RODRIGUES VIII MIGUELS JOSE WEIS cparscoa 1. » EDIQÄO: 1932 (Ed. Alfa) 2. " EDigÄO: Setembro de 1958 3.1 EDIQÄO: Fevereiro de 1965 4." EDIQÄO: Novembro de 1974 I -'X'w Filozofická fakulta Univerzity Karlovy v Praze * 2 5 5 4 1 1 5 3 5 Direltos literários reservados Editorial Estúdios Cor, SARL Lisboa 1974 O juiz mandou-me finalmente erguer e, sem tirar os olhos dum mago de processos que tinha sobre a mesa, perguntou-me: — Tem mais alguma coisa a alegar em sua defesa ? Era um hörnern de olhos pequeninos, penetrantes, entrincheirados nuns oculos de miope, e tinha os cabelos raros e revoltos sobre a testa vasta e luzidia. Acompanhara todo o julgamento com a mesma automätica indiferenga com que certos padres oficiam. Digo mesmo: como se näo acreditasse na eficäcia da Justiga. O delegado, esse, compusera uma grande e nobre seriedade para a galeria, que seguiu com avido interesse o julgamento, näo decerto por amor da Justiga, nem porque eu lhe inspirasse comiseragäo: mas para ouvir relatos dramäticos e torpes. Que disse ele na sua acusagäo? Näo me posso lembrar precisamente: coisas confusas, palavras ocas, gestos... Apenas sei que terminou 7 255411535 JOSS RODRIOUES MIOUBIS pedindo contra mim a mais grave das penas aplicaveis aos meus crimes. Quanto aos senhores jurados, bocejavam, quando nao dormiam. Do meu defensor, e estra-nho, mal me lembro. E inutil insistir. Ai de mim, no meu passado alguma coisa ha-de ficar inexplicavel. Durante o julgamento cai provavel-mente numa destas letargias que me alheiam por completo do ambiente. Desde muito novinho que certos estados de abstracgao, ou de torpor, me perturbaram ou inibiram a atengao: durante eles o espirito corao que me abandonava, deixan-do-me entregue ao puro mecanismo vegetative Estremeci. A pergunta do juiz fez-me voltar a mim. Ergui-me e levei a mao direita ao bolso interior do jaquetao, na intengao de puxar do manuscrito que compusera para ler ao tribunal. Um instinto, porem, advertiu-me a tempo: em lugar dos papeis, saquei do lengo, e enxuguei com ele o suor que me escorria da testa. Deixei o rolo no fundo da algibeira, e, depois duma pausa, com as maos pendentes, inclinando-me um pouco, respondi com voz nitida e pausada: — Declaro mais uma vez que pratiquei todos os crimes de que sou acusado! Ao dizer isto, o meu coragao palpitou viva-mente, de quase amorosa alegria. — Esta bem — disse o juiz, sem olhar para mim. — Sente-se alem e espere. — Ai nao, daquele lado! — explicou o bele-guim, atalhando-me a passagem. PáSCOA FELIZ Ouvi atrás de mim um solugo abafado num lengo (era a Luisa) e depois um rumor de comen-tários excitados. Senti-me cheio de orgulho e ati-rei um olhar de desafio ä multidäo que enchia o tribunal. É que eu sou na verdade um caso raro! Sentei-me num banco, junto da tela, no meio de outros reus, que me olhavam com estranheza e curiosidade. Um deles, que eu nunca vira, aco-tovelou-me e disse-me ao ouvido num tom de voz familiar e um hálito medonho: — Apanhas a carga toda! Encolhi os ombros com indiferenga. Houve em seguida um burburinho; os senhores jurados ergueram-se, batendo as solas no estrádo, esticando as pernas que a imobilidade entorpecera, e foram saindo em fila por uma porta baixa, ao fundo, conversando e rindo, com muitas vénias e teimas, enquanto o juiz, reani-mado, dava instrugoes ao presidente. O delegado sumiu-se, muito digno, sobragando a pasta. No väo duma janela, dois advogados de longas cabe-leiras discutiam como dois fariseus sobre pontes da Lei, com afectada e quase cómica solenidade, e segredavam rindo. Na bancada da defesa, absorvido em admiragäo e estupidez, um estu-dante seboso e cabeludo procurava fixar-lhes a atitude e o gesto. Era o meu defensor! O eseriväo näo se mexeu do seu lugar: ama-relo e distraído, tinha o ar dum processo arqui-vado e esquecido sob o pó. Conservou as mäos descoloridas e magras eruzadas sobre o pano vermelho da mesa, todo esburacado, e näo se atrevia a fitar-me nos olhos. Reparei no entanto 8 9 JOSE RODBIOUES MI Gl! £13 que me observava a espagos, disfargadamente, com uma expressäo de mägoa ou piedade; entäo, pus-me a olhä-lo com tal insistencia que o obri-guei a corar. Ri-me e deixei-o em paz. E quase certo que, lä por dentro, me chamou cinico e descarado. 