Revista da Faculdade de Laras «ÜNGVAS E LITERATURAS» Porto, XX, II, 2003, pp. 657/672 CONTRIBUTO DA HIPONÍMIA E DA MERONÍMIA PARA A CONFIGURAQÄO DE RELAQÖES ANAFÓRICAS* Considerada como uma estratégia relevante no processamento das rela9Öes textuais/discursivas, ás quais säo consignadas diferentes possibilidades de configuracäo, a anáfora tem sido estudada numa perspectiva pluridisciplinar, da qual resultaram várias propostas tipológicas para a sua classificacäo e a formulacäo de várias teorias sobre o seu ŕuncionamento. Enquanto fenómeno textual, a anáfora desempenha um papel importante no domínio da progressäo referencial, na medida em que constitui uma estratégia linguística que permite ao alocutário manter em posicäo de foco um elemento específico sobre o qual recaíra anteriormente a sua atencäo. Trata-se, por conseguinte, de um processo interpretativo que consiste numa relacäo de dependéncia entre dois elementos - o antecedente (explícito ou implícito) e o anafórico - , podendo a distincäo entre dois tipos básicos de configura9äo anafórica- a directa e a indirecta - ser fundada na natureza desta relacäo. Assim, enquanto a anáfora directa se caracteriza pela existencia de uma dependéncia interpretativa entre duas entidades linguísticas co-referentes, a anáfora indirecta define-se sobretudo por uma propriedade de näo co-referéncia entre as entidades que preenchem os dois pólos da relacäo. Daí a necessidade de activacäo de um conjunto de estratégias inferenciais diversas, capaz de estabelecer os diferentes tipos de relacäo existentes entre as entidades linguísticas actualizadas. " Este texto constitui uma versäo revista da comunicaeäo "The role of lexical relations in the configuration of anaphoric relations" apresentada na 4th International Conference on Discourse Anaphora and Anaphor Resolution (DAARC2002), que decorreu na Faculdade de Ciencias da Universidtde de Lisboa entre 18 e 20 de Setembro de 2002. 657 FATIMA SILVA Partindo dos pressupostos de que os itens lexicais fomecem uma base adequada para o processamento de inferéncias no domínio pragmático e de que a determinacao do sentido lexical é importante na distincáo de diferentes tipos de anáfora, procurar--se-á evidenciar a releváncia das relacoes lexicais de hiponímia e meronímia, náo só para o processamento anafórico, mas também para a diferenciacao entre anáfora directa e indirecta, salientando, no ámbito desta ultima, a especificidade da anáfora associativa. 1. Hiponímia e meronímia A definicáo de hiponímia e de meronímia assenta essencialmente em dois princípios. O primeiro postula que uma relacao semántica consiste numa afirmacáo com sentido entre dois objectos A e B, de tal forma que A tem uma relacao X com B. O segundo assevera que esta relacao, que pode assumir uma grande variedade de configuracoes, é representada pelo conceito de dependéncia, por sua vez estritamente ligado ao de dominacáo. A esta ligacáo, que envolve uma relacao mono--orientada, dependente de uma relacáo logica de inclusao ou implicácao, está subjacente uma concepcao hierárquica do léxico em que sao consideradas pelo menos trés relacoes de indole genérica: inclusao, posse e atribuicao (Winston et al., 1987)1. Embora tanto a relacao de hiponímia como a de meronímia pertencam ao primeiro tipo mencionado e partilhem a caracteristica de serem constituidas por classes ou tipos passiveis de serem destacados ou decompostos, distinguem-se pelo modo como se encontram ligadas á ideia de inclusao. 1.1. Hiponímia No caso da hiponímia, a orientacáo decorre geralmente no sentido da inclusao de uma classe mais baixa numa classe hierarquicamente superior e baseia-se na conexao de duas classes lexicais, relacionadas por um traco de similaridade de familia. O exemplo (1) ilustra esta organizacao lexical: (l)O amieiro-negro agrupa-se em formacoes pouco densas nas matas húmidas e proximo de pegos ou pántanos. Esta planta apresenta semelhancas com o escambroeiro e o álamo. É, todavia, um arbusto fácil de reconhecer pelas suas 1 WINSTON, E.M.; CHAFFIN, R.; HERRMANN, D. - ATaxonomy of Part-Whole Relations, in Cognitive Science, 11, 1987, pp. 417-444 658 CONTRIBUTE) DA HIPONÍMIA E DA MERONÍMIA folhas ovaladas, marcadas na página inferior por 8 a 10 pares de nervuras salientes e paralelas2. Na verdade, configura-se uma rela9áo de inclusáo entre 'amieiro-negro', 'planta' e 'arbusto', que consiste numa ligacáo de dependéncia entre