caderno de memórias coloniais CADERNO DE MEMÓRIAS COLONIAIS por isabela figueiredo título: Caderno de Memórias Coloniais, por Isabela Figueiredo copyright: © Angelus Novus e Isabela Figueiredo design: FBA capa: Olhar-te. Publicidade e Artes Gräficas, Lda data de edicao: 2010 isbn: 978-972-8827-69-4 DEPósiTO legal: 300946/09 4'EDigÄO ANGELUS NOVUS, EDITORA Rua da Fonte do Bispo, n° 136, Edificio Uniäo, 3° B 3030-243 Coimbra E-mail: geral@angelus-novus.com Reservados todos os direitos de acordo com a legislagäo em vigor. De cada vez que abria uma gaveta ou espreitava para dentro de um armdrio, sentia-me como um intruso, um ladrdo devassando os locais secretos da mente de um homem. A todo o momento esperava que o meu pai entrasse, parasse incredulo a olhar para mim e me perguntasse que raio e que eu pensava que estava a fazer. Ndo me parecia justo que eJe ndo pudesse protestar. Eu ndo tinha o direito de invadir a sua privacidade. Paul Auster, Inventar a Solidäo A memoria Humana é um instrumenta maravilhoso mas falível. (...) As recordagöes que jazem dentro de nós näo sdo gravadas empedra; ndo só tém a tendencia para se apagarem com os anos, como tam-bém é frequente modiftcarem-se, ou inclusivamente alimentärem, incorporando delineamentos estranhos. Primo Levi, 05 que Sucumbem e os que se Salvám 7 ^ . ................>lL,.}, ^ í/' y p- ■Jř-ý"'^1" - .-• H^."^ -g^BJl^, Disse alto, com voz forte e jovial, muito perto da mi- "^i^^^f^*^'^^ *^ ' -Olá! "|j ' . - - f •áÉ^^.-ř ••' ^ • ^PBjCr---^^1^' Era um olá grande, impositivo, ao qual me seria V ^r1 sti.\ ■ - ■ a " a . | r m impossível nao responder. Reconheci a sua voz, e, ain- '* 3*r. Éramos brancos, queríamos lá saber o que faziam os pretos ao nosso lixo, desde que desaparecesse. Manjacaze era querido dos inquilinos. Os meus pais davam-lhe sempře as sobras do pao do dia anterior, restos de comida, a roupa rasgada, velha, que tinha deixado de nos servir. De vez em quando, porque éramos católicos e bons - Páscoa, Natal, Entrudo - uma garrafa de vinho ou aguardente, uns fritos da minha máe. Comida, bebida, objectos que eram dados com altruísmo ao preto bom, ao preto que vergava as costas e a cabeca numa vénia, quando nos via, e que era simplesmente bom, um bom preto. Vejo Manjacaze muito nítido; as suas maos secas calo-sas postas á frente das pernas, com os dedos entrelaca-dos, enquanto agradecia, muito obrigado patrao, muito obrigado senhora, muito obrigado menina, e se dobrava. Manjacaze era bom. Os olhos de Manjacaze, ligei-ramente amarelados, eram bons. Nunca falava alto, nunca modificava o tom de voz, sorria sempře. Vejo-o cetirar os bidons de lixo do elevador de servico. Posso 36 37 descrever corno os rodava fazendo-os circular para fora, avancando-os ate a rua. Sempre do elevador do servico, o unico em que subia e descia, embora fosse ele quem os desencravava a todos, quem resolvia os problemas dos sete andares do predio Lobato. Manjacaze, vai la acima, temos coisas para ti. Mui-to obrigada, senhora. Sempre uma palavra boa. Manjacaze ajudou-me a acreditar na especie humana, nos que apesar de humilhados na hierarquia, mantinham a dignidade sobre todas as coisas, e a valorizavam como invisivel posse sagrada. Naquela altura em que ainda acreditava em tudo, e nao poderia antecipar que havia de ter nada, falhar, sobretudo os outros, eu, a normalidade, falhar ano apos ano, como se tivesse nascido invisivelmente manchada. Manjacaze tinha um ar de avo. Se pudesse sentar-me ao seu colo e ouvir historias dos pretos, como se isso fosse possivel nesta vida! Porque um negro nao tocava numa branca nem como avo. Era tabu. Por isso, apenas sorriamos um para o outro. Nao diziamos nada. 9. Ao sabado trabalhava-se, e o meu pai pagava a semana ao final da tarde. Ao sabado havia milando. Moravamos num terraco da 24 de Julho. O rectangulo de cimento que constituia a caixa do elevador elevava-se nu acima do chao, como uma especie de torre de vigia. Subiamos seis degraus bem altos para aceder ao portao dessa construcao que metia medo. Ao sabado, ao final da tarde, o meu pai chegava ao terraco com os pretos todos, os desenrascados, os man-drioes e os assim-assim. Eles sentavam-se nos degraus da caixa do elevador, constituindo, assim, um anfiteatro de assalariados. Falavam a lingua deles entre si. Raramente portugues. Metiam-se comigo, ou nao. Pediam-me para perguntar isto e aquilo ao meu pai. Pediam-me copos de agua. As vezes a minha mae dava-lhes sandes ou bola-chas. Se era vespera de dia importante, o meu pai era capaz de dar ordem para distribuir copos de vinho ou cervejas com sandes de carne. Esses momentos eram bons. O meu pai sentava-se no topo da mesa da sala com os livros e blocos de apontamentos onde assentara o trabalho de cada um, mais as notas e moedas para pagar. Havia, por vezes, entre o meu pai e a minha mae, alguma conferencia sobre o valor dos pagamentos a efectuar, sendo que ela tentava acalmar-lhe os animos; dizia-lhe, "nao facas isso", dizia-lhe, "fazes mal", dizia-lhe, "so vais arranjar problemas". Lembro-me que eram finais de tarde todos em ouro, de uma serenidade animada. Comecava a ficar mais fresco. Os corpos largavam a escravidao do trabalho como 38 39 se larga a pele velha. No dia seguinte seria domingo e ao domingo näo se falava em trabalho. Saía-se, comia--se, bebia-se, estava-se ä sombra, ouvia-se rádio. Mas, no meu terraco, a essa hora, apesar de tudo, o ar tremia de medo e incerteza. Gostava de ver ali os pretos do meu pai. Todos juntos pareciam muitos. Descansavam um pouco. Eram ho-mens diferentes uns dos outros. Uns mais novos, outros velhos, com a carapinha a embranquecer. Uns calados e sérios. Outros sorrindo. Alguns com medo. Outros, fa-lando como doidos. Rondava-os, observava-os, enquanto o meu pai fazia as contas; ia lá dentro confirmar se ele estava no mesmo sítio, chateado, praguejando; regres-sava ao anfiteatro de negros, que se impacientava com o tempo; as contas demoravam. Queriam ir-se embora, que estava a demorar; voltava lá dentro, estás a demorar; o meu pai muito tenso, eles que esperassem; corria ao anfiteatro, tinham de esperar. Os fins de tarde em ouro retalhavam os nervos a qualquer um. A čerta altura, o meu pai comecava a chamá-los, näo sei porque ordern. Podia ser a da recolha que fazia, äs segundas de manhä, nas bombas do Xipamanine, ou ao calha. O procedimento era simples. Os negros iam ä sala, e o meu pai entregava-lhes o dinheiro. Äs vezes eles contavam e reclamavam. O meu pai gritava-lhes que nes-sa semana tinham estragado um cabo ou chegado tarde ou sornado ou mostrado má cara ou era só porque lhe apetecia castigá-los por qualquer coisa que tinha metido na cabeca. Näo sei, tudo era possível. Para alem de ter mau génio nestas coisas, tinha os seus preferidos, e aos seus preferidos pagava sempře o acordado sem descontos. Depois havia os mais novos, recém-chegados, ou aqueles cm quem o meu pai náo confiava. E com esses havia muitas vezes milando. Ainda náo tinham percebido as regras, que eram só duas: receber e calar. Náo era preci-so agradecer. Mas se agradecessem, comecariam a subir na tabela de preferidos. A única hipótese de náo haver milando, era metérem o dinheiro recebido no bolso das calcas rasgadas e saírem, cabisbaixos. Se reclamavam, havia milando, e náo eram poucas as vezes em que saíam tla sala com um murro nos queixos, um encontráo dos bons. Havia milando bravo. Ameacavam o meu pai, o que o irritava ainda mais. Eram expulsos. Eu e a minha máe, tremíamos. Entre os negros que ainda esperavam receber, crescia um siléncio tenso. Depois, tudo se pas-sava muito depressa. O meu pai chamava o resto dos nomes, pagava e punha-os a andar. A seguir ficava do-ente para o resto da noite O meu pai tinha o condáo de transformar os finais dourados das tardes de sábado num poco escuro de medo e raiva. 40 41 10. Havia o filho do vizinho preto. O que comprou a casa do lado, na Matola, a que tinha a manfurreira na esquina traseira que dava para o telhado na nossa garagem. Subia pelo limoeiro velho para fugir ä minha mäe; falar sozinha, brincar com os gatos e imaginar mundos novos, um outro mundo. Quase engravidei do filho do vizinho preto. Tinha dez anos e o medo pôs-me de cama. Foi por pouco. Deus protegeu-me. O negrito, vendo-me no telhado da garagem, subia ä sua manfurreira para falar comigo äs cscondidas da minha mäe. Foi o único com quem me relacionei profundamente. Chegámos a tocar-nos nas inäos, quando ele transferia para os meus bracos os gatos que tinham fugido para o seu quintal. Tinha mäos iguais äs minhas, rosa-amarelo-beje nas palmas, mas de preto. Falávamos da escola. De jogos. De bichos, sobretudo de cobras, porque havia inúmeras no mato do seu quintal, c ele gostava de me meter medo com isso. E mostrava--mas j á cadáveres. Lembro-me do dia em que lhe disse, "a minha mäe näo me deixa falar contigo". Também me lembro de lhe dizer "tenho de me ir embora, que ela está u chamar". Chamava-me furiosamente, muito zangada por näo ter acesso ao telhado, e näo poder desancar-me ä chinelada. Ela tinha medo das minhas conversas com o uegro. Eu tinha medo do filho mulato que já devia estar a crescer na minha barriga, de certezinha. Agradava-me o rapaz, e já tinha percebido que quando um homem e urna mulher gostavam um do outro, nascia urna crianca. Se eu estivesse grávida do preto, o meu pai pódia matar--me, se quisesse. Pódia espancar-me até ao aviltamento, 43 até näo ter conserto. Pódia expulsar-me de casa e eu näo séria jamais urna mulher aceite por ninguém. Havia de ser a mulher dos pretos. E eu tinha medo do meu pai. Desse poder do meu pai. 11. Nao gostava de aneis. Os pretos nao tinham aneis. Ti-nham brincos pesados nas orelhas, que se rasgavam verticalmente. Tinham, ao pescoco, nos com sementes vermelhas, fitas coloridas nos pulsos, nos tornozelos, nos bracos. Eu tinha de usar um anel de ouro com um rubi. Era feio e apertava-me o dedo. Os negros nao usavam nada que os apertasse, a nao ser o trabalho do branco. Servir o branco apertava ja o suficiente. Por isso, os negros, ao domingo, bebiam o vinho de caju que tinham deixado a fermentar toda a semana. O vinho era branco turvo. Era um vinho sujo; flutu-avam pedacos de libra e casca da fruta. Era fermentado em garrafas de cerveja Laurentina, das grandes, ou 2M, das grandes; bazucas, valentes. O caju torcia-se como a um esfregao e deixava um sumo aspero e doce, leitoso, que fazia os negros felizes. Sim, ao domingo a tarde, os negros eram felizes com o seu vinho de caju. Ao domingo a tarde, os negros nao eram negros, eram nada; eram como os patroes brancos, felizes, e podiam rir e foder, cantar, cair e dormir. Aos domingos a tarde os negros eram quase brancos entre si. E tudo acabava a segunda, antes do raiar do sol. Ao domingo a tarde, a radio passava o Nelson Ned cantando Domingo a Tarde. Ao domingo a tarde iamos ao cinema. O cinema da Machava passava sessao dupla, com intervalo de meia hora entre cada filme; os mufa-nas calcados vinham vender Quibons geladinhos aos brancos, e chupas em piramide as criancas dos brancos. 44 45 A enorme sala do cine Machava dividia-se em tres zo-nas bem definidas: bancos corridos de pau, a frente: primeira plateia; bancos individuals estofados, ate ao fundo: segunda plateia; empoleirados metro e meio acima da ultima fila da segunda plateia, os camarotes, todos forrados a veludo vermelho, luxo dos luxos, so ocupados quando o filme era mesmo muito popular e a afluencia o exigia. Filmes como O Fado, A Maluquinha de Arroios. Cantinflas, Jerry Lewis e Trinita tambem enchiam camarotes. Alguns negros iam ao cinema. Calcavam-se e vestiam roupa europeia remendada. Sentavam-se na primeira plateia, e, eventualmente, em dias pouco frequentados, na primeira fila da segunda plateia. Nao estava escrito em lado algum que os negros nao tinham acesso normal a plateia ou ao balcao, mas rara-mente os vi ocupar essas zonas. Havia um entendimento tacito, nao um acordo: os negros sabiam que lhes cabia sentarem-se a frente, nos bancos de pau: os brancos espe-ravam que a pretalhada se juntasse toda a frente, a falar aquela lingua la deles, olhando para tras a cobicar a mulher do branco, mas devidamente sentados no banco que lhes pertencia. Para os brancos, um preto, la da primeira plateia, nunca olhava para tras por bons motivos. Ou lancava o amarelo do olho contra-natura as brancas, ou procura-va o que roubar, ou destilava odio. De forma geral, no cinema ou fora dele, o olhar dos negros nunca foi, para os colonos, isento de culpa: olhar um branco, de frente, era provocacao directa; baixar os olhos, admissao de culpa. Se um negro corria, tinha acabado de roubar; se caminhava devagar, procurava o que roubar. Ao domingo ä tarde iamos ao cinema. Eu levava um anel. Näo gostava de aneis. Os lugares da segunda plateia do Cine Machava havi-am sido montados sobre um piano inclinado. Tudo o que caia rolava ate ä primeira plateia, e ninguem lä iria; era o lugar dos pretos. Nem valia a pena. Eu teria sete anos. Usava aquele anel. Detestava-o. Pensei em ver-me livre da horrivel bijutaria, e ocorreu--me uma ideia infalivel, que executei na primeira oportu-nidade. No cinema, na escuridäo, a meio do filme, num momento de maior barulho, maior suspense, tirei o anel do dedo, e lancei-o, com o possivel impulso, por debaixo dos cadeiröes, para que rolasse, inapelavelmente, ate ä primeira plateia, e desaparecesse, para sempre, nas mäos dos negros, que haviam de lhe chamar um figo. Num domingo, fi-lo, e respirei de alivio. Adeus anel. Adeus, suplicio. Adeus para sempre. Havia de dizer que o tinha perdido, que me estava largo, que me tinha caido do dedo sem notar. E depois, nada a fazer. Um anel era caro. Realmente. Mas, paciencia. Eu era täo distraida! Nesse domingo comi um Quibom no intervalo. Estava contente. Ninguem reparou que ja näo tinha o anel, mesmo quando me esqueci de esconder a mäo. Nesse dia, ja terminava o intervalo, quando uma cena deveras invulgar prendeu a atencäo da segunda plateia em massa: um negro tinha saido do seu lugar lä ä frente, e avancava pelo corredor lateral esquerdo, perguntando algo, de fila em fila. O que queria o gajo? Andava a pedir dinheiro, de certeza. E, quando chegasse ä nossa fila, ninguem lhe ia dar nada, ja se sabia. Que trabalhasse. Näo se dava dinheiro a negros, a menos que trabalhassem, e o que se desse, seria pouco, para näo se acostumarem mal. 46 47 Quando chegou ä nossa fila, pudemos distinguir--lhe, entre o polegar e o indicador direitos, um minús-culo anel dourado com uma pedra vermelha, enquanto perguntava, "Este anel é daqul?" A minha mäe ainda guarda esse anel, lá em casa, na caixa dos ouros. 