SEVGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA I Comecou por me dizer que o seu caso era simples — e que se chamava Macário ... Devo contar que conheci este hörnern mima estalagem do Minho. Era alto e grosso: tinha uma calva larga, luzi-dia e lisa, com repas brancas que se lhe ericavam em redor: e os seus olhos pretos, com a pele em roda enge-lhada e amarelada, e olheiras papudas, tinham uma singulár clareza e rectidáo — por trás dos seus óculos redon-dos com aros de tartaruga. Tinha a barba rapada, o queixo saliente e resoluto. Trazia uma gravata de cetim negro apertada por trás com uma fivela; um casaco com-prido cor de pinhäo, com as mangas estreitas e justas e canhöes de veludilho. E pela longa abertura do seu colete de seda, onde reluzia um grilhäo antigo — saíam as pregas moles duma camisa bordada. Era isto em Setembro; já as noites vinham mais cedo, com uma friagem fina e seca e uma escuridäo apa-ratosa. Eu tinha descido da diligéncia, fatigado, esfo-meado, tiritando num cobrejäo de listras escarlates. Vinha de atravessar a serra e os seus aspectos par-dos e desertos. Eram oito horas da noite. Os céus esta-vam pesados e sujos. E, ou fosse um certo adormeci-mento cerebral produzido pelo rolar monótono da diligéncia, ou fosse a debilidade nervosa da fadiga, ou a influéncia da paisagem escarpada e chata, sobre o con- 37 cavo siléncio nocturno, ou a qpressäo da electricidade que enchia as alturas, o facto é que eu — que sou natural-mente positivo e realista — tinha vindo tiranizado pela imaginacäo e ipelas quimeras. Existe no fundo de cada um de nos, é certo— täo friamente educados que seja-mos — um res to de misticismo; e bašta äs vezeš uma paisagem soturna, o velho můro dum cemitério, um ermo ascético, as emolientes brancuras dum luar — para que esse fundo místico suba, se alargue como um nevoeiro, encha a alma, a sensacäo e a ideia, e fique assim o mais matemático, ou o mais crítico, täo triste, täo visionário, täo idealista — como um velho monge (poeta. A mim, o que me lancara na quimera e no sonho, fora o aspecto do Mosteiro de Rostelo, que eu tinha visto, na claridade suave e outonal da tarde, na sua doce colina. Entäo, enquanto anoitecia, a diligentia rolava continuamente ao trote esgalgado dos seus magros cavalos brancos, e o cocheiro, com o capuz do gabäo enterrado na cabeca, ruminava o seu cachimbo — eu pus-me elegiacamente, ridiculamente, a considerar a esterilidade da vida: e dese-java ser um monge, estar num convento, tranquilo, entre arvoredos, ou na murmurosa concavidade dum vale, e enquanto a água da cerca canta sonoramente nas bacias de pedra, ler a «Imitacäo», e ouvindo os rouxinóis nos loureirais ter saudades do Céu. — Näo se pode ser mais estúpido. Mas eu estava assim, e atribuo a esta dispo-sicäo visionária a falta de espírito — a sensacäo — que me fez a história daquele hörnern dos canhöes de velu-dilho. A minha curiosidade comecou ä oeia, quando eu desfazia o peito duma galinha afogada em arroz branco, com fatias escarlates de paio — e a criada, uma gorda e cheia de sardas, fazia espumar o vinho verde no copo, fazendo-o cair de alto de uma caneca vidrada: o hörnern estava defronte de mim, comendo tranquilamente a sua geleia: perguntei-lhe, com a boca cheia, o meu guarda-napo de linho de Guimaräes suspenso nos dedos — se ele era de Vila Real. — Vivo lá. Há mukös anos — disse-me ele. 38 — Terra de mulheres bonitas, segundo me consta — disse eu. O hörnern calou-se. — Hem? — tornei. O hörnern contraiu-se num siléncio saliente. Até ai estivera alegre, rindo dilatadamente; loquaz e cheio de bonomia. Mas entäo imobilizou o seu sorriso fino. Compreendi que tinha tocado a came viva de uma lembranca. Havia decerto no destino daquele velho uma «mulher». Ai estava o seu melodrama ou a sua farsa, porque inconscientemente estabelecinme na ideia de que o «facto», o «caso» daquele hörnern, devera ser grotesco, e exalar escárnio. De sorte que lhe disse: — A mim tém-me afirmado que as mulheres de Vila Real säo as mais bonitas do Minho. Para olhos pretos Guimaräes, para corpos Santo Aleixo, para trancas os Arcos: é lá que se véem os cabelos claros cor de trigo. O hörnern estava calado, comendo, com os olhos baixos. — Para cinturas finas Viana, para boas peleš Amarante — e para isto tudo Vila Real. Eu tenho um amigo que veio casar a Vila Real. Talvez conheca. O Peixoto, um alto, de barba loura, bacharel. — O Peixoto, sim — disse-me ele, olhando grave-mente para mim. — Veio casar a Vila Real como antigamente se ia casar ä Andaluzia — questäo de arranjar a fina-flor da perfeicäo. — Á sua saúde. Eu evidentemente constrangia-o, porque se ergueu, foi a janela com um passo pesado, e eu reparei entäo nos seus grossos sapatos de casimira com sola forte e atilhos de couro. E saiu. Quando eu pedi o meu castical, a criada trouxe-me um candeeiro de latäo lustroso e antigo e disse: — O senhor está com outro. É no n.° 3. Nas estalagens do Minho, äs vezeš, cada quarto é um dormitório impertinente. —-Vá — disse eu. 39 r T O n.° 3 era no fundo do corredor. Ás portas dos lados os passageiros tinham posto o seu calcado para engraxar: estavam umas grossas botas de montar, enla-meadas, com ešp'oras de correia; os sapatos brancos dum cacador, botáš de proprietário, de altos canos vermelhos; as botas dum padre, altas, com a sua boria de retrós; os botins cambados de bezerro, de um estudante; e a urna das portas, o n.