um hipónimo ('amieiro-negro', 'arbusto'), ou um termo lexical subordinado, e o seu hiperónimo ('planta'), o termo mais genérico. Alem desta relacao hierárquica básica, pode ainda estabelecer-se uma relacao idéntica num nível paralelo, ainda que mais baixo, visto que 'amieiro-negro' é um hipónimo de um termo superordenado - 'arbusto'. De acordo com a tipologia de grupos conceptuais básicos estabelecida por Eleanor Rosch et al. (1976)3, os termos lexicais referidos em (1) agrupar-se-iam conforme a tabela 1. Nível Entidade lexical superordenado planta médio arbusto subordinado amieiro-negro Tabela 1: Categorias de nível básico A ordenacáo da tabela 1 clarifica os principals atributos da relacao de hiponímia, ao tornar perceptível a relacao semántica existente entre as trés entidades lexicais, que pode ser sumariada por um esquema correspondente á hierarquia representada pelo domínio do verbo 'ser': Um X é uma espécie / um tipo de Y Um X é um Y Esta paráfrase é sustentada por uma equacáo que provém do sistema mereológico e traduz as relacoes de dependéncia e de dominacao que ocorrem entre classes: SeAcBeBcC, entaoAcC 2 READER'S DIGEST - Segredos e Virtudes das Plantas Medicinais, Lisboa, Seleccoes do Reader's Digest, 1983, p. 36 3 ROSCH, E. et al. - Basic Objects in Natural Categories, in Cognitive Psychology, 8, pp. 382- -439 659 FATIMA SILVA Assim: Se um amieiro-negro é um tipo de arbusto e um arbusto é um tipo de planta, entäo um amieiro-negro é uma planta Daqui se depreende que a hiponímia é uma relacäo simétrica e transitiva, na qual a inclusäo representa uma integracäo ascendente, podendo seguir dois padröes complementares, mas näo sequenciais (Kleiber, Tamba, 1990)4: uma classe é integrada noutra classe, o que significa a inclusäo de uma classe mais baixa, representada pelo nível subordinado, numa classe superior, representada por um nível superordenado (amieiro-negro c planta); algumas especificacöes säo adicionadas para distinguir indivíduos de uma čerta classe de indivíduos pertencentes a outra classe, quando ambos dependem da mesma classe superior (amieiro-negro c arbusto). Um processo idéntico ocorre no exemplo (2): (2) - Mas por que é que havia de acontecer logo com o nosso macaco? Näo é só com o bicho, era também com eles, porque, na verdade, em todos os casos conhecidos de possuidores de chimpanzés, incluindo o Tarzan, eles eram o único casal que...5 Neste exemplo, uma categoria de nível medio corresponde ao primeiro hipónimo. Ainda que um hipónimo em primeira mencäo possa ser preenchido por um nome subordinado, especialmente quando se pretende fazer uma maior especifícacao, como parece ser o caso no exemplo (1), este papel parece ser frequentemente desempenhado por unidades do nível medio, como se verifica no exemplo (2) através da entidade lexical 'macaco'. Em geral, as unidades do nível medio säo as mais significativas do ponto de vista informativo6, na medida em que possuem um grande numero de tracos comuns, quer com o nível superordenado, quer com o subordinado, sem, no entanto, 4 KLEIBER, G.; TAMBA, I. - L'Hyponymie Revisitee: Inclusion et Hierarchie, in Langages, 98, 1990, pp. 7-32 5 CARVALHO, M. - O N6 Estatistico, mA Inaudita Guerra daAvenida Gago Coutinho e Outras Histörias, 5' ed., Lisboa, Editorial Caminho, 1997, p. 67 6 Por constituir um estrato hierärquico privilegiado, denomina-se o nivel medio como nivel de base. Neste trabalho, optou-se por uma denominaeäo mais pröxima da nomenclature original, acentuando mais o seu posicionamento na hierarquia do que o seu valor em termos de grau de abstraccäo conceptual. Veja-se, a este respeito, THEISSEN, A. - Le Choix du Nom dans le Discours, Geneve, Librairie Droz, 1997 660 CONTRIBUTO DA HIPONfMIA E DA MERONIMIA implicarem uma sobre-especificacao (nivel subordinado) ou uma subespecificacäo (nivel superordenado). Por ser considerado como o nivel mais alto em que uma imagem mental pode representar uma categoria inteira, o nivel medio e muito frequente no processo de denominacäo por hiponimia. Pode, no entanto, atribuir-se aos tres niveis referidos um conjunto comum de tracos semänticos que garantem as regras de implicacäo entre eles. Tal como o exemplo (2), o exemplo (3) confirma este padräo da hiponimia e ilustra a sua ocorrencia preferencial: (3) - Agora e a tua vez, pobre carvalho! - dizia algum tempo depois. - Muito queria a minha Mäe äquela ärvore! Por suas mäos a plantou bem tenra7. 