12. Tinhamos uns mainatos que carregavam as mercearias da loja do Lousä, em caixotes de cartäo. Atravessavam Lourenco Marques a pé, se preciso fosse, com eles ä ca-beca, äs costas, näo era da nossa conta. Carregassem. já vinham a pé lá do sítio onde dormiam, que havia de ser uma palhota clandestina em qualquer lugar que näo nos interessava, desde que näo trouxessem pulgas nem piolhos nem parasitas dos que se enterravam na pele. Se näo tinhamos mainatos, tinha o Lousä os dele. Näo precisávamos de sacos de plástico. Mas parece que isto era só na minha família, esses ca-brôes, porque segundo vim a constatar, muitos anos mais tarde, os outros brancos que lá estiveram nunca pratica-ram o colun..., o colonis..., o coloniamismo, ou lá o que era. Eram todos bonzinhos com os pretos, pagavam-lhes bem, tratavam-nos melhor, e deixaram muitas saudades. 48 49 13. Ernesto näo ia trabalhar hä tres dias. Era preto e os pretos eram preguicosos, queriam era passar o dia estendidos na esteira a beber cerveja e vinho de caju, enquanto as pretas trabalhavam na terra, plantavam amendoim ao sol, suando com os filhos äs costas, ao peito, e a enxada a subir e descer para o chäo. Preto era mä res. Vivia da preta. Näo pensava na vida, no futuro, nos filhos. So queria descansar, dormitar, dancar, cantar, beber, comer, viver vida boa. Era absolutamente necessärio ensinar os pretos a trabalhar, para seu proprio bem. Para evoluirem atraves do reconhecimento do valor do trabalho. Trabalhando, poderiam ganhar dinheiro, e com o dinheiro poderiam prosperar, desde que prosperassem como negros. Poderiam deixar de ter uma palhota e construir uma casa de cimento com telhado de zinco. Poderiam calcar sapatos e mandar os filhos ä escola para aprender oficios que fos-sem üteis aos brancos. Havia muito a fazer pelo hörnern negro, cuja natureza animal deveria ser anulada - para seu bem. De maneira que, ocasionalmente, aos säbados ä tarde, o meu pai tinha de ir ao canico procurar o Ernesto. O canico era para os lados de Xipamanine, ou do aero-porto, ou longe, longe. O canico era como o labirinto do Minotauro, e o meu pai era o Minotauro que ai entrava e saia, quando lhe apetecesse, para exercer a sua justica. O canico encontrava-se talhado de caminhos estreitos, recortados por entradas para aglomerados de palhotas, onde se juntavam mulheres falando, criancas chorando ou brincando, cäes sarnosos dormindo, cabritos remo- 51 endo capim, pilöes pilando milho, vozes altas, latas de [ comida fumegando sobre o carväo; basicamente, a vida. [ O canico era de cana velha, já cinzenta, ou nova, cor de café com leite clarinho. O meu pai levava-me pela mäo, e eu sentia-me portátil j como uma mochila leve; ia quase no ar. A terra era verme- i lha e havia uma poeira cor-de-rosa sobre todas as coisas. í Por vezeš o meu pai parava e perguntava, onde flea a casa f do Ernesto tal e tal? Ah, era mais adiante, perto duma árvore grande, duma cantina velha, dum cruzamento j onde estava uma palhota nova, e depois ia, ia, ia, encon-trava. O meu pai perguntava, e eu ia atrás, voando sobre I o solo vermelho, espreitando pelos recortes no muro de [ canico atrás do qual se escondia a vida dos negros, essa vida dos que eram da minha terra, mas que näo podiam ser como eu. Eram pretos. Era esse o crime. Ser preto. I Depois o meu pai encontrava o lugar, é aqui que mora o [ Ernesto? Onde está o preguicoso? A mulher apontava a [ palhota. O meu pai largava-me a mäo, e entrava, enquan- I to eu ficava cá fora abracada ao meu peito, no meio das galinhas, dos filhos descalcos do preto, da preta, dos outros pretos todos da vizinhanca que tinham visto o j branco e vinham saber. J O meu pai gritava lá dentro, e aos safanöes trazia-o i para fora, atordoados ambos. Segunda, vais trabalhar, ! ouviste? Segunda, estás nas bombas äs sete. Vais trabalhar para a tua mulher e para os teus filhos, cabräo j preguicoso. Queres fazer o que da vida? Safanäo. Soco. f E a mulher e os filhos e o bairro todo, e eu, estávamos j ali, imóveis, paralisados de medo do branco. [ E eis que o branco mete uma nota na mäo da negra e diz-lhe, dá de comer aos teus filhos; depois levanta-me no ar, aträs de si, presa pelo seu pulso, enquanto grita ;io negro, Segunda, nas bombas, ai de ti. E voamos ambos para fora do canico. De todo o lado sai, assoma gente, e cäes, galinhas, cabras assustadas. Ja um nervoso miüdo no canico. O branco foi lä dentro, deu porrada no Ernesto, agora vai a sair, o branco trouxe a menina, e a filha do branco. E o hörnern branco que me leva pela mäo voando, atravessa o canico veloz, procura a Bedford estacionada lä fora, senta-se, pöe o motor a trabalhar, arranca, olha para mim, entäo, estäs cansada, queres ir beber uma Coca-Cola? Queres que te deixe provar o meu penalti? ()[ho-o, näo respondo. Aquele hörnern branco näo e o meu pai. 52 53 14. Nunca tinha batido em ninguém, mas dei-lhe uma bofetada, porque ela me irritou, porque näo concordou comigo, porque eu é que sabia e mandava e estava čerta, porque ela tinha dito uma mentira, porque me tinha roubado uma borracha, sei lá agora por que lhe dei a maldita bofetada! Mas dei-lha, na Escola Especial, no intervalo da ma-nhä, encostada aos fundos da sala da 4a classe. Uma parede branca. Era a Marília. Foi premeditado. Tinha pensado antes, se ela voltar a irritar-me, bato-lhe. Pódia perfeita e impunemente bater--lhe. Era mulata. E a rapariga comeu e continuou em pé, sem se mexer, com a mäo na cara, sem nada dizer, litando-me com um estranho olhar magoado, sem um gesto de retaliacäo. Disse-lhe, já levaste, e depois afastei--me para o fundo do pátio, absolutamente consciente da infämia que tinha cometido, esse exercício de poder que näo compreendia, e com que näo concordava. Näo por ser uma bofetada, mas porque tinha sido ä Marília. A Marília era um alvo fraco. Nada pódia contra mim. Queixasse-se, e depois?! Eu era branca. Quem poderia cantar vitória logo ä partida? Senti-me muito mal. Depois. A experiéncia tinha-me saído amarga. Bater nos mais fracos näo era nada cristäo. Jesus näo o faria. Näo esqueci o rosto esguio e o belo cabelo crespo da bela Marília. Era mulata e näo pódia bater-me. Näo me lembro se lhe cheguei a pedir desculpa. Acho que näo. 55 15. A saída da porta da cozinha, na casa da Matola, a mill ha máe plantara uma alameda de piripireiros que me cliegavam á testa, lindos de frutos o ano inteiro, nos quais eu treinava a minha coragem e capacidade de resis-tčncia. Puxava os piripiris, arrancando-os aos ramos, cscolhendo os mais vermelhos e inchados, e comia-os crus, mastigando-os, sofrendo o fogo da terra as primei-ras tentativas, mas procurando, mais tarde, encontrar padroes de picante consoante a forma, cor ou tamanho das bagas. Desejava tornar-me forte. Primeiro um piripiri sem caretas, dois, trés, chegando aos quatro, e sem limites, até poder atingir a medalha de ouro nos jogos olimpi-cos da malagueta, que por acaso se realizavam amiude, e espontaneamente, entre a miudagem da vizinhanca, na unidade F do Bairro Doutor Salazar, Matola Nova. Quem aguentava mais? Quern aguentava sem engasga-mentos e trejeitos faciais? Haveria de veneer os rapazes da vizinhanca em todos os aspectos passiveis de ava-liacáo, mas, sobretudo, haveria de ultrapassar-me. Ser forte como o meu pai. Ser forte como o meu pai desejava que fosse. E como os pretos - que comiam piri-piri sem caretas. Ou como a Helen Keller - que náo comia piri--piris alguns. Por isso, treinava-me duplamente a cada saída pela cozinha: primeiro, a alameda, os piripiris em crescendo degustativo; segundo, as corridas á volta da casa, porque havia que ser resistente, volta a volta, e quando aguentasse seis sem parar, rápido chegaria as sete, depois ás oito, e ao céu do atletismo. Ser forte. Havia que resistir a tudo, nao desistindo. Havia que ser como a 57 Helen Keller. Como o meu pai. Como os pretos. A vida nao haveria de me apanhar desprevenida. Havia de viver tudo, viver melhor e bem. Nao seria uma minhoca, uma alforreca, uma amiba. Nao havia de ser um pau-mandado como as outras mulheres. Eu cá nao dobraria. Havia de ser como a Helen Keller. Ou o meu pai. Nesta parte jú nao entravam os pretos. Lembro-me: era preciso veneer o fogo e a dor. 16. ,\s camisas do meu pai eram sempre brancas. Era sábado ä tarde. A minha mäe tinha ficado de escrava ao quintal. Aos coelhos que tinham sarna. Ao transplante de nabicas para regos de terra que ela propria cavava, a negra. Era sábado ä tarde, depois do almoco cuja alquimia lhe tinha pertencido. Era depois de me ter vestido de lavado, e ao meu pai. Como todos os dias. Sábado ä tarde de luz bronzeada nos ombros, de brisa marítima muito fácil através dos cabelos. Trinta e tal graus. O peito movia-se devagar. As narinas abriam-se e fechavam-se, lentamente. Porque era o sul. Respirava-se. Sentada na Bedford branca que o meu pai conduzia na estráda da Matola, a caminho de Lourenco Marques, uma tangerina madura abriu os gomos dentro do meu cérebro. Uma revelacäo, um milagre: num segundo, sem expli-cacäo, li alto, e de uma só vez, a publicidade pintada nas laterais dos prédios, "Singer, a sua máquina de costura; beba Coca-Cola; pilhas Tudor; com Lux cabe sempre mais um; cerveja 2M, tudo o que a gente quer". Sumarenta, a tangerina aberta, uma flor no meu cérebro, era doce; e disse ao meu pai, "sei ler". Sorriu-me, "és o meu tesouro". Näo disse, pensou, "és tudo para mim". O meu pai veštia urna camisa de algodäo fino, muito branca. Lavadinha, passada a ferro com zelo pela minha mäe, apertada demais no botäo da barriga, quase a esgar-car. A pele do meu pai, tostada, brilhava de brilho. E os olhos, de brilho. O sorriso do meu pai sorria sozinho. 58 59 Sem nada mais escondido. Ä noite chegaria a casa com a camisa negra de nódoas, porque o meu pai tocava > e deixava tocar-se pelo pó, pelo carväo, pelas laranjas, , por mim. Agora estava impecável. No bolso da camisa notava-se um resto de nódoa a tinta de caneta rebentada. Coisa de nada. Um milímetro. Impecável. Essa tarde era feliz: iríamos passear no Zambi, levar--me-ia a comer iogurtes ä Baixa, ou talvez fôssemos petis-car moelas ao Sabié. Deixar-me-ia bebericar cerveja do seu copo. Ou um penalti, um tricofaite. Soltar-me-ia a mäo, e eu poderia correr, e respirar sozinha, sem cercas, um pouco - respirar fundo, respirar o ar agridoce de ca-tinga, polen e amendoim - porque ao lado do meu pai nenhum preto pensaria roubar-me; esse medo; ninguém iria roubar-me nem molestar-me, essa culpa de que tam-bém eu seria culpada porque o meu sorriso era dema-siado puro; o meu pai estava ali, e as suas mäos eram como patas de urso; contar-me-ia histórias de quando era novo, na Metropole; a da nuvem que desabava for-tíssima sobre si, no caminho de Óbidos para as Caldas, e da qual ele fugia, correndo ä mesma velocidade, e na mesma direccäo, mantendo-se, afinal, debaixo dela; do que só se apercebeu quando parou de pulmöes reben-tados, e a nuvem o ultrapassou. A memoria dele. Näo, a minha. As suas histórias ridículas, para que eu me risse, e involuntariamente soubesse que é doce ser ridículo, ser só uma pessoa ridícula, ser uma pedra, um päo acabado de cozer. Ser nobremente ridícula. Disse-lhe, "pai, já sei ler", e encostei a cabeca para trás, pousando-a na almofada do assento, com os olhos fechados, enquanto absorvia a maresia que vinha da direita, dos sapais ao lado da Sonefe. Os meus músculos, sempre tensos, afrouxaram. Agora já näo era a guerra em mim, e podia descansar; as regras de leitura fize-ram sentido num ápice, só porque a tangerina teimosa decidira abrir-se por inteiro no meu cérebro, como um polvo que estende os tentáculos. Ali, dentro do carro, a caminho de Lourenco Marques, perto da Sonefe, como a primeira menstruagäo. Sabia ler. Tinha sido dificil. Mas agora, este milagre. Täo rápido. Sabia ler. Abri de novo os olhos, para confir-mar, e li, como se näo tivesse feito outra coisa toda a vida, "cigarros LM long size, a vida moderna para o homem moderno". Näo percebia como tinha acontecido, mas sabia ler. Esse milagre de ler, essa mágia täo rápida no meu cérebro, como se alguém movesse urna varinha ä dištancia ou soletrasse palavras misteriosas, desenfeiticaram-me. A partir dessa tarde de sábado, embora a minha prisäo física näo se alterasse, e os muros e as grades de ferro continuassem altos ä minha volta, em todos os lugares, tornei-me mais livre. As frases podiam roubar-me a qualquer lugar, levar-me para dentro de mentes diversas, e escutar o que pensa-vam e näo diziam; as mentes dos bons e os maus e os mais ou menos, que eram a maior parte; sentar-me em navios perdidos, pairar sobre vulcôes e dormir em jar-dins de rosas e sombras suavemente lilases. Foi quando, devagar, comecei a tornar-me a pior ini-miga do meu pai. A inimiga lá dentro, calada. Que vé, e escuta e nem pediu autorizagäo. Foi quando comecei a tornar-me a toupeira. Só muitos anos mais tarde, muitos, muitos, compre-endi que saber ler, o acesso a essa chave para descodi- 60 61 ficacao do segredo, me transformara, contra todas as vontades, na toupeira que lhes havia de roer todas as raizes, devagar, uma de cada vez, ate restar po. O meu pai tinha a camisa branca e eu, o seu tesouro, a sua vida, sujei-lha de terra para sempre. 17. No Marcelismo, os navios acostavam cheios, todas as semanas. Os colonos chegavam misturados com as tropas e ficavam por ali, alugavam casa, instalavam-se, punham os filhos no liceu, na escola comercial ou industrial, arranjavam um mainato recomendado, ou arrisca-va m um que lne fosse bater ä porta; poucos compravam uma cantina, perto ou longe, a quinhentos ou seiscentos quilometros da capital, e vendiam carväo, petróleo, fari-nha, peixe seco e cerveja aos pretos que saiam do mato e näo falavam portugués. Aprendiam a falar todos os dialectos, eram intermediários em negócios, safavam-se bt-m. A maior parte ficava pela urbe. As tropas iam para o Norte e arranjavam, através dos programas de rádio, madrinhas de guerra a quern envi-av aerogramas. Eu desejava ser madrinha de guerra. Se já tivesse 15 anos... As madrinhas de guerra eram uma espécie de namoradas via postal, portanto, sem beijos na boca, e eu gostava de ouvir os programas em que se enviavam mensagens, "Maria Albertina Santos, madrinha do furriel Diamantino Russo, colocado em Nova Viseu, na companhia 3470, envia cumprimentos seus e da família, e faz votos pelo seu breve regresso com saude e boa disposicäo". Sabíamos tanto sobre o que faziam os tropas como sobre a politica do pais. Sabiamos nada. Näo descrevo uma terra ignorando que nela existia uma guerra. Havia uma guerra, mas näo era visivel a Sul; näo sabiamos como tinha comecado, ou para que scivia exactamente. Pelo menos, até ao 25 de Abril, näo se falou disso na minha presenca. Nem se evitou falar. 