Studijní text Tento studijní text je elektronickou kopií výňatku z textu a je určen pouze pro studenty Filozofické fakulty Masarykovy univerzity. Je určen výlučně k použití ve vyučování pro ilustrační účel nebo pro vědecké účely, jak je stanoveno v autorském zákoně (Zákon č. 121/2000 Sb., o právu autorském, o právech souvisejících s právem autorským a o změně některých zákonů, ve znění pozdějších předpisů). Studenti mohou text použít jen pro studijní účely. Je zakázáno text či jeho část jakkoliv dále šířit, kopírovat nebo používat na jiné účely, než je uvedeno výše. Mário de Carvalho próprio Víscon não estaria porventura inocente, mas, enfim, não era a altura de aprofundar... Medroso, muito avesso a inquirições da Justiça, Víscon tinha prevenido as complicações. Ainda bem... E assim me vi eu rico. Nada disse ao paterfamílias, que regressou um belo dia de Olisipo, radiante por ter ganho o pleito, pqrque ele poderia por lei reivindicar todo aquele dinheiro para si. Acomodei antes um esconderijo conveniente, consegui aplacar a ira de Próculo entregando-lhe dissimuladamente algum dinheiro mais a biga e a mula e prometendo-lhe sociedade no tal empreendimento inventado de remessas de trigo para o Ponto, e dediquei-me, tranquila e sensatamente, a emprestar dinheiro a juros, às escondidas. Tornei-me respeitável, sosseguei e agora estou um pouco adiposo. Devoro doces, regalo-me com bom vinho e deixo-me untar com óleos perfumados e massajar longamente nas termas. Vou esperando... O pai não viverá sempre... O problema é esta incerteza funesta dos tempos que correm... Ah, em Miróbriga fizeram uma pequena estátua do optio. É considerado um herói. Dizem que o militar matou a ursa Tribunda e mais quinze ladrões que a fera - dotada de poderes sobrenaturais - comandava, antes de sucumbir ao número, após um combate homérico, que fez tremer o chão. Os magistrados até evocam aquele exemplo, nos seus discursos. Quando passar por Miróbriga, deporei uma coroa de louros no monumento. Haja respeito pelos ·falecidos, para mais, heróis... 82 O conde Jano Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Esta história baseia-se num antigo rimance popular. Nos romanceiros de Garret e Teófilo encontram-se várias versões, com nomes diferentes: «Conde Alberto», «Conde Alves», «Silvana», «Conde Alarcos», «Conde Yanno», «Conde Iano», etc... Preferi chamar-lhe «O conde Jano». Mário de Carvalho Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Vinde com Deus, meu bom conde Vinde com Deus, fidalguia... Mal o Sol começou a querer pôr-se, um sargento e poucos homens de armas, de festivo brial escarlate sobre a cota de malha, brunida para a ocasião, atearam brandões nos fogareiros do pátio e, marchando em boa ordem, foram alinhar compostamente na esplanada fronteira às muralhas. Pela hora, tocavam os sinos longe as últimas Ave-Matias, num dobre alongado que rolava melancolicamente na humidade convulsa da aragem. Não fora consentido aos homens o resguardo duma capa que lhes ocultasse o luzimento das armas, razão por que batiam os pés com o frio, num áspero entrechoque metálico. Derivava o claror dos archotes ao som das tremuras, descobrindo, em relances picados, aqui o reflexo de um morrião, ou duma alabarda, além o vigamento duma casa, o trejeito de espanto de um peão, ou a rugosidade pedrosa do solo. Mendigos e vilões apinhavam-se ao perto, a respeitosa distância dos contos das lanças e juntavam o burburinho da multidão aos sons dispersos, álacres, que vinham do castelo. Pelas portas abertas, à luz vermelha dos brandões, viam passar esquartejados, caminho das cozinhas, os despojos da caçada dessa manhã e almejavam a partilha, ainda distante, das sobras do. festim, que não havia bocas fidalgas que dessem conta de tanto cerdo e tanto veado... 87 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Mário de Carvalho Emb~ixadores, validos e cavaleiros encontravam-se por ora reumdos nos aposentos que lhes foram destinados e alardeavam proezas de agreste montaria, enquanto se ataviavam para descer ao salão. Dos adarves, ouviam-se distintamente a vozearia e risos dos fidalgos e o tinir das armas que se recolhiam para dar lugar aos brocados e escarlatas do 01iente que se envergavam, qual mais lustroso e garrido. Ins~antes. atrás, surdida furtivamente de uma porta de serv~ntla, a infanta, acompanhada de duas aias, percorrera 0 cammho de ronda, ante a estupefacção das atalaias e fora pos~ar-se no escuro, muito quietamente, junto a uma das seteuas que enfiavam o terreiro. Ao besteiro que se curvara à .sua passagem, bisonho e escuro, a princesa ordenara, baixo: - Vai-te daqui! E o homem, num ranger espesso de couros e ferros, afastara-se para fazer companhia a um grupo de soldados, na plataforma de uma torre distante, onde luzia um fogo. Mal sentada num socalco de pedra, encostada às cantarias húmidas, a infanta tiritava de frio. Por entre as vozes dos homens lá em baixo, o ladrar dos mastins, e o bulício so.lto do castelo, sobressaía naquele lugar a sua tosse, intermitente e seca. Uma das aias desapertou o manto e aconchegou-o aos o~bros da infanta que nem se voltou para agradecer. De i:iaos fincadas no rebordo das ameias, olhava para fora, fixamente, com uma atenção que deixava excluído tudo o que não fosse o único ponto dela. Largo tempo decorreu, a multidão acrescentou-se, ondularam vozes e mmores, tropearam cavalos. Impacientes, as damas trocaram olhares, afeiçoadas já à escuridade do sítio, menos confonnadas com a frieza dele, que melhor estariam ao lar, nos grandes salões, entre galanterias e cortejos. De novo os sinos repicaram e a princesa não se movia... Tardou, tardou, antes que, em crescendo surdo, se alteasse às ameias o murmúrio da turba, mais e mais levanta- 88 O conde fano do. Só então, a mão da infanta, muito branca, procurou e ,apertou com força a mão de uma das aias. - É ele! - murmurou, sumidamente. Já lá fora rompia sonoro o clamor e estralejavam os aplausos: «-É chegado o conde Jano! Alas ao conde Jano que veio da Cruzada!» Quase fazia doer aquela fincada mão da princesa, que não deixava de apertar. A aia suportou a pressão, mordendo ao de leve o lábio, mas não resistiu, como a outra, a debruçar-se e a procurar distinguir pormenores. Luzida cavalgada lá vinha, trotando, em composta procissão de archotes. Gentis-homens, resplandecentes de atavios e de armas, traziam entre si o conde Jano, que haviam esperado muito além, por caminhos de~viados, numa menagem reverencial ao cavaleiro cruzado. A luz incerta dos fogachos, sobressaía, no peito do conde, a cruz, de vennelho vivo, sinal dos merecimentos de sacrifício e de bravura, em areais longínquos. . . Não delongou muito o cortejo. Com um suspiro, a pnncesa abrandou a tensão com que apertava a mão da aia e largou-a, enfim, magoada. Do lado de dentro do castelo, vinham agora os rumores dos cavaleiros a desmontarem. Foi-se sumindo o rumorejo da multidão vilã. Sobravam apenas, arrepiantes, os gritos dos mendigos. A princesa, devagar, levantou-se e devolveu o manto à aia: - Vamo-nos - disse. 