8 * LETRAS / CRIT!CA' ENTREVISTA jornaldeletros.sapo.pt « ig de margo a 1 de abrů de 2014 JL (Nem) tudo säo histórias de amor Isabel Mateus' € Há títulos que säo uma bússola de leitura, um GPS discrete e seguro. Orientam o leitor-viajante no mapa das palavras, sinalizam o destino, indicam itinerários possíveis. Outros há que desconcertam como uma bússola ou um GPS subitamente enlou-quecidos. O título da nova antológia de contos de Dulce Maria Cardoso (DMC), Tudo Säo Histórias de Amor, consegue ser mais surpreendente. Trata-se de um título que simultaneamente orienta e desorienta o leitor, indicando-lhe um itinerário cujas coorde-nadas depois confunde, prometendo-Ihe o destino tranquilo de uma coletánea de histórias de amor para o deixar fora de rota, abandonado ä estranhe-za de caminhos improváveis. Tudo Säo Histórias de Amor (TSHA) reúne um conjunto de 12 contos publicados de forma dispersa, emjornais, revistas, antologias temáti-cas, publicacjôes on-line, e retoma, com altera-côes pontuais, alguns dos contos da antológia Até Nós, de 2008. Todavia esta dispersäo ao nível da producäo escrita näo se traduz numa dispersäo organizativa: os 12 contos constituem, em rigor, como o título sugere, 12 tentativas de definicäo do amor. Doze provocadoras tentativas. Das suas mul-tiplas formas, da sua condicäo precária no mundo contemporäneo, dos seus jogos de poder, das suas zonas sombrias, das suas implicacöes éticas ou sociais. Doze caminhos desconcertantes. DMC prossegue nestas histórias a interrogacäo sobre a natureza humana e as origens do mal, sobre o tempo e a memoria, o poder e a justice, disseca-dos a partir do microscópio das relacôes familiäres, que tem constituído o ponto de partida dos romances já publicados e reconhecidos nacionál e inter -nacionalmente, interrogacäo que vem confirmá-la agora como uma voz de relevo na paisagem mais vasta da ficcáo portuguesa contemporánea. As histórias ou contos do livro säo objetos in-sólitos, perturbadores, desassossegantes. Antes de mais, pela sua forma mutante, pelo hibridismo de linguagens e pelo diálogo de culturas, pela análise desassombrada das transformacôes individuais, sociais e éticas e ideológicas inerentes äs sociedades urbanas ditas "pós-modernas". Mas também pelas personagens surpreendentes que o leitor conhecerá ao longo do percurso. Em Este azul que nos cerca, DMC revisita a ora-lidade do conto tradicional para oferecer ao leitor uma narrativa sobre a perda da inocéncia e sobre a genealógia do tempo histórico em que perpassa a reescrita bíblica da narrativa do Jardim do Eden. Há uma ilha cercada de azul, um farol, uma comu-nidade de faroleiros, um tempo suspenso, "difícil, se näo impossível, de ser contado". E um jovem faroleiro que um dia vé chegar um anjo de vestido branco, caminhando na sua diregäo com uma cesta de cerejas, fulgurantes de vermelho. Um aconteci-mento que irá perturbar tragicamente a eternidade líquida daqueles dias azuis. A oralidade visível nos contos diluir-se-á (e com ela uma aparente simplicidade de escrita), contudo, no apuro formal do conto literário, na linguagem poética e no fulgor das imagens, na incorporacäo ou colagem de outras linguagens que väo desde as notícias de jornal, a internet (Coisas que acaririho e me morrem entre os dedos), k fotografia, ao cinema e äs series televisivas, das artes plásticas äs artes performativas, exigindo a participacäo ativa do leitor. Um experimentalismo de linguagens que a adapta§äo ao palco (Monica Calle) ou ao cinema (Joäo Mario Grilo) do conto Näo Esquecerds, construído a partir da queda da ponte de Entre-os-Rios, vem destacar. A autora revela uma particular mestria na cria-cäo de uma atmosféra psicológica na linha do conto oitocentista, mesmo se a voz narrativa é tudo o que se adivinha de um rosto que permanece anónimo. E é nesse adensar da atmosféra psicológica que o tempo subitamente irrompe, o instante trági-co se instala: o instante é o acaso, esses fatídicos segundos que o autocarro demorapara dar boleia ao par narrador/leitor e o farao despenhar-se, com a ponte, nas águas do rio, o gesto instintivo da mäe protegendo o corpo do fllho perante a ameaca do carro que desliza na estráda sem condutor, esquecendo nesse gesto o outro fllho, ao seu lado (Os anjospor dentro); a explosäo na oficina de pi-rotecnia que há de marcar para sempře a diferenga, a estranheza da alteridade, entre irmäos gémeos (ígiiais); a mosca debatendo-se no copo de vinho rosé e atraindo o olhar da crianca 'diferente' (A mosca e o copo de vinho rosé). O instante é a irrupcäo do grotesco e do fan-tástico que vem impregnar ou curto-circuitar a relacäo com o real em contos como Humál e Desaparecida ouaJustiga: na proliferacäo monstru-osa do mal sobre a terra (de que a arte se alimenta) _ ou na perversa generosidade do humus devolvendo aos invesügadores policiais o carocha amarelo cuja mala esconde um cadaver de mulher. A violéncia do tempo (ocultando a ameaca da morte) adquire assim _ um estatuto de protagonista nos contos de DMC, visível no medo que paralisa o olhar do antigo mineiro na garganta voraz da mina (Pánico) ou na temática do crime (e, mais veladamente, do suicí-dio) que atravessa A Biblioteca, Autobiografia ou a história de um crime premeditado