■ eJ h o II K A ,s III !■ R A K I A .- O CADAVER ygsaparecera bruscamente da loja e la fora, urn dia de chuva molenga : e continua, para o Prado do Repouso, acompanhada por algurvs sujei-tos graves, de fraque e coco. Pedro sentara-se numa cadeira de bracos e, com os olhos fecha-dos, espapacado pelo calor impiedoso e cada vez mais forte, recorda-va, sorrindo, aquele tio Amflcar, que no testamento o contemplara com a corrente de ouro muito grossa e feia que usava com uma unha de leao no dependuro. No fundo nao era mau homem, mas bruto como uma porta. E ainda era misterio para Pedro como ele conseguira ganhar tanto dinheiro; e so o caso se aclarava um pouco se se partisse do principio de que o «ganhar» era linguagem figurada. Havia, contudo, o dever de ir ao cemiterio visitar o jazigo do pobre tio Amilcar que deixara a corrente. Mas o calor! O calor! Talvez fosse sacrificio demasiado ir debaixo daquele sol caustico levar umas flores ao tio Amilcar. Mas logo Pedro se lembrou de que no cemiteno havia avenidas sombreadas e frescas e que o degrau do jazigo poderia muito bem servir de banco para um repouso mais comodo. E, como nessa manha lhe tinham mandado de presente uma cestinha de damascos perfumados e maduros, fot ja com a resolucao firme de ir ao cemiterio que Pedro alojou num. embrulhozinho de papel pardo uma meia duzia dos frutos aliciantes. Almocou regaladamente antegosando a delicia daquele passeio pelas alamedas bordadas pelas casas dos mortos, com as suas inscri-coes ingenuas e os vasinhos e as jarras com flores. Depois saiu, muito devagar, procurando a sombra que os predios projectavam nos passeios. Raras pessoas se viam pelas ruas: policias passeavam com ar morno e desalentado, maos atras das costas, o tercado a bater lamentavelmente nas pernas; dois elegantes, de cha-peu de palha e calca clara, faziam girar as bengalas em alardes de habilidade; um garoto, com voz desfalecida, apregoava jornais; e por toda a parte o calor reinava como senhor unico e omnipotente. Com lentidao, subiu Pedro a Rua de Santo Antonio, detendo-se um pouco diante das montras endomingadas. O sinaleiro da Batalha acolhera-se a um canto de sombra e as suas atitudes inglesadas dissolviam-se sob a accao do sol fortissimo. E assim, em passos moles, chegou a porta do cemiterio. Uma mulher, acocorada junto dum grande cesto cheio de flores, ofereceu- 310 i If í *1 * -Ihe um ramilhete «por dez tostôes», näo era caro. E ajuntou, con-vincente: — Vá lá, santinho, que vai bem servido! Pedro comprou as flores e entrou no cemitério. E logo, ä vista da grande avenida em que as árvores laterais punham manchas de sombra, Pedro sentiu que o calor se dispersava, abandonava a preša que, até aí, näo cessara de transpirar e de bufar. Tirou o chapéu com delícia, limpou o suor que lhe escorria pela testa. No cemitério näo estava ninguém ou, pelo menos, ele ninguém via. Ouvia-se, por vezeš, algum leve chilrear de pássaro que logo se calava, como que envergonhado de se ver sem companheiro nos gorjeios. O guarda, metido na casinhola de madeira, dormitava, com o colete desabotoado. E do ar muito calmo vinba uma paz suavíssima e deliciosa. Pedro já se näo lembrava nitidamente do sítio ein que ŕicava o jazigo do tio Amílcar. Mas, depois de vaguear um pouco pelas avenidas que se entrecru-zavam, avistou o mármore branco com as letras doiradas da legenda. Atirou com as flores para cima da pedra e sentou-se ä beira do degrau, a abanar-se com o chapéu. Uma fila de formigas atarefadas atravessava o mármore, internava-se no jazigo. Do lado de Vila Nova devia haver qualquer festarola; os foguetes estalavam no céu muito límpido e azul, ouvianvse a momentos os acordes estrondosos de uma banda e, em altos postes, tremulavam bandeiras multicores. Deitou um olhar para o jazigo. O tio Amílcar lá estava numa daquelas estúpidas gavetas, täo inútil que nem estrumava plantas. Outras campas, em volta, tinham a cobri-las um largo tapete de flores. E Pedro pensava que sempře era uma alegria para o morto poder reaparecer assim ä superfície da terra, transformado em pétalas perfumadas e coloridas. Mas os caixôes de chumbo, impedindo avara-mente a comunicacäo com o exterior, assemelhavam-se a prisôes sombrias e lúgubres. Que séria feito daquela barriga proeminente e farta? E da cara nédia em que negrejava uma «mosca» rebarbativaľ Tudo, decerto, se sumira numa lama nojenta e viscosa ali apertada entre as quatro paredes do caixäo. E assim também ele, Pedro, se desfaria e se tornaria hediondo... 