0 tempo corria devagar, naquela sala que mais parecia um longo esquife, de paredes empoeira-das com paineis antigos de azulejos pintados a flores convencionais. De quando em quando ouvia-se o tilintar das armas dos soldados. Uma aranha, indiferente äs miserias e pompas da Justica, tecia a sua tcia num velho bico de gas, sobre as nossas cabegas. Cheirava mal: a suor, a aguardente e a po. O ar espesso e envenenado entorpecia. Os guar-das dormitavam de pe. O rumor das conversas subia num crescendo, ate que o beleguim lhes punha termo com um berro. Podia-se entäo ouvir o zumbido de duas moscas que turbilhonavam sobre a calva do escriväo como dois acrobatas numa pista. O pobre hörnern sacudia-as com um desespero fatalista. Assoei-me para que näo me vissem rir. Nesse momento, um sujeitinho gordo e corado veio cochichar-lhe qualquer coisa ao ouvido, deu--lhe uma palmada amigävel e eloquente nas costas atrofiadas, e desapareceu, sorrindo para a turba com ar de alegre suficiencia e fazendo adeusinhos com a mäo papuda para todos os lados. Era um causidico famoso nos anais do 10 PASCOA FBLIZ crime. Conclui que o escriväo devia sofrer de enterocolite mucomembranosa e de contrarieda-des domcsticas. Mas tanta expectativa acabou por me impa-cientar: para que diabo haviam de perder tanto tempo, se a minha condenagäo era certa e segura, e eu a desejava do mais intimo da alma ? Pensei na penitenciária, e alvorocei-me: devia ser bem melhor que o tribunál. Este aparato sem digni-dade nem grandeza, a acumulagäo de gente, o movimento incessante, a companhia dos outros réus, tudo me desviava dos meus interesses mais vivos e profundos. Eu näo tinha sequer esbogado uma defesa. Estava morto por me vcr dali para řora, condenado, arrumado para sempře, livre do mundo. Minha mulher esperava atrás de mim, para alem da teia. Voltei-me a olhá-la, e via-a sorrir entre as lägrimas. Creio que me fez um sinal, mas näo cheguei a percebé-lo. Tinha os olhos pisados. Ergui os ombros, desinteressado, pois nenhuma dor, nem mesmo a dela, já me impres-sionava. Ao contrario, desejaria näo tornar a vé-la, esquecer tudo, seguir um rumo novo. A dor humana perdera para mim todo o sentido. O manuscrito que eu tinha na algibeira era a tentativa de explicagäo do meu procedimento. Näo se riam. Näo queria, com ele, atrair sobre mim a eomplacéncia do digno tribunál, mas provař que a natureza do meu crime era duma complexidade excepcional, que o punha fora e 11 JOSS B OD BI OU E 8 MIGUSIS PÁSCOA FELIZ muito acima dos seus fáceis juízos. Escrevera-o á pressa, na cadeia, durante a instrugáo do meu processo, pensando, comovido, no efeito que a sua leitura iria produzir no julgamento. Mas na verdade, que importavam áqueles homens indi-ferentes as razoes do meu crime e da minha serenidade, que eles por certo classificaram de cinismo ? Os cidadaos desejam que se lhes torné o mais leve possível o «direito» de julgar. Teriam mor-rido de tédio, ter-se-iam talvez rido, ao escutar a verdade minuciosa dos meus estados de alma. A Verdade, para os cidadáos, é sempře cómica ou corrosiva: desperta o riso — ou reclama medi-das de seguranga. A que interessa aos tribunals é uma verdade formal, relativa, decalcada nos figurinos da Lei. No fundo, os jurados eram necessariamente estúpidos: a ordem psiquica e moral estava-lhes vedada. Factos! Factos! — Eu seria para eles, apenas, o homem que matou para roubar. De repente, abriu-se a porta do fundo e o beleguim bradou: — Está reaberta a audiencia! Fagam favor de se alevantar! O juiz e os jurados entravam de novo no pre-tório. Toda a sala se encheu de rumor e agitagäo. Respirei aliviado. Era o epílogo da farsa — para mim, o comego de tudo. Ä custa de ameagas e empurrôes, no meio dos quais se erguia o choro desesperado e agudo duma crianga, tudo serenou em menos de um minuto, e o presidente do júri, todo curvado, ajeitando as lunetas aflitivamente, leu quesitos e respostas no meio dum siléncio tumular. A sala inteira parecia pender dos seus lábios ressequidos e incolores. Atrás dele, hirtos e inexpressivos corao acólitos de padre num enterro, os jurados esperavam a sua própria libertagäo. O juiz interrompia äs vezeš a leitura, impaciente, para dar esclarecimentos, e eu mor-dia a boča para náo rir nem gritar. A cada resposta — «está provado por unanimidade» — acendia-se um rumor de comentários. O juiz sen-tou-se por fim, e, folheando um velho código de folhas amareladas e cobertas de notas, redigiu rapidamente a sentenca. Ouvia-se o ranger do aparo, o rogar das folhas do livro e o pigarro dum jurado velho. Chegou-me um aroma fresco de laranja vindo da janela, como um raio de sol... Apanhei a carga toda, conforme profetizara o camarada. Senti-me empurrado, sacudido, levado pelo brago. Seguiu-se uma enorme confusäo. Náo me posso lembrar do que se deu a partir daquele instante: recaí decerto no meu alheamento, como num sono de ópio. Só muito mais tarde, na cadeia, consegui com muito esforgo, e mesmo assim com falhas, reconstituir a cena do julgamento, que de todo se me varrera da memoria. Näo há dúvida, eu reconhego que há qualquer coisa em mim. Por isso já näo estranho que estas recordagoes me subam indistintas, enevoadas, sem nexo — como se outro, e näo eu, as houvesse vivido. 