1.2. Meronimia A meronimia e igualmente uma relacäo lexical caracterizada pelo traco de inclusäo. No entanto, ao contrario da hiponimia, consistenuma relacäo hierärquica em que B e parte de um outro objecto A. Isto significa que frequentemente se trata de uma relacäo parte-todo, caracterizada dentro da hierarquia tipificada pelo verbo 'ter', cuja paräfrase corresponde äs seguintes afirmacoes: X e uma parte de Y Y tern um X Os exemplos (4) - (6) confirmam estes tracos: (4) As substäncias activas näo se encontramuniformemente distribuidas pelas diferentes partes da planta. As que säo utilizadas designam-se por färmacos vegetais. A folha, base de todas as sinteses quimicas, e a parte mais utilizada, pois produz os heterosidos e a maior parte dos alcalöides. O caule e apenas uma via de circulacäo entre as raizes e as folhas, podendo conter activos, especialmente na casca8. (5) Era dia de orquestra. A orquestra vinha duas vezes por semana de uma praia vizinha. Os müsicos eram magros e novos e tinham smokings velhos, ligeiramente esverdeados pelo uso e pela humidade das invernias maritimas9. (6) 1. Depois de limpar a panela, deite-lhe os alimentos e ingredientes. 2. Coloque a tampa, faca girar horizontalmente o travessäo de aco inoxidävel...10 7 DINIS, J. -AMorgadinha dos Canaviais, Porto, Porto Editora, 1977, p. 335 8 READER'S DIGEST - Op. Cit. nota 2, p. 13 9 ANDRESEN, S.M.B. - Praia, in Conlos Exemplares, Porto, Figueirinhas, 1983, p. 136 10 Folheto de instru^oes Silampos 661 FATIMA SILVA De facto, existe, em todos os exemplos, uma relacao entre um todo e as suas partes, que se traduz nas seguintes assercoes: Uma planta tem folhas. Uma orquestra tem músicos. Uma panela de pressáo tem uma tampa. Esta relacao depende do modo como cada parte individual possível se relaciona com o todo, dado que a relacao de dependéncia varia conforme se tratě de um todo composicional ou de um todo funcional. Em qualquer dos casos, ontologicamente, uma parte de um determinado todo caracteriza-se sempře pelo traco' espécie', visto que indica, em simultáneo, o todo com o qual está relacionada e o tipo de coisa de que se trata. Considerando esta relacao como uma relacao estrita de ordenacao parcial, Winston et al. (1987)11 propoem uma tipologia de seis categorias de merónimos: componente-objecto integral, membro-coleccao, porcáo-massa, material-objecto, elemento-actividade e lugar-área, baseando a sua distincáo em elementos de natureza relacional, segundo os quais as partes se classificam com os tracos [+ funcional], [+ idéntico] e [± separável]. Os exemplos (4) - (6) integram-se na primeira classe referida - a de componente-objecto integral. Isto deve-se ao facto de 'planta'/'folha' (4), 'orquestraVmúsicos' (5) e 'panela de pressao'/'tampa' (6) constituírem uma relacao em que o todo é considerado como um objecto possuindo uma estrutura ou organizacáo na qual alguns componentes ou partes sáo destacáveis. Assim, tendem a acumular nao só um papel funcional, mas também propriedades de similaridade, ainda que sem identidade, e de distintividade em relacao ao significado desse todo12. Esta caracterizacáo permite afirmar que a meronímia náo implica propriamente um processo de inclusao entre classes, mas antes a conexáo entre dois elementos que estao mutuamente implicados, correspondendo essa implicacao á paráfrase: X está implicado no sentido de Y Há, por esse facto, uma espécie de inclusao entre a entidade que sofre a divisáo e o resultado que dela decorre, nao estando, no entanto, as propriedades do todo 11 WINSTON, E.M.; CHAFFIN, R.; HERRMANN, D. - Op. CiL note 1, p. 421 12 E evidente que, apcsar de poderem ser integradas na mesma classe, as cntidades lexicais envolvidas na relacäo de meronimia dos diversos exemplos apresentam difercncas que decorrem de propriedades lexicais äs quais näo se atenderä, por näo serem objecto fulcral deste trabalho. Veja-se, para a sua caracterizacäo, LANGACKER, R.W. - Nouns and Verbs, in Language, 63(1), pp. 53-94 662 CONTRIBUTO DA HIPONIMIA E DA MERONIMIA obrigatoriamente incluidas nas suas partes, dado que uma parte näo e semanticamente identica ao sentido do todo. Por este motivo, a meronimia e assimetrica e frequente-mente intransitiva. Esta questäo relaciona-se de forma estreita com a natureza lexico-semäntica das entidades que correspondem quer äs partes, quer ao todo. Na medida em que existe uma relacäo de pertenca que