Nascido em 1986, Guilherme Trindade Filipe passou a sua infäncia em Macau, tornando-se rapidamente influenciado näo só pelo Oriente, como i também pelos produtos televisivos e cinematográficos do mundo falante do | Inglés. Alem do audiovisual, tornou interesse pela banda desenhada, jogos de fantasia e ficcäo cientlfica e, talvez tardiamente, pela literatura, náo só I fantástica, como também clássica. 0 gosto pela escrita resultou em quatro 1 prémios literários (dois anos consecutivos, l2 lugar no concurso literário de í contos da Escola José Gomes Ferreira; um prémio a nível nacionál da Porto ). Editora, gragas a um conto de Natal; e um outro da Escola Superior de Com \ nicacäo Social, também por um conto). O gosto pela escrita criativa tambérr o levou ä mudanga de curso, de Jornalismo para Audiovisual e Multimédia, tendo o interesse pelo cinema e pela televisáo, em particular por guionismo > realizagäo, resultado (trabalhando em conjunto com trés colegas ) no pro-grama humorístico de sketches Segue-se o Gratuito, exibido irregularmente no espago E2, na RTP2, entre outros projectos de ficgäo, que podem ser encontrados no blog http://sexogratuito.blogspot.com/. Tentáculos é a primeira tentativa de Guilherme no género literário de Terror e foi uma forma de exorcizar o seu proprio medo de cefalópodes, que o acom-panha desde que a sua primeira namorada foi comida por uma lula gigante. Guilherme TRINDADE FILIPE "Lulas?!", exclamou o Dr. Brito, enquanto limpava as lentes dos óculos. Francisco náo conseguia deixar de pensar no Dr. Brito como uma grotesca caricatura de Sigmund Freud, o que era irónico, já que era o seu psicólogo. "Deixe que lhe diga, náo é uma fobia muito comum, Sr. Antunes", comple-tou. "Mas diga lá, entáo, o que as lulas tém de táo aterrador." O ar do Dr. Brito náo era de compaixáo, mas de enfado. Ele era um público exigente á espera de ser entretido pelo drama da vida de Francisco, mas com poucas esperancas de o ser. Francisco comegou, algo intimidado pela óbvia indiferenca do seu psicólogo. Preferiu olhar pela janela enquanto falava com ele. Estava a chover e a trovejar lá fora, como nos seus sonhos, mas sempře era melhor que olhar para o homem mascarado de Sigmund Freud no outro lado da sala, picando o ponto na sua poltrona, táo obviamente mais conforrável que o reles divá duro relegado aos clientes — perdáo, pacientes. 121 Guilherme TRINDADE FILIPE "Polvos, senhor doutor, näo lulas. Quer dizer... lulas também, näo sei cefalópodes em geral." "Até chocos?", inquiriu o Dr. Brito, tentando o seu melřior para parecei sério, mas deixando escapar um esgar de gozo. Francisco estava já visivelmen-te abalado, custava-lhe pensar naqueles tentáculos viscosos, naqueles olhos amarelos de pupilas siamesas, na bulbosidade das cabecas moles, tudo isso lhe fazia asco e medo, e já os primeiros suores frios percorriam as suas costas. Era compreensível, entáo, devido ao legítimo pánico provocado por estas criatu-ras marinhas, que Francisco respondesse mal ao tom jocoso do seu suposto curandeiro. "Desculpe lá, Doutor, mas estou a pagar-lhe trezentos euros ä hora, podia ao menos fingir algum interesse no que estou a dizer." Imediatamente, o Dr. Brito tornou um ar sério. Mas náo pareceu que fosse pedir desculpa. "Francisco, só porque me paga para o ouvir, náo me sinto, de maneira nenhu-ma, obrigado a achá-lo interessante. Há linhas telefónicas para isso, ou entáo arranje uma namorada. A minha profissáo é tratá-lo. Por isso, responda ás minhas perguntas, já que está no seu interesse fazé-lo. A sua saída infeliz foi útil, no entanto. Revela já um sintoma: paranoia.", e Dr. Brito escrevinhou no seu bloco de notas, ao lado dos desenhos que fazia enquanto Francisco falava. / "Portanto, até chocos?" "Sim, até chocos", respondeu