12 13 II into-me bem nesta cadeia. É um belo edifício claro, em pavilhoes de dois andares, isolados no meio duma grande cerca arborizada, que um alto muro separa, julgo eu, de caminhos e terras cultivadas. Nenhum rumor chega de fora. Ás vezeš, vou até junto desse muro, que a hera muito densa envolve de poesia, e, numa sombra repousante e fresca, abandono-me a ouvir os pequenos murmúrios da terra e do ar —uma folha que tomba, um pássaro que trila, um insecto que zumbe, um gorgolejo de água — e assim levo muitas horas do meu dia, meditando e escrevendo, como os frades antigos, até que um toque de sineta me venha chamar para a comida ou para o recolher. Tudo me parece raro, novo e extraordinário. Só agora descubro o oculto sentido de muitas coisas — e mais pela emogáo que me provocam do que pelos juízos que formulo. Assim, depois 15 PÄSCOA FELIZ JOSS R OD RI QU ES MI QU BIS dos meus erros e crimes, pergunto a mim mesmo se será legitime viver com tanta calma e des-preocupagäo: um criminoso näo deveria ter dores, ser torturado? A punigäo é apenas isto? Sim, tenho há muito a impressäo de que vivo num sonho. A vida corre com uma serenidade impressionante. Penso quanto, noutro tempo, eram felizes os homens a quem se concedia o direito de fugir, como eu fugi, afinal, ä vida angustiosa do mundo. Quase me julgo feliz. E porque näo? A cadeia näo é como eu supunha, nem o que se diz lá fora. Nada nos falta, tratam-nos bem, embora vivamos numa quase completa solidäo. Isto a mim agrada-me, de resto: aborrego o con-vívio dos homens. Só na aparéncia os considero meus semelhantes. Aqui, sou apenas um numero: o 28. Vejo agora quanto a criminologia tem pro-gredido no sentido da mais ampla liberdade: cada qual faz o que quer — ou näo faz nada. Muitos presos passam os dias metidos na cama. O tra-balho deixou de ser obrigatório. A regeneragáo do criminoso obtém-se agora, ao que parece, por uma forma espontánea, a que eu, se däo licenga, chamaria a «psicoterapia da indulgencia». Toda a casa é irrepreensivelmente asseada. O meu quarto é branco, limpo, tem um tecto alto e uma enorme janela sem grades, donde enxergo um vasto panorama de pinhais e terras de lavoura. Näo posso deixar de registar, no entanto, um facto muito estranho: äs vezeš, durante a noite (eu durmo pouco e tenho o sono leve), sobres-salto-me ouvindo gritos, discussoes, gemidos, um rumor de luta e de pancadas, e mesmo um esti-lhagar de vidros... A primeira vez que tal acon-teceu, cobri-me de suores e fiquei todo arrepiado. Receei que se aproveitassem da noite para nos aplicar um tratamento um pouco rude. Como tudo se calou, tornei a adormecer. O caso repe-tiu-se, e cheguei a julgar-me vítima de alguma ilusáo. Porque gritavam ? Intrigado, ergui-me várias vezeš para eseutar, mas acabei felizmente por me desinteressar do que se passa nesta grande casa de aspecto misterioso. Sáo presos que se revoltám, ou que brigám, e a quem apli-cam penas corporais ? Náo sei. Renuncio a sabě-lo. Ninguém me dá, nem eu peco, explica-goes. Nada me importa, os outros náo existem para mim... Que fagam como eu: calo-me, obe-dego, vivo tranquilamente. De que serve a liberdade ? Livre, o homem corre ao precipício. Outro facto que de comeco me indispos: náo me deixam ler os jomais, nem mesmo os anti-gos, onde poderia encontrar certos dados cuja falta me perturba. Que terá dito de mim a grande imprensa? Náo tenho notícias do que vai pelo mundo. Náo sei mesmo onde me encontro. Vivo como um cenobita. Isto é bom. O que desta gente me separa é o receio de ser diferente, um outro. 17 16 3 JOSE R0DRIGVE8 MIGVĚIS Oh, este horror de sentir a realidade fugir sob os meus próprios passos! Trabalhosamente, re-componho o «Eu», que a presenga dos outros dissipa e confunde. Isto é claro e horrivel... Muitas vezes, subita-mente, parece que deixo de ser eu, e a propria ideia do meu crime se obscurece, o meu passado é outro, como se uma forca poderosa me arras-tasse para um novo piano da existéncia. Entäo, fujo e luto comigo, a sós, desesperado. O isolamento e a calma da prisäo permitem-me pensar melhor e ordenar tantas reeordagöes. Embebido em mim mesmo, sinto arder, mais vivo, o meu poder de concepgäo, e ainda espero compor alguns volumes de análise introspectiva. Vou meter o Nietzsche num chinelo. Penso äs vezes com piedade na insensatez dos que lutam apaixonadamente pela vida livre; chego a rir do meu proprio passado, eu, que já me deixei arrastar pelo remorso e pela dor. Agora sinto-me perfeitamente sereno. Näo ima-ginam o que isto representa para mim! Estou sentado a escrever; sinto um sopro de Primavera vir de fora, pela janela aberta, nos raios do sol, e ougo na cerca o ramalhar das árvores cobertas de verdura nova, que o vento acaricia branda-mente. Vozes... Também um sentimento novo de alegria me agita o coragäo. Toda a gente aqui tem, para mim, deferéncias impressionantes. Só alguns dos companheiros, pobres náufragos que passeiam como eu na cerca, PÄSCOA FELIZ parecem querer äs vezes provocar-me. Que mal Ines fiz? Estranhos tipos a quem a clausura parece ter roubado o senso! Dizem coisas perfeitamente infantis e sem sentido; mas os guardas que nos vigiam levam-nos logo para longe de mim. Näo me admira que estejam loucos, se, como se julga, o isolamento produz graves afecgöes, mesmo em quem foi sempre equilibrado. Sim, a solidäo e um privilegio de raros, o dominio dos fortes! Uns aproximam-se