89 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Entrei pelo paço dentro Fazendo mil cortesias... As três mulheres percorreram escadas e corredores, escuros e lúgubres, que lucemas de azeite, meio sumidas, dispostas nos vãos de seteiras, mal davam para alumiar. Um criado, entre duas portas, saudou a princesa e, sem ousar dirigir-lhe a palavra, segredou qualquer recado a uma das aias: - El-rei que manda saber parte de Vossa Mercê... - explicou a aia. - Que prestes me recolho... - respondeu a infanta. Esperaram que o homem se afastasse, curvado ao peso do respeito e da idade. Depois, com surpresa das aias, que num desencontro de gestos e restolho de saias, logo a seguiram, a princesa encaminhou-se para o salão. À medida que progrediam pelos corredores, vinham mais nítidos os acordes dos alaúdes e mais sonoras as garga1hadas dos convivas. Mas a infanta não endireitou para a porta do grande salão. Dobrou à direita, por uma passagem estreita, e chegou a um cubículo, pouco maior que um nicho, que uma tapeçaria, gasta e pesada, separava da festa. Eram recantos que só ela conhecia, de quando em criança calcorreava os passos sotumos do castelo em temerários jogos de escondidas. Também Jano conhecera porventura estes refúgios. Mas a infanta estava lembrada; Jano, não. 91 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Mário de Carvalho . Por uma fr~sta da ~apeçaria que alargou com os dedos, a mfanta espreitou. Nao demorou muito que vislumbrasse Jano, nu~ grupo de conversa, a meia distância. Depois alguém se mterpôs entre a tapeçaria e Jano, deixando-lhe ao olhar apenas a agitação confusa de escuros gestos. . E~~os~ada à parede, a infanta crispou os punhos de 1myac1encia. Senti~ um espasmo no peito e abafou com a mao a tosse que Já a queria trair. Lentamente, pelo camin~o esconso, veio reunir-se às aias que a esperavam, impacientes, quase aflitas, à entrada do salão. A princesa travou uma delas pelo braço, teve um pequeno soluço, e sussurrou-lhe ao ouvido: - Ide chamar o conde Jano! Depois afastou-se, pelo corredor, com a outra aia no encalço. Silenciosamente, entrou na sala abobadada do trono, a esse tempo abandonada, com o negrume das sombras apen.as perturbado pelos tons avermelhados de um tocheiro, e .fm no trono de alto espaldar que se sentou. Compôs a saia e ficou-se a esperar, muito direita. 92 Chorava a infanta, chorava chorava e razão havia... Quando, no corredor, ressoaram passos abafados de borzeguim, a infanta fincou as mãos nos braços do trono, e fixou ansiosamente a porta, onde sobressaía agora a figura parada de Jano, contra o difuso claror que vinha algures de fora. Por uns momentos, o cavaleiro manteve-se junto à ombreira, hesitante, afeiçoando os olhos à tonalidade de luz. Por detrás, discreta, perpassou a saia da dama que o acompanhara e que não ousou entrar na sala do trono: . Depois Jano sorriu, largamente. Num arranque dec1d1do, aproximou-se e dobrou o joelho: - Senhora, o que eu folgo de vos rever... A infanta passou, de ligeiro, a língua pelos lábios, recostou-se mais no espaldar, e censurou, ainda num balbu- cio: - Nem me reconheceríeis, senhor conde, não fora o meu estado e condição de me sentar neste trono... Logo a voz se lhe clareou e se fez mais sonora, num tom monótono e desprendido: - Perdoai não estar eu presente nos festejos, mas sendo mulher, e de paz, não me cumpre celebrar os feitos de guerra... - Muito me honrastes, senhora, que mais não fora chamando-me e tendo-me na lembrança... 93 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Mário de Carvalho - E que lembrança foi a vossa de mim, lá nas terras de descrença por onde andastes? - O castigo dos infiéis e a fé desagravada tanto m enchiam a alma que, a meu pesar, não cabia lugar a mais remembrança. A aragem que vinha das janelas de quando em quando revoluteava em sopros breves na chama do tocheiro, chantado na cantaria, ao lado esquerdo da princesa. A face do conde, respeitosamente descaída, ora flamejava de reflexos avermelhados, ora mergulhava na negridão, mas parecia sempre à infanta, tomando a evocação do passado pelo momento presente, que aqueles olhos azuis eram sempre azuis e que nela fitavam sempre. - «0 castigo dos infiéis, a fé desagravada...» Mais lembrais a filha do rei que vos governa, que a dona que vos estima? O conde não encontrou resposta. Desabou-lhe a face, confundida, sobre a cruz vermelha do brial. Houve um instante de silêncio e de incomodidade. Teria a infanta mais que dizer, mas um qualquer sentimento de urgência inesperado e avassalador, levou-a a inquirir, num repente: - Dizem que vos casastes... E o conde respondeu, feliz pelo fim da interrupção: - Assim é, senhora, casado venho da Hungria. De novo o silêncio se fundiu nas sombras, apenas aqui e além arrepelado pelo sopro do fogo que ardia na tocha. A infanta estremeceu num sobressalto breve de tosse. Demorou algum tempo antes que, amarga, admoes- tasse: - Tanto que me prometestes, conde... Tanto que me faltastes... \ - Passaram anos e anos, senhora... Tanta guerra, tamanha distância... - Também por mim passaram, Jano... - atalhou a princesa, magoada. E após, num tom enérgico, seco: - Ide-vos, conde, em boa hora... O conde quis replicar, desfazer a prontidão da despedi- 94 o conde Jano .nfanta não lhe deu ocasião de conti-da. Titubeou, mas a 1 nuar: _Adeus, conde! . a aia que aguardava Vendo sair o c~valeiro do ~:~· ache~ou-se à infanta. perto, entrou e, muito de m~s1. a~ que lhe corriam pela Ao notar o brilho das duads t~~:ra tomou-a por um braf a moça num acesso e ' ç~~e~uerendo' ampará-la. Mas foi repelida... 95 i '! Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Que tens tu, querida infanta, Que tens tu, ó filha minha? A manhã tombou enevoada e parda. Sórdidos e mais descompostos se fizeram os vestígios da festa, com o cinzento do dia a entristecer os sinais das alacridades de ontem: um cálice tombado a um canto, restos de comida, a descaída mão dormente dum retardatário estirado num banco, o desatino caótico de baixelas e lixos... À maior parte dos cavaleiros, recolhendo-se a suas terras, fustigaram-nos os aguaceiros, sendo que a blandícia da aurora não quis mostrar-se e aprazer. Obrigados a recato debaixo de frondes ou a breve boleto em choupanas de servo, maldisseram o destempero, enquanto se dissolviam os eflúvios do vinho e do hidromel. No castelo, aos restos do festim, vieram juntar-se os corropios de águas que investiam pelas janelas, estrondeavam nas seteiras e se precipitavam, vomitados pelas gárgulas, em vascolejos de ameaça. El-rei era velho: levantou-se cedo, e cedo assistiu, de uma sacada, ao despenhar das águas, que crepitavam forte na terra e quase queriam vergar as árvores do jardim. Boa ocasião era para sossego e meditação, bem azada e aconselhável aos soberanos, não fora o aparecimento agitado de duas mulheres, que-dobraram ao fundo a quina da parede, em grande espavento de gestos e depois se aproximaram num correr saltitado, antes de ajoelharem, 97 ! ! !! i Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Mário de Carvalho com desatenta compostura. Cruzou el-rei os braços e espe- rou. - Senhor, a infanta não domliu toda a noite e noite gemeu... - Acorrei, meu senhor, que mui mal está... Nunca fora saudável aquela filha do rei. Temera-se ele sempre das suas cores macilentas e da tosse mofina que persistia em sacudir-lhe os ombros magros e encurvados. Energia pressentia-lha apenas na mobilidade do olhar e na