U -A. Osório de Vasconcelos 147 a torre derrocada As ruinas derramam näo sei que suavíssima melan-colia, em quern as contempla, por mais prosaico e amante que sej a das coisas hodiernas. O passado, esse astro täo eheio de belezas e de en-cantos, que desaparece a pouco e pouco nas sombras do tempo, exercita em todos uma atraccäo irresistível, amora vel, uma simpatia porventura inexplicável, mas täo forte, täo robusta, que näo há fugir-lhe. O passado, é o templo meio derrocado das saudades e das ilusôes, e quem há aí que, lembrando-se das velhas lendas, com que o embalaram, e dos contos em que a me-ninice se lhe foi, quern há aí, que, avistando esse templo por entre o negrume da vlda real, näo ajoelhe, e näo sinta no peito um vórtioe encapelado de sentimento puris-simo, a desentranhar-se em jorros de poesia nativa, es-pontänea e singela, como os quebros dos pássaros ao des-pedirem-se do sol, que doura as cumeadas, dando-lhes o verdadeiro ósculo de amor. Asslm o peregrino maometano voltando da cldade santa, da Meca aventurosa, se por acaso cruzando já a orla do deserto, e descansando ä sombra da palmeira, volve o rosto bronzeado pelo sol e aoerta de contemplar ainda a sagrada mesquita, ajoelha, ergue os olhos ao céu, beija o chäo trés vezes, e deixa cair na aTeia abrasadora uma lágrima saudosa. 'O passado é um túmulo no grande cemitério das idades, e as ruínas säo o epitafio expressivo e plangente que f ala aos olhos do corpo e da alma, epitaf io que na sua nudez austera e aflitiva traduz com máglca verdade o abandono, a solidäo, o amargor, o vilipéndio, o desprezo, Edicóes Afrodite — CONTO FANTÁSTICO PORTUGUĚS 148 A. Osório de Vasconcelos-. e milhares de sentimentos infinitamente vários, mas que-todos eortam fundo no coragáo. No ermo, quando a lua arroja no espaco ondas de luz melancólica e frouxa, quando a brisa de agosto parece solucar angustiosa nas fendas das pedras, as ruínas sáo mais do que um epitáfio, sáo um altar sacrossanto e rude, aonde o poeta, esse sacerdote de tudo o que foi grande no passado, esse evangelista de tudo o que há-de ser beto no futuro, esse druida inspirado e impoluto de todos os séeulos, vai sacrificar ás recordacoes e á saudade. Se o leitor se compraz com a solidáo, se as ruínas lhe lancam na alma delícias inefáveis e voluptuosidades aus-teras, venha comigo, que ouvirá uma lenda dos priscos tempos, dos tempos cavalheirosos, táo diversos dos que vamos atravessando. II Ä beira-mar, sobre um rochedo empinado que se ergue a prumo a grande altuTa, alevanta-se uma torre em ruínas, sentinela muda e impassível das Idades, es-finge oceänlca que a" mäo implacáyel do tempo veio sur-preender na sua contemplacäo muda e passiva. A torre vai-se derrocando e fendendo a pouco e pouco; cada dia cai-lhe urna pedra dos membros aluídos com o embate das ondas, crestados com o fogo do raio. Dentro em pouco a obra do homem desaparece, e as pedras voltaräo para o mar de onde saíram. Só ficará de pé o rochedo, enquanto as ondas o näo levarem tam-bém aos abismos do oceano. Os Pescadores costumam acender no alto da torre uma luz tibia e frouxa, que lhes serve de farol durante as suas excursôes costeiras. Aquela luz parece o olho amortecido do velho gigante, que debalde se debruca ä beira das profundezas para interrogar os mistérios, que i i ■n 1i í H 4 4 í- .'A. Osório de Vasconcelos já näo pode ver. De noite, por entre o gemer raivoso das ondas, que se contorcem em ánsias de voluptuosidade infernal, se a atmosféra negra e plúmbea se desentranha em raios, que fendem as águas túrbidas e alumiam com a sua luz fatídica aquele quadro medonho', aquela luta •destruidora, e se o vento fustiga com lufadas gélidas o mar e os rochedos, parece que a torre no meio