62 63 Havia guerra porque havia turras. Havia turras porque a natureza humana era maldosa e insatisfeita. A maldade existia em todo o lado e restava-nos lutar contra ela. A guerra era no Norte, mas nao tomavamos conscien-cia da sua gravidade, nao se falava em soldados dos nos-sos que tivessem sido mortos, nao existia para nos esse vocabulario que agora conhecemos, como emboscadas, guerrilha, mina disto e daquilo. Achavamos que estavam la pelos quarteis a cumprir a tropa, a fazer umas accoes de propaganda. A dar uns encostos nos negros que nao se portassem bem, o que era normal. Ou a limpar-lhes o sebo, se fossem teimosos e nao obedecessem, o que era pouco provavel. Era isso que o meu primo devia andar a fazer no Norte; a dar uns encostos aos negros. O Norte era muito distante. Era la em cima na terra dos macuas e dos macondes. Os turras, todos ladroes, queriam roubar a terra aos Portugueses. Vinham da Tanzania com a pele muito preta e maldosa. Era preciso defender a nossa terra, por isso e que chegavam os soldados de Portugal. Tambem havia soldados pretos. Esses, faziam-nos comandos, para irem a frente e morrerem primeiro; assim se poupava um branco. Que os pretos morressem na guerra era mal menor. Era la entre eles. 18. O meu primo nasceu em Lourenco Marques e nunca pronunciou as trés silabas muito dificeis da palavra Maputo. Ma-pu-to. As cinco de Lourenco Marques fluiam liquidas. Muito brancas. Maputo era nome de preto. Um preto, uma zona selvagem, um rio podiam chamar-se Maputo, Incomati, Limpopo, Zambeze. Uma vila de pretos podia chamar-se Marracuene, Inhaca, Infulene, Xipamanine. Uma cidade de brancos, nao. Tinha de ser Lourenco Marques, Beira, Mocimboa da Praia. Xai-Xai era de preto. Ponta do Ouro era de branco. Nenhum branco que tenha saido de Lourenco Marques se habituou a chamar-lhe... outro nome qualquer. Como geleira. Um branco ainda hoje pensa geleira, e emenda, em milésimos de segundo, para frigorífico. Pensa gali-nha, corrige para frango. Pensa Lourenco Marques e diz, com gozo, com desforra, como se manter um nome fosse manter o que designa, Lourenco Marques. Diz muito longamente e saboreia as silabas todas. Lou-ren-co-Mar--ques. A vida, em Lourenco Marques, era serena, morna, sibilada, muito fluida como o seu nome. O meu primo quando conseguiu sair em seguranca do Maputo, olhou para trás, na estráda do aeroporto, e disse, "nunca mais regressarei a Lourenco Marques". Cumpriu-se. 64 65 19. Depois enterrámos-lhe a faca de mato, o revolver e a tarda. Tinha estado no Niassa com autorizacáo para ma-tar pretos, e tudo aquilo cheirava a sangue, e cheirou durante muitos anos, mesmo enterrado no cháo fértil, i ncerto da Matola, até se oferecer um tiro nos miolos, já cm Xabregas, após ter queimado todas as veias, assaltado ourivesarias na Almirante Reis e assassinado negros a tiro, pelas costas, na Damaia. Para alem disso, foi meu primo direito. Nas ex-colónias era fácil morrer. Estava-se vivo, morria-se. Havia acidentes de caca, acidentes no mato, iiddentes de trabalho, acidentes rodoviários, acidentes. Cortavam-se dedos e saravam-se a seguir, lavados com água fria. A carne crescia no mesmo lugar. Se náo sara-vam, amputava-se o braco ou morria-se de septicemia. F.ra fácil. A vida de um preto valia o preco da sua utilidade. A vida de um branco valia mais, muito mais, náo que valesse grande coisa. A vida de um "bife" da Africa do Sul, dos que vinham com chapéu de mexicano apanhar sol na Polana, isso sim, era vida. Esses, sim, sabiam lidar com pretos, manté-los com rédea bem curta. Matar um preto, no Marcelismo, comecava a ser chato; a polícia, se descobrisse, vinha fazer perguntas. "Entáo, ó Rebelo, náo viu o peáo, e matou-o?" "Eu náo, agente Pacheco, era noite, náo havia luzes na picada, o gajo ia bébado, e atirou-se-me para cima da carrinha, o que é que voce queria que eu fizesse?!" "Que parasse, homem, que prestasse assisténcia ao preto!" 67 "Pensei que só lhe tivesse dado urna pancada, que o gajo acordasse dali a umas horas com a bebedeira j curada... seguia caminho prá palhota e nunca mais se lembrava disso. É pretalhada. Bebem até cair, e depois lixam-nos a vida." "Vou fechar os olhos desta vez, mas veja se näo se re- j pete, ó Rebelo, que agora temos ordens da metropole..." Matar um preto, a partir de čerta altura, comecou a dar chatice. i t f t J | i í 20. Mo Maputo, após a independéncia, e mesmo antes, certos inilitares desmobilizados do exército portugués que näo regressaram ä pátria, por sérem mocambicanos, negros ou brancos, foram perseguidos e assassinados. Dizia-se, fntre brancos, que era a FRELIMO em vinganca de guerra. Havia comités de bairro; formavam-se comissöes. Ia-se a casa. Revistava-se. Tudo era possivel nesse tempo sem lei. Morrer sempře foi fácil naquela terra, antes ou depois. O meu primo tinha sido educado no mais profundo desprezo pelo negro. Quando fez 19 anos, e o mandaram para o Niassa, partiu contente. Ia lutar pela California portuguesa. Descia a Lourenco Marques de nove em nove meses, mas já näo era o mesmo. Deixou crescer a barba. Era a guerra, e o meu primo nunca falou da guerra. Ninguém ťalava da guerra. Suponho que näo se fale da guerra, nunca. "Entäo, säo tesos, os gajos, lá no Norte?" Ele sorria, näo respondia. "Mas voces limpam-lhes o sebo, hein? Kies ainda väo ver quern fica com isto." O meu primo falava pouco e evitava a roda social. Fechava-se no quarto a fumar, e calou-se para sempre. Mesmo que tenha dito uma ou outra coisa depois disso, "sim, näo, talvez, näo sei", nunca mais falou. Tinha vergonha, o meu primo. Olhava-me com uns olhos vivos, e tinha vergonha de mim. Era um hörnern mořeno e bonito. Eu tinha 10 anos muito em fogo, amava-o em segredo, e embora näo soubesse o que era o sexo, sonhava viver com ele intensas ;iventuras eróticas. Espreitava-o no seu quarto, que man- 68 69 tinha sempře em meia-luz, onde se refugiava fumando muito. Náo sabia o que dizer-me. Tinha vergonha de mim. Eu fechava os olhos e fantasiava que nos amar-ravam, abracados um ao outro, lancando-nos a uma piscina incendiada, e que a intensidade do que era rea-lizado, essa violéncia, nos queimava de prazer. O meu primo acordou o meu primeiro, estranho desejo, e, uns anos mais tarde, matou-se. 71 21. O meu pai conversava na rua com outros homens. Eu rodopiava á sua volta, como sempře, escutando o ruído tlistante das conversas. Era o dia da minha primeira menstruacao. Usava um vestido de popelina branca, curto, liso, cintado, e meias tle renda dentro de sapatos rasos, de verniz. Tudo era bianco, porque me vestiam sempře de branco, como um cordeiro que há-de sacrificar-se. Tinha uns sapatos largos, abriam boča, e tropecei nas escadas, deixando ver, ao fundo, as cuecas manchadas de sangue. Sabia que estavam encharcadas, que nao tinha posto um pano, e morri de vergonha lenta, supondo que todos aqueles homens tinham visto o meu sangue. Entre eles, o meu primo muito jovem, muito bonito, com o qual sonhava secretamente; e ele tinha visto as minhas cuecas sujas de sangue. Gracas a esta embaracosa memória posso datar a minha primeira menstruacao. Era, entao, Janeiro. Era o dia da minha primeira menstruacao. Fazia 11 anos, e regressaríamos de casa de al-guém, onde teria escutado conversas de adultos durante horas a fio. Barulho que nada me dizia. "Sim, estou a ouvir". Que sim, que estava a ouvir, dizia-lhes. Sim, ou-via. Pensava. Olhava. Observava os animais, os bibelots, as lombadas dos livros da Biblioteca Básica Breve, os mainatos que raspavam o cháo, e depois o lavavam com aguarrás, e lhe passavam a cera, e puxavam o brilho com metade de um coco, e um esfregao de lá, até espe-lhar. Fascinavam-me esses homens enormes, luzidios de negros, vergados no cháo, limpando o que sujávamos, 73 servindo-nos iguarias do mar cujas cascas talvez pudes-sem chupar, e lamber os dedos, enquanto lavavam a loi-ca. E eram táo iguais a mim. Tinham mae, pai, primos... Os olhos eram táo espertos como os meus. Sorriam-me. Falavam-me, quando os patroes náo estavam perto. Eu gostava de conversar com os mainatos. Os mai-natos tratavam-me bem, carregavam-me as cavalitas. A minha mae tinha medo que os mainatos me fizessem mal ou me roubassem. Ou desconfiava de mim, adivi-nhando a minha alma de preta. 22. Soube do 25 de Abril a 26. Contaram ao meu pai, ao final da tarde, estando nós na praceta projectada á avenida Latino Coelho, em Lourenco Marques. Sei que estávamos na praceta projectada á avenida Latino Coelho, porque estou a ver o cenário dos prédios, os homens em círculo nas suas balalaicas azuis, cinzentas, castanhas-claras, trocando opinioes; e eu, vagueando entre eles e o lancil, no qual me ia equilibrando como entretimento, enquanto os escutava. Por momentos agarrava a mao do meu pai, rodopiando á sua volta, puxando-lhe os bracos. Ele animava-se na conversa com os outros homens, e eu escutava, desinteressadamente, o barulho desequilibrado das vozes, e as emocoes que continham. Ouvia de longe. Náo ouvia. Só o meu pai me interessava. Vestia calcoes de caqui e calcava chinelos de borracha de enfiar nos dedos, comprados nos chinas da baixa. Estava calor. Era final de tarde, e crescia já essa sombra húmida, e o cheiro das árvores e da terra, cansadas de luz; mas o dia náo tinha sido táo quente. A minha máe tinha subido para preparar o jantar. Mas é estranho, porque só fomos morar para a praceta projectada á Latino Coelho após os massacres de 7 de Setembro desse ano. Talvez tivéssemos ido visitar al-guém. Talvez o meu padrinho Joaquim, o maluco, que tinha aí construído uns prédios, quer dizer, os pretos do meu padrinho Joaquim tinham aí construído uns prédios, porque o meu padrinho náo percebia nada de construcáo, embora soubesse dar ordens, e gritar que queria tudo pronto no dia seguinte, e que depois vinha aí o canalizador e o electricista... E também devia saber 74 75 dar ordens ao canalizador e ao electricista, porque o meu padrinho era essencialmente poeta e suicida, explorador de mulheres e mentiroso. E espírita. Tinha uns zumbi- | dos nos ouvidos e via coisas estranhas. O homem seria i clarividente, construtor näo, isso garanto. Lembro-me de uma outra conversa sobre o 25 de Abril, ' também ao finál da tarde, na Baixa, do lado esquerdo do I edifício do bazar, e cá fora. Um grupo de homens, como j sempře, eu a única rapariga, apenas porque acompanha-va o meu pai, e participava como testemunha irrelevante ' nos seus actos públicos. Era a filha do electricista. Está I crescida a tua filha. Andas em que classe? E pouco mais. Ouvia. A conversa da praceta projectada ä Latino Coelho decorreu ao pôr-do-sol, mas näo täo tarde. A luz era mais branca. Nesta, a luz caía mais ténue, mais alaran-jada. Era a luz laranja do índico, da mesma cor da terra do Zambi, da Costa do Sol, da Ponta Vermelha, que näo é vermelha, é laranja forte como acafräo escuro. Qual dos cenários é o real? A conversa sobre o 25 de Abril teve lugar lá em cima, no Alto-Maé, ou na Baixa? Foi a mesma conversa? Foram conversas diferentes sobre o mesmo assunto? Prefiro o segundo cenário. Talvez as duas tenham acontecido. A coeréncia temporal, a uma grande dištancia, perde-se. "Foi assim", "tenho cá esta ideia". Uma coisa é čerta: aconteceu. Tinha acontecido uma revolucäo na Metropole. No dia anterior registara-se grande confusäo: Marcelo Caetano fugira para o Brasil, o país estava sem governo, havia tropa na rua; era a república das bananas; e como seria nas colónias? Sim, tinha havido confusäo, e depois?! O Governo tinha mudado de mäos, e bem, que os que lá estavam roubavam-nos todos os dias. Tinham sido os inilitares. Era bom para nos?! Iam dar a independencia as colonias? Ah, finalmente, Africa ia ser nossa! Finalmente, iamos deixar de pagar imposto aos cabroes da Metropole! Agora, poderiamos prosperar e fazer da nossa terra uma California. Era isso que a nossa terra ia ser: a California. A California, mas como na Africa de Sul. Com os pretos debaixo da mao, controlados, ou nao fariam nenhum. O 25 de Abril ia entregar Africa aos brancos, e depois iamos ser felizes. 76 77 As cabecas dos brancos roladas no campo da bola iam perdendo o rosto, a pele, os olhos e os miolos, e o que restava da carne amolgada e dos maxilares partidos. A negralhada remendava as bolas com trapos já engo-mados de sangue seco, rasgados aos cadáveres, e assim sustinham a estrutura que se desfazia a cada pontapé, até já näo restar senäo urna mäo cheia de ossos moídos, moles, que depois se chutavam para o mato, atrás do canico. E vinha outra cabeca putrefacta, até amolecer. Era fim-da-tarde. Anoitecia rapidamente. Transmitiram-me o recado no caminho até ao aeropor-to, passada a picada de areia alta que vinha das entranhas da Matola, e se fazia a 90 ä hora até chegar ao alcaträo. Repetiram-mo. "Näo te esquecas de contar." Ä passagem da carrinha formava-se, ao lado, e para atrás, para os que haviam de vir, urna nuvem de poeira encarni-cada que se entranhava nas texturas do corpo e da roupa que se veštia. E secava a garganta, as narinas, os olhos. "....agora, lá, säo muito amiguinhos dos pretos, mas tu vais explicar-lhes que isto näo é como eles pensam. Defendem-nos, mas ninguém fala do que nos fazem os pretinhos... Contas tim-tim por tim-tim os massacres de Se-tembro. Contas tudo o que nos aconteceu. E ä Candinha..." No 7 de Setembro o meu pai chegou eufórico. As coisas iam voltar a ser o que éram. "Isto vai voltar a ser nosso; está tudo no Rádio Clube, ocuparam aquilo, os negros estäo lixados, estäo a contas. Ainda vamos ganhar isto." Eu sorri. O que significaria "ganhar isto"? Deixava-me ir. Deixava-me tanto. Näo interessava nes-se momento. Os dias éram täo lentos e bons.. Se ganhás- 79 semos, quem ganharia, exactamente? O que era ganhar? O meu pai estava feliz. Eu estava feliz. Sorria porque era dele. Sabia quem ele era. Sabia umu parte. Sorria porque já sabendo quem ele era, eu era dele, ainda. Arrancou-me do chäo e levou-me a pé até ao Rádio Clube, as cavalitas. Havia uma multidäo branca frente ao edifício. Ho-mens, sobretudo. Também esposas. Mal vislumbrei o edifício, de uma das esquinas, a da direita. Sei que era a da direita, porque estou a ver essa nesga, sei que estou ligeiramente inclinada para conseguir alcancá-la. Apenas um edifício, o mesmo Rádio Clube de sempře, onde se realizavam as emissôes de variedades que escutávamos ä noite. Mas para o meu pai, e todos aqueles brancos, naquele momento, o edifício do Rádio Clube era símbolo de uma esperanca, e todos aí se concentravam ansiosos, como se adorassem o deus político de um templo pagáo. Era uma esperanca invisível, mas forte, como é a esperanca, tornáda ali pedra solida, portanto, palpável. Algo materiál. Escutava-se um ruído nervoso. O ar do flm da tarde fervia de energia de macho, de desejo, de medo. Barulho váo, descargas de voz desafí-nada, mas em fundo, nos peitos, um enorme siléncio que třeme, que devora, uma fome castigada que náo sobreviverá ao riscar de um fósforo. Tudo o que sei sobre o 7 de Setembro de 1974 é isto: os brancos estavam a ganhar aos pretos, talvez já náo houvesse a tal independéncia de que se falava, e que os brancos tanto temiam. Mais nada. 24. Descemos os dois de máo dada até á Baixa, para petiscar em qualquer sítio, falando sempře. Talvez moelas, pipis, améijoas. Um prego. Para o meu pai, uma bebida de ál-cool cortado a refrigerante; para mim, um refrigerante cortado com a bebida cortada do meu pai. Ele era fácil demais para mim. Muito fácil para mim. Sem me ensinar, o meu pai iniciava-me no prazer que já havia despontado com o estranho fogo do meu padri-nho. Eu gostava da sua presenca, de passear com ele a pé, por onde quer que fosse, de máo dada. Náo falava comigo sobre responsabilidades, náo me penteava nem endireitava a gola do vestido, como a minha máe, mas dirigia-se-me como a uma adulta. Falávamos do que o dia trazia e levava. E ele era livre comigo, aquela coisa sua, parte de si, igual a si. Era muito grande e muito poderoso como um rei--gigante, e a sua presenca protegia-me de todos os medos irracionais. Acho que nunca fui táo feliz como nesses momentos em que me pegava pela máo e caminhava comigo pelas ruas de Lourenco Marques, até ao Scala, até depois do Scala, vendo montras, pessoas, sentindo cheiros vindos de todo o lado, ao entardecer, enquanto as luzes das avenidas e dos néons se iam acendendo. E ele explicava-me, "agora ligaram-nas na subestacáo do..." Todos os meus sentidos despertavam nesses fins--de-tarde. Sentia-me uma pessoa. Sentia-me uma mulher. A sua alma-gémea. Nao houve nenhum homem capaz de me resgatar como ele, de me quebrar, de me dar vida só por existir. 