rispidez das decisões. Em criança, chegou a crer que não vingaria, tantos os achaques que por dias fiados a retinham no leito. Valeram-lhe as missas e as rezas, mais que o cuidado dos físicos, que nunca se entendiam com a origem dos males. Mandou que chamassem o médico e, a grandes passadas, endireitou ao quarto da infanta, espantando com um sinal lispido a gralhada das damas que lhe torvelinhavam no encalço. A princesa não estava deitada. Sentava-se numa esteira, entre coxins, perto da janela, observando a poalha cinzenta das águas que cabriolavam no parapeito. Soergueu-se ligeiramente à entrada do rei, que não a deixou levantar-se, antes se encaminhou para ela, tomando-a pela mão: - Então, minha filha? - Há-de passar, meu pai... - Chamei os físicos... - Não é caso de físicos, senhor... A princesa circunvagou os olhos em volta, deitou a cabeça para trás e suspirou. Depois, brusca, fitou o rei de frente e condoeu-se da ansiedade que lhe marcava todas as rugas do rosto. Passou levemente as costas da mão pela barba do pai e murmurou, subtil: - Mal de soledade, meu pai... O rei estranhou a resposta. Sentou-se perto da infanta e, com um gesto, fez desandar a roda de açafatas, mais gulosas daquela conversa que chegadas ao cuidado da sua ama: 98 O conde Jano - Soledade escolheste-a tu que em boa companhia estarias hoje, se não tivesses recusado quem bem sabes... - Arrenego de pretendentes que falam línguas que não entendo e cortam enviesadamente o pão, quando tenho bem perto e em minha terra quem antes me prometeu espon- sal. Ergueu-se o rei, a pensar naquele desabafo. Não sabia - e competia-lhe saber por mor da qualidade de pai, quando não bastasse a de soberano - de promessas que alguém se atrevera a fazer a sua filha. Promessas sempre inválidas, não tendo o seu aval de progenitor e beneplácito de rei. Mas o único nobre do reino, de qualidade para poder aspirar à mão da princesa seria... - Pai, eu quero o conde fano! A infanta gritara, as mãos juntas, cerradas, fincadas na saia. De olhos muito abertos, inclinada para diante, fixava o pai, desafiadora: - Eu quero o conde Jano! Falando muito depressa, atropelando as palavras, a infanta contou como o conde e ela brincavam em criança nos jardins, como repetidamente se haviam beijado, e mostrou o lenço de seda vermelho que trazia sempre consigo e que o conde lhe ofertara em arras antes de partir para a Cruzada, entre juras, abraços e suspiros. Mas o rei já não a ouvia. Encostado à parede, procurava dominar-se, antes de deixar irromper a indignação: - Credo, senhora, calai-vos, que casado é! Insistiu a princesa. Atalhou o rei: - Blasfémia, senhora, que casou na Hungria e é pai de filhos! Melhor seria que vos lembrásseis de quem sois do que de promessas de menino que os tempos levaram. Não espero vileza de uma filha minha. Em nome de Deus vos rogo, senhora, que me não tomeis com esse descon- certo! Mas a princesa ergueu-se e cresceu, ligida, de punhos cerrados, enfrentando o velho: - O conde Jano, meu pai, que morro... 99 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Mário de Carvalho Saiu tão irado el-rei que quase atropelou o físico que chegava, encharcado, com o moço atrás, a carregar-lhe o saco das tisanas... 100 Eis manda chamar o conde da sua parte e da filha Os três monges vieram-se chegarn:io ao castelo ao passo arrastado das mulas. Com a facilidade de breves palavras passaram a guarda e entraram no pátio empedrado, onde as ferraduras ecoaram, chispando nas lajes. Os dois mais jovens desmontaram e ajudaram o velho, de pé incerto no estribo e embaraçado pela corpulência, a descer da sela. Ampararam-no por debaixo dos braços, e com esforço o pousaram no chão. Depois prenderam as azêmolas, afastaram-se para um canto e aguardaram, de capuzes tombados sobre os olhos. O velho ofegou a subir escadarias ásperas e parou para respirar em todos os patamares. Conhecia bem a casa. Salvo as detenças para recobro de fôlego, não precisou de hesitar ou perguntar algo. Foi resfolegando do cansaço que se inclinou perante o rei e se teria prostrado se este houvera consentido. Tinha uma cara larga, grosseira, de beiços espessos e descaídos sobre a barba descomposta e grisalha. Mas os olhos pardos, moventes e ainda com o brilho de outrora, desmentiam aquela aparência de campónio em hábito de monge. O rei insistiu para que se sentasse num mocho, quebra de protocolo que apenas lhe atendia à idade e à fadiga. Como lhe cabia, o velho soube espantar-se, soube recusar, 101 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Mário de Carvalho soube mostrar-se grato, antes de se deixar cair, lerdamente sobre o assento, esperando, de cabeça baixa que el-rei lhe comunicasse o motivo daquela inesperada convo-- - cação. ·Inerte, impassível, ficou a saber que a princesa exigia o conde Jano, definhava por ele e el-rei temia-se e esperava conselho. O rei falara comedidamente e nada deixara transparecer da ira de antes. Mas a inquietação do cristão, a ponderação do soberano haviam sido manifestamente arredadas pela ansiedade do pai. O velho monge, no seu jeito descaído e sonolento, logo entendeu que el-rei não precisava de conselho, mas de fiador... - E a condessa? - foi perguntando. O rei não respondeu. O frade fingiu perturbação e entrou em circunló- quios: - Nem sei que diga, meu senhor... eu sou um pobre homem de igreja... - Do religioso não careço! Hei confessores que me bastem... Quem eu chamei foi o meu antigo ministro e dele quero opinião! Estavam cumpridos os prolegómenos e salvaguardadas as aparências. Pesando bem as palavras, o velho cortesão, então, expôs: - A felicidade dos príncipes, meu rei, tem boa conta na felicidade dos povos que é a razão de ser do múnus que Deus lhes confiou e em Seu nome exercem. Sendo caso, valerá sacrificar uma vida para alcançar a felicidade da infanta, pois assim se pouparão muitas outras que sucumbiriam à infelicidade dela, que seria sempre má conselheira de imponderaçõcs e de injustiças. E mais, senhor, não direi, a não ser que encontrareis quem vos absolva, se cometerdes agora um torto, para prevenirdes, no futuro, mais direito... Já os três frades, ao passo ronceiro das azêmolas, rumavam para o convento, tomando o caminho que, ainda à vista das muralhas, circundava um antigo roblc para se perder 102 O conde Jano entre barrancos pedrosos, quando três cavaleiros, pesadamente armados e rebrilhantes de ferro, despediram a trote largo da porta de armas noutra direcção: eram o sargento e mais dois soldados que levavam pressa. 