para me fazerem con-fidencias absurdas ou monstmosas. Um declarou chamar-se Ivänov e ser domador de leöes: e um pobre raquitico, que mal se tem nas pernas. Outro jurou-me ser o Imperador Guilherme, e estar aqui esperando que o Hindemburgo o venha buscar para tomar Paris de assalto. Provavel-mente säo as alcunhas que outrora lhes deram, e com as quais as suas imaginagöes sobreexcita-das compuseram lendas... Outros insultam-me ou segredam-me obscenidades, aventuras de amor que säo de arrepiar, ocorridas aqui dentro, com mulheres misteriosas que ninguem sabe donde vem nem para onde väo. E hä os que me fazem gestos lascivos ou provocadores, de longe, por entre as ärvores da cerca. Volto-lhes as costas, com indiferenga. Nem ja sequer me causam piedade. Por que os näo metem numa enxovia? Recebo poucas visitas e, coisa estranha, näo reconhego algumas das pessoas que se dizem das minhas relagöes. Interrogam-me, invocam 18 19 JOSS RODBIGÜBS MIGÜHIS nomes, datas, olham-me com espanto e curiosi-dade. Com franqueza, irritam-me. Äs vezes tra-to-as mal. A impressäo que me fica e de te-las conhecido, sim, mas numa vida anterior de que me näo resta lembranga viva... Ha certos enigmas contra os quais luto em väo. Säo talvez pessoas que se interessant pelo meu «caso»: romancistas, quem sabe, ou psicologos. Deixä-lo. Minha mulher tambem vom, äs vezes na companhia de estranhos. Faz-me do. Olha-me com tristeza e com receio, corno se eu estivesse transtornado. Veste de escuro. Trabalha decerto para comer, e tem os olhos pisados. Agarra-se de repente a mim, a solugar, e diz-me: «Lem-bra-te! Lembra-te!...» Oh, meu Deus, estas cenas perturbam-me, e eu näo posso, näo posso mais! Sinto que perco o equilibrio... Deixem-me so! Deixem-me so! Que queres tu que eu recorde ? Por que teimam todos que me lembre ? Que me lembre — de que ? de quem? Recebo-a, pois, sem nenhum entusiasmo. Ima-ginem que äs vezes me vem surprcender num dia de inspiragäo ou de trabalho: procure despa-chä-la o mais depressa que posso. As mulheres imaginam que nos devemos sacrificar os mais altos fins da existencia äs futilidades sentimen-tais, ou ä recordagäo do que passou — do que deixou de ser. Quero-me so com o meu presente. O passado näo me importa. E bom adormecer com a certeza de que «amanhä» serä uma coisa diferente. Por-ventura o eu de hoje continua o de ontem ? 0 pas- 20 PASCO A FB LIZ sado nao existe, e uma ideia que alteramos a nosso gosto. Cada dia que nasce traz uma vida nova. Entre nos tudo acabou. Tenho pena dela. Mas porque nao se divorcia? As mulheres nao com-preendem certas coisas... Se encontrasse um marido honesto e dedicado, ainda podia ser feliz, e eu ficava contente. Como eu consigo ja nao ter ciumes! E acreditem: estimo-a muito. Pobre Luisa!... E preciso ser puro. Mas ela nao entende! O director da cadeia é muito amável para mim. Náo sei que lhe fiz. Tem comigo atengoes que náo posso esquecer. Anda sempře de bata muito branca. Interroga-me as vezes demorada-mente, e já conseguiu reavivar-me a lembranga de certas coisas que eu julgava ter esquecido para sempre, talvez por sérem táo banais. E fa-lo de tal modo que náo me atrevo a resistir-lhe. — Ves tu ? — disse-me ontem de manhá, sen-tado na minha cama. — Já conseguiste recordar coisas bem sugestivas. Temos de continuar! Prometi mostrar-lhe este manuscrito, logo que o tivesse acabado. (E a revisáo do que levei ao tribunal.) — Pois sim. Mas trabalha devagar. E escreve tudo — tudo! — É impossível. Há coisas que eu náo consigo esclarecer. — Mas faze um esforgo. Talvez eu possa aju-dar-te. É para teu bem. 21 JOSE RODRI QU E ä MIOUSIS PÄSCOA FE LI Z — Mas eu näo quero sair daqui! Acorda-me de noite, sem motivo aparente, para me fazer certas perguntas. Mostra-me retratos, conta-me incidentes que me parece ter ja Udo algures... — Häs-de curar-te — diz. — Hei-de acabar por te restituir a memoria completa de ti mesmo! — E de repente: — Quem era o Abilio ? Estremeco. O Abilio... Uma angüstia inde-f inivel: — Espere! Espere! Eu lembro-me... Conheci um... — Quem era? Onde vivia? O Abilio... Eu sabia, eu sabia! Mas <§ impos-sivel distinguir... Eu quero, mas hä um muro que me separa näo sei de que... Uma angüstia, como se dentro de mim um animal lutasse contra a minha vontade... — Näo posso! Näo posso! Näo quero... Äquele simples nome, tudo se convulsiona em mim. — Ha um mes näo conhecias este nome. Hoje conhece-lo ? — Conhego... — Obrigado. Obrigado — porque? Que interesse tem ele nisso ? Que lhe importa o que adormeceu cä dentro? Detesto que me fagam perguntas. O que houve em mim foi um simples conflito dos meios e dos fins. Todo o meu drama se resume nisto. Näo discutam se sou mau ou bom. Os actos säo bons ou maus, näo segundo a vontade, mas segundo os efeitos. E há fatalidades que nos impelem, através do mal, para um destino de beleza perfeita. A ideia do mal faz-me. pensar na Sociedade: estamos quites! Nada fez por mim, nada lhe devo, vivi ä margem dela como um