predica uma parte de um todo, mas nunca o todo como uma totalidade, o todo liga-se äs partes mediante uma dependencia ontolögica na qual se definem as suas partes necessärias ou tipicas. Em funcäo dessa definicäo, considera-se a existencia de dois tipos de merönimos : os canönicos, que correspondem äs partes mais salientes de um todo, e os facultativos, que näo se encontram inscritos no estereötipo do todo ao qual estäo ligados. Esta distincäo torna-se mais facilmente perceptivel se considerarmos a divisäo do sentido nas suas partes estereotipicas que, de acordo com Wierzbicka (1985)13, podem ser parafraseadas da seguinte forma: - Imaginando coisas deste tipo, as pessoas diriam estas coisas acerca delas; - Imaginando coisas deste tipo, as pessoas poderiam dizer estas coisas acerca delas. Ainda que esta distribuicäo seja efectuada em funcäo dos tracos lexicais e semänticos das unidades lexicais envolvidas, a sua mais importante fönte situa-se a um nivel empirico, porque a relacäo lexical e altamente suportada pelo conhecimento enciclopedico de uma comunidade (Vilela, 1999)14. Nos exemplos (4) - (6), os merönimos 'folha', 'caule', 'müsicos' e 'tampa' säo canönicos, visto que correspondem a partes salientes do seu todo. Fazem parte de um conhecimento comum, de tal forma que equivalem a coisas que as pessoas diriam de 'planta', 'orquestra' e 'panela de pressäo'. Ao contrario de 'folha', 'caule' e 'tampa', que existem basicamente como componentes ou parte de outro objecto, o merönimo 'müsicos' apresenta um grau mais baixo de dependencia ontolögica em relacäo ao todo, pois ela circunscreve-se a um dos seus tracos tipicos - 'tocar müsica'15. WIERZBICKA, A. -Lexicography and Conceptual Analysis, USA, Karoma Publishers, 1985, pp. 31-32 14 VILELA, M. - Gramdtica da Lingua Portuguesa, 2a ed., Coimbra, Almedina, 1999, p. 440 15 Por esta razao, o pressuposto generalizado de que esta relacao deve obedecer a uma equacao baseada numa afirmacao generica (CRUSE, D. A. - Lexical Semantics, Cambridge, Cambridge University Press, 1986) que valide sempre a aceitacao da estrutura meronimica deve ser considerado num sentido menos absoluto. 663 FATIMA SILVA A defmicäo lexicográfica destes termos representa um apoio válido na descricäo das suas partes estereotípicas, como demonstra a sua aplicacäo ao exemplo (5): Orquestra —> s.f. conjunto de músicos (ou instrumentos musicais) que exeeutam urna pe9a; lugar, no teatro, reservado aos músicos; sons harmoniosos (...)16 Músico —» s.m. indivíduo que sabe música; membro de urna orquestra, banda ou filarmónica; o que vive de cantar ou tocar (...)17 2. Hiponímia, Meronímia e Anáfora A síntese dos principais elementos envolvidos na descricäo da hiponímia e da meronímia permite-nos extrair duas conclusôes relevantes. Em primeiro lugar, há um conjunto de características que tornam possível distinguir e aproximar estas duas relacôes, tal como é explicitado na tabela 2. Em segundo lugar, esta tabela confirma a ideia de que o léxico possui uma dimensäo hierárquica na qual é possível equacionar a existencia de algumas relacôes a priori. Este tipo de relacäo consiste numa ligacäo convencional, num conhecimento genérico que une as entidades lexicais de uma forma estereotípica ou necessária. Por conhecimento genérico e partilhado deve entender-se a existencia de urna informacäo Relacäo semäntica Diferencas Semelhan9as Hoponímia Meronímia relacäo 'uma espécie de' generalizacäo inclusäo entre classes similaridade de classes baseada em propriedades intrínsecas simetria transitividade pertenca á hierarquia 'ser' relacäo 'urna parte de' agregacäo implicacäo entre elementos de classes similaridades baseadas em propriedades mais extrínsecas assimetria intransitividade pertenca á hierarquia 'ter' hierarquia vertical relacäo mono-orientada classes abertas compatibilidade exelusiva com entidades nominais inclusäo Tabela 2: Relacôes entre hiponímia e meronímia 16 COSTA, J.; SAMPAIO E MELO, A. -Dicionário da Língua Portuguesa, 6* ed., Porto, Porto Editora, p. 1203 17 COSTA, J.; SAMPAIO E MELO, A. - Op. Cit. nota 16, p. 1145 664 CONTRIBUTO DA HIPONÍMIA E DA MERONÍMIA semäntica que näo depende do referente considerado como uma entidade individual, mas descreve o tipo ou conceito no qual ele deve ser inscrito (Kleiber, 2001)18. As regras de implicacäo atribuídas á meronímia e á hiponímia consideram este tipo de conhecimento e representam um suporte útil na descricäo de fenómenos como a anáfora, comummente descrita como uma questäo de incompletude semäntica que deve ser resolvida através de urna estratégia inferencial, operando simultaneamente com base em ligacôes semänticas e informacäo contextual. Isto significa que, apesar de as condicôes sintácticas influenciarem a forma como esta dependěncia ocorre, as condicôes semänticas e pragmáticas devem ser consideradas como as mais importantes para a sua explicacäo. 