a terra estranha. Um navio, em suma, que podia ter inspirado um conto triste a Joseph Conrad ou a Pierre Mac Orlan. A sua carga era pobre e variada: oleo de palma, cocos, bananas verdes em comeco de putrefaccao, amendoim, duas diizias de fardos de algodao, e um macaco mais ou menos domesticado, que adoecera ; em viagem e gemia numa cama de trapos, com febre, queixoso da invernia. Tambem vinha a bordo um passageiro, um s6, de que nao reza-vam os livros de navegacao e que nao pagara a passagem, entregue ao ; i cuidado cumplice de dois marinheiros: escondido nas entranhas geme-bundas do calhambeque, num cubiculo sem ar nem luz, junto das j jl; carvoeiras, na companhia das ratazanas. Quern era e donde vinha ele? Ah, mas sao perguntas, essas, que se nao fazem nunca a um destes : homens magros, de rosto antes do tempo engelhado pelos trabalhos, as privacoes e os ventos forasteiros, com os olhos negros a luzir sombria-mente de medo e desconfian^a no fundo das orbitas encovadas, Viria i de Marrocos, valhacouto de tantos desgracados? das Uhas Perfumadas? \ da Costa d'Africa? Ninguem o diria, nem que o soubesse, e ele menos que ninguem. A ilegalidade tern as suas leis, a sua moral e as suas combines, e o silencio e a regra de ouro dos pobres deste mundo. Quem ] o puscia 3. bordo? Quem o mantinha e sustentava ali, durante a noite, , _ em segredo, com os restos miseraveis do rancho da tripula^ao meio ;andrajosa? - Misterio, misterio! A solidariedade e outra lei sagrada entre | ;f; os homens que vivem a margem da vida. j.. Tinha embarcado pela calada da noite nalgum porto desolado 3: :- das Africas ou dos Arquipelagos, e e tudo. Alguem o tinha guiado em I silencio no labirinto ressonante do cargueiro, e ali o deixara como um • i rato de porao. E ali, na sombra sufocante, tinha transposto as clarida-des sem limites do oceano tropical, para dar enrrada no Inverno i americano. '! :'■ ■'■ O «Maria Alberta» - chamemos-lhe assim, escondendo-lhe \ o nome verdadeiro e a matricula — cumpridas as formal idades da lei, 194 195 despejou no cais deserto e cmzento a escassa mercadoria. Os guindas-tes e cabrestantes rangeram, as roldanas guincharam nos cadernais, os botaíós descreveram no ar baco a sua incerta acrobacia, e os fardos caixotes e engradados deram cntrada nos hangares varridos de ventania A noite chegou cedo, e tudo recaiu no siléncio. Os guardas e fUnciorti-rios do cais foram-se quase todos embora, e o «Maria AJberta» sumiu-še no esquecimento e na obscuridade, como um cavalo cansado eIázš-rento ao fundo duma estrebaria. Era a véspera de Natal, e cada qual procurou o seu cotn. hcgo, a família se a tinha, ou o recanto enfumarado dum bar de tectos baixos, com mulheres esgrouvinhadas e descoloridas sob a maquilíiagcni, a beberícar whisky de má raca e a meter moedas num juke-box trepi-dante de melodias quentes e ensolaradas, de Californias e coquefräis que só existem no sonho e no celuloide. Para os homens que rastejäŕh ä. superfície do globo e da vida, de porto em porto como se pátria nenhuma os aceitasse, náo há outro refúgio senäo esse: e no fim, uma: cama de aiuguer e uns bracos de empréstimo. O siléncio escorreu sobre os molhes e hangares, raras luzes bri-lhavam, poucas conseguiam veneer a espessura da névoa a desfazer-se em chůva. Os mas tras dos cargueiros atracados cm feixes perdiam-se no céu encarvoado. Mas a neblina cria sempře, em volta dos porros, um man to de abrigo e clandestinidade. O capitäo desembarcou ä paisana, e foi ä. sua vida: tinha utiš negócios quaisquer a tratar em Filadelfia. Atrás dele ŕbi-se o imcdiato, depois alguns oficiais e pilotos, o enfermeiro, e até marinheiros. Alguns deles levavam uma garrafita duma aguardente intragável, a que cha-mavam brandy, com que esperavam lubrificar