daquele hórrido concerto agita-se e de cada gargalhada que solta, cai-lhe urna pedra no abismo. A paisagem em volta é selvática e solitária. É rara a vegetacáo; apenas alguns zimbros raquíticos e enfezados se erguem no meio das areias movedicas. Parece um sítio maldito, e se näo foram as ruínas da velha torre, que indicam que houve ali em tempos vida e movimento, ninguém o pudera acreditar. Ao ver aquela desolagäo täo nua e täo terrível, sen-te-se um terror instintivo e natural, e os olhos, contem-plando aquele espectáculo, cerram-se involuntariamente, arreceando-se de alguma visäo medonha. E a torre como que nos atrai, e inclinando para o abismo os rijos membros de granito, parece acenar-nos mesmo de longe, dizendo-nos que dentro em pouco, se-pulta j á no oceano, näo mais há-de testemunhar que naquela solidäo houve outrora um romance de amor. Que importa que as velhas ruínas se afundem no mar, se a tradicäo nos conta esse romance legendário? Ougamos os Pescadores, que vivem mais ä terra, em sítio menos ermo e selvático; oucamos os Pescadores, que ao passarem por defronte da torre, fazem o sinal da cruz, e igam-as velas em perigo de darem ä costa; oucamos os rudes habitantes da praia, nas longas noites de inverno, quando o mar ruge fero e ameacador, e vem acoitar a penedia com a sua baba espumosa, como gigante que acorda e cospe raivoso nas guardas do leito informe e branco. ídicôes Afrodite CONTO FANTÁSTICO P O R T U G U Ě S í 150 A. Osórro de Vasconceloa- III Era no tempo em que os antigos Portugueses, os leôes do mar, como Ines chamou Victor Hugo, desfraldavam as santas quinas em todas as regiöes do mundo, e espalhavam o renomé portugués pelas bocas dos seus canhöes. O espírito aventureiro arrastava os Portugueses de-entäo; cada ano saíam dos portos de Portugal grandes renques de galeôes, armadas invencíveis, que subjugavam os raj ás da Asia, venciam os selvagens da America, des-truíam os terriveis malaios, talavam o Japäo, conquis-tavam a Africa, e operavam gentilezas e feitos, que igua-laram as maiores faganhas de todas as idades. Nesses tempos heróicos Portugal foi um anäo que deu o ser a gigantes. Mergulhava o sol no oceano, tingindo com rubidas cores a orla extrema do horizonte. As vagas agitavam-se convulsas e como que solucavam abragando no tumido-e espumoso regago, os rochedos imóveis, como o destino. No alto da torre, quase en volta pelo nevoeiro alva-cento, que se alevantava do mar em largos noveloes, estava urna donzela, linda e cismadora qual ondina gentil. A brisa crepuscular impregnada das acres f ragráncias do oceano vinha beijar-lhe as faces, que urn raio do sol, acaso mais voluptuoso, ainda acariciava, cercando-as de uma aureola luminosa. Quem visse a donzela äquela hora de suprema poesia, em que o peito arquejante se dilata na amplidäo, des-prendendo-se das angústias e dos cuidados terrenos; quem a visse assim ä beira-mar, com um pé no abismo, salpicada pelas ondas, que dobravam o colo niveo, desa-tando-se depois em alvas catadupas e flocos de neve, como que em sinal de adoracäo e de amor; quem a visse Edi?5es Afrodite — CONTO FANTÁST1CO PORTUGUESE -t A. Osório de Vasconoelos 151 quase suspensa no espaco, sustentada pelo vento que lhe gemia em volta, qual sultäo namorado, tufando-lhe as Candidas vestes, cuidara contemplar a feiticeira oceänica, que vivendo em liquido alcagar no seio das ondas, subira äs regiöes superiores para admirar os seus vastos domi-nios. Mas näo. A donzela vivia na torre; lá nascera, lá se criara e crescera, e lá lhe correu a infäncia desculdosa no regago da mäe, que via cada ano medrar a filha em encantos e virtudes. A velha torre pertencia havia muito a urna nobre família que ali assentara os lares, por doacäo regia, com o encargo de vigiar e defender as costas, resguardando-as das invasöes dos piratas do mar. Estava a donzela em contemplagäo extática no alto da torre, quando viu ao longe, mas já distinto, o vulto de um galeäo, que se dirigia ao porto. — Minha mäe, ó minha mäe, — gritou a donzela er-guendo-se e descendo a íngreme escadaria do observa-tório aéreo. — ó minha mäe, näo vě? näo vé o galeäo St.