° 15, havia umas botinas de mulher, de duraque, pequeninas e finas, e ao lado as pequeninas botas dunia crianca, todas cocadas e batidas, e os seus canos de jpelica-mor caíam-lhe para os lados com os ata-cadores desatados. Todos dormiam. Defronte do n.° 3 estavam os sapatos de casimira com atilhos: e quando abri a porta vi o homem dos canhôes de veludilho, que amarrava na cabeca um lenco de seda: estava com urna jaqueta curta de ramagens, urna meia de lä, grossa e alta, e os pés metidos nuns chinelos de ourelo. — O senhor näo repare—disse ele. — Á vontade. — E para estabelecer intimidade tirei o casaco. Näo direi os motivos por que ele daí a pouco, j á dei-tado, me disse a sua história. Há um provérbio eslavo da i Galícia que diz: «0 que näo contas ä tua mulher, o que j näo contas ao teu amigo, conta-lo a um estranho, na i estalagem.» Mas ele teve raivas inesperadas e dominantes para a sua larga e sentida confidéncia. Foi a respeito do meu amigo, do Peixoto, que fora casar a Vila Real. Vi-o chorar, äquele velho de quase sessenta anos. Talvez a história seja julgada trivial: a mim, que nessa noite estava nervoso e sensível, pareceu-me terrível — mas conto-a t apenas como um acidente singulár da vida amorosa... í Comecou pois por me dizer que o seu caso era ; simples — e que se chamava Macário. j Perguntei-lhe entäo se era duma família que eu conhe- j oera, que tinha o apelido de «Macário». E como ele me j respondeu que era primo desses, eu tive logo do seu í carácter urna ideia simpática, porque os Macários éram i uma antiga família, quase uma dinastia de comerciantes, j que mantinham com uma severidade religiosa a sua velha I tradicäo de honra e de escrúpulo. Macário disse-me que nesse tempo, em 1823 ou 33, na sua mocidade, seu tio Francisco tinha, em Lisboa, um armazém de panos, e ele era um dos caixeiros. Depois o tio compenetrara-se de certos instintos inteligentes e do talento prático e aritmético de Macário, e deu-lhe a escrituracäo. Macário tornou-se o seu «guarda-livros». Disse-me ele que sendo naturalmente linfático e mes-mo tímido, a sua vida tinha nesse tempo uma grande concentracäo. Um trabalho escrupuloso e fiel, algumas raras merendas no campo, um apuro saliente de fato e de roupas brancas, era todo o interesse da sua vida. A existencia, nesse tempo, era caseira e apertada. Uma grande simplicidade social aclarava os costumes: os espí-ritos éram mais ingénuos, os sentimentos menos compli-cados. Jantar alegremente numa hoŕta, debaixo das.^parreí-ras, vendo correr a água das regas — chorar com os1mel<ř dramas que rugiam entre os bastidores do Salitre, alumia-dos a cera, eram contentamentos que bastavam ä bur-guesia cautelosa. Além disso, os tempos eram confusos e revolucionários: e nada torna o homem recolhido, con-chegado ä lareira, simples e facilmente feliz — como a guerra. É a paz que, dando os vagares da imaginacäo, causa as impaciéncias do desejo. Macário, aos vinte e dois anos, ainda näo tinha — como lhe dizia uma velha tia, que fora querida do desembargador Curvo Semedo, da Arcadia — «sentido Vénus». Mas por esse tempo veio morar para defronte do armazém dos Macários, para um terceiro andar, uma mulher de quarenta anos, vestida de luto, uma pele branca e baga, o busto bem feito e redondo e um aspecto desejável. Macário tinha a sua carteira no primeiro andar por cima do armazém, ao pé duma varanda, e dali viu uma manhä aquela mulher com o cabelo preto solto e anelado, um chambre branco e bracos nus, chegar-se a uma pequena janela de peitoril, a sacudir um vestido. Macário afirmou-se, e, sem mais intencäo, dizia mental- 40 41 mente que aquela mulher, aos vinte anos, devia ter sido uma pessoa cativante e cheia de domínio: porque os seus cabelos violentos e ásperos, o sobrolho espesso, o lábio forte, o perfil aquilino e firme, revela E a loura ergueú para ele o seu olhar azul e foi como se Macário se sentisse envolvido na docura dum céu. Mas quando ele ia dizer-lhe urna palavra reveladora e veemente, apareceu ao fundo do armazém o tio Francisco, com o seu comprido casaco cor de pinhäo, de botôes amarelos. Como era singulár e desusado achar-se o senhor guarda-livros vendendo ao balcäo e o tio Francisco, com a sua crítica estreita e celibatária, escandali- zar-se, Macário comecou a subir vagarosamente a escada em caracol que levava ao escritório, e ainda ouviu a voz delkada da loura dizer brandamente: — Agora queria ver lencos da India. E o caixeiro foi buscar um pequenino pacote daque-les lencos, acamádos é apertados numa tira de papel dourado. Macário, que tinha visto naquela visita uma revela-cäo de amor, quase uma «declaracäo», esteve todo o dia entregue äs impaciéncias amargas da paixäo. Andava distraído, abstracto, pueril, näo deu atencäo ä escritura-gäo, jantou calado, sem escutar o tio Francisco que exal-tava as aknondegas, mal reparou no seu ordenado que Ihe foi pago em pintos äs trěs horas, e näo entendeu bem as recomendacöes do tio e a preocupacäo dos caixeiros sobre o desaparecünento dum pacote de lencos da India. — É o costume de deixar entrar pobres no armazém — tinha dito no seu laconismo majestoso o tio Francisco.