a boa vontade dos fun-; cionários da Alfándega, de modo a passarem sem a apalpacäo da ordern nem a inspeccSo aos embrulhos. Os funcionários, quase todos irlandeses, nutridos, bem pagös e agasalhados nos seus quentes e macios uniformes, olhavam com um misto de dó e espanto ou irónia aqueles pobres marítimos magrizclas e mal barbeados, que tirkavam dentro das farpelas de ganga ou cotim: desbotado, com remendos, raros deles envergando um jaquetao razoa- velmente co£ado, e com a gorra de malha ou a boina basca na cabeca. Que diacho de candonga e que eles podiam ttansportar? Nenhum tra-jia com certeza ouro, diamantes ou coca... Aceitavam a garrafita e ideixavam-nos passar: Merry Christmas!* Depois voltavam ao seu po-quer, ao cachimbo e ao copo de bourbon. Os marujos sorriam, humil-des, esfregavam as maos enregeladas, e desapareciam no escuro, com as icalcas enrodilhadas nas canelas, convencidos de que tinham ludibriado ivigilancia do Depammento doTesouro. E que iam eles fazer na terra dos dolares, em noite de Natal, com as suas pobres roupas e os seus magros bolsos de embarcadicos? O passageiro tinha subido, ja noite fechada, das entranhas da : carvoeira, para se esconder numa claraboia do conves, sob a qual havia espaco para um homem se deitar, como num esquife. (J a ali tinham yiajado outros, durante dias e ate semanas, e um deles, por sinal, apa-nhado pela dura invernia do Norte - os cordames etam estendais de gelo! — com as roupinhas leves em que vinha do Brasil, ficara tolhido ipara o resto dos seus dias.) Nao comia desde que, manha cedo, lhe ti-: nham levado o cafe amargoso e a bucha do pao; a fome ro/a-o, e depois do calor abafante das caldeiras, o frio humido da noite inteirigou-o. Ali encaixado, ouviu vozes de comando, risos, passos de homens que desciam a prancha, os ecos de ferro do navio despejado. Esperou que, tudo sossegado, o viessem por em liberdade. Mas o tempo corria, na-quela imobilidade, e a impaciencia dele cresceu: Que raio esperavam eles para o tirar da toca? Iriam esquece-lo, deixa-lo a bordo sozinho, metido naquela urna a morrer de fome e de frio?... Haveria dificul-dades imprevistas ao seu desembarque?... A noite avancava com um vagar exasperante, e ele tinha pressa. Apertava ao corpo, para se aque-cer, o saco onde encerrara os parcos haveres. Tinha entrevisto na noite, ao chegar ali, os perfis dos barracoes do porto, mais longe fabricas, predios, o clarao mortico da cidade. Estava na America, a dois passos do trabalho e do pao, a um salto do seu destino. E o coracao batia-lhe de anseio. Ja tinha regulatizado con-tas com os marujos que o tinham posto a bordo, escondido e alimen-tado. Se havia mais alguem por tras deles, isso nao era da sua conta. 196 197 Restavam-lhe algumas dolas no fundo de um bolso das calcas, Junto delas, retinha na palma da mäo suada um papel puído, com um endc reco, esse ponto perdido na imensidade da America desconhecida-Patchogue ou coisa assim, para lá de Nova Iorque, em Long Island a quantas léguas séria aquilo de Baltimore, e quanto teria ele qiie pa].. milhar äs cegas para alcancar o seu destino?! (Se lá chegasse...) K urna data de números, de portas e ruas, isso ele näo entendia, näo entendia nada, nao sabia patavina de inglés, só sabia que estava ali ä espera que dispusessem dele, para comecar vida nova, o u entäo... Sozinho, diante do desconhecido. Näo conhecia ninguém, nesta terra envolta em nokc e humidade. Inquietava-o pensar em tudo isso, ali imóvel, impotente com o coracäo do tamanho dum feijáo a zumbir-lhe no peito apertado. Sonhava com a America havia muitos anos. Vinha em busca dela como, quatrocentos anos antes, e mais, os seus antepassados (isto é um modo de falar) tinham andado em demanda da Terra Firme, do El Dorado e