Francisco, derrotado. Continuou, com algum custo. "Eu... há qualquer coisa nos tentáculos que me... inquieta. A maneira como eles se mexem... póe-me fisicamente doente." "Mas tern nojo ou medo, afinal?" "Medo!", Francisco levantou a voz, por momentos, e depois corrigiu-se. "Pavor... polvos säo... predadores... eu vi uma vez um documentário em que eles conseguiam mudar de cor e esconder-se mesmo ä frente dos nossos olhos...", e, quase como reflexo paranóico, os olhos de Francisco percorreram o quartó á procura de chocos camuflados. "E acha que eles podem estar em qualquer lado, é? Prontos para o atacar?" "Náo é isso. Eu sei que náo vai aparecer nenhum polvo, mas... e se aparecer?" "Mas aparecer onde? Voce vive no meio da cidade e o rio é demasiado po- 122 Tenia luído para haver lá seja o que for." "Eu tive sonhos onde... estou...", á medida que a frase de Francisco conti-nuava, o sangue subia-lhe á cara, acalorando-o. "Na casa de banho... e sou... erm... atacado." Desta vez, o psicólogo soitou um nítido riso abafado, para grande frustra-cáo do já envergonhado Francisco. "Portanto... na retrete?", Dr. Brito tentou esconder o quanto achava ridícula a aflicáo do seu paciente, procurando con-tinuar a sessáo com o ar mais profissional que conseguia emular. "Sim... mas náo é só aí... eu náo consigo ir á praia, tenho medo de passear á beira-rio... tenho medo de passar pela seccáo de peixaria do supermercado." "Mas, entende que nenhum choco, muito menos um choco morto, o vai atacar? Racionalmente, compreende isto, certo?" "Claro que sim... mas... náo é por isso que consigo deixar de pensar nisso. Há noites em que... simplesmente, fico acordado, porque tenho medo de... morrer." "Acha que um choco vai estrangulá-lo, ou...?" "Náo... de ver a criatura á minha frente. De ter um ataque cardíaco, só disso." O bom doutor ainda tentou pensar numa resposta, mas decidiu sahar para a parte de análise e tratamento. "Bern, Francisco, se sente que a sua fobia o impede de continuar a sua vida normalmente..." "Impede, doutor. Foi por isso que cá vim. Eu... hoje no emprego. Eu sou um bancário, nada relacionado com cefalópodes, mas... estava a almocar no refeitório e era arroz de polvo o almoco. Eu nem tinha reparado na comida até estar com o tabuleiro mesmo á frente e serviram-me uma dose enorme... e eu Juro que vi os tentáculos a sair lentamente do arroz, rastejando para fora, pu-xando-se para fora... babando aquela tinta preta. Fiquei paralisado de medo, sem saber o que fazer, era como se eu fosse o único a ver aquilo, ninguém á volta reparava... e do nada, um tentáculo saltou-me para a máo, como se me fosse agarrar, e eu... entrei em pánico." "Quando diz que entrou em pánico..." "Eu... gritei e desmaiei e quando acordei... tinham-me levado para o ga- -. 123 Guiltierme TRiNDADE FILIPE —!' binete do meu chefe. E ele obrigou-me a ca vir." "Bem, tenho aqui o seu historial clfnico, que irei estudar antes da proxin consulta. Digamos, hoje a oito, mesma hora?", Dr. Brito apressou-se a maraui a data na sua agenda, näo esperando pela resposta de Francisco. "Entretant quero que faca uma coisa primeiro. Um trabalho de casa. Quero que va a ui u mercado, daqueles antigos, com o peixe vivo exposto a frente de toda a gent 5 Quero que compre um choco, ou uma lula, ou um polvo. Pequenino. Vivo. 1 quero que o mate, da maneira que achar mais apropriada. E o coma." J Francisco ficou imediatamente aterrorizado com a ideia. "Mas eu nem vou! conseguir chegar perto, näo me pode pedir isso, eu... vai-me matar.", concluiu em torn premonitörio, acompanhado por um troväo com um sentido de / ming digno de um filme de Bela Lugosi. Ainda estava a chover lä fora. Corr § nos sonhos. Os sonhos em que eles chamavam por ele. Com os seus tentaculi I purpuras deslizando pela sua pele, largando o seu muco translücido por onc.