103 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Inda agora vim do paço, Já el-rei lá me queria! Pelas horas da tarde, donnida a sesta, o conde Jano convocara os dois filhos para o seu terreiro, como de habitual e adestrava-os no manejo de armas, que lhe era mais vezado a tirocínio de cavaleiros que os latinórios do padre-mestre, uma vez mais desempregado e relegado à conversa sonolenta com a condessa, que bordava, à sombra da torre negra da mansão. Estavam os gaiatos bem acolchoados de burel e estopa e arremetiam com espadas de pau contra o conde que, rindo, lhes aparava os golpes com um broquei e lhes trocava as guardas com uma vara. Seguir-se-ia, na ordenação costumeira, o lançamento de arremessões contra o estafenno de palha, já muito ferido e desentranhado de anteriores assaltos, que oscilava, pendurado de um galho. Perto, um servidor ancião amparava a magreza a um feixe de dardos e ao grande escudo de campanha, de que pendia, com cintura, a espada do conde, para os jogos que fossem reque- ridos. Nisto, a condessa suspendeu o riso e olhou para mais além, no que foi acompanhada pelo padre: - Jano! O conde largou o broquei, afastou as espadas de pau, abraçou os filhos, pondo fim à contenda, e olhou na direcção que a mulher apontava: 105 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Mário de Carvalho Três homens armados, a cavalo, desciam o declive em frente, cortando por entre o mato. Por instantes, o grupo familiar assistiu à progressão, em silêncio. A condessa chamou os filhos para perto e Jano acercou-se do criado que tinha o escudo e a espada. Quando o sargento de el-rei chegou à fala e saudou, o conde deu um passo em frente e esperou, de braços cruza- dos: - Mandado, senhor cavaleiro, de virdes como vos encontrardes, que el-rei vos quer consigo. - Ainda não há uma semana que prouve a el-rei deixar que lhe prestasse menagem... Debruçado sobre o arção, o sargento fez um gesto de evasiva indiferença e insistiu, com voz rouca: - Mandado de el-rei, senhor... Jano hesitou. Estava intrigado, e desagradava-lhe a reserva impositiva do plebeu. Mas não quis contrariar o sargento, em atenção a quem o mandava. Ordenou que lhe selassem o cavalo e, em tom de desforço, disse, alto e bom som: - Não comparecerei a el-rei coberto de estamenha. Esperai lá! O sargento resmoneou, em voz baixa, enquanto Jano lhe virava costas e entrava em casa: - Era para virdes como vos encontráveis, senhor con- de... Mas encolheu os ombros, recusou, com um repelão a ajuda de um criado que lhe quis segurar o cavalo, e manteve-se sobre a sela, enquanto Jano demorava a compor-se e a vestir o brial de cruzado, acompanhado pela condessa, inquieta no semblante e nos gestos: - Jano, Jano, que vos quererá el-rei, tão de súbito? - Conselho, ou partida de caça. - Não são precisos três homens de armas para citar um cavaleiro... - Os reis dispõem como entendem seus mensageiros... À saída, ostensivamente, Jano tomou a espada e cingiu- 106 O conde fano -a, olhando de frente para a escolta, muito desafiador. O sargento não reagiu. Deu meia volta e foi desandando, adiante. 107 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Que quereis, real senhor? Vossa alta senhoria? El-rei estava na torre de menagem e, pensativamente, contemplava o seu reino de uma janela que sobre ele deitava. A perder de vista, até às montanhas rosadas que sustinham o mar, era um tabuleiro revolto de leiras cultivadas, extensões sombreadas de bosques, sulcos de ravinas e montados, negrumes de matagais imensos e medonhos. Muito ao longe, a torre de um mosteiro, de ameias pontudas, impunha-se sobre agros elaborados e serenos. Mas a dois tiros de besta, para além do burgo de casebres de pedra mal amanhada, cobertos de colmos apodrecidos, já se eriçavam as urzes da coutada escura, abrindo a um matagal de floresta cerrada, onde, pelos dias eram senhores os ursos e, pelas noites, campeavam as encantações dos rochedos e das árvores, único desafio conhecido ao poder do rei, que não tinha leis nem validos que pudessem com ele. Não se moveu el-rei quando Jano se anunciou e se ajoelhou a seus pés. Desejando, no íntimo, estava que o conde nunca mais chegasse. Não lhe deu para entrar logo no discurso que, desde há muito, vinha aparelhando, porventura inspirado pela contemplação dos seus domínios, em que o solar de Jano figurava um ponto mal discernível na paisagem. Lento, cofiando a barba, acenou ao conde para que se 109 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Mário de Carvalho levantasse. Encarou-o, infixamente, por um instante. Depois, inquiriu em voz incerta: - Sabeis, conde, as agruras que sofre um rei para entregar em boa ordem, a quem Deus assinalar, a terra e 0 povo que confiados lhe foram pelo mesmo Deus? - Eu, senhor, pobre de mim, pouco mais sei que de montarias e fossados, e o que baste dos Sagrados Textos para salvação de minha alma... - Quando Nosso Senhor for servido convocar-me será a infanta rainha e terá de se valer, sem meu con~ selho e amparo... ou o de outrém que lhe mereça estima e fé... ~ rei suspirou, passou em frente do conde, que se mantinha de cabeça baixa, num silêncio embaraçado, e sentou-se a uma mesa de madeira tosca que ocupava o centro da quadra. Durante uns instantes, pareceu meditar, com a cabeça entre as ~ãos. Depois, num assomo de coragem, procurou, em voz Já firmada: - Que fariéis vós, conde, pelo vosso rei? .- Tudo o que tenho vos pertence, meu senhor, e se mais pudera acrescentar, depois dos trabalhos que passei, a bem de vosso nome e de vossa fortaleza... O rei deu m!1ª. punhada com força na mesa e ergueu-se, ameaçador. Instintivamente, Jano recuou. El-rei agora, descomposto, gritava: - Cavaleiro que assim fala e deixou incumpridos votos que fez! . ~ Eu, senhor? - Eu tive prometido um genro e ora me vejo com filha solteira e desamparada! Jano encolhia-se, siderado e cheio de temor. Não se recordava de promessas que houvesse feito, nem se contava e.ntre os.merec.edores da ira do soberano. Não quis contranar o rei e amscou, balbuciando: - Se foram promessas de menino... tão remotas e de- sarrazoadas... - Um filho de algo não se acoita em foros de menino. 110 O conde fano Inferioridade que tem sobre o vilão... Houve promessa que não foi mantida, senhor cavaleiro! - Senhor rei - respondeu Jano, depois de pouco pensar, e confusamente, porque a surpresa lhe era má conselheira: - Senhor rei, aqui me tendes, e se vos agravei em má hora... O rei interrompeu, impaciente e sanhudo: - Hora é, mas é, de manterdes o que ousastes pro- meter! Jano fechou-se em si e hesitou num gesto qualquer, indeciso, atabalhoado. Não queria acreditar no que ouvira. Procurava encontrar uma fórmula hábil e cortesã de esclarecimento, quando o rei, secamente, peremptoriamente, lhe cerceou toda a dúvida: - Ordeno-vos que desposeis a minha filha e vossa in- fanta! - Credo, senhor, que casado sou! Entrou em tropeada o coração do conde e, por instantes, as paredes pareceram esfumar-se-lhe em volta. Quase não ouviu a voz do rei, no entanto bem sonora e articulada: - O que em desassiso fizestes, justiça real desfará. Casareis com minha filha! Lívido, meio desfalecido, encostado ao granito rude, o conde ouviu o rei bater as palmas e, logo a seguir, um rumor de passos ferrados que subiam a escada. O sargento entrou. Com uma vénia, depôs uma bacia dourada sobre a mesa. Saudando, logo se retirou, fazendo ressoar pelas voltas da escada o tinir das esporas. Jano, assombrado, deixava oscilar a cabeça, numa negativa muda. Então, apontando para a bandeja que faiscava, aos raios de Sol que vinham de fora, bradou el-rei que naquela bacia de ouro lhe trouxesse o conde a cabeça de sua mulher! Rebelou-se Jano, levando, por instinto, a mão ao punho da espada: - Senhor, que nunca tal faria... - Antes que a Lua mude, cavaleiro... De mão na anca, o rei deu um passo em direcção a 111 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Mário de Carvalho Jano, que, atemorizado, recuou. Deixando descair os ombros