do Xipango. Esses porém éram felizes, náo precisavam de passaporte, o mundo era entäo um mistério aberto á euriosidade e' ambicäo de todos! Ele viajava escondido, embora näo buscasse oiro nem prata nem pimenta. Tinha dois bracos, sabia pegar numa enxada ou picareta, queria trabalhar. E se o oiro nao andava agora aos pnnta-pés, quem caminhasse de olhos no cháo ainda pódia topar aqui c ali com algumpenny perdido - assim tinha ouvido dizer a um trangalha-dancas dum alemao que da America voltara com dois patacos, e ele conhecera algures. A lenda do Novo Mundo ainda näo tinha morrido no coracäo, ou séria no estômagoľ, dos homens. Para alcancá-lo tomara pelo caminho mais eurto, que é quase sempre o mais arriscado: a clan-desdnidade. Assim viera meter-se a bordo deste cargueiro de má-morte, um calhambeque a desfazer-se em ferrugem, asmático e claudicante. O tempo correu e ele dormitou. De repente acordou sobrcs-:-saltado, e endavinhou as mäos no saco. Urna voz rouca segredava-lhe ao ouvido: — Salte cá para fora, Seu Tomé! A clarabóia estava levantada. Atirou com as pernas entanguidas para fora do esquife, mas quando se quis pôr em pé elas reeusaram-se (í a aguentá-lo; doía-lhe a barriga, tinha a bexiga a arrebentar, e urna M sede de morte. ff - - Näo me posso mexer! O marujo murmurou qualquer coisa que ele nao ouviu bem, urna praga com certeza, e pôs-se a esfregar-lhe com vigor as costas, as pernas e os bracos. — Beba lá um gole de cachaca. Aqui é que vossemecé náo pode ficar. Veja se se despacha, temos que aproveitar esta aberta, enquanto näo anda nenhum guarda no cais. Bebeu, sentiu um pouco de vida voltar-lhe aos membros, e pôde enfim andar. Foi verter águas junto dum turco dos salva-vidas. O outro fumava, impaciente, escondendo a brasa do cigarro na concha da mäo morená. — Pegue lá urna búcha prä viage. E agora tenha cau-tela, hä? Palpou o embrulho morno do farnel que o marujo Ihe meteu na mäo, e encaminhou-se atrás dele para o castelo da popa em trevas. Tinham retirado a prancha, mas nem que ela lá estivesse: mesmo áquela hora adiantada era perigoso desembarcar a descoberto. O que ele tinha a fazer era transpor a amurada e descer por um cabo da amarracäo, como uma ratazana. Chegara o momento difícil. Mas uma vez no cais, olho atrás olho adiante, cosido com as sombras e as paredes, fazendo-se parte S delas, era sumir-se no desconhecido, e estava llvre. Í" - Meta o farnel no saco, hörnern. E pendure-o do pescoco, f'; como é que vocé quer descer assim? Näo tenha medo, agarre-se bem j * e ande prä frente. J í Trocaram um aperto de mäo. O claráo ŕrouxo da cidade, a dis- í' täncia, enegrecia mais, por contraste, as vizinhancas. Ajeitou a trouxa j; ao pescoco, e sentiu-se pálido. A que altura estariam do cais? O marujo i ■ segurou-o, ajudou-o a transpor a amurada fria e molhada, e ele agar-j lou-se á corda com forca. Ouviu em cima um murmúrio: í i - Boa sorte! Vá com Deus. j, Ficou sozinho, encangonchado no grosso cabo, áspero e en- chareado. Alguns metros abaixo dele, invisível, era o cais, a terra firme, í i a liberdade, o päo amassado com o suor do seu rosto. Saberia alcancá-lo? 198 199 Coragem! Sim, mas tinha o com-Iicenca que näo Ihe cabia nele uina agulha. Era como se estivesse entre mar e céu, com o Credo na boca por todo amparo. Devagar, com o saco pendurado ao pesco9o a enili.ii.i-car-lhe os movimentos, e de pernas ensarilhadas, deixou-se escorregar. A palma das máos ardia-lhe na aspereza do cabo. O peso do corpo puxava-o para o lado inferior, mas eie era magro e iá conseguŕu rcsis-tir ä gravidade e manter-se equilibrado a cavalo na amarra. Diante dos olhos só tinha agora o casco negro do navioj que nao conseguia desfitar, como se a ele se quisesse prender pelo magnc-tismo da vista. A água