| passavam, tentäculos de leviatä vindos do nada. | "Francisco, ouca.", a voz do Dr. Brito parecia um calmante sonoro, um Xanax monötono que voava da boca treinada do psicölogo para os ouvidos ii | requietos de Francisco, "Se quiser, peco a um colega meu, psiquiatra, para lh j receitar uns cornprimidos,para a ansiedade. Mas tem de fazer isto. O seu med<) | e profundamente irracional, motivado sabe-se lä por que experiencia trauma S tica que tenha tido, talvez qualquer coisa a ver com a sua mäe, mas antes d j chegarmos lä, precisa de criar defesas contra o objecto do seu medo.' O actn i simbolico da morte e do consumo do animal vai criar em si um sentimento d | conquista. Uma fortaleza de onde atacar o seu medo. Um bom conselho qu s tenho para si e... oh! Veja as horas, parece que acabou a sua sessäo, ate para a 3 semana!" Francisco fbi rapidamente expulso do consultorio, sem saber o que dizei j apenas pensando na estranha imagem do Dr. Brito a olhar para o pulso sem estar a usai relögio, enquanto relembrava 0 seu paciente que a sessäo chegara . ao fim. O caminho para casa foi longo e em nada reconfortante. Entretanto, anoi- , tecera, apesar de nem serem seis da tarde, estävamos no pico do Inverno. Hou- Tentäculos ye greve geral de transportes e Francisco fora forcado a andar para casa, ja que näo tinha carro — tinha medo de ter um acidente por ver uma lula a passar na rua. Durante o caminho, foi evitando todas a pocas e sarjetas que via... podia jurar que, ho canto do olho, tinha visto, um dia, um tentäculo rosado a escapar-se por entre as grades do esgoto. Chegou a casa e teve mais uma noite sem sono. Tinha uma tarefa herculea ä frente. Ele mal podia olhar para os bizarros animais marinhos, quanto mais estar perto de um o tempo suficiente para o matar. Näo conseguia deixar de pensar naquelas ventosas pegando-se ä sua pele, desfazendo-a, rasgando-a ä ■ medida que se soltavam e puxavam mais e mais da sua carne, ate aos bicos que tinham no centro dos tentäculos e serviam de boca. Francisco estava a tremer e näo conseguia parar. Podia jurar que estava qualquer coisa aträs de si e vira-va-se para träs, como se para apanhar a criatura, mas nada aparecia. Apenas as paredes brancas e lisas de sua casa. Francisco tinha-as repintado para näo haver rachas de onde pudesse imaginär que surgissem tentäculos. Ele sabia que os polvos podiam passar pela frecha mais mfima, com os corpos moles deles. Havia outra mudanca na casa que a fobia tinha provocado. Uma divisäo completamente vazia. So com um banco no meio. E uma porta. E nada podia entrar la, sem ele ver. A näo ser que irrompesse pelas paredes. Ou pelo tecto. Ou pelo chäo.,Por isso e que näo podia ficar no quarto. Poderia ser apanhado desprevenido. Entäo, sentou-se no banco, que era alto, como aqueles que hä nos bares, e ficou sem tocar com os pes no chäo, e passou as duas horas que se seguiram a perscrutar a sala, em perfeito silencio. Ate adormecer de exaustäo, sentado rib banco, sem ter os pes a tocar no chäo. Chovia. Torrencialmente. Como nos sonhos. Francisco sabia que isto era um sonho. Estava no pintano ao qua! voltava tantas vezes. Entäo, e que teve mesmo medo. Porque sabia que aqui eles podiam apanhä-lo e ninguem saberia de nada. Sentiu algo frio e viscoso a tocar-lhe no ombro. Eles tinham chegado. De imediato, dezenas de tentäculos, puro musculo, puxaram-no para baixo, para dentro da ägua, sussurrando horrores numa lingua alienigena. Uma pan-cada forte. Francisco acordou e viu que tinha caido do banco. Uma dor de cabeca 124 125 h Guilherme TRINDADE FILIPE assim náo era uma boa maneira de acordar. Francisco levantou-se e arraston -se por casa até ao chuveiro. Tomava sempře duche, sempre longe do ralo tinha a certeza que os duches eram