31. •S- í ESTUDOS E OBRAS L1TERÁRIAS O c; A D A V E R Entao, para sacudir estas ideias que o tornavam melancolico, de-sembrulhou os damascos, que desprenderam de si um perfume en-cantador. Trincou um com delicia, depois outro e outro. O sumo, muito fresco, escorria-lhe pelos cantos da boca, pingava mesmo no chao, Veio-lhe um desejo de ficar ali eternamente a comer damascos, a sombra, sob a musica da passarada que agora, ja com o sol amainan-do, tinha recomecado a cantoria, interrompida pelo torpor que, a. hora do meio-dia, se desprende das coisas e tudo invade. Mas imediatamente Ihe surgiu diante dos olhos a visao do tio Amilcar estendido no esquife com a enorme barriga a desfazer-se em papa. Levantou-se, furioso, e deu uns passos na avenida; depois, mais calmo, pos o chapeu, entalou as flores nas grades do jazigo e recome-cou o seu lento passeio, demorando-se a olhar aqui uns versos caoti-cos, alem uma fotografia encaixilhada na pedra e coberta por um vidro, na maior parte das vezes rachado, mais adiante a estatueta de um anjo com uma caveira nas maos. Havia ali capitalistas; um tinha busto no jazigo, outro estatua inteira, com a mao metida pela sobrecasaca, na atitude classica de Bonaparte; mas a expressao grave e desconfiada do rosto fazia supor que estava com medo de que lhe roubassem a carteira. Adiante estava o coval de uma rapariga; a um canto havia uma lapide de marmore com versos: Ja da Parca fatal arrebatada Ainda, oh! meu Deus!, era tao nova! Vi-me lancada em fria e escura cova E pela terra negra sufocada. Era um soneto elegfaco com cinco versos errados e seis duros como... Bern! Deixemos a imagem! Terminavam com um apelo a pleiade do caminhante: E tu que vais passando para um pouco E reza um padre-nosso pla minha alma! Pedro nao rezou o padre-nosso e passou a frente a admirar outras maravilhas poeticas e em prosa, que tambem as havia dignas de museu. 4 E assim, de campa em campa, visitou Pedro todo o cemitério. Algumas pessoas compunham flores em jarrinhas, outras, desocupa-das como ele, liam os letreiros, examinavam as fotografias e, tirando respeitosamente o chapéu, espreitavam para dentro dos jazigos. Um rapazote, hábil em matemáticas, dizia a um grupo de provincianos a idade «com que tinham morrido todos aqueles cadáveres»... Eles tinham äs vezes um gesto de compaixäo e murmuravam: — Coitadinho! Täo novinho ainda! E quando o rapaz lhes anunciou que «aquele além» morrera com oitenta e tantos anos, disseram, graves e como que aprovando a obra da Natureza: — Sim! Esse já estava «bô»! Já o sol caíra de todo; os passaritos faziam uma enorme chilreada; de Vila Nova continuavam a subir os foguetes e o «tarantan» da filarmónica era agora mais forte e claro. Um barquinho passava no rio com manchas coloridas de vestidos estivais e um comboio entra-va na ponte que se recortava negra e elegante no fundo azul do céu e do rio. Pedro saiu do cemitério e subiu devagar a Rua de S. Vietor, desviando-se dos centos de criancas que, seminuas, surgiam de todos os lados como as minhocas em terra revolvida. Havia-os de todos os feitios e tamanhos: louros, com os cabelos negros. Uns divertiam-se com carros de madeira que faziam um baru-lho medonho na calcada; mais além, num grupo, jogava-se o piäo e, mesmo ao meio da rua, dois pequenos, tranquilamente, faziam uma torre de pedacos de pedra. Os pais vigiavam da porta das tabernas, donde vinha um odor forte de vinho ordinário. E as portas das ilhas continuavam a vomitar criancas, enfarrusca-das, sujas, com beicos onde o ranho pusera sulcos vermelhos. Por toda a parte pairava um vozear confuso, cortado