e os braços, num desalento, murmurou, em voz frouxa e lamentosa: - Meu senhor, suplico-vos... Eu nunca setia capaz... Mais se agigantou o rei para Jano, falando-lhe agora quase barba com barba: - Capaz fostes de mentir e de prometer à falsa fé... Bem se ajoelhou Jano e quis beijar os pés do rei, bem se contorceu e se humiJ.hou, desfeito em 1ágtimas. E foi num impulso que, levantando os olhos marejados, mal equilibrado sobre um joelho, perguntou lastimavelmente: - Por que não mataríeis vós a condessa, senhor, que tendes tanto soldado e algoz? - Dela não hei algum agravo - volveu el-rei. - Mas a vós e vossos filhos não pouparia, sendo caso de deixardes de cumprir uma ordem minha. A vós, por desobediência e felonia; a eles, para não restar semente da traição... Ríspido e adunco, o dedo do rei apontou a a bacia de ouro reluzente que valia mais que um senhorio grande, com seus agros e castelos, gado, alfaias e armarias. Curvado, Jano recolheu-a e saiu, trôpego. Sumidos os ecos descompassados do conde na escada, deixou-se el-rei cair prostrado, sobre a mesa. E dizem que não foi de somenos o que nesta ocasião, se escarmentou... ll2 Indo o conde para c~sa, Mui triste, sem alegria... _0 ao claustro ajardinado, O deambular de Jano levou . ça quando seu pai vibrincara em cnan • . b em que tanta vez al dos Sem dar por isso, a nha a el-rei, em menagens e 1~~do~ que não ousaram tosorto, passou por servos ~ so de uma janela, a infanta lher-lhe o curso. Não sabia q~e, ânsia todos os gese lhe seguia, com ' b o observava agora,. ·ardim rotescamente, com a atos. Especado a me10 do/ u con~:ntrar-se, rememorar qual-cia debaixo do braço, ten o quer coisa, preparar uma frase... or uma escada, mas ao Inesperadamente, arremete~ p oldados que lhe cruzasegundo salto foi travado por _ms s ' ram em frente alabarda~ ~rmes. - Sefinhor con~,ã~a~~re nos contos das armas e quis Jano ncou a fúria e espalhafato: afastar os homens, com nhora infanta? _ bradava, - Não hei-de eu v:r a se o sustinham com dificulforcejando contra os peoes que dade. . . or detrás dos dois hom~ns ª? Nisto, uma aia surgiu P . d a infanta muito a puncimo da escada. Tinha-a. envia ~ ' dade, a ver o que requena o c~~ ~ue é desacato a el-rei! - Senhor conde Jano, t_enf \ que muito mister hei-de - Ide dizer à senhora m an a a ver e falar-lhe de um assunto. 113 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Mário de Carvalho - Aguardai, então, sereno, como compete a vossa po-sição e estado... Recolheu-se a aia e apressou o passo, de saias arrepanhadas, dobrando esquina após esquina. A meio caminho, já se precipitava a infanta na sua direcção. Assistira à cena de longe, ouvira distintamente o conde, mas a razão, com esforço, tomara-lhe o governo do sentimento. Arquejando, segredou o recado que a aia, daí a pouco transmitiria aJano: - Manda dizer a senhora infanta que não há-de receber-vos enquanto não houver bom despacho de certo negócio que confiado vos foi. Desta vez, Jano não resistiu. A espera mitigara-lhe o ímpeto e a fúria. Caíra em si... Voltou costas aos soldados, já reforçados com mais homens da guarda, desceu o lanço de escadas, cabisbaixo, e dirigiu-se à porta do castelo. A princesa, então, perdeu-o de vista, e suspirou. Um servo do castelo esperava-o, com o ginete prestes. Mas Jano não montou. Arrastou-se pelo povoado, de cavalo pela arreata e foi bater à porta do bispo, que não ficava longe. O prelado recebeu-o de imediato, honrado com a valia da visita, e intrigado por aquela bacia de ouro que o cavaleiro distraidamente trazia consigo. Seria cumprimento de promessa? Oferenda de preitesia? E dispôs mesa e doces, que não era todos os dias que um grande senhor o demandava, assim, humildemente, sem escolta nem luzimento. Logo se lhe desfez o sorriso, quando Jano, suplicante, lhe contou .ao que vinha e requereu o amparo da Santa Madre Igreja. Havia que ponderar, congeminava o bispo: não estavam as coisas azadas para antagonismos com o rei que reinava; nem se propiciassem as coisas a desaguisados futuros com aquele que, afinal, poderia vir a reinar, por via de casamento, esdrúxulo que ele fosse. O bispo optou por juntar as mãos e dispender um longo discurso, muito torneado, no qual, com especiosidade retórica e cópia de citações, de permeio com declamações ll4 o conde fano d d misericórdia - em que exaltantes da fé e pro~etedora~ad~ras de um medo visceral se insinuavam expressoes." e~o e bom siso de Jano. Pelava à paciencia - a . bº o tempo para neInsistindo o conde, pedm 0 isp elos termos do ascessárias e delongadas ~onsul~sl qu~~~am de passar por nto e pelos protagomstas e e, su ·t erto Roma, ou então po~ mm o pb : senhor bispo, bom arre- Aqui v.os deixo esta :~~:·as mãos, como vos cummedo da de Pilatos, para.lava te Jano antes de se retirar pre! - rematou des~rezivamen ' sem vénia nem preceito.. conde cavalgar a toda a brida, Da torre, a m~anta vm 0 ºnho afora até rasar bosquesnuma mó de poeira, pelo cami ' e arvore~os. - distinguia quando, esmorecido o ímpet~ e Mas Já nao o lamentosamente sobre o arçao, arrastado o pas~o, curvado e lhe devolveu a bacia dourada: uma patrulha o mterceptou 1 . o de entregar o que esque- Mandado, senhor cava eu • cestes... 115 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Tira-me já destas ânsias, El-rei o que te queria? - Bem cismava eu, Jano, que, pelo bem que te quer, el-rei te haveria de fazer grande honra e galardão e a prova é esta bacia de ouro, que outra tão valiosa jamais vi... E a condessa, rindo, remirava a sua imagem na bacia luzente, afeiçoava as tranças longas ao brilho do ouro, saltitava e corria dispondo o artefacto já sobre esta arca, já sobre aquela mesa, já onde melhor resplandecesse e fizesse estado. Sentado ao lar, num escabelo alto, Jano nada dizia e alimentava soturnamente o fogo que, de tanto e tão continuado pasto, já estrepitava, enfumarado e alto. Temo, um alão viera colocar-lhe a cabeçorra nos joelhos e Jano afagava-o, distraidamente. Nada queria ouvir do grulhar da condessa e incomodava-o aquele rodopiar gaiteiro de alegrias vãs. Mas a esposa anunciava, de face radiante e sorriso de mimo: - Por cima do lar, que bem que fica. Diz, Jano, se já alguma vez viste... Jano afastou o animal com bruteza, agarrou na bacia e atirou-a ao chão, com espavento e grande ruído de metais trilhados. A condessa soltou um grito, de mão em boca, e precipitou-se para a bacia, tentando alisar as desencontradas mossas. Tanto empenho e força aplicava que nem reparou que Jano voava pela porta fora. 117 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Mário de Carvalho / Até tarde procuraram os criados pelo senhor que não vinha para a ceia. Sombria e inquieta ceou a condessa com os filhos. Ainda que esbarrondada, fazia efeito a peça de ouro, rebrilhando sobre a mesa, a ponto de a condessa não desviar dela os olhos, mesmo chorosos. Chegada a altura de deitar as crianças, deitou-se também, à espera. Como quer que o sono, renitente, começasse a tomá-la, sobressaltaram-na arquejos e ruídos abafados que vinham ,~ de fora. Acudiu à janela. Ia a Lua alta e alumiava todo o · terreiro, definindo com precisão o perfil das coisas, mas deixando-lhes intocados os mistérios de dentro. No eirado que servia as liças, o conde Jano