° António? Lá vem D. Álvaro, o meu querido guerreiro, que partindo-se para as fndias, me roubou o coragäo no seu ultimo adeus? Vamos, vamos, minha mäe. Lá vem D. Álvaro, o meu querido guerreiro. — Que dizes aí, filha da minha alma? A tais desoras quer eis ir ao porto? — Vamos, vamos minha mäe, vamos em busca do meu eoragäo que D. Álvaro me levou. Quem me dera ser feiticeira para ir por ares e ventos poisar nos mastros do galeäo, a contemplar o meu amante! Quem me dera ser sereia -para acompanhar o sulco do navio, que leva quem me levou o eoragäo. Vamos, vamos, minha mäe! lá vem D. Álvaro, o meu querido guerreiro. — Ai! filha da minha alma. Vai fria a norte, o vento geme triste nas ondas, e as gaivotas batendo os ares com as asas, soltam gritos de desespero e de angústia. Dan- EdiQÖes Afrodite — CONTO FANTAST1CO PORTUGUĚS 152 A. Osório de Vasconcelos cam feiticeiras nas devesas, e as sereias vém ä flor da água a espremer os cabelos cor de limo, cegando os marinheiros com o brilho dos olhos. A tais desoras, minha filha, queres ir ao porto? — Ah! minha mäe, minha mäe, vou-me em tausca do meu coragäo, que D. Álvaro me levou. Que importa que o vento gema? Nos bracos do meu amante, que valem vaticínios de desgraga? Se a nořte val fria, tenho no peito o calor da febre, que me escalda. As feiticeiras háo-de sorrir, e as sereias háo-de invejar-me, que D. Álvaro é meu amante. Vamos, vamos, minha mäe, lá vem D. Álvaro, o meu querido guerreiro. — Amanhä, minha filha, quando o sol raiar nas cam-pinas e beijar as cristas das ondas, irás buscar o teu amante. Quem esperou anos, espera uma nořte, que insó-nias de amor depressa se passam. Ai! quem nas pudera pass ar ainda! — Ah! minha mäe, minha mäe, insónias de amor sáo tormentos do inferno. Vamos, vamos, lá vem D. Álvaro o meu querido guerreiro. — Sej a feita a tua vontade, filha. Parte, vai, e traz nos bragos gentis O' amante, que te levou o coragäo, que eu fico ajoelhada a rezar ä Virgem, por que te livre de ruins presságios. IV Passaram-se horas e a pobre mae, ajoelhada dlante de um crucifixo', esperava ansiosa pela volta da filha, que se fora buscar o erradio amante. Assim a andorinha, que os cuidados maternos obri-garam a deixar partir o consorte para outros climas, aguarda a volta do bando, e mal o vé despontar ao longe, bate as asas, segue o voo, e vai adejar em torno do que lne arrulhara amores na primavera. Mas quantas vezeš vem o cruel destino cravar fundo Edicöes Afrodite — CONTO FANTÁSTICO P 0 R. T U G U Ě S .ď. t Á- A f- 4 WĚKĚm % -■t I A. Osório de Vasconcelos 15 golpe de saudades dolorosas e sem remédio no coragäo, para o qual as saudades passadas éram esperaneas flori-das e pxenúncios de futuros amores! Ai! quantas vezes os alvorogos de Ventura se tornám em desvalimentos da desgraca e a Candida clämide da esperanta se transforma em crepe de desenganos! Assim sucedeu ä malfadada donzela, ä formosa Rosalinda, que chegada ao porto, buscando com os olhos, por entre o tumultuar da multidäoi, o seu querido D. Álvaro, e interrogando os audazes navegadores, soube que o seu amante se havia finado quase ä vista das costas da patria amada, ä qual estendera os bracos já hlrtos e rigidos, no derradeiro arranco. Estas palavras soaram aos ouvidos de Rosalinda como se fossem dobre plangente de finados em capelinha do ermo ä