— Säo doze mil réis de lencos. Lance ä minha conta. Macário, no entanto, ruminava secretamente uma carta, mas sucedeu que ao outro dia, estando ele ä varanda, a mäe, a de cabelos pretos, veio encostar-se ao peitoril da janela, e neste momento passava na rua um rapaz amigo de Macário, que vendo aquela senhora, afir-mou-se e tirou-lhe, com uma cortesia toda risonha, o seu chapéu de palha. Macário ficou radioso: logo nessa noite procurou o seu amigo, e abruptamente, sem meia-tinta: — Quem é aquela mulher que tu hoje cumprimentaste defronte do armazém? — É a Vilaga. Bela mulher. — E a filha? — A filha! — Sim, uma loura, clara, com um leque chinés. — Ah! sim. É filha. — É o que eu dizia... — Sim, e entäo? — É bonita. — é bonita. 44 45 — É gente de bem, hem? — Sim, gente de bem. — E stá bom! Tu conhece-las muito? — Conheco-as. Muito näo. Encontrava-as dantes em casa de D. Claudia. — Bem, ouve lá. E Macário, contando a história do seu coracäo acor-dado e exigente e falando do amor com as exaltacöes de entäo, pediu-lhe com a gloria da sua vida «que achasse um meio de o encaixar la». Näo era difícil. As Vilacas costumavaim ir aos sábados a casa de um tabeliäo muito rico da Rua dos Calafates: eram assembleias simples e pacatas, onde se cantavam motetes ao cravo, se glosavam motes e havia jogos de prendas do tempo da senhora D. Maria I, e äs nove horas a criada servia a orchata. Bern. Logo no primeiro sábado, Macário, de casaca ažul, calcas de ganga com presilhas de trama de metal, gravata de cetim roxo, curvava-se^díanté da éšposa do tabeliäo, a sr.a D. Maria da Graca, pessoa seca^eagugada, com um vestido bordado a matiz, um nariz ä3ünco7uma enorme luneta de tartaruga, a pluma de maraboict nos seus cabe-los grisalhos. A um canto da sala já lá estava, entre um frufru de vestidos enormes, a menina Vilaca, a loura, vestida de branco, simples, fresca, com o seu ar de gra-vura colorida. A mäe Vilaga, a soberba mulher pálida, cochichava com um desembargador de figúra apopléctica. O tabeliäo era hörnern letrado, latinista, e amigo das musas; escrevia num jornal de entäo, a «Alcofa das Damas»: porque era sobretudo galante, e ele mesmo se intitulava, numa ode pitoresca, «moco eseudeiro de Venus». Assim, as suas reuniöes eram ocupadas pelas belas--artes — e numa noite, um poeta do tempo devia vir 1er um poemeto intitulado «Elmira ou a Vinganga do Vene-ziano»!... Comecavam entäo a aparecer as primeiras audácias romänticas. As revolugöes da Grécia principia-vam a atrair os espiritos romanescos e saídos da mito-logia para os países maravilhosos do Oriente. Por toda a parte se falava no paxá de Janina. E a poesia apossa-va-se vorazmente deste^ mundo novo e virginal de mina- retes, serralhos, sultanas cor de ämbar, piratas do Arqui-pélago, e salas rendilhadas, cheias do perfume do aloés onde paxás decrépitos aoariciam leôes. — De sorte que a curiosidade era grande — e quando o poeta apareceu com os cabelos compridos, o nariz adunco e fatal, o pescoco entalado na alta gola do seu fraque ä Restauragäo e um canudo de lata na mäo — o sr. Macário é que näo teve sensacäo alguma, porque lá estava todo absorvido, falando com a menina Vilaoa. E dizia-lhe meigamente: — Entäo, noutro dia, gostou das casimiras? — Muito — disse ela baixo. E, desde esse momento, envolveu-os um destino nupcial. No entanto na larga sala, a noite passava-se espiri-toalmente. Macário näo pôde dar todos os pormenores históricos e característicos daquela assembleia. Lem-brava-se apenas que um corregedor de Leiria recitava o «Madrigal a Lidia»: lia-o de pé, com uma luneta redonda aplicada sobre o papel, a perná direita lancada para diante, a mäo na abertura do colete branco de gola alta, e em redor, formando círculo, as. damas, com vestidos de ramagens, cobertas de plumas, as mangas estreitasj ter-minadas num fofo de rendas, mitenes de retrós preto cheias da ointilacäo dos anéis,"linliam sorrisos ternos, cochichos, doces murmuragôes, risinhos, e um brando palpitar de íeques recamados de lantejoulas. «Muito bonito», diziam, «muito bonito!» E o corregedor, des-viando a luneta, cumprimentava sorrindo — e via-se4he um dente podre. Depois a (preciosa D. Jerónima da Piedade e Sande, sentando-se com maneiras comovidas ao cravo, cantou com a sua voz roufenha a antiga ária de Sully: Oh Ricardo, oh meu rei, O mundo te abandona. 0 que obrigou o terrível Gaudéncio, democrata de 20 e admirador de Robespierre, a rosnar rancorosamente junto de Macário: 46 47 r T — Reis!... víboras! Depois o cónego SaavecLra cantou uima modinha de Pernambuco muito usada no tempo do senhor D. Joao VI: «Lindas mocas, lindas mocas.» E a noite ia assim cor-rendo, literária, pachorrenta erudita, requintada e toda cheia de musas. Oito dias depois, Macário era recebido em casa da Vilaca, num domingo. A máe convidara-o, dizendo-Ihe: — Espero que o vizinho honre aquela choupana. E até o desembargador apopléctico, que estava ao lado, exclamou: — Choupana! Diga alcácar, formosa dáma! Estavam, nesta noite, o amigo do chapéu de palha, um velho cavaleiro de Malta, tropego, estúpido e surdo, um beneficiado da Sé, ilustre pela sua voz de tiple, e as maňas Hilárias, a mais velha das quais, tendo assístido, como aia de uma senhora da Casa da Mina, á tourada de Salvaterra, em que morreu o conde dos Arcos, nunca deixava de narrar os episódios pitorescos daquela tarde: a figura do conde dos Arcos de cara rapada e uma fita de cetim escarlate no rabicho; o soneto que um magro poeta, parasita da Casa de Vimioso, recitou quando o