äs vezes por algum grito mais agudo de crianca; logo a mäe, de blusa lavada e saia de pregas, acorria a descompor quem tinha feito berrar «o inocente»; o autor da tragédia ripostava em linguagem näo menos rica de ima-gens brutais; e um momento se ouvia a dišputa furiosa das criaturas que, de mäo na cinta, se meneavam com modos afadistados e profe-riam palavrôes que tornavam o ar pesado. Pedro chegou a casa fatigado do passeio. Estendeu-se logo como-damente na cadeira de bracos, atirou os pés para cima da secretária e, 313 ESTUDOS E OBRAS UTERÁKIAS O CADAVER nesta posicao académica, lendo um livro de versos, passou o tempo até á hora de jantar. E, depois de ter saboreado a comida melhorada do domingo e dos dias de grande gala, novamente se estirou na cadeira e recomecou a leitura das poesias. Mas o corpo fatigado pedia-lhe cama; retinha-o, contudo, o receio de que lhe fizesse mal ir'Se deitar logo depois de comer. Por fim sempře se resolveu. E foi com profundo deleite que se estendeu entre os lencóis de linho muito fresco. Adormeceu quase logo. Mas daí a menos de cinco minutos já estava acordado, nao nítida e claramente acordado, mas num torpor que o nao deixava distinguir bem as formas dos objectos. Em cima da secretária ardia uma lanterna. Nao se lembrava de a ter posto ali nem tinha lantemas no quarto. Quis-se levantar para ver o que era; mas a lanterna desapareceu subitamente, sem que alguém lhe tocasse, e rebrilhou mais adiante, sobre uns telhados que se viam pela janela do quarto. Pedro sentiu cobrir-lhe a pele um suor regelante, enquanto um grande terror o pregava á cama. Venceu-o, levantou-se e comecou á procura do fato, para se vestir. As calcas, porém, nao apareciam em cima da cadeira onde ele as deixara com toda a certeza. Rebuscou pelo quarto todo e, finalmente, foi-as encontrar debaixo da cama; mas, ao contemplá-las mais demoradamente, viu, com espanto, que ti-nham mudado de cor; acendeu um fósforo; a cháma vacilou um momento e logo se estinguiu, deixando mais negra a treva que o rodeava. Enfiou as calcas e lancou pelos ombros um casaco; todo o corpo lhe tremia de frio e de medo. A lanterna reaparecera agora sobre a '■, secretária; Pedro agarrou na bota que ia para calcar e atirou-a na direccao da luz; mas a bota nao avancou, ficou paráda no ar, depois ; caiu pesadamente no soalho. Pedro, espantado com todos aqueles prodígios, lembrou-se das almas do outro mundo, da barriga do tio Amílcar; e um terror tao , grande o invadiu que, com um pé ainda descalco, abriu rapidamente a porta do quarto e se precipitou pela escada abaixo. Vinha com tanta velocidade que se foi esbarrar com a porta da rua, pesadamente chapeada de ferro. Sentiu uma dor aguda na cabeca e desmaiou, com um grande grito. Voltou depressa a si e ouviu no andar de cima passos agitados; quis gritar outra vez, porque sentia correr-lhe da cabeca um liquido pegajoso e quente. Mas nao podia falar nem abrir os olhos para ver o que se passava e, quando tentou levantar-se, os musculos nao lhe obedeceram e continuou prostrado no lajedo. Desciam as escadas duas pessoas e uma disse para a outra: — La ouvir gritos, ouvi, com certeza. — Se calhar, foi sonho. — Qual sonho! Ouvi! Traziam luz, porque Pedro ouviu recomendar: — Poe la a mao diante da vela senao apaga-se. Deram mais uns passos ate que um dos que desciam gritou: — Ca esta! Olha... e o Costa! Chega a luz que ele nao esta bom! Percebeu que o soerguiam com cuidado e lhe encostavam o ouvi' do ao coracao. E, apesar de Pedro o sentir bater muito forte e claro, o homem que o segurava e em quern reconhecera o Miranda do primei-ro andar berrou para o que o acompanhava: — Nao lhe sinto o corafao! O outro agarrou-lhe logo no pulso e Pedro notou que a mao lhe tremia. — Nem o pulso! Quer ver que ele esta morto? Que canudo! Pedro, num esforco violento, conseguira abrir um olho; viu o Miranda, em ceroulas, a tremer como varas verdes; ao lado, o filho segurava um castical. O Miranda gritou: — Vai la acima chamar o Seixas. — O doutor? — Sim, o doutor. Pois quern havia de