80 81 Só por estar ali, sorrir-me, dar-me valor. Dar-me a mäo. Pegar em mim. Escutar-me. Esse pai a quem traí. Na descida até ä Baixa, nesse dia, perguntou-me u que queria ser. Dactilógrafa, talvez, respondi. Gostavadc máquinas de escrever. O meu pai explicou-me que isso näo garantia a sobrevivéncia. Que poderia ser engenhei-ra agronóma. Que se ganhava bom dinheiro; Mocam-bique era urna terra fértil onde crescia o que se plantasse, e iria precisar de engenheiros agrónomos no futuro. O que era engenharia agronóma? Para o meu pai, o mais importante era a minha autonómia. Tinha de pensar em garantir a minha indepen-déncia. Ter meios de sobrevivéncia sem depender de um homem. Esta conversa é muito clara para mim. Travou-a comi-go junto ao jardim Vasco da Gama. "Tens de ter urna profissäo que te permita viver a tua vida, com os teus filhos, ou näo, sem depender de nenhum homem! Sem estares äs custas de ninguém. Tens de ser dona da tua vida. Tens de ser livre. Compreendes?" "Compreendo." "Para isso tens de estudar, tens de ir para a univer-sidade!" "Sim. Eu vou." 25. Após o 25 de Abril j á se ouvia falar livremente sobre a guerra. Até porque os turras entraram pela cidade dentro e foi necessário explicar de onde vinham, quem éram esses invasores cheios de poder. Percebi que os colonos desejavam a independéncia, mas sob poder branco. Eventualmente, partilha de fun-cóes administrativas com um ou outro mulato educa-do, maleável. A FRELIMO era indesejada. Aquela terra, diziam, näo séria para os negros nem para a metropole, mas para os brancos que ali viviam. Séria urna independéncia branca; pretendia-se erguer ali urna Africa do Sul-califórnia-portuguesa. Ainda hoje os vejo envolvidos na mesma nostalgia. "A independéncia foi mal feita, e os culpados foram o Mário Soares e o Almeida Santos, que nos venderam e entregaram tudo aos pretos". Eu traduzo, "aquilo que entregaram aos pretos deviam té-lo entregue a nós, que logo tratávamos da negralhada". Quando revelam, com iágrimas sinceras, "deixei o meu coracäo em Africa", eu traduzo, "deixei lá tudo, e tinha urna vida täo boa". O meu pai, na véspera de morrer, sonhou que andava a fazer uma instalacäo no Sommershield, e que eu tinha ido com ele na carrinha; depois fomos petiscar ao Sabié, uns pregos; Coca-Cola, eu; ele, um tricofaite. Estou a ver o meu pai a sorrir. "Gostas?" Sorrio. "Gosto". Precisamos de tempo para compreender. Para matar. Para poder olhá-los de novo na cara com o mesmo amor. Para perdoar. 82 83 Messa outra vida distante tive um gato chamado Boli-nhas. Periodicamente, fugia pela janela da cozinha, e desaparecia durante semanas. Regressava magro, sujo, em sangue, sem uma orelha, falto de unhas, com o rabo cortado, chamuscado e zarolho. Miava a janela por onde tinha saido, abriamo-la, e entrava lento e moribundo, perante a nossa incredulidade. Demorava a recompor-se. Quando ia, nunca davamos pela partida, nem sabiamos se regressaria. Nunca soubemos, e foi assim durante anos. Tambem havia o Gimbrinhas que o meu pai um dia trouxera do mato, dizendo, cuidado, e selvagem. O Gimbrinhas era enorme, tigrado, e nunca se afastava. Lstirava-se ao longo da secretaria do meu pai, sobre a papelada das empreitadas. O meu pai nao o retirava; dizia-lhe, no maximo, com orgulho de macho para macho, chega-te para la, e o Gimbrinhas chegava-se, continuando a sua funcao de espirito maior da casa. Se o Gimbrinhas era selvagem?! Era um bocado. Deu-me umas unhadas na cara so porque queria beijar-lhe o na-riz. Nao estava para aturar criancas. Era um gato muito nobre, muito senhor. Eu tinha-lhe respeito e preferia agarrar-me ao doce Bolinhas, que nao era tigrado nem selvagem nem tinha vindo do mato nem se via nele qualquer pedigree. Depois veio a guerra, ou seja, a FRELIMO, e os gatos ftcaram abandonados em Lourenco Marques. Nunca consegui entender que tivessem deixado ficar para tras o Bolinhas e o Gimbrinhas. Nao me serviu a desculpa de que os haviam depositado em casa de alguem, tendo dai fugido. Que nao podiam transportar os gatos para 85 outro lugar. Que os gatos tinham de ficar. Näo acredito que tenham fugido. Disseram que os pretos os comeram. Os gatos e os cäes que os brancos deixaram para träs, näo os contentores com a mobilia de pau-preto nem os cinzeiros de pe alto, em pau-rosa, ou os dentes em martini, foram todos comidos pelos pretos e pelos chinas e pelos monhes. Nesse tempo näo se saia vivo de sitio nenhum. Havia a ilusäo da vida na metropole; de comecar tudo de novo, I escapar ao caos, ao morticinio. Depressa se desiludiam os iludidos, marcados pelo desenraizamento. De todos os morticinios daqueles dias, o que mais me i tocou foi o dos animais domesticos, por serem os ünicos inocentes em täo complexo jogo de poder. 27. Piziam que eu já era uma mulher. Ao meio, na Bedford, entre ambos. O carro ia depressa. i-stávamos atrasados. Já nao falavam. Atravessava os lugares conhecidos, e sabia que era a ultima vez. Olhava com indiferenca as árvores grandes, coloridas, as sombras, a luz de amoníaco da tarde, as esquinas suj as, o canico pardo dos dois lados da estráda do aeroporto. Nao valia a pena fixar uma imagem. Tudo se extinguiria depressa. Nao voltaria a esse lugar, que sendo a minha terra, nao me pertencia. A minha terra nunca veio, depois disso, a ser um metro de cháo preciso - um talhao do qual se pudesse dizer "pertenco aqui". Ou, "véem aquela janela no 4° andar, foi ali"; "onde está agora aquele prédio, a minha máe..." A minha terra havia de ser uma história, uma lingua, uma ideia miscigenada de qualquer coisa de cultura e memória, um náo pertencer a nada nem a ninguém por muito tempo, e ao mesmo tempo poder ser tudo, e de todos, se me quisessem, para que merecesse ser amada; quanto custava o amor? O meu corpo tornou-se devagar a minha terra. Mate-rializei-me nela, e todos os dias voltava ao anoitecer á minha terra, e dela saia de manha. Quando paramos no aeroporto, o recado de que era portadora já me tinha sido repetido inumeras vezes. O recado era importante: apretalhada, nesses dias, ma-tava a esmo; prendia, humilhava aleatoriamente. Sentia-mo-nos moribundos de vida; já nem se falava de poder. Tínhamos medo. E isto era a verdade. A verdade do fim. 86 87 A vida de um branco em Lourenco Marques tinha-st tornado um jogo de sorte ou azar. Joguei esse jogo, sem perdas de maior, umas semanas antes da partida, enquanto esperava a boleia do meu pai, numa das esquinas da 24 de Julho: a da Escola Especial. Era um lugar com muita sombra, muito fresco, essa esquina. Vestia umas calcas castanhas de tecido de licra, compradas na Africa do Sul. Um jovem negro que se deslocava rapido na minh;i direccao, sem qualquer intencao aparente, ao aproximar--se, abracou-me com a esquerda, esmagou o meu corpo contra si, arrebanhando com a mao direita o meu monte de Venus, apertando-o com forca, como espremeriaum caju para sumo. Olhou-me nos olhos, muito perto, sem temor, sem culpa. Largou-me sem palavra, e continuou rapido, sem se voltar. Permaneci na mesma posicao, paralisada, muda, com os olhos abertissimos. Minusculos pontos brilhantes rebentando ao redor de mim. Nao procurei ninguem. Nao vi ninguem. Nao sei se alguem me viu. Nao sei se havia gente na rua. Nao sei se o meu pai chegou logo, se demorou. Quando chegou, subi silenciosamente para a carrinha, e ele levou--me aonde tinha de me levar. Nunca lhe contei isto, nem a minha mae. Tinha de poupa-los. Evitar chatices. Podia ser um rastilho. Com o meu pai nunca se sabia. Era neces-sario evitar que ele se metesse em sarilhos naquela epoca. O tempo dos brancos tinha acabado. Um acontecimento como o que acabei de descrever, em pleno dia, no meio da cidade, no tempo dos brancos, nunca sucederia. A acontecer, garantiria a este jovem lin-chamento sumário em poucas horas. Haveriam de encon-trá-lo. Morreria ele, ou outro parecido, mas haveria morte. Ele sabia-o. Agora, nada o poderia atingir. Porque o sabia, ousara fazé-lo, olhando-me simultaneamente nos olhos, com vitória. Tudo era possivel nesses dias. Mas, sobretudo, tinha chegado o seu tempo, coincidindo com o fim do meu. Eu era ali a figura da terra vencida que pode saquear-se. "Os negros mataram, á catanada, o marido e os filhos da Conceicáo, no Infulene; lembra-te disto, desmembra-ram-no todo, estava espalhado no milheiral... foi o teu pai que lhe encontrou os bocados...! " Já és uma mulher, tens de lhes contar o que fizeram á Candinha do Jaquim, com o pau... que a usaram todos, e depois lho espetaram por baixo ate lhe sair á garganta, até morrer como Cristo." Mas na metropole náo conheciam a catana. Seria necessário descrever as características e potencialidades dessa arma. So depois contar. Largas como as de talho, a maior parte, mas mais longas, com láminas largas, ligeiramente curvadas, ou náo, dependendo do tipo de fabrico; pesadas, afiadas, cortando granito. Abriam mato, capavam, esventravam, decepavam, trinchavam. As catanas eram dóceis ás máos dos negros. E frias. Lavavam-nas cuidadosamente com saliva, lambendo-as, e limpavam-nas á camisola suja. Uma catana valia ouro e tinha vida propria. O seu espirito. Havia um espirito em cada lamina. Uma catana podia transformar qualquer corpo vivo numa massa aleatória e informe de órgáos. Em segundos. 88 89 Era um instrumento de morte e poder como nenhum outro. Näo tive medo de armas de fogo, porque a morte estava escondida dentro delas. Mas urna catana trazia as entranhas descobertas, brilhava, tinha manchas quo nunca saíam. Urna catana era a carantonha gozona d a morte, com os lábios pintados de vermelho. Nos dias que se seguiram ao 7 de Setembro a negra-lhada perdeu o freio, e na Machava, no Infulene, na Matola, na Malhangalene, e em todo o lado, chacinou, cega, tudo o que era branco: os machambeiros e família, os gatos, cäes, galinhas, periquitos, vacas brancas, e deixaram-nos agonizando sobre a terra, empapando sangue; salvavam-se as galinhas cafreais de pescoco pela-do. E os gatos pretos. "Quando os viste jogar ä bola com as cabegas, na estráda do Jardim Zoológico... contas tudo... tudo o que roubaram, saquearam, partiram, queimaram, ocuparam. Os carros, as casas. As plantacôes, o gado. Tudo no chäo a apodrecer. Tu vais contar. Que nos provocam todos os dias, e näo pode-mos responder ou levam-nos ao comité; que nos postos de controle nos insultam, nos humilham, nos cospem ern cima; que näo nos deixam ir ä igreja; que prenderam o padre e o pastor adventista por recusarem parar o culto. Que nunca sabemos se regressamos a casa. Que depen-de da vontade deles. Julgam-se reis disto, que é deles, que mandam. Como se eles tivessem feito esta cidade, tudo o que aqui está. Tudo isto que é nosso. Conta que prendem, torturam, mátam sem olhar a quern; que näo há comida, que tudo o que chega d a ajuda internacionál é para os grandes da FRELIMO, que näo chega äs lojas. Conta quantas horas estás na bicha do päo para chegares de saco vazio. Diz-lhes que tudo o que lá ouvem nas notícias é menti-ra, que o Almeida Santos e o Mario Soares sáo uns cáes que nos estáo a vender por meio tostáo. Que ponham o Spínola. Esse tem pulso. É teso. Tragam-nos o Spínola. Diz que náo conseguimos vistos para a Africa do Sul, nem para a Rodésia. Que tentámos tudo. Que havemos de regressar; temos de arranjar espaco num navio para meter a mobília, e só com cunha. Diz á tua avó... umas caixas grandes, pelo correio... a ver se náo chegam com tudo partido. O pau-preto, que lá valerá dinheiro. E as moedas de prata, o peso delas em prata. Ela que aconchegue essas coisas onde houver espaco. Os teus livros da Anita. A ventoinha grande. O candeeiro de secretária do pai. A máquina de escrever. As jarras de porcelana do Raul da Bernarda que trouxe no meu enxoval. O servico de chá. A cabeca da máquina. Papéis, fotografias, o teu diploma da primeira comunháo. O servico de chá chinés." 