beira-mar. Louca, com o peito arquejante, desátou a correr para a torre, em cujos umbrais a estavam aguar-dando os carinhos maternos. — ó minha mäe, — exclamou a donzela com a voz rouca e cavernosa, e com os olhos semiabertos. ó minha mäe, morreu-me D. Álvaro, e lá me levou o coragäo para o fundo do mar. — Ai! pobre filha, näo chores, näo te amofines, que o teu pobre coracäo bate ai nesse peito, que o amor endoi-dou, e que o amor há-de curar. — Eu chorar! Chorem antes as pedras, que Satanáš näo quer prantos. Ah! D. Álvaro porque me levaste o coragäo? Quem me dera ser sereia, que já me deitava ao mar em busca do meu pobre coragäo, que D. Álvaro me roubou. — Gala-te ai, filha, lembra-te que és crista. Se D. .Álvaro se f inou, Deus me fale na alma, e se amercie de ti, ó minha Rosalinda. Chora, chorá, que o coragäo ninguém to roubou. — ó minha mäe, quem me dera ser sereia para viver no mar, abragada com D. Álvaro, que me levou o coragäo. Edicöes Afrodite CONTO FANTÁSTICO PORTUGUÉS 154 A. Osórío de Vasconoelos Corria negra a noite e o mar erguia as ondas encape-ladas, soltando rugidos angustiosos. A lua baga e pálida em väo tentava fender com os raios frouxos as nuvens caliginosas, que toldavam o firmamento. Rosalinda, com os cabelos em desalinho, que o vento da noite agitava, estava sentada no alto da torre, debru-cada sobre o ablsmo, cujas águas revoltas haviam talvez tragado o corpo do aventuroso amante. Encostado o braco ao peltoril e encostada ä mäo a face, com os olhos fixos e a boea semiaberta, deixando entrever os dentes eburneos, era a imagem do desespero silencioso, que se entregou ao demónio por se vingar do destino. Ouviu-se de repente, por entre o bramir das vagas raivosas e o silvar agudo da rajada um grito aflitivo e plangente, que ecoou na solidäo, como o ultimo gemido do náufrago moribunde. Logo após surgiu do melo das ondas um vulto1, sobre quem batiam de soslaio os raios da lua, deixando ver um rosto pálido e def eeado1, arraiado de longos cabelos negros, que desciam húmidos pelas costas um pouco alquebradas. O vulto agitou os bragos e erguendo-se no ar, ex-clamou: — Ouves? Rosalinda. Eu sou D. Álvaro, que te levou o coragäo, quando me fui a conquistar glorias e riquezas nos palmares da india, para tas depor aos pés. Colheu-me a mořte no caminho, quando te via já na penumbra do horizonte. Venho fauscar-te, ó Rosalinda, porque és minha, porque só a ti posso dar o coracao, que te levei. Vem! vem! ó minha amante. Vem, que o mar é nosso, e o dorso das ondas será o nosso leito nupcial, as estrelas os can-delabros, a espuma o travesseiro e a amplidáo o nosso império. ó Rosalinda! se souberas como te amo. Que importa a mořte, se o amor lhe sobrevive? — És tu, D. Álvaro? — respondeu a donzela. — A. Osório de Vascomoelos 155 Amar-te, amar-te é meu destino, que se näo te amara, já nao existira há muito. Vivo ou näo, que importa? serás sempře o meu amante, que me levou o coragäo. E Rosalinda soltando um grito de alegria, chegou-se ä beira da torre, mediu com os olhos o abismo, e deixando pender o corpo, deitou-se äs ondas, como Safo se despenhou do rochedo de Leucate. Recebeu-a D. Álvaro nos bragos, e cobrindo-a de beijos e carícias, comecou a nadar a nadar, com um vigor vertiginoso. As vagas abriam-se para lhes dar passagem, e tor-navam-se a cerrar formando catadupas de espuma alva-centa, retinta de sangue. O mar aplacou-se como por encanto. Dilatava-se ao longe, baloucando-se e alvejando tristemente, como se fora um manto de gaze tufado pelo vento. Já näo rugia em ánsias de raiva; já näo enovelava as vagas com fúria, para depois arrojar salpicos de espuma; já näo se rojava delirante, para se erguer depois mais feroz ainda. Näo. Era manso e plácido; dormia