conde entrou, fazendo ladear o seu cavalo negro, arreado á espanhola, com um xairel onde as suas aranas estavam iavradas em prata; o tombo que nesse momento um frade de S. Francisco deu na trincheira alta, e a hilaridade da corte, que até a senhora condessa de Povolídé áper-tava as máos nas ilhargas; depois el-rei o senhor D. José I, vestido de veludo escarlate, recamado de ouro, todo encostado ao rebordo do seu palanque, fazendo girar entre os dedos a sua caixa de rape cravejada, e por trás, imóveis, o físico Lourenco e o frade, seu confessor; depois o rico aspecto da praca cheia de gente de Salvaterra, maiorais, mendigos dos arredores, frades, lacaios, e o grito que houve, quando D. José I entrou:—Vivá el-rei, nosso senhor! — E o povo ajoelhou, e el-rei tinha-se sen-tado, comendo doces, que um oriado trouxe num saco de veludo atrás dele. Depois a mořte do conde dos Arcos, os desmaios, e até el-rei todo debrugado, batendo com a mäo no parapeito, gritava na confusäo, e o capeläo da Casa dos Arcos que tinha coxrido a buscar a extrema--uncäo. Ela, Hilária, ficara atarracada de pavor: sentia os urros dos bois, gritos agudos de mulheres, os ganidos dos flatos, e vira entäo um velho, todo vestido de veludd preto, com a fina espada na mäo, debater-se entre fidal-gos e damas que o seguravam, e querer atirar-se ä pra^a, bradando de raiva! «£ o pai do conde.» Ela entäo des-maia nos bracos de um padre da Congregacäo. Quando veio a si, achou-se junto da pra^a; a berlinda real está ä porta, com os boleeirps emplumados, os machos cheios de guizos, e os batedores com pampilhos: el-rei já estava dentro, escondido no fumdo, pálidb, sorvendo febriímente ! rape, todo encolhido com o confessor; e defronte, com urna das mäos apoiada ä alta bengala, forte, espadaúdo, com o aspecto carregado, o marqués de Pombal falando devagar e intimativamente, e gesticulando com a luneta: mas os batedores picaram, os estalos dos postilhôes reti-niram, e a berlinda partiu ao galope, enquanto o povo gritava: —Vivá el-rei, nosso senhor! —e o sino da porta da capela do paco tocava .a finados! Era urna honra que el-rei coneedia ä Casa dos Arcos. Quando D. Hilária acabou de contar, suspirando, estas desgracas passadas, comecou-se a jogar. Era sin-i gular que Macário näo se lembrava o que tinha jogado | nessa noite radiosa. Só se recordava que ele tinha ficado I ao lado da menina Vilaga, que se chamava Luisa, que reparara muito na sua fina pele rosada, tocada de luz, e na meiga e amorosa pequenez da sua mäo, com urna I unha mais polida que o marfim de Diepa. E lembrava-se i também de um acidente excéntrico, que determinava nele, desde esse dia, urna grande hostilidade ao clero da Sé. Macário estava sentado ä mesa, e ao pé dele Luisa: j Luisa estava toda voltada para ele, com uma das mäos j apoiando a sua fina cabeca loura e amorosa, e a outra i esquecida no regaco. Defronte estava o beneficiado, com i o seu barrete preto, os seus óculos na ponta aguda do nariz, o tom azulado da forte barba rapada, e as suas duas grandes orelhas, complicadas e cheias de cabelo, separa- 48 49 das do cránio como dois postigos abertos. Ora, como era neoessário no fim ido jogo pagar uns Jtentos^ao cava-leiro de Malta, que estava ao lado do beneficiado, Macário tirou da algibeira uma pega, e quando o cavaleiro, todo curvado e com um olho piseo, fazia a soma dos tentos nas costas de um ás, Macário conversava com Luisa, e fazia girar sobre o pano verde a sua pega de ouro, como um bilro ou um piäo. Era uma peca nova que luzia, fais-cava, rodando e fazia a vista como uma bola de névoa dourada. Luisa sorria vendo-a girar, girar, e parecia a Macário que todo o céu, a pureza, a bondade das flores e a castidade das estrelas estavam naquele claro sorriso distraído, espiritual, arcangélico, com que ela, gira, gdira, seguia o giro da peca de ouro nova. Mas, de repente, a peca, correndo até ä borda da mesa, caiu para o lado do regaco de Luisa, e desapareceu, sem se ouvir no soalho de tábuas o seu cruído metálico. O beneficiado abaixou-se logo cortesmente: Macário afastou a cadeira, oľhando para debaixo da mesa: a mäe Vilaga alumiou com um castical, e Luisa ergueu-se e sacudiu com peque-nina pancada o seu vestido de cassa. A peca náo apareceu. — É célebre — disse o amigo de chapéu de palha — eu näo ouvi tinir no chäo. — Nem eu, nem eu — disseram. O beneficiado, curvado como um F, buscava tenaz-mente, e Hilária mais nova rosnava o responso de Santo Antonio. — Pois a casa näo tem buracos — dizia a mäe Vilaga. — Sumico assim — resmungava o beneficiado. No entanto Macário exalava-se em exclamagóes desin-teressadas: — Pelo amor de Deus! Ora que tem! Amanhä apa-recerá! Tenham a bondade! Por quem säo! Entäo •sr.