arremetia contra um fantoche de palha, pendente de um ramo. E tamanhas cutiladas desferiu de insana fúria que o boneco se foi desarticulando e rompendo, entre os protestos do corpo reviroteado. Já apenas sobrava, .em solturas caprichosas, a corda que sustivera o manipanso à árvore, e ainda Jano espadcirava em roda, levantando nuvens de palha e ferindo de talhes secos o tronco da velha oliveira. A condessa estremeceu, debruçou-se, mas logo reteve o chamamento. Qualquer insólito furor tomara conta de Jano que já se mostrava indisposto e descomedido nos gestos desde o regresso do castelo. Antes o descarregasse contra os estafermos de treino que de outra feição mal azada e deportas adentro... Mais por sensatez que por fraqueza de ânimo, correu a deitar-se quando o conde desistiu dos arremessos e, curvado, de espada a arrastar por terra, entrou em casa. Dentro em pouco subia ao leito, muito em silêncio, e ninguém sabe se alguém ali dormiu, até que o falsete rouco dos galos apregoasse a alba. 118 \ l . mbora o conde fano,Foi-se e . Muito triste que ele ia... "t de. d li ou Jano, mm o· · do dia es z t Aos primeiros smais . A mulher, aparentemen e mansinho para fora do leitoihar temo e um brando gesto adormecida, mereceu-lhe um. ºelhado junto aos filhos que Mais demorou ªJº .condoído. . mover de láb10s. em beijou, num le~íss1mo do e surpreso, levanto~-se O palafreneuo estremunha .. mpeu pela cocheira, vesalvoroço quando o seu ~e~~r~~~ado. À luz enca~dida ~a tido de ferro, sob o bnal rescentada pela que já mompia candeia de azeite, pouco ,ªcidamente selou o melhor cavalo Pelas frinchas da porta: rhap m grande estridor de trancas b . camm o, codo conde, e a nu . _ e rangido de batentes. . ete esvoaçava a cnaçao, leCom o tropeio forte do gm ' pássaros no bosque que s calavam-se os vantavam-se corvo ' fu idias sombras. já recolhia Jano em suas - g sem fito certo. Contava Durante toda a manha erro~ontanhas aguçadas que ~e chegar, pela tarde a~ ~opé dasde penhas altas ou de clareiem quando se divisavam, ois se veria, onde ca;: menos abafadas das frond~s~:fuiios após. Longe quelhava o passadio da n01te, e ºompensavam os seus serviços · em que rec é lher eria deixar o remo A • Abandonava tamb ·m mu . com desumana prep?te?cia. al mas esporeava para diante filhos à mercê da vmd1ct~~: e' o remorso o atormentavam. a montada quando a mem 119 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Mário de Carvalho Aqui e além a imagem d . f: terpunha-se ~stranhamentea ~ ~nta, c;bis~aixa e dorida, infria o corcel... O cavalei;o ais se ranz1a Jano; mais so- . restasse fazer-se mouro escapava de t~do. Talvez lhe assim fugido? Mouro se. f~~emEno. quere~a para vassalo, e apequenaram-se as sombr~:··· nisto foi crescendo o sol Súbito, o baque seco de. um . tronco em frente! Depois . ~iro~e a cravar-se num nindo pelas urzes até .'bmais dois v1rotes cruzados, zud • v1 rarem oblíquos 1eteve o cavalo que volteou . ' . • no so o. Jano espada, procurando o elmo' mqmeto, e levou uma mão à perscrutava o mato em volta ~om a º.urra mão, enquanto sargento do rei plantava-se ~a oara~ nsos e, daí a nada, o na anca, rodeado de besteiros: sua rente, soberbo, de mão d - Então, senhor cavaleiro, que já tão longe v e vossas terras... os vejo Jano mediu o grupo d jactância do outro M ' agasta o da contrariedade e da · as aparelhavam se p d be curas e ameaçadoras à e . - esa as stas, espara o trespassarem 'de v8f:.~~ita 'i; .qualque.r gesto escuso, bainha e cruzou os braços: cs. e1xou cau a espada na - Sabei lá que a caça dos senhorios. nem sempre respeita o termo - Muito me maravilho eu de cavaleü; espada. Artes novas que lá na M o que caça de - E que vos importa? ourama aprendestes... - Importa-me cumprido 0 b . , pelo melhor despacho de om serviço d el-rei e zelar . seus mandados de que vo . mm~ a1:e.dio, em paragens tão distantes s Vejo canc1ando o botão do punh d ... mente, deu destino ao esc o a espada, Jano, intimaoportunidade em que ele~- oço daquele sargento, noutra a1mas rápidas. Suspendeu ao se m?strasse tão protegido de d . por um instante 0 gesto h · o amda sobre a oportunid d d . es1tanlevou-o a dar costas à súc~ ~ a c~rga, mas a prudência inverso. Não se tinha afastado se!Jmr, vagaroso, caminho desferido por alto vareJ'o muito, quando outro dardo, ' u as copas das árvores, num res- 120 1 1 O conde fano talhar perdido. Jano não se alterou com a provocação e manteve o passo. Saltavam, lá atrás, as casquinadas ásperas da soldadesca... Rissem, rissem até ocasião mais azada... Longamente cavalgou Jano, com paragens e repelões, até que a paisagem se foi gradualmente transfigurando e o bosque espesso de antes cedeu lugar a uma mata nodosa, estorcida, de rojo pelo chão. E o aroma das flores silvestres deu vez ao cheiro acre da maresia, e o rumorejo das frondes ao estralejar das águas, rompendo nas rochas, lá em baixo. Falésias altíssimas eram aquelas, pendidas sobre as ondas que por debaixo as escavavam. Muita rocha bravia calcaram os cascos do cavalo, antes que as penedias amaciassem e abrissem caminho para a banda do mar. Na praia estreita, por essa hora, pescadores recolhiam barcas e redes e imobilizaram-se numa desconfiança surpresa, à beira de fugir, quando sentiram o trote do cavaleiro a aproximar-se. Jano desmontou, chamou os homens e com eles entreteve laboriosa prática. Respeitosas e sisudas, as faces em volta denotavam apreensão. Mais que uma vez as rédeas do cavalo mudaram de mão, porque ninguém as queria' aceitar. O conde desapertou a escarcela, distribuiu moedas, mas as mãos não se fechavam para o dinheiro. Finalmente, um homem fez sinal a Jano e foi andando para o mar. Outros homens o seguiram e Jano com eles. O cavalo do conde ficou na areia, seguro e aquietado. De braços cruzados, Jano assistiu ao esforço dos pescadores que reviravam e apontavam ao mar uma barca, varada na areia húmida. Os homens gritavam, cadenciando o esforço. Enfim, a proa redonda, revolvendo os ares, surgiu ao delá da rebentação, e um par de remos saiilhou na espuma. Com água pelos joelhos, Jano içou-se para bordo e inclinou-se para trás. Mas os pescadores, inesperadamente, levantaram os remos ao alto e suspenderam os gestos, olhando na direcção de um espigão rochoso que entrava mar dentro e rematava a praia daquele lado. Espadanando águas, vinham lá sete cavaleiros, empenachados e garridos, 121 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Mário de Carvalho de viseira caída e lanças a pique. Ora a corrente os travava · pelos peitos dos ginetes, ora uma lomba de areia lhes desembaraçava os movimentos e os deixava correr mais céle=-· res. Os pescadores saltaram da barca e, de roldão com as ondas, fugiram para a praia, abandonando Jano, miseravelmente só, na barca que balançava sem norte, ao som da maré. Meio submersos, os cavaleiros cercaram a barca e estabilizaram-na à força de lança. Depois, em silêncio, ficaram à espera, entre as ondas. Jano baixou a cabeça. Pelas cores e insígnias, não havia ali filho de algo que ele não conhecesse e com quem não houvesse privado. Olhou em volta e foi-lhe impossível distinguir qualquer sinal de deferência ou de simpatia por detrás dos ferros que cobriam as faces. Apenas uma mesma e impassível determinação, rígida, impessoal. Reteve