90 91 28. No 7 de Setembro, o Domingos escapou-se ä catana por um pescoco negro, e fugiu com a mulher e a filha para a cidade. O Domingos criava porcos e galinhas no Vale do Infu-lene. Quer dizer, os pretos do Domingos criavam-lhe os porcos e as galinhas, enquanto ele fornicava a viúva do outro lado da estráda. A machamba ainda lá deve estar, ä beira da velha estráda do Infulene, amurada de canico dos dois lados, ä direita de quem vem do Maputo em direccao ä Matola, no cruzamento com a picada de areia que ia dar äs terras do Cändido. O Domingos näo tinha luz electrica, porque näo fora criado com ela na Metropole, portanto, näo precisava. Por isso, a sua casa, ä noite, enchia-se da luz mortica dos candeeiros de petróleo, que tremeluziam através das redes mosquiteiras nas janelas todas abertas. Ä noite, no Infulene, näo se respirava, porque os mosquitos colavam-se äs paredes da traqueia e da laringe. As paredes dos Domingos, lembro-me bem, estavam pintadas, de cima-abaixo, com uma cor rubra, seca, de mosquito esborrachado há muito tempo. Como se fosse um papel de parede com arabescos. Foi-se fazendo essa pintura, com os anos. Era normal, nas casas dos colonos, sobretudo fora da cidade. E o Infulene era um päntano. Näo havia nada para fazer, no Infulene, ä noite. Eu gostava de ficar por lá a dormir com a filha do Domingos, que era a minha maior amiga. Ouvíamos concursos na rádio, ou música no gira-discos. Líamos Sarah Beiräo. Mentha. Ela contava-me a história, excepto o fim, e de- 93 pois, sim, ela emprestava-me Sarah Beiráo. Falávamos de rapažes. Ela falava. E ríamos. A Domingas era mais velha que eu. Tomávamos ba-nho de imersáo juntas. Eu achava-a grande, e bonita, porque já tinha mamas e pélos púbicos, mas na verdade ela era apenas grande. A Domingas foi quern me masturbou pela primeira vez. Logo pela manhá, com a banheira cheia de água morna, estendeu a sua perná entre as minhas, e procu-rou, com o pé, a entrada da minha vulva, que esfregou devagar, fitando-me trocista e rindo-se. Sabia-a toda. E eu fitei-a, e ri-me, e deixei-me ficar a olhar para ela, rindo e gozando, igualmente. Quis tomar banho com a Domingas a vida inteira, mas depois veio o 7 de Setembro, os revoltados partiram a banheira, e tivemos de negar-nos esses prazeres tao higiénicos e marginais. No 7 de Setembro, o Domingos salvou a mulher e a filha, mais nada. A casa do Infulene foi arrombada, saqueada, queimada, o gado levado ou morto. Os negros do Domingos estavam fartos de carregar sacas de farinha e milho e farelo que nunca eram para eles. O Domingos teve sortě, porque o Cándido, o da machamba ao fundo da picada, que, como ele, criava porcos e galinhas, foi assassinado á catanada, bem como os filhos, mais tudo o que era branco e mexia: cáes, gatos e períquitos. Os corpos foram retalhados e espalhados pela machamba; nenhuma cabeca ficou perto de nenhuma perná. A mulher do Cándido, que nessa noite ficara na cidade, foi depois ver o que sobrava. Como sobrou nada, a nao ser os cepos brancos em putrefaccáo, pediu aos homens da FRELIMO que lhe abrissem uma cova no chao, onde enterrar o colectivo de hörnern e filhos e animais, todos irreconhecíveis. Näo interessava quem era quem. A vida tinha de continuar, e continuou. Uns meses depois, o comité avisou que as casas saqueadas e desabitadas, näo regressando os proprietaries, seriam ocupadas pela populaeäo das palhotas. Para os brancos, nada havia a que regressar. Tinham esgotado as flats para alugar no Maputo. Näo queriam perder a propriedade - pelo menos, nessa altura, ainda pensa-vam poder manté-la - mas temiam regressar. Assim, o Domingos justificou a casa negociando, com o comité, aulas de alfabetizaeäo para o povo, dadas pela filha, que andava no liceu. A filha chamou-me como ajudanta, e äs quartas e sábados, passámos a ensinar as primeiras letras aos filhos dos que assassinaram o Cándido na casa queimada. Näo havia móveis, apenas o chäo e paredes de cimento lambido pelas chamas. Os negritos chegavam äs trés da tarde, sentavam-se sem ordern alguma, no meio da sala ou encostados äs paredes. Vinham descal-cos e esfarrapados, como desde sempře; vinham com as pernas e os bracos brancos e vermelhos de pó e terra, a cara ranhosa e os olhos remelosos. E eu e a Domingas, muito brancas, muito limpas, muito bem calcadas, muito educadas, desenhávamos o alfabeto, a giz, na parede queimada, que depois lavávamos para secar depressa e servir outra vez. Trazíamos os cadernos e os lápis, onde lhes desenhávamos linhas de is e us e pes e rés, que tinham de copiar. Näo falavam portugués, a näo ser o mínimo, mas entendiam tudo o que lhes explicávamos. E, ao fim da tarde, quando comecavam os mosquitos, os filhos dos que mataram o Cándido iam-se embora felizes por térem aprendido muitas letras. Foi assim que, 94 95 durante doze meses, eu e a Domingas alfabetizámos, com autorizacäo do comité, os negritos do Vale do Infulene. Depois, mandaram-me embora para a Metropole, para ser uma mulher, e a Domingas continuou, sozinha, a assegurar o património do pai, que nunca foi seu. Quanto a nós duas, a guerra roubou-nos o prazer. Roubá sempre. Quando crescemos, e a vida nos corrompe, torna-so impossível voltar äs primeiras letras, äs que näo conhe-cem, naturalmente, qualquer corrupcäo. Mas isto já foi tudo na outra vida. 1975, Novembro. Voos da TAP esgotados há meses, para qualquer destino. Nos dias anteriores tinha havido um corrupio. As nialas. Os fundos falsos. As calcas de La Finesse verde--alface e amarelo-canário, para o Inverno portugués, täo cinzento e castanho e azul-escuro. Meias. Cuecas. Soutiens. Pensos higiénicos Modess. Camisolas de manga comprida. Um pesado casaco de lä clara, fora de moda, apertado ä pressa. Lourenco Marques esvaziava-se de brancos, ricos e pobres, desde muito antes da independéncia. Tínhamos ficado para o fim. O meu pai acreditava num. reviralho, numa Africa branca na qual os negros haviam de se assimilar, calcar, ir ä escola, e trabalhar. (is negros haviam de nos sorrir, sempre, e agradecer o que fizéramos pela sua terra, quer dizer, pela nossa terra, e servir-nos, evidentemente, porque eram negros, e nós brancos, e esta era a ordern natural das coisas. Näo é normal habituar os cäes a coleira e trela, ou abater um cahrito e assá-lo? Pois essa era a ordern do mundo. O meu pai acreditava num movimento de brancos, num outro movimento de brancos, após o de 7 de Setem-bro. Um que havia de vencer mesmo, que seria financiado pela Africa do Sul ou pela Rodésia. Havíamos de expulsar o poder negro da cidade, e remeté-lo ao mato, de onde tinlia vindo, onde pertencia, e domesticá-lo ou chaciná--lo. Um ou outro, conforme fosse merecido. Uma Africa ile brancos, sim, uma Africa de brancos, repetíamo-lo. I'orque aquela terra, senhores, era do meu pai. O meu pai era todo o povo mocambicano. Sentia forca e raiva, 96 97 e espumou até ao último dia, recusando baixar a voz perante um negro, mostrar-lhe os documentos, as guias de viagem, tratá-lo por vocé, dar-lhe a mäo em sinal do aceitacäo da sua autoridade. Com ou sem independéncia, um preto era um preto e o meu pai foi colono até morrer. Na véspera da sua morte, quando já näo comia nem bebia, sonhou que os pretos lhe tinham metido os cabos pelas paredes, tudo mal feito, e gritava com eles. Andava enrolado naquilo. Sofria. Perguntei-lhe, "ainda te lem-bras muito do Sommershield?" Lembrava; sabia de cor o nome de todas as ruas, a localizacäo dos prédios, a designacäo comercial das lo-jas, em cada esquina, e os nomes próprios e apelidos dos construtores encarregues de cada obra. Recordava cada um dos seus pretos favoritos: o Samuel, o Ninhanbaka... "Nós tínhamos feito daquilo a America... se aquelos gajos... e estes...", e abanava a cabega, soltava um rangido, fechava os olhos, encolhia os ombros até ao pescoco, sacudia-se como se quisesse soltar pensamentos: "pretos do caneco". Em 1975 já näo se construía em Lourenco Marques. Tudo parou. Já näo havia obras por onde enfiar cabos de eleetricidade, e, mesmo que as houvesse, seriam entre-gues aos cooperantes soviéticos, cubanos, do Báltico, näo a um colono mal visto, com má fama, um passado manchado, preso por um fio. A pouco e pouco, os negros do meu pai desapareceram no canico, porque já näo havia trabalho. Näo restou um. Nunca mais vi os pretos do meu pai. Na escola, o professor de Frances, era preto. II était du Senegal. Noir. Le francais au noir! A História era a dos reinados anteriores a Gungunha-na, essa etnia, e as outras, que éram muitas. E das guerras que travavam. Os bantu, os shona, os do Monomotapa. Os nguni, depois os zulus. Os brancos riam-se. Aquilo era a história dos pretos! Os pretos julgavam que tinham história! "A história dos macacos!" Em Portugués escrevíamos poemas sobre o colonia-lismo, a exploracäo do homem pelo homem, a luta armada, o fim do lobolo e da candonga; a FRELIMO como religiäo, os salvadores do povo, Samora Machel, Graca Simbine, Eduardo Mondlane, esse sim, que era "casado com urna branca, porque fora educado na Európa; nem era bem negro, era mais mulato" - com esse havia "a porca de torcer o rabo, por isso o assassinaram; foi o Samora" - e o Chissano, "falso como Judas". Em Educacäo Visual realizámos trabalhos colectivos: murais sobre a revolucäo, cartazes sobre a revolucäo... Mas aquilo näo era escola. Séria, portanto, necessário dar-me destino. Eu era branca. "Eu já era urna mulher. Era perigoso". No dia viňte e tal fecharam-me as malas e os sacos, e eu näo disse nada, porque urna filha "näo tinha que-rt, näo era achada"; atiraram-nas, ä ultima da hora, pa ra a caixa fechada da Bedford, sobre tubos, cabos, fichas-fémea e macho, interruptores, e outros apare-lliómetros para medicäo de voltagem, naqueles dias já sem uso; a minha mäe penteou-me aos repelôes, como sempre, e disse-me, "hoje, vestes este fato. Vais para a Metropole". 98 99 Subi para a carrinha com ordem para näo me sujar; näo que ma tenham dado - eu sabia - näo pódia sujar-mo nunca: tinha esgotado a prerrogativa ao nascer. Por isso, sujava-me muito, primeiro que tudo, prioritariamente. No dia viňte e tal subimos os trés para a Bedford, em siléncio; eu, para o meio; eles, um de cada lado, o conduziram-me ao aeroporto, pela picada que saía da Matola Nova: Bairro Salazar. O meu pai chamava-lhe Bairro Salazar. Deixou-nos pó vermelho na garganta. íamos depressa. Atrasados. Acho que foi a última vez que estive no meio deles. Entre eles. Nesse siléncio revi a matéria. Era a portadora da mensagem; levava comigo a verda-de. A deles. A minha, também, mas eles näo imaginariam que eu pudesse ter uma verdade só minha, sem a sombra das suas mäos. E revi a matéria. 30. c) meu pai conduzia a Bedford branca na picada que atravessava toda a Matola Nova até ä estráda de alcaträo que ligava Lourenco Marques ä Matola Velha, lá mais ao fundo. E eu näo ia de branco. Ele guiava depressa dcmais, porque estávamos atrasados para o voo. Eu ia nesse dia para a Metropole. O voo era ao final da tarde, e sabia-se que precisaria de umas boas horas para cumpri-mento de todos os trämites alfandegários. Conferéncia de documentos. Vasculhar as malas. Passar no controle de metais, no apalpamento... Ouvia o estrondo dos cabos de electricidade, sacudidos pelos buracos da picada, na caixa da carrinha, lá atrás, esse lugar que ia deixar atrás, atrás; passávamos junto ä canti-na, do lado direito de quem ia, onde os negros esperavam pelas boleias, e vendiam tudo, lenha, montes de carväo, galinhas, cabritos, capulanas e raizes para mascar. Era aí que eu pedia para ir comprar garrafas de ceivejaLaurenti-na ou 2M ou Seven Up, ou pedacos de gelo ou enxofre ou óleo ou azeite, ou qualquer coisa de que a minha mäe se tivesse esquecido, e näo houvesse outra solucäo, porque o meu pai näo estava por perto. Podia descalcar-me äs escondidas no mato, e ir clandestinamente, sem sapatos, a ver se conseguia que os meus pés ficassem como os pés dos negros, de dedos abertos e sola dura, rachada. E gin-gava como uma preta, para experimentar o que era ser preta. E as mamanas passavam por mim e riam-se, e os negros também. E diziam-me coisas que eu näo percebia, riam-se, a branca, a branca, essa branca do electricista. E eu ria-me. Tinham reparado em mim. Parecia-me com eles. Tinham-se rido. Ia descalca. E näo podia. 100 101 íamos aí, a meio do caminho. Ä passagem da carrinha levantava-se uma nuvem de poeira vermelha que caía sobre a carapinha dos pretos, e a pele castanha dos pretos e os tornava Irreais, seres täo extraterrenos, intensos, proibidos. Täo misteriosos. Sei que näo ia de branco, porque era o dia da minha partida para a Metropole, e tenho a certeza que chegud a Lisboa com calcas de terilene azul-marinho. E foi Junto ä cantina, essa cantina, que o meu pai teve de volta r atrás. Esquecera-se de alguma coisa que fazia parte da minha bagagem. O anel de esmeraldas da minha tia, que eu teria de passar na alfandega, no dedo médio; esta-va muito largo, ataram-lhe cordel para o engrossarem e mo cintarem ao dedo; largo, mesmo assim: era de ouro branco com pedras que considerei desprezíveis; tinha outra ideia do que deveria ser uma esmeralda; a minha tia, quando retornasse, näo teria dedos que chegassem para os anéis, pelo que os ia distribuindo. Isso contrariou-me. Näo o anel. Voltar atrás. Perdur vinte minutos. Vestiria o que me pedissem, colocaria nos dedos os anéis que me entregassem, se quisessem até os engolia, ou entalava-os debaixo das mamas, como se fazia com as notas, as moedas de prata e as pedras preciosas a sério. Queria sair dali para fora o mais de-pressa possível. Tinha ficado feliz quando soube que na decisäo final sobre o meu futuro tinha vencido a partida. Hou-ve uma decisäo? Näo interessa. Que se tinha decidido que eu me iria embora no primeiro aviäo disponível. Qualquer desculpa serviria: os estudos, a seguranca, a minha virgindade... Dali para fora. A andar. Rápido. Queria, como uma criminosa de guerra, voltar costas a toda aquela esquizofrenia que näo me permitia ser legitimamente quem eu era nem viver com o que eles eram. Precisava de uma identidade. De uma gramática. Melhor, de poder mostrá-las sem medo. Sou isto, pronto, sou isto, assim, agora, olhem, arranjem-se. Vestiam-me e calcavam-me de branco, mandavam--me pisár o raio da terra täo negra e húmida que chiava debaixo dos pés, ou täo vermelha que o verniz ou o couro se pintavam de uma aguarela de sangue claro. Näo havia forma de poupar o meu corpo äs manchas da terra, contudo estava proibida de me manchar dela. Näo havia forma de me libertarem dessa necessidade de me manter imaculadamente branca. Na minha memória estou sempře vestida de branco, preocupada em näo me sujar. O vestido branco que näo usei nesse dia é a mais clamorosa metafora da minha vida de pequena colona: uma branca de branco, agarrada ä saia que näo pode sujar, olhando os sapatos brancos que näo pode empo-ar. É assim que me vejo, na cabina da Bedford branca, encolhida debaixo da roupa, preocupada com a poeira que entra pelas janelas. Do lado do volante, o meu pai. Vais para a minha terra. Vais gostar. Pede ä tua avó que te faca toucinho entremeado com couve branca. Do lado da janela, a minha mäe. Näo te suješ. Penteia-te. Sempře despenteada. Tem cuidado para que nada chegue partido. Olha o anel da tua madrinha. Sim, olharia por tudo. A quem entreguei o anel da minha madrinha? Era Novembro, fazia muito calor e eu usava um vestido branco em tecido črepe. Näo me podia sujar. Tudo isto parece certo, mas é mentira. Eu vestia de azul. 102 103 Agora, depressa, para o aeroporto. A vida na colonia era impossivel. Ou se era colono, ou se era colonizado, nao se podia ser qualquer coisa de transicao, no meio daquilo, sem um preco a loucura no horizonte. 