* D. Luisa! Pelo amor de Deus! Näo vale nada. Mas mentalmente estabeleceu que houvera uma sub-traccäo — e atribuiu-a ao beneficiado. A pega rolara, díecerto, até junito dele, sem ruído, ele pusera-lhe em cima o seu vasto sapato eclesiástico e tachado, depois, no movimento brusco e curto. que tivera, empolgara-a vilmente. E quando saíram o beneficiado, todo embru-lhado no seu vasto capote de cameläo, dizia a Macário pela escada: — Ora o sumigo da pega, bem? Que brincadeira! — Acha, senhor beneficia,do? — disse Macário pa-rando, absorto de impudéncia. — Ora essa! Se acho! Se lhe parece! Uma pega de sete mil réis! Só se o senhor as semeia! Safa! Eu dava em doudo! Macário teve tédio daquela astúcia fria. Näo lhe res-pondeu. O beneficiado é que acrescentou: — Amanhä mande lá pela manhä, hörnern. Que diabo ... Deus me perdoe! Que diabo! Urna pega näo se perde assim. Que bolada, hem! E Macário tinha vontade de lhe bater. Foi neste ponto que Macário me disse, com a voz singularmente sentida: — Enf im, meu amigo, para encurtarmos razoes resol-vi-me casar com ela. — Mas a pega? — Näo pensei mais nisso! Pensava eu lá na pega! Resolvi-me casar com ela! II Macäiio contou-me o que o determinara mais pre-cisamente äquela resolugäo profunda e perpetua. Foi urn bei jo. Mas esse caso, casto e simples, eu calo-o — mesmo porque a unica testemunha foi uma imagem em gravura da Virgem, que estava pendurada no seu caixilho de pau--preto, na saleta esoura que abria para a escada ... Urn beijo fugitive superficial, efemero. Mas isso bastou ao espirito recto e severo para o obrigar a toma-la como esposa, a dar-lhe uma fe imutävel e a posse da sua vida. Tais for am os seus esponsais. Aquela simpätica sombra de janelas vizinhas tornara-se para ele um destino, o fim moral da sua vida e toda a ideia dominante do seu 50 51 trabalho. E esta his»tória torna, desde logo, um alto carác-ter de santidade e de tristeza. Macário falou-me muito do carácter e da figura do tio Francisoo; a sua possanUe estatura, os seus óculos de ouro, a sua barba grisalha, em colar, por baixo do queixo, um tique nervoso que tinha numa asa do nariz, a dureza da sua voz, a sua austera e majestosa tranquilidade, os seus princípios antigos, autoritários e tiránicos, e a bre-vidade telegrafica das suas palavras. Quando Macário lbe disse, uma manhá, ao almoco, abruptamente, sem transicoes emolientes: «Peco-lhe licenca para casar», o tio Francisco, que deitava o acú-car no seu café, ficou calado, remexendo com a colher, devagar, majestoso e terrível: e quando acabou de sorver pelo pires, com grande ruído, tirou do pescoco o guar-danapo, dobrou-o, agucou com a faca o seu palito, me-teu-o na boča e saiu: mas á porta da sala parou, e vol-tando-se para Macário, que estava de pé, junto da mesa, disse secamente: — Náo. — Perdáo, tio Francisco! ■—Náo. — Mas ouca, tio Francisco ... — Náo. Macário sentiu uma grande cólera. — Nes se caso, faco-o sem licenca. — Despedido da casa. — Sairei. Náo hajá dúvida. — Hoje. — Hoje. E o tio Francisco ia a fechar a porta, mas voltando-se: — Olá! — disse ele a Macário, que estava exasperado, apopléctico, raspando nos vidros da janela. Macário voltou-se com uma esperanca. — Dé-me daí a caixa do rape — disse o tio Francisco. Tinha-lhe esquecido a caixa! Portanto estava per-turbado. — Tio Francisco ...—comecou Macário. — Bašta. Estamos a doze. Receberá o seu més por inteiro. Vá. As antigas educacöes produziam estas situacöes insen-satas. Era brutal e idiota. Macário afirmou-ane que era assim. Nessa tarde Macário achava-se no quarto duma hos-pedaria da Praca da Figueira com seis pegas, o seu baú de roupa branca e a sua paixäo. No entanto estava tran-quilo. Sentia o seu destino cheio de apuros. Tinha rela-cöes e amizades no comércio. Era conhecido vantajosa-mente: a nitidez do seu trabalho, a sua honra tradicional, o nome da família, o seu tacto comercial, o seu belo cursivo inglés, abriam-lhe, de par em par, respeitosa-mente, todas as portas dos escritórios. No outro dia foi procurar alegremente o negociante Faleiro, antiga rela-cäo comercial da sua casa. — De muito boa vontade, meu amigo — disse-me ele. — Quem mo dera cá. Mas, se o recebo, fico de mal com seu tio, meu velho amigo de vinte anos. Ele decla-rou-mo categoricamente. Bern vé. Forca maior. Eu sinto, mas ... E todos a quem Macário se dirigiu, confiado em relacöes sólidas, receavam «ficar de mal com seu tio, meu velho amigo de vinte anos».. E todos «sentiam, mas ...» Macário dirigiu-se entáo a negociantes novos, estra-nhos á sua casa e ä sua família, e sobretudo aos estran-geiros: esperava encontrar gente livre da amizade de vinte anos do tio. Mas, para esses, Macário era desco-nhecido, e desconhecidos por igual a sua dignidade e o seu hábil trabalho. Se tomavam informacöes, sabiam que ele fora despedido da casa do tio repentinamente, por causa duma rapariga loura, vestida de cassa. Esta circunstancia tirava as simpatias a Macário. O comércio evita o guarda-livros sentimental. De sortě que Macário comecou a sentir-se mim momento agudo. Procurando, pedindo, rebuscando, o tempo passava, sorvendo, pinto a pinto, as suas seis pecas. 52 53 Macário mudou para uma estalagem barata, e con-tinuou fárej ando. Mas, como fara sempře de temperamente recolhido, näo criara amigos. De modo que se encontrava desamparado e solitário — e a vida aparecia--lhe como um descampado. As pecas findaram. Macário entrou, pouco a pouco, na tradicäo antiga da miséria. Ela tem solenidades fatais e estabelecidas: comecou por empenhar. Depois vendeu. Relógio, anéis, casaca azul, cadeia, paleto de alamares, tudo foi levando pouco a pouco, embrulhado debaixo do xale, uma velha seca e cheia de asma. No entanto via Luisa de noite, na saleta escura que dava para o patamar: uma lamparina ardia em cima da mesa; era feliz ali naquela penumbra, todo sentado cas-tamente, ao pé de Luisa, a um canto de um velho canapé de palhinha: näo a via de dia, porque trazia já a roupa usada, as botas cambadas, e näo queria