JL 19 de margo a 1 de abrilde 2014 • jornaldeietras.sapo.pt ENTREVIS LETRAS * 9 Quis mais tornar acessível, parti-lhar contos publicados em peque-nas edicôes e que muitos leitores näo conhecem. Senti ainda vontade de atualizar a minha anterior co-letánea de contos, com a qual já näo me identifico. Mas aqui coube tudo, do ultramoderno de Coisas que acarmho e me morrem entre os dedos entre os dedos ä ruralidade de HumaL Tanto mim caso, como no outro, sou eu que estou lá. Näo se pode ignorar a internet, que nos está a mudar, tal como näo podemos esquecer que até hábem pouco tempo havia pessoas que näo sabiam escrever, nem que a escrita existia... É o caso do personagem de A Biblioteca. Que foi meu vizinho. Esse con-to é muito engra?ado porque diz "livremente Inspirado em factos reais". Toda a gente pensa que estou a referir-me aos crimes. Mas näo. É sobre um senhor que, no século XX, viveu até aos 21 anos sem saber que existia uma coisa chamada escrita. Quando dizemos que, gracas ä bendita internet, uma crianca em qualquer parte do mundo pode ter acesso ä mesma informacäo de uma crianga de Nova Iorque näo estamos a dizer tudo. Como esse tenho outros casos reais, que um dia posso usar. Num dos contos glosa ainda o caso Joana, cujo corpo minca foi encon-trado e cuja mäe terá sido agredida pela polícia. Vai compilando histó-rias dejomais? Sim, mas sem necessidade de me sentir atualizada. Por exemplo, só este més me apercebi da verdadeira dimensäo da tragédia do Meco. Narrada por um escritor, seria uma história inverosímil. Nesse caso, näo é a praxe, nem os rituais macabros que me interessam, mas o que estamos dispostos a fazer para pertencer, as dinämicas de grupo e o que elas dizem de nos. Näo sei se alguma vez conseguirei tratar todos os recortes, uns trágicos, outros redentores, que acumulo. Sente-se, no entanto, que tem uma grande vontade de escrever sobre o agora. Também. Escrevo para criar um mundo paralelo onde me sinta mais confortável ou para contribuir para que o mundo em que vivemos seja um pouco melhor. Näo säo tarefas fáceis. Mas temos de tentar. De outra forma, seria uma coisa vä. Num certo sentido, escrever é um ato muito infantil: fechar-me num quarto a alinhar palavras e pensar que alguém vai aderir, acreditar, gostar do que escrever. Sem uma dimensäo ética, talvez näo passe de uma vaidade esquisita. O PODER DA ESCOLHA Como diz o título, tudo säo mesmo histórias de amor? Tudo säo histórias de poder. Duke Maria Cardoso A realidade é muito sugestiva e tentadora. O problema é podereš usá-la sem te transformares num abutre Um título assim näo venderia tanto. Mas seria mais realista. Todas as relagôes säo relacôes de poder. Optei por este título porque o amor é o mais benigno dos podereš. O que encontra literariamente nes-sas relacôes de poder? A vida. Esse é o meu tema, o que me interessa explorar. O poder está muitas vezeš associado ao mal, mas pode ser uma coisa boa. E deve ser exercido. Ter poder para acabar com uma situacäo injusta é maravilhoso. E uma responsabilidade. Um juiz deve ter o poder de repor a justina. Um legislador, o de criar boas leis. Querem poder mais violento do que obrigar toda a gente a fazer ou deixar de fazer determinada coisa? Qual o poder do escritor? O de coristruir mundos, que é imenso. Ás vezeš é brincar a Deus. Os Maias ocupam mais espaco na 44 O poder está muitas vezeš associado ao mal, mas pode ser uma coisa boa. E deve ser exercido cabeca das pessoas do que qualquer outra farnuia portuguesa. Diz que o amor é o mais benigno dos podereš, mas estes contos também falam da sua violéncia. O amor nunca é tranquilo, mal de nós se for. No conto OsAnjospor dentro f alo da violéncia do amor em dlálogo com A Escolha de Sofia, um filme perturbante, pois uma mäe tem de escolher o filho que salvará de um campo de concen-tracäo. Mas se em tempos de guer-ra tudo se justifica, o que acontece no dia-a-dia? Que mäe admite que faz escolhas? A maior violéncia näo está na escolha, mas no que nos leva a escolher. E as pessoas tém medo das escolhas. Naverdade, säo obrigatórias e da nossa nature-za. Estäo em todo o lado. Somos racistas ou näo? Queremos isto ou aquilo? O que comemos? Näo decidir pode ser uma forma de desculpabilizacäo?' É achar que näo se pode fazer a diferenca. Que o problema está sempře nos outros. Toda a gente diz que os Portugueses conduzem mal, mas quem se inclui nesse grupo? Eu näo tenho problemas em fazé-lo, até porque conduzo de facto muito mal. Em tudo, preocupa-me per-ceber se sou parte do problema ou da solucäo. Gostar de anirnais näo é só andar com um porta-chaves com um ursinho foflnho. Se algum dia um exército de extraterrestres tentar escravizar