31. \,'a noite ja longa, lä for a, homens cavalgando camelos ;iproximam-se do aviäo para prestar assistencia tecnica. Vejo-os passando sob a asa. Alguns, param. E uma imagem invulgar, portanto estranha. E noite, c uma noite especialmente so. A primeira noite em que ninguem me mandou apagar a luz, e em que me enca-minho para a mulher que escreve estas palavras. A mesma mulher, ainda menina, o mesmo cabelo e os olhos claros vazados pela miopia, as mäos com muitas linhas, as pernas gordas nas coxas que continuam a rasgar as calcas entre as pernas. A mesma pessoa, como poderei cxplicar isto melhor: a mesma pessoa. Na noite, as forrrias lentas, ciaras dos camelos encima-dos por homens de turbante. A toda a volta, uma escuri-däo apocaliptica. Nem uma luz. Foi hä trinta e tal anos. E o aeroporto de Dakar. Acabämos de fazer escala no Senegal por imperativos tecnicos. Näo saimos do aviäo, näo podemos levantar-nos nem desapertar os cintos de seguranca. Lembro-me que e o Senegal porque na altura pensei, e o sitio de pnde vem a margarina. Havia uma margarina muito boa do Senegal e barravamo-la no päo. Näo me lembro se fizemos escala em Joanesburgo ou em Luanda. Se calhar fizemos. So me lembro da margarina do Senegal, e dos homens de turbante sobre camelos, rodeados pela mais funda escuridäo. Digo ä hospedeira que preciso de procurar o anel de esmeraldas da minha madrinha, um que trazia neste dedo, que me caiu dos dedos num momento de esque-cimento, que näo dei por nada, que deve ter rolado para 104 105 träs, ou para a frente. Diz-me que näo posso levantar-me. Estou desesperada, e um anel de esmeraldas, näo me pertence, tenho de o entregar a alguem, depois, näo sei quando, estä-me largo, caiu, preciso de me levantar e de o procurar. Ela diz-me que näo. So quando chegarmos a Lisboa. Que tenha paciencia. A forma como olhämos para as nossas mäos aos dez anos, e a forma como olhamos para elas, agora, estou a olhar para as minhas mäos agora, näo muda. As mesmas mäos. Como puderam envelhecer e ser ainda as mesmas? As unhas iguais. Os nos dos dedos. Os mesmos olhos. O mesmo pensamento, quando olhamos, com os mesmos olhos, as mesma mäos. Reaccöes iguais perante os acontecimentos, a expres-säo dos sentimentos, como a alegria, mas sobretudo o medo, näo mudam relevantemente ao longo do tempo. A partir de certa idade, muito cedo na infäncia, ja somos nös, o que hä-de perseguir-nos sempre. Näo me lembro de sobrevoar Lourenco Marques. Näo vi pela ultima vez a baia de Lourenco Marques. Menti-ra. Vi, sim, qualquer coisa! O mato longo lä em baixo, enquanto o aviäo ascendia. O mato quente. Mais nada. Quando partimos, muito ao final da tarde, Lourenco Marques ficou para träs do pör-do sol, muito doce, muito madura, mas ja longe quando levantämos; era o lugar onde nunca voltaria; eu sabia; agora tinha de me prepa-rar para ser uma mulher, comecar uma vida nova, fazer tudo certo. Sabia que era dificil. Que estava marcada por uma larga solidäo invisivel. Näo sabia como tinha acontecido nem porque. Sei-o, hoje, porque reconheco o meu pensamento seguindo os mesmos caminhos, enformado nos mes- mos moldes. Porque sou a mesma. Lembro-me de como pensava. Ja estou aqui, contudo ainda la estou. Na verdade, todo o passado, presente e futuro ali se fundiram, na-quela viagem, e eu so posso falar usando as palavras tie fronteira, de transicao, manchadas, duais que ai se formaram. No aeroporto de Lourenco Marques, nos momentos que antecederam a entrada para a alfandega, lembro--me de uma porta de vidro. Quando se atravessava, nao havia regresso. Via os que tinham entrado, ja distribuidos por filas. Tinhamos chegado tarde, porque o meu pai esquecera--se do anel da minha madrinha, o que perdi no aviao, e ainda era preciso cumprimentar todos aqueles brancos que se foram despedir da filha do electricista, levando recados, cartas, pequenas encomendas que eu deveria encaixar na bagagem de mao, avisos sobre como deveria contar tudo na Metropole, a mesma lenga-lenga, contas tudo o que nos tern feito, diz que perdemos tudo, que o dinheiro nao vale nada, que nao ha que comer, que mataram os Monteiros, que a filha do Sousa mais o mari-do estao presos, conta que estamos quase a ir. Diz que eles hao-de matar-se uns aos outros. Que nao querem trabalhar e morrerao de fome. Que Africa sem brancos esta condenada. Vao chorar e clamar tanto por nos! Mas, agora, vai, depois la nos encontraremos e falare-mos. A gente vai a seguir. Agora vai que ja e tarde, vai, vai, e neste instante em que tudo esta perdido, em que ja nao ha volta, em que entro por essa porta de vidro, apos os beijos formais, um sentimento estranho que nao 106 107 consigo controlar, um vazio, um nunca mais vou voltar, uma coisa que se perde, urn vazio, e esse amor täo escon-dido, täo evidente pelo meu pai, que me projecta para os seus bracos, contra a minha vontade, como uma ba la que o atravessa e o torna exangue, eu chorando a fio, näo conseguindo largar o seu corpo, os seus bracos enormes, o seu corpo enorme, as suas mäos enormes, a sua cariK' enorme que beijo, que näo quero largar. E volto atras, chorando a fio, abracada a qualquer parte desse corpo sagrado, chorando, chorando-o, arranhando-o de amor, como se o mundo acabasse ali, e acabava, depois a minha mäe, que me sacudia, envergonhada, e eu, envergonba-da, tanta gente, näo chores, filha, olha as pessoas, näo chores, filha, agora vai que ja e tarde, e o corpo doce, doce, äcido, suado do meu pai, o corpo querido do men pai, a camisa branca e doce, äcida, suada, encharcada das lägrimas que eu näo percebia nem controlava. E agora vai, agora vai, e atirou-me para dentro da porta de vidro, ao colo atirou-me para dentro da porta de vidro, e eu voltei-me e vi o seu rosto contrito, ja do outro lado, as suas duas mäos inteiras espalmadas contra o vidro, o sorriso misturado com lägrimas. As duas mäos iguais äs minhas mäos. Estas, de carne, que agora escrevem esta frase. As mesmas. 32. "La pela Metropole andam muito amiguinhos dos pre-tos!, mas que vejam bem quern eles sao, e a paga que nos deram por tudo o que aqui enterramos, e era nosso; esta cidade, o trabalho, donde comiam. E por ti que vao saber. Tens de contar. Conta a todos." Quando desci da carrinha, no aeroporto de Lourenco Marques, e era a ultima vez, ia toda vestida de sangue: era terra vermelha, mas na verdade, sangue, que se foi soltando durante a viagem aerea, realizada na noite por pudor, nao para dormir. Por vergonha, em silencio. "Enfia no dedo o anel-esmeralda da tua madrinha. Se perguntarem, diz que e teu". "Diz que nos vamos a seguir, que o teu pai vai mon-tar uma oficina de electricista... ve la sitios baratos para alugar... Diz que ficamos sem nada, que vamos comecar do zero." O aeroporto estava cheio: barulhos de coisas e pessoas, cheiro a suor, ansiedade, medo, perda. Recados, cartas, pequenos objectos para alguem. "Nao te esquecas do que tens de contar. Agora es uma mulher. Ja es uma mulher. Esta tudo nas tuas maos". "Coragem. Nao te esquecas de contar a verdade!" E-sem uma palavra, inerte, ignorando-os, ignorando a verdade deles, chorei. Chorei porque tinha chegado ao fim; ao momento em que pressentimos nunca mais voltar a nenhum lilas, a nenhum laranja, ao cheiro e vida dessas cores; chorei abracada ao meu pai, so mais uma vez, ao meu pai, e depois... "nao te esquecas, rapariga; vais estudar para seres uma mulher"; e tendo voltado de novo aos bracos 108 109 do meu pai, para chorar o que só ele poderia saber que chorava, despedi-me dele até uma outra vida. E nesse momento houve um vácuo de tempo em que näo fomos pessoas, näo tivemos culpas nem prazeres; nada humano - só nós; senti ao longe o odor da sua car-ne transpirada, ácida e doce, que era a minha, dos seus ombros e rosto, um abraco que näo pudemos desapertai nunca; e ainda näo, e em nenhum lugar, nunca, porque näo era apenas um abraco, mas a alianca invisível, muda, que mantinhamos, ä qual fui fiel mesmo quando o traí logo a seguir. Tudo o que me interessa é ser-lhe fiel e fa-zer justica e esse momento de vácuo em que näo fomos humanos, mas só os dois, um do outro, sem tempo. Quando nos reencontrámos, uma década depois, já nos tínhamos despedido excessivamente. Para que tudo outra vez, se o nosso tempo tinha acabado?! Era a ultima hora, a ultima hora, e ele empurrou--me para a porta de embarque; olhei para trás, antes de entrar, chorando: tinha de ir, porque levava o anel de esmeralda, as cartas, os pacotes, os recados sobre a verdade. Tinha de ir. Peguei na pequena malinha de mäo, um necessaire creme, porque todas as mulheres tinham um necessaire, e eu, diziam, já era uma mulher, voltei-me, parei de chorar, e parti. Ainda estou a olhar. Ainda estou voltada. Do outro lado da vidraca, juntos, acenando, eles ainda estäo lá. Longe, lá. Do outro lado, lá. A minha mäe com um ves-tido azul-escuro de bordado branco na gola. O meu pai, uma camisa branca manchada de pó, as calcas ao fundo da barriga; desbarrigado. Despenteado. Bronzeado de colono. O sorriso de olhos vermelhos do meu pai. O sor- ,-iso a chorar do meu pai. As suas máos iguais ás minhas coladas ao vidro da porta. Quando o aviáo tornou altura houve dentro da cabina um siléncio fundo sobre a baía de Lourengo Marques, os subúrbios, as palhotas, as terras de cultivo, o mato que v i enquanto subíamos. Em siléncio, mas num siléncio ainda mais fundo, porque afinal já era uma mulher, voltei a chorar o que perdia e haveria de pagar. A dívida alheia que me caberia. Nunca entreguei a mensagem de que fui portadora. 110 111 Apagam-se as luzes no interior da aeronave. Faltam horas para aterrarmos em Lisboa. Podemos descansar com os uossos pesados restos coloniais, se conseguirmos fechar os olhos por escassos minutos. Näo a conheco. É uma mulher morena, bronzeada, alta, imponente. Veste um fato de saia e casaco de sarja foranca, justo. Traz uns enormes óculos escuros de arma-cäo branca. Recostada num sofa individual branco, descai o busto negligentemente, entreabrindo as pernas de frente para as enormes janelas franqueadas ä brisa feliz da Prima-verä; as cortinas de fino algodäo branco, translucidas, csvoacam como as de uma casa de praia ä beira-mar. As mäos morenas, com irrepreensiveis unhas brancas; os cotovelos apenas pousados nos bracos do sofá. Como alguém que se oferece para receber uma dádiva invisível. Acabo de chegar de fora, de longe, onde afinal sempře estive. Entro na imensa sala branca e contemplo-a de perfil. Criancas correm de um lado para o outro, ä sua volta, ruidosas, em desassossego. Näo as conheco. A mulher, como um robot desligado, näo se incomoda, näo se sobressalta. A voz de uma outra mulher, que atravessa a sala, apres-sada, carregando ä cintura uma trouxa de roupa para lavar, informa-me, indiferente, "esta é a filha do teu pai". Ouco e corrijo de imediato, mentalmente, "esta é a outra tilha do meu pai. Recordo as nunca assumidas infideli-dades do meu pai e acrescento, só para mim, "pode ser!" Activada pela voz que passou, a mulher majestosa levan- 113 ta-se, alisa a saia antes de se endireitar, volta-se para mirn e estende-me o braco, sorrindo, olhando-me por cima dos öculos. E bonita, caramba. E uma mulher enorme, inteira, com um longo e farto cabelo escuro, umas longas pernas bem torneadas, como uma miss das ex-colonias, como a Ana Paula Almeida, como a Riquita... Sinto-me insignificante perante o esplendor sensual daquela rilha do meu pai. Assim que me estende o braco, as frentes do casaco, do-sabotoado, mas encostado ainda ao peito, abrem-se com-pletamente, e expöem todo o seu tronco: e vejo-a nua da cintura para cima. Estende-me o braco, mas eu näo posso responder com o meu, porque agora olho apenas aquek-espaco nu ate ao recorte pübico que a saia descaida permi-te. Urn nu escultorico, de märmore: as mamas crescidas c cheias, espetadas na minha direccäo como setas, os peque-nos mamilos tesos, de um castanho quase rosa, o abdomen musculado, esticado, o ventre liso, a perfeita curva da anca. E como se, consciente de tanta majestade, tivesse de-sejado tornar-se irreal, toda a sua pele brilha sobre a bronzeado, acrescentada de luz. Uma finissima pelicula de po prateado cobre-lhe o pescoco, as mamas, o abdomen, o ventre, as ancas, cada milimetro da generosa pele. Pinta-a. Veste-a de nudez. E tal nudez e o tesouro. Mantem o braco estendido na minha direccäo. Continua a sorrir, a olhar-me por cima dos öculos, que ainda näo tirou. Quer ser minha amiga, embora näo mo tenha dito. Vai dizer-mo agora. Näo trocämos uma palavra. Mas vai falar agora. Sinto medo. Sinto muito medo da rilha do meu pai. E depois chegamos a Lisboa 34. 1'ii tinha andado a roubar os pretos. Julgava que me iam lavar os pezinhos com ägua de rosas?! Isto näo eram as Äfricas! "Ah, näo gostas de bote com arroz? Andaste a roubar os pretos e julgas que havemos de te servir camaräo num prato de ouro!" Näo se responde. Baixam-se os olhos. E mentira e e verdade, mas ambas precisam de voz, e näo a temos. E muito cedo. Eu ainda estava na raiz da verdade. Ainda la dentro, hümida, crescendo, comendo terra, esperando terra. Todos os lados possuem uma verdade indesmentivel. Nada a fazer. Presos na sua certeza absoluta, nenhum acimitirä a mentira que edificou para caminhar sem culpa ou caminhar, apenas. Para conseguir dormir, acordar, comer, trabalhar. Para continuar. Hä inocentes-inocentes c inocentes-culpados. Hä tantas vitimas entre os inocentes-inocentes como entre os inocentes-culpados. Hä vitimas-vitimas e vitimas-culpadas. Entre as vitimas hä carrascos. Passa muito tempo ate termos a voz, ate termos salda-do, a bem ou a mal, a divida que pensämos dever; ate cuspirmos no dever e na honra e na fidelidade, essas cordas täo sujas, täo forcadas. Ate näo nos importarmos dc ser apenas umas cabras, pärias do sangue e da raca. Ate perder a fe e a cortesia. Tudo. 114 115 35. O meu pai tinha urna cara grande e suada cheia de ódio ou amor conforme os dias. Tendo eu preferido os do amor, calharam-me muitos dos de ódio. Quando ama-mos e nos violám num mesmo tempo, e näo podemos fugir, enfrentamos de igualmente perto a face do amor e a do ódio, e näo desviamos o rosto; sentimos o cuspo bater-nos nos lábios, nos olhos, e ouvimos até ao fim, sem pestanejar, sem um movimento muscular que possa ser mal interpretado. Näo podemos fugir. Torna-se urna certeza. Urna prisäo de alta seguranca dentro da qual sabemos que temos de resistir e sobreviver. O meu pai era voraz, devorava, vociferava todos os sentimentos que conseguia exprimir, e conseguia muito bem, com urna expressividade täo brutal que causava vertigens. Quando somos novos, acreditamos nesse amor ou nes-se ódio porque aquele é o rosto de quem amamos. Näo há mais ninguém, estamos entregues äs mäos dos que nos criaram e que dizem sermos seus. E somos. Mas custa ser de alguém a quem se deve urna fidelidade sem limites. Recebi todos os discursos de ódio do meu pai. Ouvi-os a dois centímetros do rosto. Senti-lhe o cuspo do ódio, que custa mais que o cuspo do amor, e enfrentei, olhos nos olhos, a sua raiva, a sua frustracäo, a sua täo torpe ideológia, e ouvindo, näo disse nada, nem um assentimento, nem um músculo se mexeu, e eu, inteira, era um näo. Tive medo do meu pai. Que me batesse com as maná-pulas, que me gritasse, que me dissesse tu näo és minha filha, porque a minha filha näo gosta de pretos, näo acompanha com pretos, näo sonha com pretos. Havia 117 uma raiva táo grande dentro de si, em amigável conví-vio com o amor que podia oferecer-me de um momento para o outro. Mas náo me arrancou um assentimento. Nunca ouviu da minha boča um tens razao, um realmente, um pois. No maximo, um percebi, como resposta a um percebeste? Por-que ele podia obrigar-me a sentar, ouvir e calar, sujeitar-me a sessoes públicas e privadas de ideologia rácica, mas náo convencer-me das vantagens da raca nem do ódio. O meu pai náo me arrancou ao que eu era e pensava; o meu pai náo foi capaz de formar o meu pensamento. Escapei-lhe. Ele repetira-me demasiadas vezeš a sua lenda preferida, a de Sáo Martinho, o que reparte a capa. Por-tanto, tendo eu absorvido uma mensagem táo generosa, podia gastar á vontade o seu latim com a conversa dos pretos. Eu poderia ter ouvido a lengalenga vinte e quatro horas por dia nos altifalantes, como um prisioneiro em Guantánamo, e náo teria mudado um centímetro. Porque o que eu pensava, pensava com uma certeza inamovível. Náo foi fácil ser a filha do electricista. Sonhei muitas vezeš que o electricista havia de morrer de muitas manei-ras e deixar-me livre para pensar, para existir sem medo. Para lhe responder. E um dia morreu mesmo, sem que pudéssemos ter feito completamente as pazes, sem que eu estivesse totalmente crescida, e ele totalmente vencido, e agora está aqui sen-tado, a dois centímetros do meu rosto, a ler-me, e eu, sinceramente, só queria dizer-lhe que vivemos um tempo demasiado curto para o nosso amor, confuso, desajusta-do, injusto. Que foi só isso que nos aconteceu: um tempo, um espaco, um tabuleiro de xadrez errado para o amor. E que o traí para que pudéssemos levantar a cabeca. 