ser? Entao, ante o pasmo de Pedro, que continuava imovel, o rapazote atirou com o castical, que o pai, num movimento brusco, aparou na ponta do nariz. Apesar do tragico da situacao, Pedro sentiu uma vontade doida de rir; mas a boca, muito rigida, nao fez um movimento. Um vulto branco descia a escada, aos pulinhos, sem pousar os pes nos degraus; e, atras, o filho do Miranda trazia na mao a lanterna que Pedro vira na secretaria e depois nos telhados, como um pirilampo. O doutor Seixas, silenciosamente, comecou a tirar da boca uma lanceta enorme; limpou-a com cuidado a fralda da camisa de dormir ESTUDOS E OBRAS LITERÁRIAS O CADAVER e, com um golpe certeiro, cortou a meio a vela que o pai Miranda conservava equilibrada no nariz. E, voltando-se para Pedro, olhou-o um momento, com atencäo; e logo, encarando o Miranda, disse de leve: — Está morto e bem morto; näo há nada a fazer. Pedro indignou-se; morto e bem morto, ele, que estava vendo nitidamente toda aquela fantástica cena? Quis falar, gritar que näo estava morto; mas a lingua nem sequer buliu, os lábios conservaram--se imóveis e cerrados. Apetecia-lhe dar um pontapé no doutor Sei-xas; e, mirando-lhe gulosamente as canelas esburgadas, reuniu todas as suas forcas para lhe assentar em cheio a única bota que rinba calcada; mas a perna recusou-se a obedecer, apesar das tentativas desesperadas do pobre Pedro. E o doutor, murmurando outra vez que nada havia a fazer, reco-lheu a prodigiosa lanceta e comecou a subir as escadas. Em breve i sua camisa alvejante desapareceu na sombra. Pedro sentiu que o levantavam, o levavam pela escada acima, em charola. A lanterna ia ä frente por seu proprio pé, iluminando o caminho. Nem o Miranda, nem o filho, pareciam admirados com aquela estranha luz. Chegaram ä porta do quarto, que se abriu de per si, e atiraram com o corpo para cima da cama. Despontava a manhä muito baca e triste, a anunciar chuvada forte. O Miranda e o rapaz tinham subido pela janela, num pulo largo, para cima dos telhados. Uma grande prostracäo invadia o corpo de Pedro, que a pouco e pouco se regelava e inteiricava. Só o coracäo parecia a única coisa . viva; como uma boa máquina folgada dava as suas pancadas muito ! certas e a intervalos reguläres. O sangue continuava a correr da cabeca e inundava já todo o quarto. O doutor Seixas, que entrava nesse momento, de fraque -e botas de verniz, descalcou-se rapidamente, puxou as meias e, curva< j do para o soalho, pos-se a enxugar com elas as tábuas cheias de sangue. Depois, aos saltitos umas vezes, outras esvoacando lentamen.' i te pelo quarto, ia espremer as meias ä janela. f Quase sem Pedro dar pela mudanca apareceu em lugar do doutor • um hörnern com um caixäo de chumbo äs costas e uma urnazinha ) discreta debaixo do braco. I mm ■fr- it > i O Miranda reaparecera em cena e ajudava o homem — que Pedro percebeu ser o cangalheiro, apesar de, á primeira vista, lhe parecer o primo Luis que mandara os damascos —, ajudava, pois, o homem a esticar o caixaozito até que atingiu o comprimento do corpo de Pedro. Viu este imediatamente que o iam enterrar, mas nao sentia medo nenhum e tinha mesmo desejos de correr essa aventura. O cangalheiro agarrou Pedro, meteu-o dentro do caixao e ajeitou--Ihe a cabeca na almofada. O Miranda tirou do cesto uns damascos e espalhou-os gravemente por cima do corpo de Pedro, com a mesma seriedade com que disporia flores raras. O doutor Seixas entrou pela janela num dos seus estranhos voos e foi pousar em cima da secretária. Agarrou no tinteiro e, sem mexer os bracos, atirou-o ao Miranda; acertou-lhe num olho, que saltou da orbita, rolou molemente no chao coberto de sangue. O Miranda soltou um berro felino e desapareceu pela janela, enquanto o doutor, saltando da secretária, se lancava sobre o pobre globo ocular e o metia no bolso do colete. Subitamente, Pedro deixou de ver, uma grande escuridáo se fez em volta dele. Percebeu que tinham fechado a tampa do caixao e que estavam a soldar o chumbo, porque ouviu o bufar ardente dos maca-ricos. Sentiu fome e tentou apanhar um dos