mostrar ä fresca Luisa, toda mimosa nas suas cambraias asseadas, a sua miséria remendada: ali, äquela luz ténue e esbatida, ele exalava a sua paixäo crescente e escondia o seu fato decadente. Segundo me disse Macário — era muito singular o temperamente de Luisa. Tinha o carácter louro como o cabelo — se é certo que o louro é uma cor fraca e desbotada: falava pouco, sorria sempre com os seus brancos dentinhos, dizia a tudo «pois sim»; era mais simples, quase indiferente, cheia de transigéncias. Amava decerto Macário, mas com todo o amor que podia dar a sua natureza debil, aguada, nula. Era como urna estriga de linho, fiava-se como se queria: e äs vezes, naqueles encontros nocturnos, tinha sono. Um dia, porém, Macário encontrou-a excitada: estava com pressa, o xale tracado ä toa, olhando sempre para a porta interior: — A mama percebeu — disse ela. E contou-lhe que a mäe desconfiava, ainda rabugenta e áspera, e que decerto farejava aquele piano nupcial tramado como urna conjuracäo. — Porque näo me vens pedir ä mama? — Mas, filha, se eu näo posso! Näo tenho arranjo nenhum. Espera. É mais um més talvez. Tenho agora aí um negócio em bom caminho. Morriamos de fome. í Luisa calou-se, torcendo a ponta do xale, com os olhos baixos. — Mas ao menos — disse ela — enquanto eu te näo fizer sinal da janela, näo subas mais, sim? Macário rompeu a chorar, os solucos saiam violentos e desesperados. — Chut! —dizia-lhe Luisa. — Näo chores alto!... Macário contou-me a noite que passou, ao acaso pelas ruas, ruminando febrilmente a sua dor, e lutando, sob a nudenta friagem de Janeiro, na sua quinzena curta. Näo dormiu, e logo pela manhä, ao outro dia, entrou como uma rajada no quarto do tio Francisco e disse-lhe abruptaimente, secamente: I —É tudo o que tenho. — E mostrava-lhe trés pin- tos. — Roupa, estou sem ela. Vendi .tudo. Daqui a pouco tenho fome. O tio Francisco, que fazia a barba á janela, com o lenco da India amarrado na cabeca, voltou-se e, pondo os óculos, fitou-o. — A sua carteira lá está. Fique — e acrescentou com um gesto decisivo — solteiro. j —Tio Francisco, ouca-me!... J —Solteiro, disse eu — continuou o tio Francisco, dando o fio ä navalha numa tira de sola. ! —Näo posso. j —Entäo, rua! i Macário saiu, estonteado. Chegou a casa, deitou-se, chorou e adormeceu. Quando saiu, ä noitinha, näo tinha í resolucäo, nem ideia. Estava como uma esponja saturada. ' Deixava-se ir. De repente, uma voz disse de dentro de uma loia-; —Eh! pst! olá! Era o amigo do chapéu de palha: abriu grandes bra-gos pasmados. i — Que diacho! Desde manhä que te procura. 54 55 E contou-lhe que tinha chegado da provincia, tinha sabido a sua crise e trazia-lhe um desenlace. — Queres? — Tudo. Uma casa comercial queria um homem hábil, reso-luto e duro, para ir numa comissao difícil e de grande ganho a Cabo Verde. — Pronto! — disse Macário. — Pronto! Amanha. E foi logo escrever a Luisa, pedindo-lhe uma despe-dida, um ultimo encontro, aquele em que os bracos deso-lados e veementes tanto custam a desenlagar-se. Foi. Encontrou-a toda embrulhada no seu xale, tiritando de frio. Macário chorou. Ela, com a sua passiva e loura docura, disse-lhe: — Fazes bem. Talvez ganhes. E ao outro dia Macário partiu. Conheceu as viagens trabalhosas nos mares inimigos, o enjoo monótono num beliche abafado, os duros sóis das colónias, a brutalidade tiránica dos fazendeiros ricos, o peso dos fardos humilhantes, as dilaceracdes da ausén-cia, as viagens ao interior das terras negras e a melan-colia das caravanas que costeiam por violentas noites, durante dias e dias, os rios tranquilos, donde se exala a morte. Voltou. E logo nessa tarde a viu a ela, Luisa, clara, fresca, repousada, serena, encostada ao peitoril da janela, com a sua ventarola chinesa. E ao outro dia, sofregamente, foi pedi-la á mae. Macário tinha feito um ganho saliente — e a máe Vilaca abriu-lhe uns grandes bracos amigos, cheia de exclamacoes. 0 casamento decidiu-se para dai a um ano. — Porqué? — disse eu a Macário. E ele explicou-me que os lucros de Cabo Verde nao podiam constituir um capital definitivo: eram apenas um capital de habilitacáo: trazia de Cabo Verde elementos de poderosos negócios: trabalharia, durante um ano, heroicamente, e ao fim poderia, sossegadamente, criar uma família. E trabalhou: pos naquele trabalho a forca ciiadora da sua paixao. Erguia-se de madrugada, comia á pressa, mal falava. Á tardinha ia visitar Luisa. Depois voltava sofregamente para a fadiga, como um avaro para o seu cofre. Estava grosso, forte, duro, fero: servia-se com o mesmo impeto das ideias e dos músculos; vivia numa tempestade de cifras. As vezeš Luisa, de passagem, entrava no seu armazém: aquele pousar de ave fugitiva dava-lhe alegria, valor, fé, reconforto para todo um més cheiamente trabalhado. Por esse tempo o amigo do chapéu de palha veio pedir a Macário que fosse seu fiador por uma grande quantia, que ele pedira para estabelecer uma loj a de ferragens em grande. Macário, que estava no vigor do seu crédito, cedeu com alegria. O amigo do chapéu de palha é que Ihe dera o riegócio iprovidencial de Cabo Verde. Faltava entáo dois meses para o casamento. Macário já sentia, por vezes, subirem-lhe ao rosto as febris vermelhidoes da esperanca. Já comecava a tratar dos banhos. Mas um dia o amigo do chapéu de palha desa-pareceu com a mulher de um alferes. O seu éstabeleci-mento