a espécie humana, gostava que pelo menos um deles a defendesse, tomasse o nosso partido. É por isso que tem tornado tantas posicöes em defesa dos anirnais? Apenas digo que já nos distanciámos tanto da vida natural que há coisas que näo fazem sentido. O tigre quando decide cacar uma gazela parte esfomeado. É uma luta entre a vida ou a mořte. Por mais que argumentem com a cadeia alimentär, nunca vi nenhum animal a congelar came. Essa é uma imagem que podemos usar para o homem em geral? Que direitos andamos a congelar? Todos, na verdade. O modo de vida ocidental vai tornar-se insustentável e vamos pagar uma fatura muito elevada. Para uma otimista, como já se con-fessou, essa näo é uma visáo muito pessimista? Se fosse pessimista näo achava que um ato individual pode fazer a diferenca, que posso contribuir para um mundo melhor. A aijäo coletiva é muito importante, näo há dúvida, mas as minhas decisöes säo ainda mais importantes, porque tém a vantagem de sérem exequíveis. Näo preciso votar num politico. Intervir no que está ao meu alcance torna-me mais livre. A ARTE DA COMUNICACÄO Diz na sua autobiografia, escrita para o JL e inserida neste livro, que teve de matar uma parte de si para se afirmar como escritora. Porque? Já me matei muitas vezeš e prova-velmente vou voltar a matar-me muitas mais. Näo conseguia ser ad-vogada e escritora ao mesmo tempo. Tive de decidir. E foi dramático. A escolha era entre uma vida eco-nomicamente estável e a incerteza. Crescer foi ganhar consciéncia de que näo ia ter tempo para ser e fazer tudo o que queria. A čerta altura, compreendi que estava condenada a ser escritora de seräo, de fim de semana, de férias, ou se calhar nem isso, porque também levava proces-sos para casa. Näo dava. Escrever é a sua profissäo? É e igual a qualquer outra. Quem diz que consegue conciliar a escrita com outra atividade está de alguma forma a menorizá-la. Nunca ouvi ninguém perguntar a um médico se fazia outra coisa. Nem tudo se resume a uma questäo de prazer. Como dizia um escritor, ter uma unica ideia é trabalho para uma vida inteira. Alem de tempo para escrever, o que ganhou mais com essa decisáo? Toda a gente quer ser amada, aceite, lida. Mas desde cedo percebi que se isso näo acontecer näo há mal nenhum. A invisibilidade que os meus livros tiveram durante alguns anos deu-me uma seguran9a incrfvel. Se vender 10 exemplares claro que fico preocupada, mas näo muito e apenas porque entendo a escrita como a arte da comunicac.äo. Em que sentido? Tenho uma grande preocupacäo em chegar ao Outro. Estar numa redoma ou pensar que no futuro alguém vai perceber o que eu escrevi näo me interessa. Se o leitor näo perceber é porque falhei. Trabalho muito a linguagem por causa disso. Os contos e os romances tém muitas camadas, mas se alguma coisa näo estiver percetível eu mudo. Nada me dá mais prazer do que receber cartas de leitores a confessar que nunca tinham lido um livro e que mesmo assim adoraram O Retomo. Quando comecei a ler também procurei essa ligacäo direta. Como foi a sua descoberta da leitura e da escrita? Nunca tive livros em casa, sobretudo depois de regressar de Angola. Aos 14 anos, quando estava de regresso a Cascais, depois de uns anos em Trás-os-Montes, já sabia que queria escrever. Só faltava saber o qué. Para resolver a vontade, tirei um curso de datilografia. Para esclarecer a dúvida, fui ä biblioteca. Perante tantos livros escolhi aquele que estava a emocio-nar urna senhora, quase ä beira das lágrimas. Era da Corin Tellado. E gostou? Devorei. Mas como a biblioteca ficava longe da minha casa, um dia decidi levar um livro maior. Sem saber quern era, calhou-me o Dostoievski. Com ele aprendi muito. Alias, formei-me e deformei-me com a Literatura. De tal forma que quando tive a minha primeira desi- 44 Tenho uma grande preocupacäo em chegar ao Outro. Se o leitor näo perceber é porque falhei lusäo de amor lembrei-me imedia-tamente da Madame Bovary. Ate essa altura eu pensava que amantes era coisas de solteiras. Depois de ler o livro, fiquei na dúvida: se calhar as minhas vizinhas, ou pior, a minha mäe também tinha um amante. Mas só naquele momento, quando me magoei a sério, percebi a mquietacäo do livro e da personagem. Entrou na pele da personagem? Completamente. Entendi que o amor era muito mais complicado. Mas também o contrario: que näo era isso que queria para mim. Que näo iria gostar de quem näo gosta de mim. Com os livros também descobri que era relativamente simples viver num mundo paralelo. Já em Trás-os-Montes transformava cada tarefa numa aventura, como se fosse uma personagem da minha própria vida. A realidade pode revelar-se insustentável. Precisamos de fugas. .11.