eardo ä beira dum caminho. Também a näo acuso. Näo passa duma abstracgäo para que apela quem já nada espcra de si mesmo... Näo há senäo individuos. (Verdadeiramente, só eu existo, eu e estes pen-samentos.) E todos exigimos dela alguma coisa! Mas porque hei-de eu pensar no mundo ? É um hábito que fica. Detesto a vida activa. Os ges-tos que fago, os passos que dou, perturbam-me a vida interior, que é o meu prazer. Esqueci-mento, quietagäo! Doutor, näo me olhe assim! Näo me pergunte mais nada!... Tenho amor a esta casa onde adquiri a certeza definitiva de que existo, porque penso. Nesta hora solené em que revejo, comovido, a minha biografia, para que hei-de mentir? Eu sou o hörnern que obedeceu. Näo me considerem pois um criminoso. Eu já sofri. Já fui um descontente, um revol-tado, se quiserem. Hoje vivo serenamente. A serenidade é a maior virtude da inteligencia. 22 23 Ill -NT AO suponham agora que eu vá contar-lhes toda a minha vida: uma vida conta-se em duas palavras — ou entäo nem mil páginas de prosa cerrada chegam para contá-la. Quero porém (numa preocupagäo de rigorismo, ouso dizer, científico) dar-lhes o quadro geral duma existencia, o terreno em que teve lugar a luta de que hoje lhes vou falar. Chamo-me Renato Lima. B um nome que nada oferece de particular, se exceptuarmos näo sei o que de poético ou novelesco que poderia dar lugar a erradas interpretagôes, quer dizer, a uma ideia falsa da minha personalidade. Em primeiro lugar, näo tenho interesse algum, podem crer, em esconder o meu verdadeiro nome. Para qué, se tanta gente com certeza o conhece dos relates da imprensa? Em segundo lugar, os nomes däo-nos fisionomia, ou completam-na. Aí está um 25 JOSÉ BO D RIGU E S MIGUÉIS PáSCOA FELIZ belo tema para um estudo: a que obedece a escolha do nome? que obscuras razoes influem nessa escolha? como é que o nome pode relacio-nar-se com a fortuna do seu portador? Ě um velho e profundo problema, como todos aqueles que o vulgo anónimo tornou a sua conta. Assim, náo mostram as raparigas casadoiras uma deci-dida preferéncia por certos nomes? Até, se náo me engano, mais de uma cantiga popular con-sagra o princípio das relagoes verdadeiramente herméticas do nome e do destino, ou das qua-lidades do seu portador. Muitas vezeš, com um simples nome, construímo-nos de certas pessoas imagens que a realidade contesta: em geral, fica-mos surpreendidos, se náo despeitados. Ora, do nome de Renato náo sei se falam cantigas; mas, no que me toca, a sua origem é perfeitamente novelesca. Minha máe era novinha quando A Comarca de Riomil — donde era natural — andou publicando um folhetim de aventuras polí-ticas e amorosas, cujo protagonista, «Renato», reunia a uma rara beleza varonil uma grandeza de ánimo que o levava a sacrifícios indescritíveis e as situagoes mais patéticas. Infelizmente, os irredutíveis antagonismos políticos entre «per-netas» e «cachimbanas» (assim se chamavam na terra os dignos representantes das duas corren-tes ao tempo dominantes no Reino) asfixiaram precocemente o esperangoso hebdomadário e, com ele, o Renato das Paixoes Nobres. Minha máe guardou dele uma lembranga imperecível — que eu estive longe de confirmar. Várias vezeš tentei, sem resultado, descobrir nas bibliotecas a obra, cujo autor me é desconhecido. Gostaria de com-parar dois destinos... Tenho trinta e seis anos, sou casado e natural de Lisboa. Meus pais éram ambos da Eeira, e há muitos anos já que descansam algures. Nada sei desta família obscura que saiu da terra como as árvores e os bichos — e para lá voltou. Éram gente humilde. Mas a genealógia nunca foi o meu forte. E eu próprio me habituei desde cedo a näo contar com os parentes. (Ou foram eles talvez que a isso me habituaram.) Meu pai trabalhou muitos anos numa fábrica de cervejas e gasosas. Ainda hoje, o cheiro peculiar que essas fábricas espalham me dá urna tristeza desgarradora. Também recordo os seus sonos atroadores, e as suas iras, que minha mäe aparava nas costas, resignada, e a mim me faziam fugir de casa chorando de terror. Era um pobre homem bogal, deformado pelo traba-lho e as privagôes, peludo, a cor terrosa, de olhos encovados e inexpressivos que só a ferocidade fazia fulgurar. Falava pouco, em grunhidos que lhe saíam por entre os bigodes murchos e sem cor. Näo me lembro de o ver sorrir, beijar-me, falar comigo, acariciar-me com a sua mäo nodosa e cabeluda. Nunca me levava a um passeio, como os outros pais fazem aos filhos. A sua presenga enregelou-me sempre. E apesar disso, näo é estranho?, eu amava-o. Era talvez antes a ideia de ter pai que eu amava! Enternego-me äs vezes vendo na rua certos homens que me fazem pensar 26 21 PÄSCOA FE liZ JOSS RODRIGUES MIGUSIS nele: azeiteiros, vendedores de hortaliga, e sobre-tudo os vendedores de vísceras de vaca, que těm qualquer coisa de feroz nas máos sempře ensan-guentadas. É talvez um sentimento de tardia, inútil piedade. Um dia, já ele tinha morrido, minha máe leva-va-me pela máo, numa rua da