2.1. Hiponímia e Anáfora Os exemplos (1) - (3) integram-se no domínio da anáfora nominal lexical co-referencial. Säo, por isso, considerados como representativos da anáfora directa, designacäo que se deve sobretudo ás relacôes semänticas atribuídas ás entidades lexicais envolvidas no processo. Em todos os casos, há urna relacäo de hiponímia - hiperonímia que opera por meio de implicacôes lexicais condensadas numa relacäo de inclusäo cuja orientacäo se processa de um nível inferior para um nível superior. Dado que o hipónimo corresponde usualmente a urna entidade de nível medio, ou a urna entidade subordinada, e o hiperónimo é representado pelo nível mais genérico, esta orientacäo implica urna perda de informacäo relativamente ao anafórico. Isto é possível, porque a conexäo entre o antecedente e o anafórico obedece a urna implicacäo lexical, que se funda na recorréncia de tracos lexicais, correspondente á juncäo de um conjunto de propriedades que satisfaz ambas as entidades. Em consequéncia, só uma entidade é referida neste tipo de anáfora, mesmo quando ocorre um processo de substituicäo lexical, como acontece nos exemplos (1) - (3). O principal efeito da co-referéncia é que o segmento anafórico pode referir-se ao seu antecedente mediante a seleccäo de uma das diferentes implicacôes inscritas na entidade lexical que tem o papel de antecedente. Além da economia pragmática que esse processo representa, ele torna possível associar ao traco [+ co--referencial] o traco [+ directo], visto que a referencia ao antecedente é feita por uma propriedade essencial do anafórico - o traco designador da sua classe - que se KLEIBER, G. - L'Anaphore Associative - Paris, Presses Universitäres de France, 2001, p. 77 665 FATIMA SILVA encontra incluído no sentido do antecedente. O exemplo (3) confírma esta expectativa lógica através da definicäo lexicográfíca de 'carvalho' e 'árvore': Carvalho —> (bot.) s.m. árvore ou arbusto da fam. das Fagáceas, comum em Portugal, útil, especialmente pela madeira, pelo fruto tanino que fornece (...)" Árvore —> s.f., planta lenhosa, cuja altura näo é menor que cinco metros, e que, em regra, näo apresenta ramificacôes na base (...)20 Por outro lado, os exemplos (1) - (2) evidenciám ainda urna conexäo que näo pode ser conŕundida com a existencia de uma fase intermedia no processo anafórico, que se localizaria entre os pólos da relacäo anafórica constituídos pelas entidades lexicais 'amieiro-negro' - 'planta' e 'macaco' - 'animal' e séria desempenhada por 'arbusto' e 'chimpanzé'. O que se verifica, de facto, é a valorizacäo de uma equacäo transitiva entre as trés entidades lexicais envolvidas. Em suma, há duas anáforas co-referenciaiš com um antecedente comum, mas diferentes consequéncias no fluxo informativo. Esta estrutura, na qual um nível subordinado está associado a um nível genérico ou medio, compete com uma estrutura que parece ser mais comum, cuja orientacäo é nível medio —» nível genérico. O exemplo (7), tal como o (3), ilustra este processo: (7) Meia-dúzia de vacas passeiam pachorrentas no meio da estráda molhada. Ninguém se apressa ou impacienta, mesmo quando um dos animais pára, como que para observar a paisagem21. A preferencia por um ou outro nível depende näo só dos tracos lexicais que constituem a entidade lexical, mas essencialmente do conhecimento enciclopédico partilhado pelos falantes, que deve ser relacionado com o conhecimento pragmático requerido numa čerta situacäo para permitir a interpretacäo da anáfora. 2.2. Meronímia e Anáfora As relacôes semänticas estabelecidas entre elementos lexicais e fundadas num conhecimento enciclopédico comum säo igualmente significativas no que se refere á configuracäo das relacôes anafóricas presentes nos exemplos (4) - (6). Elas permitem ainda distinguir os tracos considerados no tipo de anáfora precedente COSTA, J.; SAMPAIO E MELO, A. - Op. Cit. nota 16, p. 313 COSTA, J.; SAMPAIO E MELO, A. - Op. Cit. nota 16, p. 162 Jornal PUBLICO, 24/05/03 666 CONTRIBUTO DA HIPONÍMIA E DA MERONÍMIA dos traíos anafóricos decorrentes destes exemplos, em que a relacäo anafórica se caracteriza por ser näo co-referencial e indirecta. Estas caracteristicas resultam de uma relacäo semäntica entre o antecedente e o anafórico, baseada numa regra de implica?