damascos que tinha perto da boca. Mas a imobilidade continuava, mais imperiosa ainda porque nem conseguira abrir o outro olho. Houve depois um pequeno movimento de balanco, os passos acau-telados de quem desce uma escada debaixo dum grande peso. Mas que ideia fora aquela de, ainda em casa, o metérem dentro de caixao de chumbo? Ouviu uma voz esganicada que dizia: — Coitadinho! Ainda ontem tao bom e já hoje... Um soluco afogou a frase de quem assim o lamentava; e logo uma fala mais grave se ergueu: — Entao, minha senhora! E um momento que todos temos de passar. E quem lancava esta consolacao bruscamente a terminou com um cantar de galo muito repenicado. Uma longa meia hora se passou; só os saltos do carro fúnebre nas pedras da calcada o despertavam, a espacos, da sonoléncia em que ia mergulhado. ESTUDOS E O B R A S L I T E R A R 1 A S De repente pararam; atraves das paredes do caixao Pedro ouviu a voz duma mulherzita que apregoava flores; era, decerto, a mesmn i\ quern ele, no dia anterior, comprara o ramilhete para levar ao tin Amilcar. O tio Amilcar! La ia agora para junto dele e ambos ficariam metidos naquele jazigo tao frio e ermo. Para quem passaria agora a corrente do tio Amilcar? Talvez o doutor Seixas se apoderasse dela ou o Miranda ja aquela hora a tivesse sonegado... Levavam-no agora a mao. Mas nao se ouviam passos na terra batida da alameda. Houve um raspar de grades que se abrem, o choque duma pedra. E Pedro sentiu que o depositavam numa prate-leira e o empurravam para o lado da parede. Novamente ringiram gonzos e novamente uma pedra, caindo so* bre outra, produziu um som baco e apagado. Bonito! AH estava ele metido entre dois caixSes e ainda dentro duma gaveta fechada de todos os lados por bom e rijo marmore. Mas nao se ralava muito com a sua sorte e nao se assustou quando sentiu que, da prateleira de baixo, batiam pancadinhas com os nos dos dedos. — Deve ser o tio Amilcar — pensou Pedro. Mas nao lhe podia responder porque a lingua continuava emperrada. Ouviu-se um ranger de ossos e outra vez as pancadas soaram, agora mais claras e espacadas. Depois uma voz surdiu da treva: — Es tu, Pedrinho? Anda, patiforio! Estas metido em boa. Era a hedionda fala do tio Amilcar; seguiu-se um risinho de es-carnio. — Entao o menino cuidava que o jazigo servia so para vir comer damascos em cima do degrau? Nao, amiguinho, nao. Tambem serve para meter ca a carcacinha, sobrinho e amigo. Houve outra casquinada trocista. Pedro, furioso com aquela zombaria, esforcava-se por falar. Tinha um desejo louco de mandar o tio a certo sitio. Mas o diabo da lingua, nao havia maneira de se por a funcionar. O tio Amilcar calara-se e os seus ossos remexeram-se com som liigubre. Pedro sentiu que todo o corpo se lhe ia derretendo numa banha cheia de viscosidade. Uma baba nojenta saia-lhe da boca e do nariz escorria tambem uma espuma pegajosa. 318 _ _ 0_ C A D Á V BR O coracäo continuava a palpitar no peito que Pedro sentia desfazer-se a pouco e pouco. E no pé direito já quase destruido um calo doia-lhe furiosamente. A vozinha escarnecedora tornou de baixo: — Sim, senhor; boa partida! E que é feito da correntezinha que eu lhe deixei, seu pändegoľ E que tal lhe souberam os damascozinhos, canalha vil ľ Era de mais, Pedro j á näo podia resistir e, se se näo mexesse, rebentava, com toda a certeza. Fez um movimento desesperado em que pôs toda a sua energia. Ao mesmo tempo uma campainha come-cou a retinir furiosamente. E parece que desperto pelo som fino e vibrante, o corpo cedeu ä vontade de Pedro e um tremendo pontapé arrombou os dois caixôes. Da outra gaveta saiu um grito de horror do tio Amilcar. Pedro sentiu que o caixäo se voltava, se despenhava em cima do tio Amilcar, que soltou outro berro; depois foi uma queda doida por um poco muito estreito, uma queda vertiginosa que sacudia as entranhas. Houve um choque violento e brusco. E, sob o retinir constante do despertador, Pedro acordou, enchar-cado em suor, com a cama toda desfeita. Que famoso pesadelo! Era no que davam aqueles sonos logo depois de comer... 319