10 • LETRAS ENTREVISTA jomaldeletras.sapo.pt • ig de margo a i de abril de 2014 JÍL C Tem muitos contos para escre-ver nos próximos tempos e náo Ihe faltam ideias para romances, que vai acumulando nos pequenos cadernos que a acompanham para todo o lado. Mas a ordem natural da vida mete-se-Ihe pela escrita dentro, o que a fez adiar todos os projetos em curso. Teolinda Gersáo perdeu a máe há dois anos e meio e tentou fixar esse momento. Ao pas-sar a ocupar o lugar da geracáo mais velha, a escritora quis enfrentar os seus fantasmas, projetando-se nestas personagens que se encon-tram num velório. Nas livrarias no final desta semana, com a chancela da Sextante, Passagens é, assim, um "romance sobre a mořte", o que equivale a dizer que é um "romance sobre a vida". O espelhar da sabedoria que acumulou ao correr dos anos. Nascida em Coimbra, em 1940, Teolinda Gersáo, prof5 catedrática (jubilada) de Literatura Alemá e Comparada da Universidade Nova de Lisboa, é autora de uma obra já numerosa, que inclui romances, novelas e contos, como OSiléncio, A Árvore das Palavras, A Casa da Cabeqa de Cavalo, A Cidade de Ulissps ou A Mulher que Prendeu a Chůva, tendo sido distingui-da com, entre outros, o Grande Prémio de Romance e Novela, e o Prémio de Conto Camilo Castelo Branco, da Associacáo Portuguesa de Escritores, e, duas vezeš, com os Prémios de Ficcáo do Pen Clube. Inclina9áo especial só náo tem para teatro, embora já tenha visto várias adaptacoes de textos seus. Passagens é o livro em que mais se aproxima desse registo, num coro de vozes interiores que evocam o lugar da família e o poder da Literatura. É que para a escritora, como para Walter Benjamim, que cita numa das epígrafes, "um acon-tecimento vivo é finito, enquanto um acontecimento lembrado náo tem lirnites, é apenas uma cha-ve para tudo o que veio antes e depois." Jornal de Letras: "Náo pinto o ser, pinto a passagem", diz a epígrafe de Montaigne. Foi o que perseguiu neste livro? Teolinda Gersáo: É a ideia central. A vida é uma sucessáo de passagens. Estamos em constante transfor-maqáo: a crescer, evoluir, mudar, envelhecer. Mais do que a fixidez de um momento, interessou-me captar a passagem do tempo. Julgo, alias, que esse é o grande terna dos romances. Do início ao fim, há sempře uma mudan?a, uma pro-gressáo que me fascina. É esse o sentido da segunda epígrafe, de Walter Benjamin, sobre o poder da recordacao. SSo citacóes programáticas? Talvez sejam. Para ser universal, a Literatura tem de atingir uma grande profundidade, ultrapassar o indivíduo. Só assim qualquer pessoa pode reconhecer-se no que lé. No fundo, procurei transmitir uma visáo metafísica e cósmica. Aí^pfí in 011 í íi JL _■_ m. ULF JL M.MMM. do ;i(lcus Em que sentido? Queria muito escrever este livro, que e sobre a vida e a experiencia. Ja vivi o suficiente para perceber que o ser humano e complexo, que a vida nao e f acil, nunca e o que sonhamos ou desejamos. Mil fatores se intro-metem pelo caminho. E urn livro que resume a sabedoria que acumulou ao correr dos anos? Nao so a minha mas tambem a dos outros, de quern vi viver, que perdi, fizeram parte do meu percurso. Homens e mulheres cheios de generosidade e humanidade que me ensinaram muito. Num certo sentido, hoje perdeu-se urn pouco esse dialogo entre geragoes, que aqui evoco. E porque num funeral? A sua maneira, sao pontos de en- contro das famflias. Pessoas que náo se veem há anos reúnem-se muitas vezeš em torno de quern teve um papel muito importante nas suas vidas. É um momento de reflexáo, emocional, em que muita coisa vem ao de cima. O velório foi a imagem que despole-tou este livro? Tive a sortě de ter uma família numerosa. Náo irmáos, porque sou filha única, mas muitos tios e primos. Ao longo dos anos vi desa-parecer várias geracoes, e sempře que nos encontrávamos num funeral era um momento de perda mas também de uniáo. Embora doloroso, náo era um momento terrivelmente triste. Celebrávamos uma vida preenchida, aceitando a ordem natural das coisas. A morte