JL 19 de margo aide abril de 2014 • jornaldeletras.sapo.pt ENTREVISTA, CRÍTICA / J^jg^J^^g * H Neste caso, todas as personagens säo individualizadas. Sente na literatura atual urna tendencia para a uniformizacäo das personagens? Há autores que tém, de facto, um determinado mundo e personagens que, apesar de variacôes, parecem a mesma. Ás vezes, chegam a ser sempře o proprio autor. Náo me parece que seja muito credível. O que raz uma boa personagem? As suas características, ser diferen-te, ter um mundo proprio e inserir-se num jogo de energias com as outras personagens, para assim criar atracäo, repulsa, conflito, luta, choque, fusäo. O universo é uma constelagäo de forcas. Transportei essa ideia para criar uma constela-gäo dos momentos da vida. Essa constelacäo séria a família? Com as suas mentiras, os seus erros, as suas histórias falsas. As farnüias mmca säo perfeitas, escondem e recalcam, o que dá origem a muitos conflitos. E a muita Literatura? Também, na medida em que revela o que nórmalmente näo se fala. Esse é um dos muitos papeis da Literatura. Neste romance, aborda com algum humor o drama do Alzheimer, com a Ana a confessar a čerta altura que finghi ter essa doenca para a família näo se sentir ohrigada a visitá-la. Pus-me muito no lugar dessa personagem, precisamente porque também eu näo quero tornar-me um peso para a minha família. Na altura, terei de pensar numa solugäo. O estratagema de fingir pareceu-me interessante para a narrativa. Reforca a ideia de ator e da vida enquanto palco, como dizia Shakespeare. FRAGMENTOS DE VIDA Este livro também surghi das notas que toma nos seus cadernos? Sim. Registei muita coisa relaciona-da com os Ultimos anos de vida da rninha mäe, o que ela dizia, mesmo quando já näo havia nexo ou sentia que estava perante memórias trans -figuradas. Nesse sentido, há um rigor factual, pois procuro sempře o real. Claro que näo uso, ao contrario dos pintores nas suas colagens, este materiál embruto, mas a realidade está sempre por baixo das minhas histórias. Já publícou dois desses cadernos (Os Guarda-Chuvas Cintílantes e Águas Livres). Como se relaciona com eles? Quando quer escrever um livro vai consultá-los? Nunca parto para um livro sem ter escrito um sem fim de papeis. É um mar de notas que anda comigo, como urna recordacäo dos dias que passam. Mas näo sou de consultar muito estes cadernos. Só quando me lembro que já escrevi sobre determinado assunto que quero tratar num novo livro. Vou deixan- do acumular á espera do momento oportuno. Até se dar um clique. Estes cadernos tém a vantagem, que um diário náo tem, de térem uma nogáo muito flexível de tempo, como de resto os meus livros. Náo há datas concretas. Posso avancar e recuar, reviver e ser subjetiva. Nestes cadernos, interessa-Ihe também a ideia de fragmento? Muito, porque a vida é feita de fragmentos. Como afelicidade, que náo é um estado a que se chegue. Apenas umpedaco de sol, luz, calor, pequenas coisas que encon-tramos pelo caminho. Na sua sucessáo de vozes, Passagens também é um livro fragmentário? Claro. Sáo capítulos diferentes que buscam o fragmento para construir um todo. Mas nisso náo é diferente de qualquer romance, por mais clássico que seja. Até nas grandes obras, naquelas em que tudo parece ter uma sequéncia, é impossível eli-minar os espacos vazios. Há sempre lacunas e saltos. Nunca saberemos tudo sobre coisa nenhuma. Nem sobre nós. Tudo é fragmentário. "Há rios de lágrimas dentro das pessoas", diz uma personagem. Poderíamos dizer o mesmo sobre os tempos que estamos a viver? A vida nao está fácil, de facto. Sente-se uma grande violéncia, muito medo. O mal é um terna que me interessa, náo em termos me-tafisicos, mas como realidade que podemos modificar. 44 Čada livro procura a maneira čerta -de ser contado. Só ten ho de obedecer. O que, ás vezes, dá muito trabalho, porque exige recomecar do zero O que pode modiflcar o escritor? A Literatura näo e uma varinha mä-gica. Näo vai mudar o mundo. Mas pode mudar mentalidades. Os livros transformam desde logo o escritor, que passa a ter uma consciencia mais aguda do mundo ä sua volta e do proprio mal que tem dentro de si. Esse e o primeiro passo para näo perdoar o mal da sociedade em que vive. Näo podemos estar constante-mente na bancarrota, com os enormes custos sociais que acarreta. Hä seculos que isso acontece. Temos de dizer basta, exigir o direito a sermos bem governados. Näo podemos facilitar. Temos ter coragem para denunciar quem nos violenta. .11. *t OS DIAS DA PROSA Miguel ^eaI Cartografla da existencia Passagens, novo romance i de Teolinda Gersäo (TG), é I porventura o seu texto mais * realista, evidenciando a evo-lucäo da familia em Portugal desde o Estado Novo até aos momentos atuais. Umrealis-mo que, como o nome indica, espelha os movimentos sociais mais relevantes, desde o fascfnio feminino de Olimpia por Tiago, recusando-se a acreditar que o marido lhe mentia, expressäo