Baixa, quando vi um carroceiro que guiava o seu cavalo a trote. Náo sei porquě, reconheci nele meu pai, e, lar-gando a máo que me retinha, deitei a correr pela Rua dos Fanqueiros abaixo, e a gritar como louco: «Pai! Ó meu pai! ó paizinho!» Muita gente parou a olhar enternecida este pequeno que queria por forga o seu pai... Minha máe, aflita, corria atrás de mim tentando desenga-nar-me. Por fim, o homem percebeu que os gritos eram com ele (ou alguém lhe fez sinal), puxou as rédeas ao cavalo, e voltou-se para mim. Estendi-lhe os bragos. Condoído, pegou-me ao colo e levou-me a dar uma volta na carroga pelo Terreiro do Pago. Maravilhado, abragado nele, foi essa a única vez que beijei meu pai — naquele desconhecido. Quando me depós no cháo, ao lado de minha máe, o carroceiro perguntou--lhe se ela náo me queria vender: «01he que eu sou pai de seis filhos!» A pobre recuou horro-rizada, e eu fiquei definitivamente sem pai. Minha máe engomava roupas para fora, cui-dava da casa e de mim, cozinhava quando havia o que, corria a casa dos fregueses, ao «prego» e as compras, falava sozinha, chorava sentada num banco da cozinha — e só náo descansava, porque o repouso, essa difícil ocupagáo, parecia náo estar previsto no programa do seu destino. Vejo-a sempře com um vinco de sofrimento e inquietagäo no rosto pálido e macio, só agora o percebo: precocemente envelhecido. Havia nas nossas «relagöes» um Senhor Con-selheiro que morava na Rua do Salitre, numa casa com passadeiras e palmeiras em vasos na escada, e que veio a desempenhar na minha vida um papel de importáncia. A única fungáo dos conselheiros foi, de resto, sempře essa — repre-sentar papéis de importáncia aos olhos dos simples e dos humildes. Tenho o cabelo preto, com bastantes brancas, e agora uso-o cortado muito rente. Nunca fui simpático nem agradável. Um dos rneus martí-rios foi sempře ver-me ao espelho: tenho o rosto assimétrico, os olhos divergentes, as orelhas espalmadas. Ah, se um aspecto insinuante con-tribui para nos fazer triunfar na luta pela vida (pensava eu), com certeza que devo os meus insucessos aos caracteres que me distinguem! É bem certo que os homens olham com desprezo e rancor os seres defeituosos. Senti-o muitas vezeš... Ultimamente o meu estrabismo acen-tuou-se. Na escola puxavam-me as orelhas desumana-mente. Seria isso o que as tornou táo grandes ? Tinha eu sete anos quando uma velha, que visi-tava a minha máe, me disse, acariciando-me a cabega: — Meu lindo menino, tem as orelhinhas gran-29 28 josé h odri G ue s UIGVSia päscoa fe liz des. Há-de ser muito rico... As orelhas grandes sáo sinal de fortuna! Com as minhas orelhas esticadas, fiquei á espera da sortě grande, que nunca veio. Ainda há dias, no gabinete do director, olhei-me de relance no espelho. Fez-me pena e revolta a minha imagem. Os ombros estreitos e avangados, o peito cavado, a cor macilenta. Quem olhar para mim, verá logo o pequeno triste e pálido que eu fui, batido pelos reveses que um destino incompreensível costuma acumu-lar sobre as criangas tímidas e débeis. (Era por isso, com certeza, que eu cria táo fervorosamente em Deus e nos santos.) Suportei caprichos inde-corosos de colegas brutais e passei sob a indi-ferenga, alta corao os arcos das Águas Livres, de mestres e prefeitos. Nunca me olharam com carinho — exeepgáo feita de minha máe, que tinha sempře os olhos rasos de água. Desde cedo, por isso, armazenei desejos de uma ternura nunca experimentada e sonhos de vinganga. Um dia, uma garota deu-me um beliscáo e fugiu a correr e a gritar: — Adeus, ó pata-choca! — Ó pata-choca! ó pata-choca! Um riso imenso encheu a escola. Escorre-gou-me das máos trémulas o páo seco do lanche. Fiquei vermelho e confuso, no centro duma roda enorme e viva que se agitava e abria para mim cem, duzentas bocas em riso, como outras tantas dentadas. Tentei fugir, romper o implacável bloqueio. Impossível: fui recebido a pontapé, 30 transmitido a empurráo, coberto de arranhôes e de escarros, como um Cristo. Rolei no cháo. Cho-rei, com a cara escondida no pó. Desci ao inferno, queimado de ódio e de dor. — Ó pata-choca! Ó pata-choca! Aqueles risos infantis encheram tudo, trans-bordaram, impregnaram a minha existencia inteira. Dali em diante fiquei sendo o «Pata--Choca». Alguns colegas mais sensíveis, encontrando-me na rua, ao domingo, num passeio, fitavam-me com um olhar indulgente e apiedado, que me ultrajava horrivelmente, e diziam baixinho aos pais ou aos irmáos: — Ali vai o «Pata-Choca»... Os outros até na rua me perseguiam: — Adeus, ó «Pata-Choca»! Quando a minha mäe soube que eu era o «Pata-Choca», a sua dor fez-me sofrer como nenhuma ofensa. Chorei toda uma noite abra-cado ao meu travesseiro de palha. Ao menos esse, se era impassível, näo me ultrajava nem repelia. E para mim nada havia, entáo, mais cruel do que a ideia duma dor causada a minha máe. A mulher, que nela me aparecia venerável, quase divina de humildade e amor, surgia-me cruel e hostil nas companheiras