36. Maputo/Lisboa, voo TAP, via Senegal Lembro a data em que desembarquei sozinha no aero-porto de Lisboa, pelas seis da manhá de um dia no final de Novembro de 1975. Estava muito frio, e eu gelava. Mas esse náo foi o dia mais frio do Inverno de 75; se bem me recordo, essa estacáo foi especialmente rigorosa. Passada a alfändega, bem agasalhada no meu casaco de lä verde-alface, que pertencera á minha madrinha nos anos 50, e fora a pressa adaptado ao meu corpo, desci uma passadeira longa e curva que me levaria até pessoas que desconhecia, mas que me esperavam - a família dos meus pais. No Carnaval seguinte, o meu tio pintou-se de palhaco, vestiu o meu casaco de lä, as minhas calcas amarelas de tecido "la finesse", e foi tocar trompete, bébado, para o meio da rua. Que foliäo! Que bem vestido de palhaco que ele estava! Em Portugal, habituei-me cedo a ser alvo de troca ou de ridículo, por ser retornada ou por me vestir de vermelho ou lilás. Mas o meu sentido de justica era um Pai-Nosso. Se me absolvia de culpa, eu podia atravessar, impassível, multidöes de acusadores. Nada me deitava abaixo. No entanto, o meu peito foi pactuando com o ridículo a que me expunha, e abriu-se a ele totalmente. Vém dizer-me que a čerta altura da minha juventude eu levava tudo ä frente. Era um carro de combate, uma voragem, se quiserem. Depois veio uma tarde em que fui obrigada a dizer a verdade: "perdi tudo excepto os meus lápis n° 1." Respirei fundo. E doía-me muito o peito. 118 119 37. Era Novembro e eu tinha acabado de chegar. Nas Caldas da Rainha, em 1975, para ir para a escola atravessava uma rua negra, com alcatráo levantado nas bordas, sem passeio: um tunel de edlfícios muito sujos pelo tempo, dos dois lados da via. Era uma rua cinzenta--escura do princípio ao fim. Á hora a que ali passava havia ainda muito nevoeiro ou fumo ou frio opaco. A atmosféra era espessa, e eu atravessava-a como uma faca. Cruzava-me com trabalha-dores apressados, vergados pela hora matinal, pelo sono, pelo cansaco, pela pressa. Caminhavam muito rápido e de passo miúdo, com os olhos postos no chao, usando casacos e bonés de fazenda axadrezada, cinzenta, preta ou castanha e fatos de trabalho escuros. Nunca lhes via a cara. Do lado direito da estráda, no início da rua, abria-se uma porta larga para as entranhas de uma oficina. Nao era uma porta, mas uma cloaca. Dentro, paredes negras de humidade e óleo velho. Quando passava frente ao portao, trés homens atarracados, com maos e roupa sujas do trabalho, gritavam-me comentários sexuais que me esforcava por nao ouvir. Colava o pescoco aos ombros, comprimia as paredes dos ouvidos, fechava os olhos, fechava-me, e mesmo sem querer escutava mamas, cona, rabo, palavras que vinham adornadas com advérbios ou verbos de péssima expressao. Insultos. Tinha 12 anos, quase 13, e insultavam-me por eviden-ciar mamas, cona e rabo, náo percebendo eu o desme-recimento. Insultavam-me por já ser uma mulher. Isso bastava. 121 Näo havia outro caminho para a escola. Era preciso ir por ali todos os dias. A minha avó era urna velhinha muito branca e vesiia--se toda de preto. Quando ľne descrevi o comportamento dos homens da garagem, disse-me que era assim, que näo respondesse, que mulheres honradas tinham ore-lhas moucas. Näo sei se a rua negra ainda existe. Em Portugal tudo demora muito tempo a mudar. 38. A metropole era suja, feia, pálida, gelada. Os Portugueses da metropole eram pequeninos de ideias, täo pequeninos e estúpidos e atrasados e alcoviteiros. Feios, cheios de cieiro, e pele de galinha, as extremidades do corpo reben-tadas de frio e excesso de toucinho com couves. Que triste gente! Divertiam-se a mofar connosco, atirando--nos ä cara que estava dificil, pois estava, que aqui näo havia pretinhos para nos lavarem os pés e o rabinho, que tínhamos de trabalhar, os preguicosos de merda, que nunca fizeram a ponta de um corno pela vida, que nunca souberam o que era construir urna vida e perdé--la, os tristes, os pequeninos, os conformados. Sabiam lá eles o que eram os pretos, e o que éramos nós e o que línhamos acabado de viver, cobardes filhos de urna puta brava. Insignificantes cabrôezinhos, se eu havia de dizer a verdade, se eu havia alguma vez de dizer a verdade. Os lerdos das ideias, lentos, com conta no Montepio, doen-tes dos olhos por olhar de viés para esses gajos que vém cá roubar o pouco que é da gente, que a gente cá tem, esses retornados, täo altivos como príncipes que perde-ram o trono, e que häo-de recuperá-lo, julgam eles, oh, se näo!, porque nada atica as ganas como perder, e perder bem, ä americana. Täo feios, täo pobres de espírito esses Portugueses que ficaram, esses Portugueses de Portugal, curtidos de vinho do garrafäo. Feios, sombrios, pobres, sem luz no rosto nem nas mäos. Pequenos. 122 123 39. O meu pai ia apodrecendo numa prisäo da FRELIMO por ter afirmado, em público, que Samora Machel näo passava de um reles auxiliar de enfermeiro. Conhecendo o meu pai, acredito que terá acrescentado qualquer outro mimo como "preto de merda", ou pior. Isto aconteceu em 78. Eu estava em Portugal há trés anos. Saiu do cárcere, irreconhecível e calado, após longa e angustiante intervencäo da minha mäe, a qual conhe-ceu alguém que era amigo de outrem, que se dava com Graca Machel, a quem se foram escrevendo cartas com pedidos de cleméncia. O assunto acabou por se resolver, até porque o meu pai näo fora a julgamento. A prisäo do meu pai foi tabu na família. Ele nunca nos falou sobre o que se passou lá dentro, e nós tivemos pudor em pergun-tar, pelo que imagino o pior. A sombra do que näo se sabe é sempre enorme. O meu pai era um gabarolas bem disposto, portanto, se näo lhe ocorreu gabar-se sobre os seus feitos heróicos desta fase, nem sequer uma gracinha, é provável que näo tenham existido, e que a coisa näo lhe tenha corrido bem. Nos anos 90, já ele estava em Portugal há algum tempo, e a propósito do meu nojo por aranhas, gabou-se sobre certo dia em que acordara no cimento da prisäo, sentindo o peso de um enorme bicho peconhento sobre o ombro, o qual arrancou ä pele nua com a manápula que lhe conheci, lancando-o para longe; riu-se; que ele era muito corajoso, isso nós já sabíamos, näo estranhá-mos; perguntei-lhe como éram as instalacôes, como tomavam banho, e respondeu que os guardas os leva- 125 vam "lá abaixo ao rio", referia-se ao Zambeze, e que aí se ensaboavam e lavavam a cinco metros dos crocodilos. Mais nada. O assunto cortou por aí. Lembro-me da pele do meu pai, muito lisa e húmida. Lembro-me do seu ombro onde se terá aninhado um bicho peconhento. Conhecendo o meu pai, tenho a certeza que lhes devo ter chamado pretos de merda, a todos, e todos os dias, e que terá apanhado forte e feio, sem dó, sem hora. Conhecendo o meu pai, e amando-o, apesar de tudo, dói-rue imaginá-lo espancado, humilhado, vergado por aquelcs que antes vergou. Dormindo no chäo de cimento, ao molho com os condenados de delito comum. Para os brancos que decidiram ficar nas ex-colónias, após a independéncia, por solidariedade com os movi-mentos de libertacäo, ou por näo térem outra escolha, ou näo quererem té-la, a vida näo foi fácil. Os retorna-dos, tendo a maior parte regressado ä metropole amal-dicoados e de mäos vazias, safaram-se bem melhor. Os brancos que ficaram em África tornaram-se alvo fácil de numerosas vingancas. Eram suspeitos. Os seus passos e palavras eram vigiados pelas instituicöes, pelos comités de bairro, pelos vizinhos. Era preciso ter cuidado com o que se dizia e fazia. Qualquer deslize seria consideraclo colonialista, e näo havia piedade, o preco era alto. A denúncia constante. 40. O meu corpo foi uma guerra, era uma guerra, comprou todas as guerras. O meu corpo lutava contra si, corpo--a-corpo, mas o do meu pai era grande, pacífico e de carne. O corpo do meu pai era dele e valia a pena. O seu corpo era o do outro que estava em mim, mas sem guerra. Redondo, macio, arranhado, o corpo do meu pai dava-se ao riso, as cócegas, ao meu corpo. O meu pai tinha os pés rosados, de uma pele muito branca e quebradica que escamava; dizia que era a filária, e que näo lhe puxasse as peleš. A minha mäe näo me deixava andar descalca por causa da filária, que dava muita comichäo, e seria preciso queimar a pele, com gelo, até ao osso. O meu pai tinha nos pés umas escamas como massa folhada, que eu desejaria puxar e comer. A carne do meu pai era doce. A pele do meu pai era morna e mořena. Os seus pés eram bem acabados, cheios, com os de-dos desenhados ao pormenor, como uma escultura do Renascimento, e as unhas redondinhas, transparentes, brilhantes. Ä hora da sesta de domingo, quando eles se deitavam, e eu näo tinha que fazer - a näo ser brincar com o Piloto, que a minha tia envenenou numa aldeia da Estremadura, anos mais tarde, e com os gatos, que ficaram em Lourenco Marques, quero dizer, no Maputo, e que fugiram atrás das gatas, e foram, de certeza, apa-nhados, mortos e comidos como coelhos pela pretalhada esfomeada, disse a minha mäe, e que a pretalhada havia de amargar o que tinha feito aos brancos - nessas tardes eu ficava a brincar com os pés do meu pai, atravessada na cama. 126 127 A minha tia envenenou-me o Piloto em Abril de 1978, e acusou os vizinhos. Foi nas férias da Páscoa. Embalei o meu cäo morto. Nunca tinha tido aninhado um cadaver contra o peito. Tinha os olhos abertos, vidrados, as patas traseiras contorcidas, rasando o focinho, duro, gelado. Segurei-o nos bracos, e apertei-o, e chorei sobre o seu corpo inocente a minha culpa, dor, perda, impotencia e abandono. Enterrei-o por baixo da nogueira que existia na fazenda. Mais tarde, abateram a nogueira. Os mens tios sempre me olharam com a mesma emocäo com que se trata um electrodoméstico. Para que servia um cäo? E que importäncia tinha o cäo que a retornada, a que roubara aos pretos, se tinha dado ao luxo de trazer para a Metropole, quer dizer, para Portugal?! Se para retornados näo havia lugar, para cäes de retornados ainda menos. O meu pai apertava os pes um contra o outro, pressionava-os, fazia forca, e ria-se. Eu näo consegui-ria separá-los, brincar como queria. Os pes do meu pai cheiravam a pélo de cäo. Era um cheiro seco e doce. Os cäes cheiram a terra e a päo. Cheiravam a päo, sim, a terra e a päo, e eu queria tanto fazer-lhes cócegas, e morder-lhes, e ele ria-se, e dizia, larga-me rapariga, e eu ria-me, e fazia pior, e a minha mäe dizia, larga o teu pai, rapariga, e eu ignorava-a, tem juizo rapariga, vai para a tua cama rapariga. O corpo da minha mäe era geométrico e seco. Näo tinha autorizacäo para lhe tocar. No corpo da minha mäe apenas me interessava o seu peito grande e mole. Que delícia haveria de ser poder mexer-lhe, mamar, chupar por todo o lado. Apalpar com forca. Sacudia-me, está quieta. Tocar na minha mäe era uma atitude pouco propria. O corpo do meu pai, pelo contrario, solido, redon-clo, disponível, revelava-se uma colina cheia de arbustos e vegetacäo ä qual podia trepar, e sentir, cheirar, beliscar, inorder. Puxava-lhe os pélos, as unhas. A barriga das pernas do meu pai tinha uma curva Ulo harmoniosa, täo ondulada, e era täo cheia. Simula-va que as mordia com muita forca, e ele simulava gri-tar, ai, ai, está quieta rapariga. Que belas pernas tinha o meu pai. Brancas. Nem demasiado musculadas nem gordas, embora fosse gordo. Compridas, torneadas. Os calcöes assentavam-lhe bem. Eram umas pernas quase femininas. Aticava-me, sorrindo cheio da mesma falta de modéstia que täo bem conheco, querias ter umas pernas täo jeitosinhas como as minhas,?! Querias, näo querias?! As minhas väo ä amostra a umas senhoras. Dizia isto inuito vez, quando estava bem vestido, vou ä amostra a umas senhoras. E eu pensava que brincava. As pernas do meu pai, que raiva. A barriga do meu pai descaia quando se deitava de lado. Que solenidade. Que importäncia, a de uma barriga assim dilatada. Tinha-lhe respeito. Ele protegia-a com os bracos, e aos genitais, se bem que os Ultimos näo me causassem interesse. Quando se deitava de lado, se vestia calcöes largos e curtos, era possivel vislumbrar nesses lugares certas sombras medonhas. Desviava o olhar por vergonha e medo e nojo. As partes intimas do meu pai cram urna mancha escura e mole. Que contacto visual täo desagradável! Lembro-me do rocar da sua cara mal barbeada na minha cara, nos meus lábios. Vai fazer a barba. Já fiz a 128 129 barba, agora vé lá. Querias ter urna pele täo maciazinha, näo querias?! Querias! Era macia. Lembro-me do cheiro a suor do seu pesco-co. Suor de homem. Denso. Da massa enorme que era o seu corpo, täo segura, täo čerta. Sentar-me ao seu lado, ao seu colo, äs suas cavalitas. O corpo do meu pai era um trono. O corpo do meu pai era bom. O que dele restou encontra-se arrumado numa gaveta do cemitério do Feijó. Quanto ao resto que lhe pertencia, näo consegui arrumá-lo em lugar algum. Näo cabia. 