do estatuto da mulher ao longo da primeira metade do século XX, até ä atracäo nsica entre Joana e Miguel e a incontrolável paragem de ambos num motel a meio da estráda para se amarem. Com efeito, o novo realismo de TG näo é feito da mesma massa do realismo prevalecente no romance portugués entre os fřnais do século XIX e a década de 1950. Náo só näo respeita a cronologia como assenta em situacöes e momentos sociais instan-táneos simbólicos, uma espécie de nós semánticos e ideológicos do texto, condensadores do tempo, pelos quais confluempassado, presente e futuro. Neste sentido, a categória de tempo evidencia-se como eixo centrál de Passagens (e dos restantes romances da autora), centrado na mořte de Ana (anúncio, velório e cerimónia fúnebre), pela qual se desenha o realismo da evolucäo da sua famflia no ultimo meio século. Pelo presente - o presente do texto, desdobrado nos trés momentos referidos, que constituem as trés partes do romance - o passado é evocado pelas personagens em contfauos fragmentos recorrentes, tecendo uma espiral temporal descontfnua na qual cada momento é apresentado desligado dos restantes, retomando sempre ao acontecimento iniciál: a morte de Ana. Neste sentido, o fragmentarismo e a desconti-nuidade textual habituais nas narrativas de TG säo unidas apenas na mente do leitor que, no caso de Passagens, rememora, vai rememorando, ao longo da leitura, as falas teatrais de cada personagem, e elas säo múltiplas: Marta, Antonio, Eduardo, Miguel, Hugo, Rosinha, Madalena, Joana..., as senhoras do lar onde Ana se encontra internada, bem como os mortos invocados, Bernardo ,Tiago, Olimpia, Laura... A arte da narrativa em TG reside na suprema mestria de criar pequenos dédalos mentais com base nas "falas" isoladas das personagens: cada uma, falando para si, fragmentária e descontinu-amente, acrescenta urn dado novo ä construcäo do labirinto global que constitui o tecido geral da história. Maria Helena Martins Dias designa com acerto esta arte de contar uma história por TG como "realismo mtimista" (O Pacta Primordial entre MuSher e Escrita na Obra Ficáonal de Teolinda Gersäo, S. Paulo, 1992, pp. 17 ss. - policopiado): realismo, porque dirige o texto ä representacäo do real; mtimismo, porque este é representado por via da consciencia da narradora ou das personagens. Com efeito, a totalidade de Passagens desenrola-se no interior da consciencia das personagens (aqui representadas ao modo do drama teatral), como se o romance constiruísse uma gigantesca mónada mental e dentro dela se transitasse de consciencia para consciencia, de ponto de vista individual para 44 ponto de vista individual, sem nunca se evocar as fontes reais senäo a vida existencia! de cada uma. Como na maioria dos romances da autora, as personagens principals säo mulheres e é o seu ponto de vista social que é tematizado: as ilusôes de Olimpia, a vida fracassada e a morte de Tiago, o laborismo e as depressôes de Marta, o quotidiano das empregadas do lar, a vida de Ana com Bernardo, a agitacäo dos filhos, os netos, Luisa como segunda mulher de Antonio e a aparente rivalidade entre esta e Marta..., intentando captar os momentos existenciais de passagem, tanto da vida para a morte (pp. 129 -130) quanto os momentos principals de desequilibrio no interior de uma vida, que ä de todos estáinterligada: "Também nós, os vivos, andamos em viagem, a cada instante mudamos de visäo e perspetiva, o nosso mundo interior é um contínuo, tudo é sempre uma sucessáo de passagens" (p. 141). É justamente o que Teolinda Gersäo pretende captar literariamente: os momentos indMduais de passagem de uma fase para outra no toda da existencia de cada leitor, figurando-os em diversas personagens com vidas diferentes. Uma espécie de _ cartografia geral da existencia apresentada de um modo labiríntico. Presumo que pela primeira vez um romance portugués aborda o terna da eutanásia. Ana, internada num lar, perceben-do constituir asuavelhice uma fonte de incomodidade e de embaraco para a vida dos seus descendentes, aborda sem sucesso Hugo, o neto médico, para que este Ihe receite uns comprimidos que a ajudem a morrer (p. 147). Näo conseguindo, Simula que sofre da doenca de Alzheimer, para libertar os familiares das contŕnuas visitas (p. 81), já que finge näo os conhecer, nem mesmo a filha Marta, passando a representar uma loucura que näo possui. O drama da velhice e da decadéncia é aqui evidenciado com todo o realismo. Fragmentário e descontinuo, a melhor maneira de comecar a Ier este romance será, porventura, pelo texto final, entre as pp. 165 e 183, um dos mais belos hinos ä Mäe, texto täo realista como lírico, mesmo entemecedor, digno de figurar em futuras antologias dedicadas a este terna, jl A sua arte da narrativa em Teolinda reside na suprema mestria de criar pequenos dédalos mentais com base nas 'falas' isoladas > Teolinda Gersäo PASSAGENS Sextante, 184 pp., 75,50 euros