äo, que é determinada a partir de uma estratégia inferencial na qual a expressäo anafórica especifica e evoca a entidade lexical correspondente ao antecedente. Dado que as entidades lexicais envolvidas nesta relacäo näo permitem a identificacäo de tra?os comuns semänticos entre elas, é necessário optar por uma configura9äo anafórica na qual o anafórico näo está explicitamente relacionado com o antecedente, mas pressupöe um denotatum implícito inferivel a partir do contexto anterior (Koch, 2002)22. Neste sentido, á representacäo do referente está subjacente uma implicacäo estrita baseada no conhecimento partilhado do elo estereotipico existente entre o anafórico e o seu antecedente. Em consequéncia, a relacäo entre eles corresponde a uma associacäo que pode ser configurada por intermédio da meronimia, o que se deve ao facto de a parte ser perspectivada como um ingrediente provável do todo, que constitui o principal elemento no estabelecimento da inferéncia, por corresponder á estrutura global a partir da qual algumas partes podem ser destacadas. E por isso que este tipo de associacäo se denomina anáfora associativa, um tipo de anáfora indirecta que se baseia, em grande parte, num conhecimento estereotipico (Kleiber, 2001)23. Alem deste ponto de vista, seguido por Kleiber, Schnedecker e Ducrot, segundo o qual as relacöes anafóricas tém uma base lexical, previamente inscrita na lingua, há uma outra teoria sobre a anáfora associativa, subscrita por Charolles, Berrendonner, Apothéloz, Reichler-Béguelin e Dubois, que defende que a explicitacäo dessa rela9äo deve ser procurada no contexto. Independentemente da direcfäo seguida por cada uma destas teorias, considera--se que säo propostas complementares no tratamento da anáfora associativa, visto que, se, por um lado, é evidente que um todo implica geralmente algumas partes e que o contexto fomece indica90es para a sua determina9äo, por outro, a rela9äo de implica9äo parece basear-se frequentemente num conhecimento lexical preexistente á rela9äo anafórica, o que é fundamental para a configura9äo deste tipo de anáfora. Tomando em linha de conta, por exemplo, o excerto (6), verifica-se que a rela9äo anafórica entre 'panela de pressäo' e 'tampa' pode ser configurada através de uma rela9äo lexical de meronimia, que é sustentada pelo conhecimento lexical e pelo conhecimento enciclopédico. De facto, saber que uma 'tampa' se caracteriza KOCH, I.V. - Desvendando os Mistérios do Texto, Säo Paulo, Cortez Editora, 2002, p. 113 KLEIBER, G. - Op. Cit. nota 18, p. 89 667 FATIMA SILVA pelo trace- funcional 'servir para tapar alguma coisa' implica uma inferéncia dedutiva através da qual se atribui a uma entidade näo explícita o papel de foco da relacäo anafórica. Esta atribuicäo baseia-se numa dependéncia interpretativa do anafórico em relacäo ao seu antecedente, que corresponde á instrueäo de procurar no contexto a entidade lexical que implica aquela parte. O termo 'tampa' aparece, assim, como componente provável de 'panela de pressäo', visto que esta se caracteriza geralmente por ter 'alguma coisa para tapá-la'. Como pode ser considerado uma parte saliente do todo ao qual está associado, constitui um merónimo canónico desse todo. Um traco comum dos exemplos (4) - (6) consiste na orientaeäo desta relacäo anafórica: de cada todo para as suas partes. Isto significa que os merónimos possuem a inforrnaeäo de sérem uma parte do todo, constituindo, por conseguinte, uma pista para procurar o todo. 2.3. Especificadores e Contexto Ainda que os tracos lexicais e semänticos anteriormente apontados sejam relevantes na configuracao anafórica, eles devem ser articulados com uma abordagem dos especificadores24 e do contexto, na medida em que estes contribuem para um melhor entendimento da anáfora e confirmam a importáncia do papel desempenhado por cada uma das relacöes lexicais referidas na sua configuracao. Nesse domínio, os determinantes repereutem uma forma específica de estabelecer e manter a referenda, desempenhando, por isso, uma funcäo relevante no processo de denominaeäo, ao apresentarem o referente