clapotava contra a estacaria, que rangia branda-mente. Aquela água era agora o seu terror, e talvez viesse a ser o sen túmulo. Se a olhasse podia-lhe dar urna vertigem, e entSo____ Pela posicäo e balanco mais amplo do cabo percebeu que ia a meio caminho. Mas nem podia olhar para trás, nem via um palmn adiante do nark, além do negrume do casco. Deixou-se escorregar mais um pedaco, com dificuldade, porque o cabo se aproximava da horizontal, e, segurando-se com firmeza, saltou e agitou urna perná, ä procura do contacto com a terra. Mas esta devia estar ainda fora do seu al< mic Descansou um migalho. O suor escorria-lhe na cara e no pescoco, en-charcava-lhe as costas. Se agora caisse, era verdadeiramente um homeni ao mar: ninguém dava por isso, e que dessem - de bordo ninguém Hit acudia. Nem do cais deserto. No dia seguinte, ou só Deus sabe quando, o cadaver seria pescado, meio roido dos peixes e dos caranguejos* ou inchado e fedorento, a escorrer água e lodo. Se o fosse!, porque também podia ir pelo mar abaixo... Seria mais um desaparecido, ou um cadaver anónimo, sem parentes, amígos nem conhecidos que o viessem identificar e reclamar. Longe, a família, ä qual näo escrevera em dois anos, continuaria por mais algum tempo á espera dele, ou de noticias: mas acabaria por esquecé-lo. De bordo ninguém dava por nada, ou calavam-se. Quanto aos destinatários, lá em cascos de rolha, que Ihes importava? Nem sequer o conheciam. O comentário indifereme — «Aquilo, se calhar o homem nem chegou a embarcar!» — seria todo o seu responso e epitáfio. Era como se nunca tivesse existido. Impelido pelo súbito terror de näo existir, escorregou mais, tomou a agitar a perna, em váo. Agora o corpo, na horizontal, e a oseilar i. com a amarra, näo podia arrancar-se ä gravidade nem recobrar a verti-calidade. Ainda que o pé esbarrasse na beira do molhe, como é que ele ia soltar-se, dar urna reviravolta e um pulo, para cair em pé? Nem pen-sar em pendurar-se pelos bracos: ŕicaria abaixo do nível do cais, e entäo c que näo havia esperanca. Náo ousava desenvencilhar-se da espia que o prendia ä terra e ä vida, para se endireitar e dar um salto. Nem sequer podia vi rar a cabeca para avaliar a que altura estava. Mais alguns minutos, que tanto lhe durariam as forcas, e a queda era fatal. Teve a clara visäo do seu estado — a boca negra da morte ä espera dele, em baixo, como um tubaräo insaciável — e intimamente amaldicoou a hora em que lhe dera para se meter nestas andancas: se náo era marujo, näo sabia trepar uma corda nem sabia nadar! Suspenso entre dois nadas. Encolheu-se todo e, com um esforco desesperado, conseguiu dcsiizar mais um pouco: o pé tocou por fim na beira do molhe, e um bafo de lume veio-lhe dele, subiu-lhe os membros, reanimou-o como um calor de ressurreieao. O cais, molhado e escorregadico, estava ao seu alcance! Mas por baixo era ainda o abismo de água. Encavalkado na amarra, crispado e dorido, desembaracou a custo a outra perna, e agi-Lou-as ambas, ä procura de apoio. As solas delgadas patinavam na vis-cosidade do madeiramento gasto, ou no rebordo de aco. Se tentasse firmar-se nelas, podia escorregar, perder o suporte do cabo, e dar o j mergulho definitivo. A suar em bica, trémulo do esforco, ficou com as pernas pendentes e imóveis. Voltar para cima, nem pensar nisso: já näo tinha forcas para marinhar, e que as tivesse, a bordo näo o deixariam entrar nem ficar. Agora era respeitar o contrato, e escapulir-se ou morrer. Como uma mosca teimosa, que se agita para escapar ä armadilha, tornou a fazer esforcos para se apoiar no cais, e soltou uma praga em voz alta: — Oh rais ta parta a minha sorte! Nesse instante sentiu que alguma coisa de duro, mäo ou tenaz, í o agarrava com violéncia pelos rins, dando-lhe a sensaeäo