rápidos. Saindo do banho, confrontou-f com o espelho. O mesmo ar pálido e adoentado de sempre. O mesmo cabe] preto, curto, agora molhado. A mesma falta de musculo e corpo digno de m refugiado esfomeado. Nada melhor que tapar isto tudo. Passou-lhe pela cabe<; a ideia de uma burka masculina, mas, infelizmente, quern tapa a cara é vist com alguma desconfianca na nossa sociedade. E estava pronto para sair, mas lembrou-se que náo tinha de ir para u emprego naquele dia. Entáo, paralisou a frente da porta, de fato e gravata. S saisse agora, só tinha uma coisa para fazer. Ir ao mercado e matar uma lula. "Olh'o polvinho fresco, só sete euros o quilo!" Os pregóes das peixeiras saltavam do mar de burburinho do mercado, ape nas para se voJtar a afogar no ruído, ressurgindo outro brado, do outro l;ul<> como um concerto cacofonico de ecos dissonantes. Francisco náo se sem bem, definitivamente. Nem mesmo o baruJho da feira conseguia distra/-Jo do tambor de guerra em que se tornara o seu coracáo. Ele via-os dentro dos set caixotes e expostos vivos sobre o gelo picado, remexendo-se desesperadameni procurando as águas familiares a que nunca voltariam. Via-os a serem cortados as postas, vivos, uns á frente dos outros, sem gemer, sem gritar, apenas remi xendo-se, os tentáculos retesando-se até caírem moles e sem vida. Teria per deles, se náo tivesse tanto medo. Aproximou-se lentamente das bancas da peixaria e enderecou a senhora r voz trovejante, interrompendo o seu pregáo. A mulher era daquelas mulhen que náo consideramos mulheres, que sáo uns ogrezitos de verrugas e bucu. bastante amigas do vernáculo, que nunca entrariam na fantasia de ninguén embora seja certo que algures na Internet haja um site dedicado unicamente satisfazer quem tern fetiches por peixeiras. Nada contra a senhora, mas as vezi as pessoas sáo feias e é preciso frisá-lo, para que náo restem dúvidas. "Entáo diga lá, menino, o que é que vai ser? Hoje, temos perca, polvt peixe-espada, dourada, postas de pescada...", a mulher continuou a enumer..r a sua litania de fauna aquática por entre a sua' bocarra desdentada, mas Fran- 126 i cisco apenas tentava conter a sua bexiga e os seus suores frios. Estava táo perto das criaturas. Tinha a certeza que elas estavam a olhá-lo, com os seus olhos amarelados, doentios, maliciosos. Elas odiavam-no com um ódio táo animal, táo irracional como o medo que ele tinha. "Era... uma lula. A mais pequena que tiver.", disse Francisco, tapando o nariz para afastar o cheiro. O suor escapara-se para os seus olhos, que ardiam levemente e tremiam. Batia o pé nervosamente, mantendo um olho na pei-xeira, outro no polvo monstruoso que abria caminho á sua direita, por entre as tainhas e as percas, com os seus tentáculos viscosos, pingando tinta preta ä medida que avancava. "Náo admira que esteja táo magrinho!" A peixeira procurou no tanque a mais miserável e mediocre aná, por entre as lulas que lá estavam. Surgiu-lhe, atada ä mäo com os seus tentáculos como uma crianca pregada ä saia da máe, a lula mais ridicula que alguma vez surgira ä face da terra, um ser táo fraco e debil que náo teria sobrevivido nunca á vida nos grandes mares e já teria tido a monumental sorte de ter sobrevivido a ser canibalizado pelos seus irmáos enquanto infante. Esta era, sem dúvida, a lula mais patética alguma vez vista pelo Hörnern. Mesmo assim, era um horror lovecraftiano aos olhos de Francisco, uma aberracäo Carnivora, vil, sedenta do seu sangue. "Quer como? Äs postas?" "Sim, por favor. Mate-me essa aberracäo", pen-sou Francisco. Mas resistiu. "Náo, é para levar para casa. Viva." "Há animais de estimacáo melhores, amigo!", disse a peixeira com um ar de gozo, e-a lulinha foi directamente para um saquinho transparente cheio de água e lá ficou a pairar- Um nó e estava selado. Com algum asco, Francisco pegou no saco e entregou uma nota de dez ä peixeira, sem esperar pelo troco. Aquele polvo praticamente lambia os beicos só de olhar para ele. A lula olhava-o inocuamente através do saco de plástico, agora pousado sobre o balcáo da sua cozinha. Sentado, do outro lado, erguendo um facalháo de talhante, estava Francisco, com medo sequer de se aproximar. De vez em quando, arriscava-se, saía da cadeira, apenas para se voltar a sentar, acocorado contra a mesma. 