denotado pelo grupo nominal ao qual pertencem de uma forma específica. Embora os exemplos propostos näo eubram todas as possibilidades de combinacöes entre o núcleo lexical de um grupo nominal e os especificadores possíveis (tabela 3), atestam a sua importáncia e permitem reforcar a fimcionalidade das relacöes lexicais na configuracao da anáfora. Especificadores Relacöes lexicais Tipo de anáfora _ _Primeira mencäo_Segunda mencäo Hiponimia co-referencial definido definido definido + indefmido possessivo demonstrativo quantificador demonstrativo Meronimia näo co-referencial definido definido Tabela 3: Distribuicäo dos determinantes de acordo com os exemplos (1) - (7) 24 O termo espeeificador é entendido de acordo com o seu uso em MATEUS, M.H.M.; BRITO, A.M.; DU ARTE, I.; FARIA, LH. - Gramática da Lingua Portuguesa, 3a ed., Lisboa, Editorial Caminho, 1989, p. 189. Engloba näo só os determinantes, mas também os quantificadores. 668 CONTRIBUTO DA HIPONÍMIA E DA MERONÍMIA Da análise da tabela 3 destacam-se duas conclusöes. A primeira consiste na constatacäo de que a anáfora co-referencial apresenta uma maior variedade de determinantes possíveis, enquanto a anáfora näo co-referencial parece admitir muito poucos determinantes para actualizar os nomes que compöem o grupo nominal envolvido no processo anafórico. Isto deve-se ás propriedades semänticas da relacäo anafórica em causa, que deve ser relacionada com as consequéncias de domináncia da relacäo de inclusäo ou de implicacäo nas relacöes lexicais. Esta distincäo observace no uso de artigo definido ou de demonstrative como segunda mencäo, por exemplo. Enquanto o definido constrói ou recobre urna representacäo particular do denotatum do referente ao qual é atribuído o traco de unidade, o demonstrativo destaca um objecto por oposicäo a outros objectos da mesma classe. A segunda ŕundamenta a necessidade de considerar o contexto em que esses especifieadores e os nomes que com eles formám um grupo nominal ocorrem. De facto, a determinaeäo dos sentidos lexicais baseia-se no léxico e no contexto, já que os tracos lexicais encontram a sua plena significa9äo no texto. Isto näo implica que se desvalorize a importäncia das relacöes lexicais, como fazem, por exemplo, Berrendonner e Charolles em relacäo á anáfora associativa, mas torna possível uma explicacäo mais completa do fenómeno. Na verdade, o contexto tem, claramente, um papel no processamento dos itens lexicais, perceptível a diferentes níveis. Assim, dependendo do tipo de inclusäo da representacäo anafórica numa čerta categoria activada pelo contexto, o processo anafórico torna-se mais ou menos fácil. Isto mostra que o contexto tende a ser um indicador útil na predicäo do que se segue, podendo ainda eriar algumas relacöes originais e justificar outras. Alem disso, há casos em que a anáfora pode depender de um merónimo opcional, porque a ligaeäo estabelecida entre a parte e o todo se baseia mais num conhecimento contingente do que numa relacäo lexical essencial. Apesar da releväncia concedida ao papel do contexto no processamento anafórico, é evidente que näo se pode fazer depender dele todas as relacöes configuradas a esse nível, tornando-se, por conseguinte, fundamental considerar que, em todos estes casos, a semäntica e a pragmática estäo funcionalmente interligadas nos processos cognitivos subjacentes ao estabelecimento e manutencäo da referencia diseursiva (Marslen-Wilson et al., 198225; Fonseca, J., 199426). 25 MARSLEN-WILSON; W.; LEVY, E.; TYLER, L.K. - Producing Interpretable Discourse: The Establishment and Maintenance of Reference, in JARVELLA, R.J.; KLEIN, W. (ed.) - Speech, Place and Action, New York, John Wiley & Sons, 1982, pp. 339-377 26 FONSECA, J. - Pragmätica Linguistica: Introducäo, Teoria e Descrigäo do Portugues, Porto, Porto Editora, 1994, p. 102 669 FATIMA SILVA 3. O papel textual da anafora De forma generica, a anafora representa uma estrategia relevante para a continuidade textual, nao so pela relafao de coerencia que implica num contexto discursivo particular, mas tambem pelas restricoes impostas pela natureza do que e predicado relativamente a referencia anaforica (Cornish, 1996)27. Por esta razao, as rela^oes lexicais que configuram a anafora actuam, quer ao nivel da continuidade textual, quer em relacao as inferencias a ela subjacentes, porque a semantica do nucleo do grupo nominal e muito importante na orienta9ao do texto. As