a fala inútil. Humilhado, desceu do batel, com água pela cintura e arrastou-se para a praia. Ao abandono, o seu cavalo relinchava, esperando, nas dunas agora desertas. Quando chegou ao topo da falésia, os sete cavaleiros, zelosamente alinhados na areia, ainda guardavam a praia, e o batel derivava solto, mar além... Então meteu-se a trote, floresta adentro, ao encontro do anoitecer. Havia que jomadear mais caminho, sobre todos os caminhos já cumpridos, antes que um certo rio, bem distante, lhe marcasse uma outra fronteira do reino. O Sol foi rasando os copados das árvores, as sombras abateram-se mais espessas e pesadas e os pássaros acoutaram-se entre a negrura. Já os morcegos enavam, atarantados em torno, quando Jano prendeu o corcel que resfolegava de susto e preparou duas fogueiras, perto uma da outra, com minucioso trabalho de pederneira e estopa. Tomou algo do bornal - pão seco e figos - sentou-se contra uma árvore e cravou a espada no solo em frente. Uivavam os lobos, o corcel pressentia-os, e estremecia aos rumores que iam impregnando a floresta. Viessem os lobos, viessem os lobos - desejava Jano, numa ânsia de dar trabalho aos ferros e desagravar nas feras as afrontas da conta dos homens... 122 o conde Jano d 1 e foram desinquietar Mas as alcateias passaram ed arg~ã o conde dormia caça para longe. Ao aproxim:; a ~lh;nta dos pássaros profundamente e nem a az amad rra madrugadores o .despertav_a d~ m~a~ej~ do saltério, tão leMal toscaneJOU ao pnmeir? 0 toque mais longo e d no Foi preciso nov • vado estava o so · estremunhado, e procurasse vibrante para que. se sodergue~s·~a enquanto a mão segurava, com o olhar a ongem a musi ' d t 0 punho da espa a. . espontaneamen e, . dum velho castanheuo, um Deitado entre d01~ troncos . ,sculo saltério, olhando jogralzito risonho dedilha~ u:: ~:~túnica vermelha, com- ~ atrevidamente para Jano. es i lhava com o verde turbante prida e franjada, que não apare om os chinelos de couro mourisco, m~ito à desbanda, ~:;d~scaíam dos pés: de ponta revtrada que quase . T' go mouro' Vai-te!_ arrene , · lh da que pontuou com um A criatura largou uma garga a arrepio musical em crescendo: é entre moirama desamparar _ Grande e rara desonr~ ão· mouro queria eu ser mulher e filhos. Por ende tenas raz . a debandar tão cobardemente ~~m~~~~u uma pedra à figura De fúria, Jano, com um -g~»oHá-de ter ficado encalhada do homem: «- Arreda.' truao. ma volta porque ele nem pela folhagem, ou per.d1da em al~amente o saltério, cantapestanejou, antes dedilhou tranq rolando: Belo Cavaleiro A fugir Vem mui trigueiro... d cordas com força, de modo a E rematou, vergastan o as areceu encher toda a levantar uma vibração sodnoraá q~~ p devagar e dobrou-se floresta. Depois desceu a rv ' numa complicada vénia: . inho senhor cavaleiro... - Para diante não há mais ~às m'ãos ambas e desfeJano saltou, tomando a espa a 123 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Mário de Carvalho riu o golpe de trás num circuito fulminante que fendeu os ares, zunindo. Varou ares e folhagens, mas deixou intacto o pescoço que alvejava. Quando, levado pelo impulso, volteou sobre si, o homem, rindo, de novo tacteava o saltério e trauteava: A fugir Vem mui trigueiro... Não se desviou do segundo arremesso de Jano, desferido de cima para baixo e com tanto vigor que cortaria em dois um cepo grosso de roble. Mal a lâmina atingiu o turbante, a espada vibrou, retorceu-se, ressaltou e foi cair aos pés do jogral. Jano apertou o pulso, dormente do estremeção e deu um passo atrás, assustado. Com gestos delicados, o jogral pousou o salté1io, tomou a espada de Jano entre dois dedos, e entre dois dedos quebrou a lâmina, miudamente, lasca a lasca, como se biitasse uma caninha seca. Ao punho da arma, deitou-o para trás das costas, num movimento sacudido. Jano viu o ferro subir à altura de voo de pássaro, transformar-se num ponto negro em rodopio e perder-se nos céus. Benzeu-se, instintivan1ente. - Isso, benze-te, Jano... - murmurou o jogral, agora com voz aquietada e semblante melancólico - antes de regressares prestes aonde deves... Levantou, levemente, uma das mãos no ar, com a palma para cima, e logo o corcel de Jano se desprendeu, com um trinido e foi andando a passo lento por um carreiro da floresta. Já o conde, cambaleando, seguia atrás do cavalo, quando lhe ocorreu voltar-se para trás e perguntar: «Quem és tu?» Não havia ninguém ao pé do velho castanheiro. Dispersas pela erva, as estilhas da espada faiscavam ao sol. 124 Que negra ventura é esta , 'd ?Que entre nós esta metz a. nde chegou às imediações de casa. Horas mortas, 0 co descaído meio atravessado soFicou-se à sombra .da torredar e dar ' Não teve acção para bre a sela, os estnbos a dema.ndar o portão. Foi um chamar por alguém ou sequerelo rumor de cascos, que o casal de servos, acord~~~s.d a Lua nessa noite mostrava desmontou e recolheu. mgi ªrt .1 que cedo começaria a um círculo de luz terso e pe c1 o minguar... d o deitaram, revolveu-se no leito, agitado Jano, quan ° das acusavam a pasde febres e delírios. As fa.~e~d~:açea ra~agens, como não sagem desacaute~ada p_or s1 v ntada e discernimento nos tendo o conde tido mao na mo caminhos. .1A • a condessa aspergia-lhe as fon-A lado em s1 enc10, . d seu • .nh ara depms 0 choro, o tes com pach~s de águ~. Re~~ad~ ~o marido e da inquietadó que lhe fazia. aquela ~s~ demónio íncubo, tanto mais ção de ter ele s1d~ t~: eº ch:gara a forçar um movimento que perguntava pe a ndo lhe medir o brilho. até à janela para, murmura . t' u as mãos descerraram-seÀs tan~as, o conde1::1~od~spenhou-se num sono pe-lhe, descam para um h de a condessa despedir as sado e inerte. Chegara ~ ora nfim para logo adormecer criadas e dar-se às lágnmas, e ' também, de cansaço. 125 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Mário de Carvalho - Amiga! - ouviu a c d fundo dos sonhos. - Am.on, essa uma voz, emergindo do insistência, sussurrada e d~ga. ~ despertou a condessa à -lhe levemente a mão pel fce.. ano acordava-a, passandode falar... ª ace. - Vem, que muito temos - Pois agora, Jano? . Mas o conde já descia da cam . num convite imprevisto e de 'd'd a ~lhe estendia a mão, seguro de gestos como nã c1. I o. ostrava-se lúcido e mento de antes. 'com delicº sena de esp~rar do seu abatiapenas iluminado pelas úl~deza, c~nduzm-a para o salão, mais luz, acendendo uma to~~s ac .as da lareira. Dispôs movimentos meticulosos e a .resmosa nas brasas, com grande mesa, e ficou-se hirt:rec1sos. Depois, sentou-se à entre surpresa e impaci~nte ' a olhar para a condessa que, - Muito terás decerto ' optou por tomar a iniciativa: rendo manter este des rezo para me con.tar, Jano, não queres, deixando-me... p e esta desfeita de me maltrataE logo, numa ânsia, tomando-lhe a mão· Por-queJano, Jano, que se passa? Onde dei~aste me tem rondado a port a espada? Donde vieste? Que tens? ª 0 sargento de el-rei? A - Tenho encargo de el-rei de te matar . voz de Jano cava r . ... da sala Mais lhe ' ' essoou surdamente na escuridade . · acrescentou a impes ard d tnficação da face e lh so I a e aquela peA condessa, levantou-s~. ~urr':rr: parl~d?, de fitar sem ver. 1 I? epe ao.