estava em comeco. Era uma confusa aventura. Náo se pode nunca precisar nitidamente aquele imbroglio doloroso. O que era positivo é que Macário era fiador, Macário devia reembolsar. Quando o soube, em-palideceu e disse simplesmente: — Liquido e pago! E quando liquidou, ficou outra vez pobre. Mas nesse mesmo dia, como o desastre tivera uma grande publi-cidade, e a sua honra estava santificada na opiniáo, a casa Peres & C.a, que o mandara a Cabo Verde, veio propor-lhe uma outra viagem e outros ganhos. — Voltar a Cabo Verde outra vez! — Faz outra vez fortuna, homem. O senhor é o Diabo! — disse o sr. Eleutério Peres. Quando se viu assim, só e pobre, Macário desátou a chorar. Tudo estava perdido, findo, extinto; era neces-sário recomecar pacientemente a vida, voltar as longas misérias de Cabo Verde, tornar a tremer os passados 56 57 desesperos, suar os antigos suores! E Luisa? Macário escreveu-lhe. iDepois rasgou a carta. Foi a casa dela: as jane'las tinham luz: subiu até ao primeiro andar, mas ai tomou-o uma mágoa, uma covardia de revelar o desastre, o pavor trémulo de uma separacáo, o terror de ela se recusar, negar-se, hesitar! E quereria ela esperar mais?! Náo se atreveu a falar, explicar, pedir; desceu, pé ante pé. Era noite. Andou ao acaso pelas ruas: havia um šeřeno e silencioso luar. Ia sem saber: de repente ouviu, de uma janela alumiada, uma rabeca que tocava a xácara mourisca. Lembrou-se do tempo em que conhecera Luisa, do bom sol claro que havia entáo, e do vestido dela, de cassa com pintas azuis! Estava na rua onde eram os armazéns do tio. Foi caminhando. Pós-se a olhar para a sua antiga casa. A janela do escritório estava fechada. Quantas vezeš dali vira Luisa, e o brando movimento do seu leque chines! Mas uma janela, no segundo andar, tinha luz: era o quarto do tio. Macário vai observar mais de longe: uma figura estava encostada, por dentro, á vidraca: era o tio Francisco. Veio-lhe uma saudade de todo o seu passado simples, retirado, plácido. Lembra-va-lhe o seu quarto, e a velha carteira com fecho de prata, e a miniatura de sua máe, que estava por cima da barra do leito; a sala de jantar e o seu velho aparador de pau-preto, e a grande caneca da água, cuja asa era uma serpente irritada. Decidiu-se e, impelido por um instinto, bateu á porta. Bateu outra vez. Sentiu abrir a vidraca, e a voz do tio perguntar: — Quem é? — Sou eu, tio Francisco, sou eu. Venho dizer-lhe adeus. A vidraca fechou-se, e daí a pouico a porta abriu-se com um grande ruído de ferrolhos. O tio Francisco tinha um candeeiro de azeite na máo. Macário achouo magro, mais velho. Beijou-lhe a máo. — Suha — disse o tio. Macário ia calado, cosido com o corrimáo. Quando chegou ao quarto, o tio Francisco pousou o candeeiro sobre uma larga mesa de pau-santo, e de pé, i com as mäos nos bolsos, esperou. Macário estava oalado, anediando a barba. — Que quer? — gritou-lhe o tio. — Vinha dizer-lhe adeus; volto para Cabo Verde. — Boa viagem. E o tio Francisco, voltando-lhe as costas, foi ruf ar na vidraca. Macário ficou imóvel, deu dois passos no quarto, todo revoltado, e ia sair. — Onde vai, seu estúpido? — gritou-lhe o tio. — Vou-me. — Sente-se ali! — E o tio Francisco falava, com gran-des passadas pelo quarto: — O seu amigo é um canalha! Loja de ferragens! Näo está má! O senhox é um hörnern de bem. Estúpido, mas hörnern de bem. Sente-se ali! Sente-se! O seu amigo é um canalha! O senhor é um horném de bem! Foi a Cabo Verde! Bem sei! Pagou tudo. Está claro! Também sei! Amanhä faz o favor de ir para a sua carteira, lá para baixo. Mandei pór palhinha nova na cadeira. Faz favor de pór na factura Macário & Sobrinho. E case. Case, e que lbe preste! Levante dinheiro. O senhor precisa de roupa branca e de mobilia. E meta na minha con ta. A sua cama lá está feita. Macário queria abracá-lo, estonteado, com as lágri-mas nos olhos, radioso. — Bem, bem. Adeus! Macário ia sair. — Oh! burro, pois quer-se ir des ta sua casa? E indo a um pequeno armário trouxe geleia, um covilhete de doce, uma garrafa antiga de Porto e biscoitos. — Coma. E sentando-se ao pé dele, e tornando a charnar-Jhe J estúpido, tinha uma lágrima a correr-lhe pelo engelhado I da pele. j De sortě que o casamento foi decidido para dali a I um més. E Luisa comecou a tratar do seu enxoval. 58 59 Macário estava entáo na plenitude do amor e da alegria. Via o fim da sua vida preenchido, completo, radioso. Estava quase sempře em casa da noiva, e um dia andava-a acccnpanhando, em compras, pelas lojas. Ele mesmo Ihe quisera fazer um pequeno presente, nesse dia. A mäe tinha ficado numa modista, num primeiro andar da Rua do Ouro, e eles tinham descido, alegremente, rindo, a um ourives que havia em baixo, no mesmo prédio, na loja. O dia estava de ínverno, claro, fino, frio, com um grande céu azul-ferrete, profundo, luiminoso, consolador. — Que bonito dia! — disse Macário. E com a noiva pelo braco, caminhou um pouco, ao comprido do passeio. — Está! — disse ela. — Mas podem reparar; nós sós ... — Deixa, está täo bom ... — Näo, näo. E Luisa arrastou-o brandamente para a loja do ourives. Estava apenas um caixeiro, trigueiro, de cabelo hirsuto. Macário disse-ľhe: — Queria ver anéis. — Com pedras — disse Luisa — e o mais bonito. — Sim, com pedras — disse Macário. — Ametista, granada. Enfim, o melhor. E, no entanto, Luisa ia examinando as montras forra-das de