127 Guilherme TRINDADE FILIPE Abriu uma torneira e deixou a água correr para dentro de uma panela. O lume já estava a arder e, assim que pós o recipiente sobre o bico aceso do lo--' gáo, imaginou o sofrimento medieval que iria inřligir sobre a lulinha. Viu as priméiras bolhas a surgir, antes de toda a panela irromper num ferver agressho e homicida. Alula olhava-o, medricas, talvez sabendo o que a esperava. Com grossas Ju-vas amarelas de cozinha, Francisco pegou no saco, colocando-o sobre a panela da mořte — ou, pelo menos, assim pareceria á lulinha, que náo teria mais do que um dedo de comprimento, sem contar com os tentáculos. A lula comecou a esbracejar, ou a estentacular, mais precisamente, á me-dida que ia sendo aproximada da água fervente. Francisco comecou a abnr o saco, esperando que a lula caísse, mas, assim que se soltou, pregou-se ao seu braco . Pánico. Francisco gritou, sentindo as ventosas a agarrarem-se com uma foi-ca incrível, como se tivessem atado um nó no seu membro. Esbracejou, mas ,só se cansou. A lula, quanto mais se assustava, com mais forca se agarrava. Aind.i pensou em puxá-la com a máo que tinha livre, mas só a ideia de a tocar revcl-tou-o. Entáo, em desespero, fez a única coisa que pareceu sensata na altura. Francisco espetou o braco na água a ferver, com um ar maníaco de triunf i, rapidamente substituído por um ar de terror assim que os nervos o informa-ram que o seu braco estava a ser cozido. O seu uivo de dor percorreu o andar inteiro. Arrancou o braco da panela, atirando-se contra a parede, mas a lul.i ainda estava presa. Agitou o braco até que ela foi atirada para fora da cozinh.i e, para seu terror completo, para dentro da casa de banho. Correu, para ver se impedia alguma tragédia, mas era tarde demais. Ui rasto viscoso náo deixava dúvidas. A lula tinha escapado pela retrete. A solucáo era simples. A partir de agora, Francisco tinha sempře de sail de casa para fazer as suas necessidades. A retrete tinha sido fechada permanentí mentě, pregada a tábuas de madeira. O Dr. Brito aproveitava muito calmamente o intervalo entre pacientes para se actualizar com as vidas das estrelas, quando foi interrompido pelo cacarejar da sua secretária, "Vocé náo pode entrar aí sem'consulta!", completado por ui 128 Guilherme TRINDADE FILIPE estrondoso irromper pelo seu escritório adentro. "Francisco, náo pode entrar sem consulta.", disse, calmamente, virando mais uma página de imprensa cor-de-rosa. Ao seu lado, tinha uma taca áí. massa pronta-a-comer, da qual se servia de vez em quando com pauzinhós de plástico. "Eles odeiam-me! Por que é que me odeiam?!", gritou Francisco, tentando o mais possível náo parecer insano. Com o menor sucesso possivel, diga-se. "Estive a ver os seus ficheiros.", continuou o Dr. Brito no seu tom calmo e hipnótico, "Náo me tinha dito que esta náo era primeira vez que visitava urn psicólogo. Neste caso, um psiquiatra. Tinha oito anos e a sua mäe, eu sabia quc tinha a ver com a sua máe, queria curá-lo da sua obsessáo por... cefalópodes. Parece que ela achava que o Francisco gostava demasiado de chocos. O... "tra-tamento" parece-me algo excessivo, no entanto. Criaram-lhe propositadameri-te urna fóbia a cefalópodes, usando hipnose e... bem... certos medicamentós que já náo sáo permitidos." "Mas eu náo me lembro de