também é uma passagem. A passagem para a idade dos mais velhos esteve de alguma forma na origem deste livro? Contribuiu. Perdi a retaguarda e muito deste livro tern a ver com a minha máe, que morreu há dois anos e meio, com 100 anos. Fui a ultima pessoa que deixou de reconhecer, näo sei se por ter Alzheimer, se por senilidade. Passei pelo desmanchar da casa de família, pelas dificuldades da terceira idade, pela opcäo por um lar e o que isso acarreta. Problemas que tocam a todos. Quis fixar esse momento? Acima de tudo, a fase em que a pessoa está mas já näo está, é mas já deixou de ser. A Literatura também se faz de imagens e sou muito visual a escrever, gosto de ver coisas em cena, situa^óes, agarrar as pessoas em movimento, o instante. Ao longo deste livro lembrei-me do trabaüio de Richard Avedon, que fotografou o pai pouco antes de morrer. Säo fotograflas lindíssimas, como alias toda a série que fez sobre a terceira idade. Avedon dizia que a partir de čerta altura a morte dos que nos säo mais queridos é também a nossa propria morte. Este livro foi uma forma de enfrentar a morte? Escrever pode ser um processo doloroso, porque nos obriga a enfrentar zonas de sombras, fantasmas do inconsciente que julgamos náo ter. Näo sou uma pessoa obcecada com a metafísica, nem com o que existe alem da morte. Assumo até que pode ser o nada, o que valo-riza a vida. Só nos resta apenas esta, temos de a aproveitar. E fazer algo pelo mundo em que estamos. Deixar qualquer coisa melhorada a quem fica e está por vir. Uma espé-cie de testamento, legado, mensa-gem, que dé sentido ä vida. Escrever pode ser uma dessas for-mas de heranca? Sim. É deixar o melhor de nós, de partilhar o que descobrimos sobre a existencia. A Literatura é uma 44 Reglstei muita coisa rclacionada com os liltimos anos de vida da minha mac, o que ela dizia, mesmo quando ja nao havia nexo ou sentia que estava perante memories transflguradas. Nesse sentido, ha um rigor factual, pois procure sempre oreal forma unica de comunicar e estar no mundo, que tanto transforma o escritor, como o leitor. TEATRO INTERIOR Os seus livros säo sempre muito diferentes entre si. É uma vontade de mudanca? Näo sou do tipo de escritores que encontra uma formula que funcione e a repete. Mesmo se soubesse que iria ter muito éxito, da crítica e do publico, acharia aborrecido. Presa a um formato, näo teria o prazer de experimentar e de evoluir. Cada livro procura a maneira certa de ser contado. Só tenho de obedecer. O que, ás vezeš, dá muito trabalho, porque exige recomecar do zero. Se é um dom ou urna maldicäo, näo sei. Mas tenho uma certeza: cada livro é como se fosse o primeiro. Neste caso, bem perto do teatro. Mas sem o ser. Se fosse, o resultado seria muito diferente. As f alas säo apenas um artifício romanesco. 44 Estamos em constante transformacäo: a crescer, evoluir, mudar, envelhecer. Mais do que a fixidez de um momento, interessou-me captar a passagem do tempo Já disse que näo gosta de escrever para teatro. É verdade. As adaptacöes dos meus textos deixam-me muito feliz, mas näo me sinto minimamente inclinada para escrever peejas de teatro. Vejo-as como rascunhos ou esqueletos a partir dos quais o encenador faz a sua obra. Interessa-me mais uma coisa inteira, fechada, completa. Neste romance, o teatro é interior. E o palco imaginário. Aproxima-se, contudo, da ideia de coro teatral. Mas nada é dito pelas personagens, é tudo pensado. As vozes comple-tam as frases uns dos outros de uma maneira muito musical, como se fizessem parte de uma partitura. A música é uma das minhas grandes paixöes e muito do que escrevo tem essa influéncia. Bach é a banda sonora děste livro. Na obra do compositor alemäo tudo encaixa e faz sentido. Tem um universo redondo, aparentemente límpido e cristalino, mas de grande densidade. É também o que procura? Sim, a simplicidade, ser direta, uma escrita limpa, desataviada e sem artln'cios, próxima do real. O que näo quer dizer pouco trabaüiada. A simplicidade dá muito trabalho.