dum ferro : em brasa, e teve este pensamento de renúncia: «Estou catrafilado!» Mas, • é eurioso, recobrou simuítaneamente a calma e a esperanca. '' O que quer que fosse puxou por ele com forca, e ele deixou-se j j levar passivamente, até que, com o cordao do saco a estrafegá-lo, con- 200 201 seguiu endireitar o corpo e firmar-se nas pernas bambas. Aquela:rriäo de ferro, invisível, arrepanhava-lhe as roupas e as carries, macerarido-o e magoando-o. Depois, com um safanáo supremo, quase o ergueti do chäo e fé-lo dar uma reviravoita. Levantou os olhos e viu diante de si um grande vuíto učgro, um capote de oleado reluzente de chůva, uma farda com botocs de metal e uma chapa cor de prata. O agente da polícia inclinou para: ele o rosto vermelho e robusto: — Stowaway, eh? — e sacudiu-o com energia, como se o qui-sesse despertar do torpor. Passageiro clandestino? — repetiu, e riu-se. — You speak English? Que pode um hörnern dizer em tais circunstáncias? Tinham--Ihe recomendado: «Haja o que houver, näo abra bico. Faca-sc de trouxa.» Mas com aquela mäo brutal näo se brincava, e ele respondcu: — Eu näo espique inglish, eu näo espique! O agente largou uma risada de gozo e tornou a sacudi-lo: — No eespeek! No eespeek! Tinha um hálito quente, de tabaco e whisky. Na fria humidadc de Dezembro, um hörnern precisa de alguma coisa que lhe aqueca as entranhas, para andar assim de ronda pelos cais desertos, entregue aös seus pensamentos. Depois, na noite de festa, de porta em porta ao longo das tabernas e saloons da borda-ďágua - Merry Christmas, Mack! - há sempře quem tenha uma franqueza com a Autoridade, e a gertťej nao é de pau, nem pode fazer uma desfeita, recusar... A verdade é que um trago ou dois dispöem muitas vezes um hörnern a ser mais tolerante com as fraquezas humanas. Ficaram assim um pedaco, frente a frente, ele ä espera, a con-tar os minutos de vida, e o agente talvez a dar balanco ä situacäo,:a macerar-lhe devagar o ombro magro na tenaz de ferro da manápula,; e repetindo a meia-voz: — No eespeek, no eespeek.., Pequeno como um murganho, a tremer de medo e frio na fatiota leve, ä espera da sentenca - quem sabe até se o guarda, enraive-cido, näo lhe ia dar um empurräo, atirá-lo ä água? - o passageiro clandestino olhava fixamente os botöes da farda, o cassetete comprido e polido. O agente disse ainda qualquer coisa que ele näo entendeu, e apertoU'lhe os ombros com mais forca, a tactear-lhe os ossos, talvez a ensaiar. esmagar-lhos pelo simples prazer de exercer forcas naquela fra-gilidade. Depois, de repente, obrigou-o a dar meia volta, de cara a terra, apoiou-lhe a mao enorme e espalmada nas costas, e empurrou-o: — Now run! Näo precisou de entender, e correu: correu sem saber aonde ia, nem se o guarda lhe ia dar um tiro pelas costas como a um ladräo das docas que desobedece ä ordern de Alto!, ou se realmente o mandava embora, livre, sem o prender nem o forcar a regressar a bordo. Correu as cegas, a mastigar palavras sem tom nem som, a esbarrar em paredes, a trepar em caixotes, em fardos, em cordames, em máquinas, confuso e perdido, incapaz de encontrar a saída daquele labirinto. Foi quando a voz do polícia lhe atirou ä dištancia, pela reta- guarda: — Hey!Merry Christmas!... O clandestino estacou, compreendendo vagamente, e só nesse instante se lembrou que era Noite de Natal. Entäo com a garganta apertada, a rir e a chorar, transpôs umas calhas ferroviárias, pulou urna vedacao de tede de arame, e deitou a correr em campo aberto, nas trevas. De longe, o claräo agora mais vivo da cidade guiava-lhe os passos, como o reflexo de misteriosa estrela oculta ou de lareira acesa, chamando-o ä consoada. (in Gente da Terceira Classe, 4.a ed., pp. 35-49, Editorial Estampa, Lisboa, 1984, l.a ed. 1962.) 202 203