nada disso... eu gostava de polvos?" "Amava-os, segundo uma entrevista sua. Náo me parece muito saudável .. é normal que náo se lembre, foi tudo recalcado, faz parte do processo. Mas é reversível. É uma questáo de voltar a associar os ditos animais ás emocöi-s positivas que lhe criaram a obsessáo, e o medo artificialmente criado... desa-ť, parecerá." "É só isso?" "É só isso. É claro que é um processo demorado, seráo precisos meses, uil vez anos, até estar perfeitamente. Dr. Brito, que tanto gostava do som da sua voz, ficou quase insultado^ quando viu Francisco irromper porta fora, táo deseducadamente como en-trara. Mas um ar de preocupacáo, genuíno e inesperado, surgiu nas feic< ■ .:, freudianas do bom doutor. "... curado.", completou, finalmente. ^ Francisco náo ouvia a maré há anos. E era táo terrível como se lembrava. Trovôes e ondas a despenhar contra penhascos e rochas, que pareciam frágeis;3^ naquele mar revolto. Mas já nem sabia se as memórias éram dele. E, provavel---mente, nem havia polvos ali, no mar. Mas ele estava lá, pronto para enfremá- ■ ^ ■ H Tentá^ -los a todos. Aceitá-los. Siléncio. Mas náo o siléncio da natureza, pois as ondas trovejavam e as nuvens colidiam ainda umas com as outras furiosamente, cuspindo raios. Siléncio da mente. De quem está prestes a saltar para o precipício e ainda tem tempo de voltar a atrás. Comecou a sentir o frio, pavoroso e familiar, gosmento, a percorrer-lhe a perná direita acima. Mucosa a mucosa, pegando e despegando, rastejando. Um calafrio percorreu-lhe o corpo inteiro a partir da perná. Deu um passo em frente, em direccäo ao mar. Da areia, surgiu lentamente outro tentáculo, igualmente monstruoso. Francisco cerrou os dentes e avancou. Já conseguia ver um mar de tentáculos, escondido por entre as águas. E continuou, pondo um pé dentro da água gelada. Comecou a ouvir um sussurro espectral de um coro nascido de abismos marítimos. Táo aterrador, táo familiar. "Tivemos saudades, Francisco. Bem-vindo de volta." Ele lembrou-se de cada palavra alienígena que antes ouvira. E ä medida que entrava na água, Francisco abandonou o seu medo em terra, deixando-se puxar pelos tentáculos que lhe envolviam os bracos. E enquanto os olhos desa-pareciam na água turva e escura, um pequeno sorriso subaquático escondia-se do mundo terrestre para sempre. Passado minuto e meio, Francisco deixou de conseguir respirar e .instinti-vamente, tentou voltar ä superfície, abrindo a boca. Imediatamente, dois tentáculos irromperam-lhe boca adentro, forcando-se para dentro dele, levando a água a entrar-lhe pelos pulmóes... e á medida que todo o seu corpo ia sen do envolvido por um casulo de tentáculos, Francisco abandonou tudo o resto e deixou-se ir... ao fundd. Uma boca colossal cantava uma cancäo bela e hipnó-tica de que ele tinha tantas saudades. "Dr. Brito?", perguntou o Agente Morgado, entrando pelo consultório a dentro. Era um polícia á antiga, de barba e panca e farda. "O proprio." "Quer confirmar que tinha um paciente de nome...?", o Agente Morgado procurou o nome pelos papéis, apesar de saber perfeitamente qual era: " Francisco Antunes?" 130 131 Guilherme TRINDADE FILIPE "Sim... aconteceu-lhe alguma coisa?", perguntou o Dr. Brito, com um ar mais culpado do que na realidade era. Suores frios percorriam-lhe as costas poi dentro da sua cara camisa de seda, ä medida que o seu pé batia nervosamentx no cháo. "O Sr. Antunes foi encontrado afogado ontem, por volta das sete da tard<. Sabe se o seu comportamento, nos Ultimos tempos, era errático, suicida...?". perguntou o Agente Morgado, numa daquelas perguntas que náo sáo pergun-tas, mas frases que se espera que o interlocutor complete. Entáo, Dr. Brito tomou um dos comprimidos do seu colega psiquiatra. A sua fobia eram processos judiciais por negligéncia. 132