nos bragos das sereias que cantam toadas maviosas, e envolvem o corpo gentil com o cándido manto das águas. A onda serena e límpida sus-pirava na praia, gemia e espreguicava-se, osculava a areia docemente, para voltar de novo ao selo mádido. Suspensa nos bracos do amante flutuava Rosalinda na água, com as alvas roupagens enfunadas. Carninhavam com imensa rapidez e passados momentos a torre esvae-ceu-se no negrume do horizonte. Os rochedos já se lhes näo erguiam sileneiosos, e quedos. Sumia-se-lhes a terra firme. lam envoltos na majestosa solidäo do mar, cober-tos ;pelos esplendores celestes, quando chegaram a um lago, formado por águas tranquilas de um verde-escuro e sem ondas. Viu-se de repente a donzela sozinha, na-dando ä tona de água, como se uma forga misteriosa a estivesse alevantando. Espavorida, com os cabelos hirtos e sentindo um Edicčes Afrodite — CONTO FANTÁSTICO PORTUGUĚS Edigöes Afrodite — CONTO FANTÁSTICO PORTUGUĚS 156 A. Osório de Vasconcelos calafrio mortal, exclamou com a voz sumida e tremula, que se repercutiu nas äguas, produzindo um som estron-doso: —Älvaro! meu Älvaro! Ai! näo me deixes sozinha no meio das ondas. Älvaro! dä-me o coracäo, que me rou-baste, e vem depois abragar-te comigo, que tua sou. Palavras näo eram ditas quando levantou os olhos e viu, boiando ao lume da ägua um cadaver horrivelmente desfigurado, com as carnes a despegarem-se da ossada, que os peixes vorazes vinham tragar, escancarando as enormes bocas bordadas de tres fiadas de dentes alvos e agudos. A donzela soltou um grito de terror e de angüstia, e torcendo as mäos, cerrando os olhos quisera orar a Deus, que a protegesse. Mas o demönio ouvlra-lhe as queixas, e ninguem 1ha podia roubar, que ja a havia marcado com as garras. O esqueleto levantou-se entäo na ägua. Brilhavam--Ihe os olhos como carvöes acesos no cranio; os bracos longos e descarnados foram crescendo, crescendo ate abarcarem o corpo de Rosalinda, e depois de a contemplar um momento, alumiando-lhe o rosto com o fogo dos olhos, soltou uma gargalhada horrivel, e desconjuntando os ossos, sumiu-se na voragem, a tempo que ia dizendo: — Sou eu, sou eu o teu amante! Depois comecaram a surgir monströs marinhos, tra-zendo as cabegas enormes ä superficie da ägua e enco-~brindo os corpos nas profundezas. Os olhos vitreos e hümidos, bagos e fixos pareciam devorar a maldita Rosalinda que olhava espantada em redor. Os monströs conservavam-se mudos mas aproxima-v&m-se mais e mais, apertandO' o circulo a pouco e pouco, regular e metodicamente, a tempo que dos abismos sur-giam novos cardumes, cada qual de feitio mais asqueroso e repelente. Envolveram enfim completamente Rosalinda, roQando-lhe o corpo mimoso com as escamas frias duras, como dentes de serra. Edic5es. Afrodite — CONTO FAIMTÄST1CO PORTUGUES A. Osório de Vasconcelos 7 ( I MM y j ĚĚ/BBm Hi WĚĚĚ 91 ■1 157 Foi entäo que o demónio, sulcando a amplidäo em um carro de fogo, agarrou Rosalinda pelos cabelos, e levantou-a ao ar, arrojou-a depois äs ondas, para alem dos monströs, exclamando: — Vai-te, sereia, e persegue os nautas com os teus olhos glaucos; prende-os com as tuas trancas cor de limo, e atrai-os com os teus cantares maviosos. Cumpre o teu destino e viverás eternamente no mar, junto ä. torre. Desfez-se o medonho ajuntamento dos monströs, que se afundaram nos abismos, batendo e chocalhando as äguas com as horrendas caudas. Desde entäo a sereia persegue os nautas, que passam depois do sol-posto perto da torre. Ai do que näo fizer o sinal da cruz e se demorar naquele sítio amaldicoado, que será atraido pela sereia e irá servir de pasto ä sua voluptuosidade infernal e k voracidade roaz dos monströs marinhos. Edicöes Afrodite — CONTO FANTÁSTICO PORTUGUES 1-/-