41. A minha mäe acha que vai morrer e näo pode deixar-me sozinha no mundo. Por isso, localizou-a. Eu quero estar sozinha no mundo. Näo me ofendam com as palavras brutais que tive de escutar a vida inteira sem poder pro-testar, e de que fugi quando fui senhora de mim. A minha mäe deu-lhe o meu numero. Ela queria muito falar comigo. Tinha-me perdido o rasto. Tinha saudades da menina perdida: eu. Em viňte minutos, o passado bateu-me no rosto com urna fenomenal chapada. As pessoas näo mudam. Quando as reencontramos, muitos anos depois, percebemos por que nos afastámos. "Os negros, os cabrôes, os filhos-da-puta. Vim de lá há um ano. Nunca deixei que me faltassem ao respeito. Chamavam-me mama, chamavam-me tia, e eu dizia--Ihes, näo sou tua mäe, que eu näo sou puta. Nem tia, ó meu cabräo. E näo me assaltas que eu sou branca e estrangeira e ponho a polícia atrás de ti, meu escarumba de merda." Ouvi isto toda a minha vida. Venham falar-me no colonialismo suavezinho dos portugueses... Venham-me com essa história da carochinha. As pessoas näo mudam. Um branco que viveu o colonialismo será um branco que viveu o colonialismo até ao dia da morte. E toda a minha verdade é para eles uma traicäo. Estas palavras, uma traicäo. Urna afronta á memória do meu pai, mas com a memória do meu pai podemos bem os dois. Os carniceiros foram todos täo bonzinhos que quando matavam o cabrito dávam as vísceras aos pretos. A tripa. A pele. Pagavam-lhes o trabalho escravo com porrada 130 131 mais a farinha, que comiam com as maos, aqueles porcos negros; e se os faziam trabalhar sete dias por semana, sem horario, era apenas o legitimo tratamento de que precisavam os preguicosos. Um favor que o branco lhes fazia. Civilizar os macacos. O jovem encontrava-se ä minha f rente na fila da caixa, com um avio de bolachas e chocolates. Trajava de oficial marinheiro. Urna farda negra, de boné branco, muito composta, muito nobre. Sobre a manga esquerda do casa-co, ao alto, numa placa de fazenda bordada a ouro, lia-se Mozambique. A minha atencäo ficou de imediato presa äquele rapaz. Tive o impulso de o chamar e lhe dizer, 42. E agora, em Maputo, uma falta de respeito. "Falta-mos lá nós. Tém saudades. Um branco é constantemente assaltado. Na rua. Em casa. Roubam-nos tudo, os cabrôes. E estragaram aquela terra. Queimaram-na." olhe, desculpe, so queria dizer-lhe que eu tambem sou de Mocambique. Mas depois nao fiz. Havia de ser ridiculo. O que lhe interessaria tal coisa?! Dentro de mim haver uma terra da qual sou desterrada. Se calhar tambem ele. E depois?! A seguir pensei que talvez fosse o seu apelido. O rapaz chamar-se-ia Tiago Mozambique como outros se chamam Jose Portugal. Subiu em direczao ao Alfeite e eu segui-o, orgulhosa do seu aprumo. Os desterrados, como eu, sao pessoas que nao pude-ram regressar ao local onde nasceram, que com ele corta-ram os vinculos legais, nao os afectivos. Sao indesejados nas terras onde nasceram, porque a sua presenza traz mas recordazoes. Na terra onde nasci seria sempre a filha do colono. Haveria sobre mim essa macula. A mais que provavel retaliazao. Mas a terra onde nasci existe em mim como uma macula impossivel de apagar. Persigo oficiais mari-nheiros que trazem escrita, na manga do casaco, a pala-vra Mozambique! Passaram algumas decadas sobre a menina que enca-rava os negrinhos de meia duzia de anos que pediam trabalho ao portao, descalzos, rotos, esfomeados, e 132 133 chamava a mäe, trabalho näo havia. Eu sabia que näo havia. Contudo, chamava-a. Havia a esperanca que do repente houvesse capim para apanhar, ou uma moeda, päo. Äs vezes a minha mäe estava bem-disposta. Äs vezes tinha pena das criancas. Eu e eles näo falávamos a mesma lingua. Apenas uma s palavras soltas. Olhava-os muito, e eles a mim. Por exeni-plo, neste momento estou a olhá-los através do tempo, e há uma perplexidade nos seus olhos, um vazio, uma fome, e nos meus uma impotencia, uma incompreensäo que nenhuma razäo poderá explicar. Mozambique é essa imagem paráda da menina ao sol, com as trancas louras impecavelmente penteadas, perante essa crianca negra empoeirada, quase nua, esfomeada, num siléncio em que nenhum sabe o que dizer, mirando-se do mesmo lado e dos lados opostos da justica, do bem e do mal, da sobrevivéncia. Um desterrado como eu é também uma estáťua de culpa. E a culpa, a culpa, a culpa que deixamos crescer o enrolar-se por dentro de nós como uma trepadeira inco-lor, ata-nos ao siléncio, ä solidäo, ao insolúvel desterro. 43. Caiu a noite sobre todas as coisas que nascem da terra, que tocam a terra, que confinam os seus limites. Tu estas sobre a terra. Quero dizer, revolves-te nela. Estendeste o teu corpo ao comprido entre os arbustos, quieta, sentin-do comichao pelos insectos que deixas subirem-te os bracos, sorvendo o odor enjoativo do chao, agora em repouso, o odor acre das folhas que a frescura da noite humedeceu. Era isto que querias. Este cheiro. Sentas--te. Sorris. E exactamente como imaginavas. Purpuri-nas multicolores brilham entre os ramos das arvores, iluminando os vultos das aves caladas. Fragmentos de luz que se ateiam e apagam na escuridao, suspensos como libelulas. Barulhos tao leves. Asas. Uma ave piou. A brisa levanta folhas. Folhas batem em folhas. O peso de patas quebra ramos. Os caes selvagens espreitam-te. Os que como tu nao sao nada bem definido, nem caes nem lobos. Nao te ladram. Os caes nunca te ladraram. Cheiras-lhes os sexos. Sim, sao da tua laia. Boa compa-nhia. Lambes-lhes os focinhos. Podes lamber. Dormir enroscada na matilha, se quiseres. O cheiro doce do sono, do calor. Tao embalada. Nao te importa a terra no cabelo nem nas unhas. Esfregas-te. Ris. Ouves o teu riso incomodar a noite. Que silencio. Que ternura. Tudo e verdade e tu trincas a terra. Lambe-la contra o ceu da tua boca. Claro que recordas esse sabor. Sabias que havias de recordar esse sabor. O chao tern todo o mesmo travo final a argila e a osso de vaca moido. A terra e doce. E agora podes subir de novo as arvores. O limoeiro do teu velho quintal na Matola. Sentes-te leve. Se calhar podes voar, como outrora voaste. Tinhas saudades. Confessas 134 135 para ti propria, tinhas saudades disto. A liberdade. A noite caiu longa, e a noite e o teu dia. Vais adaptar--te. Uma vida tem muitas vidas, tu sabes. E a primei-ra noite que dormes na rua. Que nao tens cama. Estas euforica. Como vai ser a tua primeira noite? A que casa regressaras? Quanto tempo permaneceras sobre a cova onde o teu passado apodrece? Nao devias pisar a tua campa. Para onde vais? Para onde vais, agora? 136 Ä memoria do meu pai. Lourenco Marques, 1960 Posts Agosto O odioso low profile Dinamitar o Cristo-Rei O carro da lama Fígado de porco 3 5 7 9 11 Sobre Isabela «Isto é a sério» Uma conversa com Isabela 13 10 livros 15 5 datas 16 5 lugares 17 Posts, cMitrevisla & mais ainda. AGOSTO Os cafés encerraram, excepto o do tabaco e das cervejolas, que leva com a chapa do sol toda a tarde. Encon-tra-se repleto de famílias inteiras de vizinhos que näo foram passar férias ä terra nem ao Algarve nem a Ibiza, discutindo, de mesa para mesa, entre suores, assuntos de importäncia internacionál, como a idoneidade moral do Barbas da Costa da Caparica, que responde pela do Benfica. A gritaria näo me deixa ler o jornal, e as crian-cas, todas malcriadas, correm atrás das cadelas, puxam-lhes a coleira e chateiam-nas até ä exaustäo. Äs cinco da tarde a rua abrasa e ninguém sai. O meu bairro parece uma vila abandonada no faroeste. So os plátanos, do outro lado da estráda, conseguem respirar sob o sol. Agosto é um barril de água choca. Agosto é um tapete encardido de gen-te. Agosto é o més mais triste do ano. O ODIOSO LOW PROFILE Tenho um defeito profissional que se conjuga que nem flores com certas caracteristicas da minha personalidade, e que em Portugal e considerado uma enorme desele-gäncia entre as pessoas educadas, as pessoas de bem, as pessoas contidas, as pessoas que se esforcam por andar na rua fazendo de conta que nem sequer existem: falo alto. Em Portugal toda a gente quer ter um low proße, ou melhor, traduzindo ä letra, perfil baixo, ou melhor, traduzindo livremente, näo dar nas vistas. Näo tenho nada contra, embora näo compreenda por que as inco-modo tanto. Näo faco esforco para aparentar proße al-gum. Deixo que a natureza faca o seu trabalho. Näo seria capaz de viver debaixo desse autocontrolo. Passei toda a minha vida a desejar fugir a todos os controlos possiveis. Näo ando nas ruas a pensar, ai, estou a falar alto, se calhar era melhor baixar a voz, ou, ai, dei uma gargalhada, se calhar näo devia gargalhar täo expres-sivamente, podia disfarcar, tapar a mäo com a boca, e emitir um ligeiro ri-ri-ri. Deu-me para tirar partido da vida toda, e e sempre a abrir. Ontem, ä hora de almoco, calhou sentar-me, na canti-na, ao lado de uma colega a quem pus a alcunha secreta de "Nada de extremismos", porque e o que a apanho a di-zer todas as vezes que a encontro. Conversävamos sobre umas politicas lä da fäbrica, tudo com muita moderacäo, e num certo momento perguntei-lhe quem tinha feito a afirmacäo x. Ela respondeu, o Pedro. Eu exclamei, o Pedro?! Qual Pedro?! Hä lä muitos nas diversas seccöes da fäbrica. E a "Nada de extremismos" respondeu-me secamente, fala mais baixo. Muito secamente, com cen- 5 sura, mesmo a matar. Por segundos, senti-me sua filha, sensacäo deveras traumatizante. A "Nada de extremismos", a maior mosca-morta da fábrica, que näo se compromete com nada, náo diz sim nem näo nem talvez, e deve abrir a torneira da casa de banho de cada vez que vai fazer xixi, mandou-me baixar o volume. Olhei ä volta. Näo havia por ali ninguém que pudesse de alguma forma tirar ilacöes da minha pergun-ta, "Qual Pedro?", mas calei-me, por boa educacäo e boa vizinhanca, pensando, claro, que eu teria a delicadeza de näo mandar calar os outros com uma tal frieza. DINAMITAR O CRISTO-REI Nossa Senhora tem andado em digressáo pela Margem Sul por mor da comemoracáo do cinquentenário da construcao do Cristo-Rei. Confesso que náo foi assim que a minha máe me contou á hora do almoco. Falou--me do representante do Papa, e de muitos cardeais, e do bispo de Setúbal a elogiar a nossa presidenta da Cámara, e de muitos, muitos padres de todo o lado, e procissóes, e que em Lisboa também tinha sido muito lindo, que a Senhora tinha ido a um hospital, e muita gente, muita gente, tudo muito lindo, muito lindo, como é que era possível que eu náo tivesse ficado em casa a seguir pela televisáo. Fui ouvindo isto entre as favas com salada de alface e pescada frita, e só me pronunciei quando chegou a parte em que me revelou que Nossa Senhora tinha vindo num vidro de Roma. Porqué num vidro de Roma? Acaso o vidro portugués náo é suficientemente bom? Eu tinha percebido mal. Era numa redoma. Nossa Senhora tinha vindo nu-ma re-do-ma. "Porque traz uma coroa de ouro de muitos quilos, manto bordado a ouro e jóias, muitas jóias." Até parei de mastigar para lhe responder, "e esse ouro e essas jóias, vendidos, náo seriam uma boa forma de a Igreja arranjar dinheiro para ajudar uma quantidade de famílias, agora com a crise?!, e Nossa Senhora náo se importaria de viajar mais pobrezinha." Sacrilégio! Roubar o ouro á Senhora! Que náo, que o ouro e as jóias tinham sido oferecidos pelo povo com muito sacrifício. Retorqui, sem grande sucesso, "mas náo achas que agora o povo está a precisar disso tudo de volta?" 6 7 E acabou-se ali a conversa, que ela näo me quer ver excomungada. Adiante, e passemos para a importäncia que a estátua do Cristo-Rei tem para a populacäo da Margem Sul. Para nós, almadenses de carne ou de adopcäo, o Cristo-Rei é o maior mamarracho que alguém se lembrou de cons-truir no nosso território. Um bloco de cimento atirado ao alto, descarnado, com Cristo de bragos abertos para Norte. Cristo näo merecia tanta fealdade! Em cinquenta anos de existencia, o Cristo-Rei serviu-me, quando era mais nova, para namorar ä sua larga sombra e aproveitar as delícias da juventude pelo meio duns arbustos muito discretos que o rodeavam. Depois, muraram-no, passaram a chamar-lhe santuário, e deixou de ter interesse. O que a gente queria mesmo, e aproveito para lancar a ideia ao senhor vereador do património edificado, era dinamitar aquilo como se fez aos prédios em Tróia, e construir ali um carrossel, urna montanha russa, enfim, uma grande feira popular toda iluminada ä noite, com farturas e tiro aos pratos e umas barracas com cerveja fresca e caracóis e pipis. E urna enorme bandeira, no alto, com a foice e o martelo bordados a ouro. Era isso, se faz favor. O CARRO DA LAMA A Micas caminha devagarinho porque sofre de displa-sia avancada na anca. Digo-lhe, quando chega junto de mim, és o carro da lama. É urna expressäo muito antiga que aprendi com a minha mäe. O meu vocabulário é essencialmente rural, bem como a minha prosódia. A minha fala é a fala da minha mäe, por muitos oceanos que tenhamos atravessado. Gosto da expressäo "o carro da lama". Séria a carroca de bois que vinha lenta na estráda do Inverno. Os animais puxariam a carga, arrastando-se sob o peso da chuva que enlameava todos os caminhos da aldeia. O carro da lama progrediria com dificuldade, näo sendo o ultimo a chegar, porque em Janeiro todos os carros éram da lama. É urna expressäo ferozmente antiga, marcada pela dureza da vida na aldeia, para todos os seres que nela viviam. O mundo mudou muito e as nossas expectativas säo agora muito altas. Hoje, pelo menos para os citadinos, a felicidade näo se limita a desejar ter estradas sem lama. Ambicionamos possuir um jipe para podermos enterrá-lo e desenterrá-lo, recreativamente, pela lama dos caminhos. O que para os outros era trabalho, para nós é entretenimento. O prazer tornou-se demasiado caro e complexo 8 9 FÍGADO DE PORCO O meu primeiro aborto saiu-me pela boča do corpo como um grande fígado de porco cortado aos bocados. Acor-dei na minha cama ensanguentada, e ao levantar-me, involuntariamente, o meu corpo expulsou litros de san-gue coagulado, ainda fresco. Era tao bonita essa carne vermelha, que era apenas sangue. Fiquei com aquilo nas máos. Eram muitos bocados. Rosas de carne viva que iam saindo de mim conforme caminhava pela casa, deixando um rasto de sangue, como se o útero regurgitasse sozinho por ter bebido demais na noite anterior. Talvez eu tivesse bebido demais na noite anterior, náo me lembro. Depois abortei outra vez mais devagarinho. Era só um fiozinho de sangue nas cuecas, uma coisa de nada, e percebi logo que havia outro fígado de porco pronto a sair. No hospital, rasparam-me o útero com uma nava-lha, e eu senti, rasp, rasp, rasp. Era o meu fígado de porco a ser retalhado, e náo me deixaram vé-lo na bacia de metal. Devem ter queimado tudo na incineradora do hospital, e saído em fumo pela chaminé, como os conde-nados em Auwschwitz. Podiam ter-me deixado trazé-lo para casa, para um arroz de cabidela. Ao menos, que o fritasse para as cadelas. Com tudo isto vim a descobrir que sou uma excelente produtora de fígado de porco. li