ou Retrato de um jovem poeta: do assassino a quem os livros salvaram a vida, mas näo da maldade, e por isso pede que o matem; ä escritora que quer matar a outra dentro de si como condicäo da propria escrita; ä velha e o cäo, entrincheirados na "nuvem dourada" de uma casa de banho, em todos eles o leitor se confronta com uma complexa teia de relacôes entre a escrita (e a arte) e a experiéncia predatória do tempo. A velha sabe que "nenhum esforco [é] capaz de domar o tempo", nenhum refúgio possível. Talvez nem mesmo a nuvem dourada da escrita. .m. * Prof-de Literatura Portuguesa e investigadora da Universidade do Minho, e ensaísta 44 Interrogates sobre as origens do mal, o tempo e a memoria, o poder e ajustica > Dulce Maria Cardoso TUDO SÄO HISTÓRIAS DE AMOR Tinta-da-China, 768 pp, 76,20 euros > Isso é uxna boa notícia para quem encomenda. Quando as encomendas säo abertas, pouco dirigidas ou limitadas, podem tirar-nos da nossa zona de conforto. No meu caso, as ideias que tenho säo todas para romances. Um conto nunca deu origem a um romance ou vice-versa? Nunca. Nos dois procuro coisas diferentes. Ambos säo, no entanto, exercícios violentíssimos. Um requer fôlego e resisténcia, o outro, rapidez e síntese. No romance é preciso namorar. No conto tem de haver amor ä primeira vista, paixäo. Já me disseram que o conto que abre esta antológia, Este Azul Que Nos Cerca, daria um belo romance. Tem um ambiente sugestivo e o potenciál da claustrofobia da ilha, mas näo consi-go imaginär mais nada. Foi pensado para ser como é. Estes contos säo muito diferentes entre si. Säo também um higar de experimentacäo? Sim. De procura de novas vozes, estruturas diferentes. A arte só é arte quando corre riscos. Se já sabemos o que vamos fazer, regressamos ä tal zona de conforto. Näo Esquecerds é um dos meus contos favorites e tinha tudo para falhar. Porqué? Era das encomendas que se rejeita imediatamente. Do Centro Comercial Colombo, para urna iniciatíva de Natal, dedicada ao terna da solida-riedade e com lucres a reverter para umafundacäo. O cliche montado. O que Ihe agradou no resultado final? Escrever é dar a um Outro. E as fa-mílias afetadas pela tragédia da ponte de Entre-os-Rios já tínham perdido tanto que me orguľho de ľhes ter devoMdo um pouco da memoria das vítimas. O interesse da Mónica Calle, que já usou este conto num espetá-culo, e do Joäo Mario Grilo, que o está a adaptar a urna curta-metragem, faz-me acreditar que o fiz bem. Esse conto podia ser um manifesto? A realidade é muito sugesttva e ten-tadora. O problema é poderes usá-la sem te transformares num abutre. Quando recebi o convite, pensei: o que pode uma pessoa que vive em Lisboa, que nunca foi a Entre-os-Rios, fazer por alguém que já sofreu tanto? Como fugir ä exploracäo mediática das televisôes, que nesse ano passa-ram a ter emissôes 24 horas por dia? Nunca vi nada mais obsceno do que urn microfone lancado a quern perdeu urn familiar. E passado uns quantos meses o interesse desapareceu. O que contrapöe o escritor? A única saída é colocarmo-nos dentro do autocarro, dizer que uma parte de nós também morreu, embora a morte seja um assunto muito sério. No fundo, dizer que te assumes como responsável. Aquela ponte näo caiu por acaso. Havia relatórios e denúncias. Faz lembrar a curva do Monaco, na Marginal de Cascais. Morreu lá muita gente mas só foi arranjada quando um general perdeu lá a vida. Somos todos iguais mas uns mais iguais do que outros. Uma das funijôes da arte é tentar que essa igualdade seja verdadeira. "Näo esquecerás" é entäo um man-damento literário? É, antes de mais, reconhecer que ao esquecermos o Outro estamos também a promover o nosso próprio esquecimento. Um dia a tragédia chegará a nós. Mas se o interior estiver protegido, o centro também estará. De igual forma, se os emi-grantes ilegais estiverem protegidos, os legais também estaräo. A questäo é sempre o alargamento daprotecäo, näo a sua diminuicäo, como se ad-voga em tempos de crise. É disso que os políticos nos querem convencer. Mais do que espectadores ou teste-munhas, somos cúmplices? 44 Escrevo para criar um mundo paralelo onde me sinta mais eonfortável ou para contrlbuir para que o mundo em que vivemos seja um pouco melhor O mal sempre aconteceu pela a9áo de poucos e pela omissáo de muitos, ás vezeš de milhóes. Essa conivéncia preocupa-me. A nossa classe dirigente, que anda sempre associada as palavras incompeténcia e corrupcao, náo é muito vasta. Somos infinita-mente mais. Por que razao estamos parados? Os contos e os romances sao formas de intervencáo? Náo considero que a literatura sirva para passar mensagens, a náo ser em casos pontuais e sem descurar a poeticidade do texto. Mas também náo faz sentido preocuparmo-nos apenas com as figuras de estilo. Náo podemos olhar para a realidade de uma forma neutra. Escrever é uma forma de tomar posicáo? Viver é tomar posicjío. Escrever ainda mais. Como qualquer proposta artistica. UMA DIMENSÁO ÉTICA Que critérios usou para organizar estaantologia? Estes sáo os contos que mais me pertencem. Até agora nao me enver-gonho de nada que publiquei, mas deixei muitos de fora. O primeiro critério foi literário. O segundo, sentir-me nestas histórias. Aproveitou a oportunidade para fazer um balance?