veludo azul, onde reluziam as grossas pulseiras cravejadas, os grilhôes, os colares de camafeus, os anéis de armas, as finas aliancas frágeis como o amor, e toda a cintilacäo da pesada ourivesaria. — Vé, Luisa — disse Macário. O caixeiro tinha estendido, na outra extremidade do balcäo, em cima do vidro da montra, um reluzente espa-Ihado de anéis de ouro, de pedras, lavrados, esmaltados; e Luisa, tomando-os e deixando-os com as pontas dos dedos, ia-os correndo e dizendo: — É feio. É pesado. É largo. — Vé este — disse-ľhe Macário. Era um anel de pequenas pérolas. — É bonito—disse ela. — E lindo! — Deixa ver se serve — disse Macário. E toecnando-lhe a mäo, meteu-lhe o anel devagarinho, docemente, no dedo; e ela ria, com os seus brancos den-tinhos finos, todos esmaltados. — É muito largo — disse Macário. — Que pena! — Aperta-se, querendo. Deixe a medida. Tem-no pronto amanhä. — Boa ideia — disse Macário—sim senhor. Porque é muito bonito. Näo é verdade? As pérolas muito iguais, muito claras. Muito bonito! E estes brincos? — acres-centou, indo ao fim do balcäo, a outra montra. — Estes brincos com uma concha? — Dez moedas — disse o caixeiro. E, no entanto, Luisa continuava examinando os anéis, experimentando-os em todos os dedos, revolvendo aquela delicada montra, cintilante e preciosa. Mas, de repente, o caixeiro fez-se muito pálido, e afinnou-se em Luisa, passando vagarosamente a mäo pela cara. — Bern — disse Macário, aproximando-se — en täo amanhä temos o anel pronto. A que horas? O caixeiro näo respondeu e comecou a olhar fixa-mente para Macário. — A que horas? — Ao meio-dia. — Bern, adeus — disse Macário. E i am sair. Luisa trazia um vestido de lä azul, que arrastava um pouco, dando urna ondulacäo melodiosa ao seu passo, e as suas mäos pequeninas estavam escondidas num regalo branco. — Perdäo! — disse de repente o caixeiro. Macário voltoujse. — Q senhor näo pagou. Macário olhou para ele gravemente. — Está claro que näo. Amanhä venho buscar o anel, pago amanhä. — Perdäo! — disse o caixeiro. — Mas o outro... 60 61 — Qual outro? — disse Macário com uma voz sur-preendida, adiantando-se para o balcäo. — Essa senhora sabe — disse o caixeiro. — Essa senhora sabe. Macário tirou a carteira lentamente. — Perdäo, se há uma conta antiga ... O caixeiro abriu o balcäo, e com um aspecto reso-luto: — Nada, meu caro senhor, é de agora. É um anel com dois brilhantes que aquela senhora leva. — Eu! —disse Luisa, com a voz baixa, toda escarlate. — Que é? Que está a dizer? E Macário, pálido, com os dentes cerrados, con-traído, fitava o caixeiro colericamente. O caixeiro disse entäo: — Essa senhora tirou dali um anel.—Macário ficou knóvel, encarando-o. — Um anel com dois brilhantes. Vi perfeitamente. — O caixeiro estava täo excitado, que a sua voz gaguejava, prendia-se espessamente. — Essa senhora näo sei quam é. E tirou-o dali ... Macário, maquinalmente, agarrou-lhe no braco, e voltando-se para Luisa, com a palavra abafada, gotas de suor na těsta, lívido: — Luisa, dize ... — Mas a voz cortou-se-lhe. — Eu ... — disse ela. Mas estava trémula, assom-brada, enfiada, descomposta. E tinha deixado cair o regalo ao chäo. Macário veio para ela, agarrou-lhe no pulso fitando-a: e o seu aspecto era täo resoluto e täo imperioso, que ela meteu a mäo no bolso, bruscamente, apavorada, e mostrando o anel: — Näo m e f aca mal •— disse, encolhendo-se toda. Macário ficou com os bracos caídos, o ar abstracto, os beicos brancos; mas de repente, dando um puxäo ao casaco, recuperando-se, disse ao caixeiro: — Tem razäo. Era distraccäo. Está claro! Esta senhora tinha-se esquecido. É o anel. Sim, sim, senhor, evidentemente ... Tem a bondade. Toma, filha, lama. Deixa estar, este senhor embrulha-o. Quanto custa? Abriu a carteira e pagou. Depois apanhou o regalo, sacudiu-o brandamente, limpou os beicos com o lenco, deu o braco a Luisa e dizendo ao caixeiro: «Desculpe, desculpe», levou-a, inerte, passiva, extinta e aterrada. Deram alguns passos na rua. Um largo sol aclarava o génio feliz: as seges passavasm, rolando ao estalido do chicote: figuras risonhas passavam, conversando: os pre-gôes ganiam os seus gritos alegres: um cavalheiro de calcäo de anta fazia ladear o seu oavalo, enfeitado de rosetas; e a rua estava cheia, ruidosa, viva, feliz e coberta de sol. Macário ia maquinalmente, com o no fundo de um sonho. Parou a uma esquina. Tinha o braco de Luisa passado no seu; e via-lhe a mäo pendente, ora de cera, com as veias docemente azuladas, os dedos finos e amo-rosos: era a mäo direita, e aquela mäo era a da sua noiva! E, instintivamente, leu o cartaz que anunciava para essa noite, «Palafoz em Saragoca». De repente, soltando o braco de Luisa disse-lhe baixo: — Vai-te. — Ouve!... — disse ela, com a cabeca toda inclinada. — Vai-te. — E com a voz abafada e terrível: —Vai-te. Olha que chamo. Mando-te para o Aljube. Vai-te. — Mas ouve, Jesus — disse ela. — Vai-te! — E fez um gesto, com o ipunho cerrado. — Palo amor de Deus, näo me batas aqui — disse ela, sufocada. — Vai-te, podem reparar. Näo chores. Olha que véem. Vai-te! E chegando-se para ela, disse baixo: — Es uma ladra! E voltando-lhe as costas, afastou-se, devagar, ris-cando o chäo com a bengala. A dištancia, voltou-se: ainda viu, através dos vultos, o seu vestido azul. Como partiu nessa tarde para a provincia, näo soube mais daquela rapariga loura. 62 63