da escola. Perseguido por todos os lados, solitário, entre o riso, a forga e o desprezo, näo transpus logo em ódio e revolta todo o meu instinto afectivo de crianga infeliz. Foi no sonho que eu me encerrei. Por esse tempo, meu pai morreu vítima dum acidente de trabalho: foram encontrá-lo no 31 J OSE RODRIGVES MIGUSIS fundo dum tanque de cerveja, com o cränio fendido. — Vai para casa, ó «Pata-Choca»! — E atira-vam-me pedras. — Voces häo-de pagá-las! — respondia, engo-lindo as lágrimas. Depressa esquecia a vinganga e punha-me a arquitectar sonhos em que eu fosse o chefe e eles os soldados. Nurtca pagaram coisa alguma. Cedo me convenei de que a lei da vida é a injustica. Eles iam para a bela vadiagem, armar guerras e jogar a barra e os estafetas nos terrenos cobertos de relva onde hoje se erguem tantos prédios banais. Eu näo pódia bater-me como eles, nem correr täo depressa, nem atirar pedradas certeiras. Como inimigo, era desprezível; como aliado, comprometedor. Nem mesmo vencido fui: olhava-os de longe. Aos doze anos perdi minha mäe numa epidémia de tifo. Levaram-na para o hospital, e nunca mais a vi. Passei dois dias em casa ä espera dela. Ao terceiro dia veio urn polícia com um papel. Levou-me ä esquadra, deu-me de comer, e, como me perguntasse se tinha cá família, lembrei-me do Conselheiro da Rua do Salitre, que tinha urna passadeira e palmeiras em vasos na escada. Conduziram-me lá. Entrei pela porta de ser-vico e ali fiquei. O Senhor Conselheiro fazia-me a esmola: talvez a troco do polimento que minha mäe pusera, em muitas noites árduas, nos seus PASCO A FELIZ altos colarinhos de ver a Deus e a el-rei. Supli-quei-lhe, a tremer, que me náo mandasse para o asilo. Sorriu. Fiquei a comer com as criadas, na cozinha, e a dormir na mansarda. Pela jane-linha oval eu via ao longe o Tejo e os veleiros que rastejavam na superfície lustrosa e azul das águas. As criadas riam-se de mim, chama-vam-me «botocudo» e regalavam-me de sopas: matei a fome de muitos anos. Havia nelas alguma coisa de piedoso que me reconfortava, ternuras de maternidade recalcada, severidades bruscas. — Que havemos nós de fazer desta prenda ? — disse um dia o Senhor Conselheiro, torcendo-me uma orelha, paternal. Eu encolhi-me, todo confuse.— Que sabes tu fazer, rapaz? E eu, moita. As criadas riam, em redor: — Come como um brutinho, benza-o Deus! Eu bem sabia que, sem o tempero amargo da humilhacáo, náo há sopas para os pobres děste mundo. — Sabes tu ler? e eserever? E contas, sabes tu fazer contas? Peguei atabalhoadamente no lápis que me estenderam, e, sem falar, feliz de poder provař que sabia alguma coisa, somei, dividi, multipli-quei á toa... Na minha pressa, creio que errei tudo. — Tens que me aprender bem essa tabuada, ouviste? Se náo me souberes de cor a tabuada, comes comida de urso. Sabes o que é comida de urso ? — rematou o Conselheiro, entre severo e risonho. Já tinha sido governador civil. 4 JOSS RODRIOUES MIOUMIS Deu-me cinco réis para comprar a tabuada na capelista da esquina. Escolhi uma de capa cor de violeta. E todo o dia, sentado a um canto da eozinha, onde as criadas riam, cochichavam de homens e cantavam com fragor, eu absor-via-me na tabuada e no sonho. Sentia-me em todo o caso mais seguro ali, na eozinha sempre quente e cheia de aromas apetitosos. O Senhor Conselheiro era viúvo e tinha um filho militar, quo passava longas temporadas fora de casa. Quando voltava, nunca deixava de ir ä eozinha meter-se com as mulheres. Elas riam-se e diziam-lhe de brincadeira: — Olhe, menino, o seu paizinho arranjou agora outro filho... E é parvinho, coitado! Dávam guinchos histéricos, chorando de hila-ridade, e o tenente sorria, vagamente perplexo. Parecia procurar na minha cara alguma seme-Ihanga com o seu papá: mas o exame deixou-o descontente de mim, enojado, e fez uma careta. Eu tinha-lhe medo, a farda dele arranhava, parecia repelir-me. Era deste rapaz galante que as criadas falavam quase sempre, com uma insisténcia maniaca: das amigas que ele tinha, dos seus bródios, das doengas que apanhara lá por onde andava com umas e com outras... Todos os domingos, por ordern do Senhor Conselheiro, eu ia ä missa com as criadas. A minha crenga em Deus e nos santos era toda espon-tänea e pessoal, e a minha imaginagäo näo inventára o céu nem o inferno. Mas as igrejas atraíam-me com a sua freseura nos dias cáli-dos de Estio, a solidäo e os ecos marmóreos, PA8COA FELIZ os tocheiros lacrimosos e os altares de talha doirada, os painéis e as imagens sem expressáo, a música e as flores artificiais. Conseguia mesmo chorar de arroubamento em certos passes da missa cantada. Náo me foi, assim, difícil assumir a aparéncia exterior do crente. Alem disso, conhecia o prego das minhas sopas. Era uma nova técnica de vida. O Senhor Conselheiro recomendou-me ao padre, que era baixo e gordo, avangado em anos, e tinha uma perná mais curta, com um sapato de sola imensamente grossa: gostou de mim, acariciava-me muito a nuca delgada, e