duas relacoes semanticas tratadas podem ser, pela sua funcionalidade ou configurafao anaforica, associadas a dois modos distintos de progressao textual. A anafora configurada por uma rela9ao lexical de hiponimia - hiperonimia tem basicamente um papel tematico e e responsavel pela manuten9ao da referencia discursiva. Trata-se, portanto, de uma estrategia de redenomina9ao de uma entidade previamente mencionada, que implica uma generaliza9ao em rela9ao a primeira men9ao e pode ser acompanhada por diferentes tipos de determinantes. Em (3), por exemplo, o termo lexical 'arvore' redenomina o termo lexical com a posi9ao de antecedente, 'carvalho', de tal forma que se verifica uma continuidade discursiva por generaliza9ao de sentido com a inclusao de uma classe noutra classe. Contudo, esta generaliza9ao nao implica uma mudan9a de direc9ao na referencia, pois ha apenas um procedimento de recategorizasao de uma classe inferior que contem o termo nominal 'carvalho' numa classe superior, 'arvore'. Ao contrario desta, a anafora nao co-referencial envolve a formula9ao de novas predica9oes em rela9ao aos elementos tematicos ja introduzidos no texto. Por isso, a anafora associativa, por exemplo, pode ser considerada como um processo hibrido, visto que predica alguma coisa acerca de um elemento por intermedio de outro elemento, que foi anteriormente apresentado ou sugerido no texto, operando, no que se refere a continuidade textual, nao so uma recategoriza9ao, mas tambem uma mudan9a na direc9ao da referencia. Este hibridismo da anafora associativa pode ser ilustrado pelo exemplo (5), onde o termo lexical 'musicos', o segmento anaforico, representa uma nova predica9ao do antecedente nominal 'orquestra'. Ha, neste contexto, um processo rematico sem perda de continuidade da referencia, porque ambas as entidades convocam conceptualmente o mesmo conceito. Esta continuidade e ainda refor9ada pelo uso dos determinantes definidos. CORNISH, F. - Coherence: The Lifeblood of Anaphora, in Belgian Journal of Linguistics, 10, 1996, pp. 37-53 670 CONTRIBUTO DA HIPONÍMIA E DA MERONÍMIA Em síntese, enquanto a anáfora co-referencial implica continuidade por redenominacao, a anáfora indirecta implica continuidade e progressáo ao introduzir novas entidades relacionadas com entidades semanticamente diferentes. As escolhas lexicais, que estáo subjacentes a este tratamento, sáo responsáveis pela orientacáo semántica e funcional do texto. Embora de forma empírica, a tabela 4 sumaria alguns padroes comuns de interligacáo entre relacoes lexicais e anáfora no dominio do texto. 4. Conclusáo A leitura da tabela 4 permite, no termo desta reflexáo, reforcar as hipóteses de partida e formulář algumas hipóteses de trabalho futuro. Na verdade, ela evidencia que as relacoes lexicais tem um papel importante na configuracao da anáfora e na forma como o texto progride. Alem disso, estas relacoes confirmam a releváncia de uma teoria baseada no léxico para explicitar a anáfora desde que suportada por um esquema cognitivo e pragmático de análise. Tipoderetafio -► Tipode anáfora -► Oriental textual-► FuncOestextuais -► Craifiguracjo formal Hipooimi. OM* ***** fed,™™**, í*dtate + (direct.) Hipera,taia Recategoriaíto termo,K»,,i,lal Papel temático Mani*D9Sodadirecítodarefertocia Merootoia Nloahreferencial NimrmdictcJo EspecifHa4or+ Holoréma-»MeronjDiia (indirecta-> associativa) Recalegonzaclo ttrnxi nominal Papel temádco-rematico Mudanca da direcfto da referínda Tabela 4: Relacoes entre hiponímia, meronímia e anáfora no texto A distin?ao entre meronimia e hiponimia mostra que, independentemente dos mecanismos envolvidos, ha uma clara interdependencia entre semantica lexical e pragmatica. Esta evidencia pode ser encontrada nos sentidos lexicais e no texto, que deve ser entendido como uma actividade de coopera5ao caracterizada por dois trafos: coesao e coerencia. 671 FATIMA SILVA A coníírmacäo da importäncia destes elementos no domínio da anáfora textual toma pertinente dar continuidade a este campo de estudo, no sentido de aprofundar questöes como a implicacäo destas duas relacöes no processamento textual, os padröes possíveis da sua ocorréncia no texto, a distincäo entre a anáfora e outros tipos de estratégias linguísticas nas quais as relacöes lexicais säo relevantes e a exploracäo da relacäo que parece existir entre certos tipos de relacöes lexicais e diferentes tipos de texto. Fatima Silva 672