- ano.. - Antes que a Lua mude senhora Em desalinho, afogueada ' ui ... minucioso, sem se alterar tud~ fh sti s~ber porquê, e Jano, à pedra da lareira de mãos e 01 relatando. Encostada dessa quase desfaiecia. Enco~~~~das sobre o peito, a conguntar, muito sumidamente: ' enfim, forças para per~ E º! meus filhos, quem nos criaria? Ela? ano nao respondeu. · Por penosos instantes, apenas se ouviu 0 leve .crepitar 126 O conde fano das brasas quase extintas. A condessa, de súbito, soluçou, correu para junto de Jano e abraçou-lhe rijamente os joe- lhos: - Oh, Jano, manda ao demo el-rei mais a sua tirania, arrenega da infanta mais os seus cios. Poupa-me, Jano, não te queiras desonrar... Olha... Calou-se, bruscamente, num rebate. Ainda titubeou, em sopro inaudível, mas a fala foi-lhe cortada pela dúvida que, instantânea, lhe transpareceu na face: agarrou a cara de Jano com ambas as mãos enclavinhadas e forçou-o a olhá-la nos olhos: - Tu não a queres, Jano, pois não? Jano chorava - como não havia de chorar? - e quis negar com a cabeça, mas a condessa tinha-lhe a cara bem presa entre as mãos e fitava-o, terrificada, prescrutando-lhe o fundo do olhar. O conde teve de vencer a resistência daquelas mãos, para abraçar a mulher com força. Mas ela já se desprendia, enxugava decididamente as lágrimas, e discorria, muito depressa, alisando tumultuadamente com os dedos estendidos as pregas da saia: - Matar-me porquê, Jano, inocente que sou de toda a culpa? Outras maneiras há de prevenir seja eu estorvo e empecimento a tais desígnios sem agravo tamanho a Deus. Nota... Lá recolhido nos montes há um convento minúsculo e pobríssimo, entre penedias, afastado de todos os caminhos. Aí me poderias deixar envelhecer, miserável e abandonada, sem que ninguém o suspeitara. Olhando fixamente para o fogo, de olhos aguados, Jano nada disse. - Também... Meu pai está velho: de bom grado e em festa me receberia de novo na sua casa de viúvo, bem longe deste reino e ao recato das suas intrigas; e eu saberia guardar-te a fé, Jano... Bem olhava a condessa, suplicante, para Jano, que do abatimento de Jano apenas silêncio vinha. - Ou então prende-me nos fundos duma torre, onde eu não veja sol nem lua, e esquece-te de mim, e deixa que a 127 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Mário de Carvalho infanta se esqueça... Eu desa . empecilho, mas, suplico-te ~arecere~, Jano, eu não te serei . A palavra do conde ' o me t~res ~ meus filhos... nocórdica, como a de um o~~~~Ío:enfim, unpessoal e mo- Os nossos filhos não · . ver... v1venam, se eu te deixara vi- A condessa voltou-se d tou-se. Falava agora de um e costas. Parou, hesitou, afasda tocha mal che ava A a zona de penumbra, a que a luz pausada: g · voz era-lhe estranhamente nítida e - Ah, Jano, que não te 0 . tocar o tambor, reunir servos eco1~eu mandar pelos campos ameias e resistir até ao cnados, acender fachos nas el-rei entrasse a 'torre e consumo das tuas forças, até que passados... Diz-me Jano edn1~zontrass.e os nossos corpos tres' • -me amda que · - Confrontar el-rei? . vais... - Em armas? . - titubeou Jano com estranheza. Tardou a voz da condessa d ar como ~ma lâmina de gelo: ' esenganada; mas fendeu o - Misero me saiste me d , . .Em dizendo isto, foi' estr~m~~~ e, misero e p~ltrão... mstintivamente pelo tosco rectân da de u?'1 arrep10 e olhou pela luz macia do luar N- .gula da Janela, preenchido clive fronteiro, pareceu~lheª~·~uito. Ionge, ao correr do deras de uma cavalgada istmguir o reflexo das armaduos sinais de el-rei. que, vagarosa, passava adiante, com Voltou-se apavorada ara J . mas o conde já não estav~ senta~o, ànum gesto suspenso, mando-se à ombreira saía pela a o dmesa. Trôpego, arriAb t ' porta o salão a eu-se a condessa sobre u . . mou, cismou... m escabelo, e cismou, eis- 128 1 1 Que eu não me pesa da morte, Pesa-me da aleivosia... Eis a condessa na lôbrega sala de armas que o primeiro claror do dia, compondo as sombras, mal iluminava por seteiras altas. No solo de terra batida, ardia ainda confusamente a tocha que ela trouxera e deixara tombar. Ali se dispunham, em molhos ásperos e ameaçadores, as armas do senhorio. Chuços, escudos, maças de guerra, bestas e espadas, amontoavam-se, pardacentos, contados e em ordem, untados de óleos, num repouso feroz. De olhos afeiçoados à obscuridade, mãos cruzadas no regaço, a condessa procurava... Depois de o conde se ter recolhido ao quarto, deixara-se ficar algum tempo no salão, de cabeça entre as mãos, tristemente pensativa. Depois, com movimentos cautelosos e silentes, regressara ao quarto .e escolhera, de certa arca, os seus vestidos e jóias de mais alto preço. Ouvia, perto a respiração de Jano que, pesadamente prostrado, ao través do leito, adormecera de novo. Beijou os filhos, alongadamente, arrebatou uma tocha da parede e, por atormentados corredores e degraus rudes, dirigiu-se à armaria. Agora tacteava, lenta, entre as espadas, ordeiramente encostadas a um canto. Rejeitou uma toledana, de punho trabalhado e cravejado de pedraria, que primeiro lhe chamara a atenção, para desprender da parede um alfange mouro, rico e dourado, tomadia do conde nas corre1ias da Síria. 129 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely. Mário de Carvalho Desembainhou a lâmina recurva e, sem pressa:, experimententou-lhe o gume com os dedos. Um fio de sol rom~ peu da seteira e despertou um brilho colorido num escudo armoriado. Soaram vozes ao longe. Os criados levantavam-se: amortecidos, chegavam os primeiros rumores da azáfama doméstica... Jano não quis logo acordar, à voz da condessa. Teve ela de repetir o chamamento: «Jano, vem...» Com dificuldade o amparou a erguer-se e com paciência o ajudou a vestir-se. Meio sonâmbulo, sem uma palavra, o conde deixou-se conduzir pela mulher. Apenas hesitou, quando uma pequena porta que dava para o campo foi aberta, e a luz do Sol, brusca, lhe confundiu o olhar. Serena, a condessa esperou que Jano se acomodasse à claridade e ao ar livre. Depois, tomando-o sempre pela mão, conduziu-o até um caramanchão que naquele local havia. Com uma vénia, estendeu a Jano o alfangc nu e, num trejeito gracioso, desape1tou o vestido, descobiiu o pescoço e assentou a cabeça num tronco baixo. Jano levantou o alfange bem alto, mas foi preciso um sorriso encorajador da mulher para que o deixasse cair, zunindo e em força. Sabeis como. 130 Tocam n'os sinos na s~..? Ai Jesus, quem morreria. b 1 a umaaltura pende e a ouç Da sela de Jano, a pequena 'm embrulho redondo, , bandeja de ouro e urede com uma manchado, de torv? burel. ara o burgo, mas tão arqu~a- 0 cavaleiro va1-ª chout~!ido de movimentos, que dirdo sobre o arção, tao despr ntada e abandonado da pró-se-ia levado por vontade da mo pria. da movimentação de peões, nem Não dá conta da desusa . olta nem do dobre d. luto nos grupos em v ' das roupagens e ' d nas torres sineiras. . . a finados, seco e pausa o, . com uma cruz e o v1.áttco Têm de se afastar um frade, conde se deixa ir de e o~ seus acompanhantes, po~;~eo~nterpelar, tão curvado, roldão. Ninguém tem alma p d. te ele se mostra. 't . abatido e 1stan . s do pregoeiro que gn ª·. Nem parece ouvir os eco . . fanta que esta noite se - Luto, luto pela senhora m ' finou... á 1 Deteve a montada.Saía o sargento a procur - o. Deixou-o passar. 131 Studijní text je určen pouze pro použití ve výuce pro ilustrační nebo vědecké účely.