condu-ziu-me com máo paternal através dos meandros do Catecismo. A dada altura passou mesmo a levar-me para trás do altar-mor e para os recantos sombrios da sacristia deserta, onde o seu pigarro soava como uma trompa de além-mundo, no siléncio. Ali me instruía. Cioso de agradar ao Senhor Conselheiro, fiz progresses consideráveis nos Mandamentos e nas Virtudes Teologais, e até no capítulo dos Peca-dos Mortals e Veniais. Náo era muito diferente da escola, com a vantagem de que eu me sentia ao abrigo dos embates do mundo: náo havia garotas para trogar de mim, nem matuloes a brutalizar-me, nem vigilantes de cacete em punho, como o «Espadarte», a fazer-me pagar, inocente, pelas maldades alheias. Tudo corria numa atmosféra de mistério e suavidade trans-cendente, que excitava a minha curiosidade sem me afectar de outro modo. Cheguei a ajudar 35 JOSS RODRIGUES MI GUMS PÁSCOA FELIZ á missa, mas náo tinha voz que prestasse para nada. O eura propós um dia ao Conselheiro que me deixasse seguir a earreira das Ordens: — Com a cabega que tern, este pequeno ia longe... O Senhor Conselheiro franziu a testa: — Contas, contas é que ele precisa! Traba-lho! Era pela Cartilha contra o Catecismo, um liberal. Depois da missa, no bom tempo, as criadas levavam-me a passeio nalgum jardim publico, onde havia sempře uma banda militar num coreto. Aproveitavam a folga e a musica para se encontrarem com algum marmanjo, as vezes homens de farda. Cochichavam, riam-se muito, e eles agarravam-nas, queriam levar a conversa mais longe: — Olha o botocudo! — diziam elas. — Vai con-tar tudo ao badana! Eu fingia que escutava a Alma de Diós... Á noite, o patráo mandava-me chamar á sala de jantar, que me metia medo com os seus móveis escuros, todos em torcidos e tremidos, e interrogava-me arrotando, de palito nos bigodes: — Sete vezes sete? Nove vezes seis? Dei em responder tudo as avessas, olhando-o de soslaio, para o experimentar. Ele olhava-me desconfiado e incerto, e procurava a tabuada, que eu escondia. — Ha? Tens a certeza? Percebi que ele nao entendia nada de contas, e secretamente gozei. (Este homem respeitavel veio a ser, tempos depois, ministro da Fazenda d'el-rei). No fim chamava-me paternalmente cabega de burro, e acrescentava: — Anda, vai la, para a cozinha, que te deem de comer. O teu mal e fome, rapaz! Saia da sala de jantar com a boca cheia de agua e de cabega baixa. Mas eu tinha queda, sobretudo, para o calculo mental. Tempos depois, um belo dia empregaram-me numa loja da rua, sob a condigao de o patrao me deixar frequentar uma escola nocturna. Mudei de mansarda e de cozinha. As criadas vinham ver-me as vezes, de corrida, e perguntavam ao patrao: — Que tal vai o botocudo? Em atengao a qualidade do fregues, e como eu nao recebia ordenado, so a cama e o prato, o merceeiro deu-me uma vela de estearina para que eu pudesse ler na cama. Foi um tempo feliz. De comego tive medo dos ratos que pululavam na loja e no meu sotao. Depois afiz-me a eles, e tornaram-se uma companhia. Alguns vinham comer a minha mao. Quando o patrao retirava a escada que me dava acesso ao buraco e eu fechava o algapao, ficava como um senhor no seu castelo feudal. Notei que ele roubava no peso das compras que iam para casa do meu benfeitor, mas nunca disse nada: nao sei porque, parecia-me justo 36 37 J OBĚ RODRIGUES MIGVSIS PÄSOOA fE liz que o Conselheiro pagasse mais caro do que os pobres o bacalhau, o arroz e o azeite de que se nutria a sua clientela. O meu paträo era da provincia, odiava os padres, a monarquia, os conselheiros, o «varejo», e tratava-os a todos por «cambada». Mas quando, da porta da loja, via o Senhor Conselheiro apear-se do seu cupe, dobrava-se em vénias e desfazia-se em sorri-sos. — Vossemecé näo manda o rapaz ä missa, seu Sabastiäo ? — perguntavam as criadas. — Näo me venham para cá com padres nem com missas! Cambada! Isso é bom lá para voces, que gostam de homens com saias! A estas palavras sacrilegas, as mulheres fugiam porta fora rindo escandalosamente, cha-mando-lhe carbonário, e que haviam de ir contar tudo ao paträo. Que fossem, relaxadas, rosnava o merceeiro. Quando elas voltavam, dava-lhes figos secos e outras guloseimas. Aprendi com ele a enganar o «vare jo» e a puxar para a caixa. Quando o Conselheiro parou um dia ä porta, a perguntar por mim, o Sebastiäo agarrou-me nas peles do cachago: — Bom rapaz, sossegadinho e fiel, e puxa muito prä caixa. Um burrinho de carga, sim senhor! O Senhor Conselheiro deu-me um tostäo de níquel e saiu majestosamente, meneando as ancas vastas entre as sacas de batatas e de arroz. Pouco a pouco deixei de o ver. Tinha sempre um trem ä porta e um sujeito de farda e boné agaloado: era um «correio de ministro». Passava horas sentado num degrau, a ler o jornal, e as vezes entrava as furtadelas pela porta de ser-vigo. Quando, dois ou tres anos depois, por morte do meu patrao, que ficou nao sei onde durante uns motins, os herdeiros me puseram na rua, senti-me so e fui bater a porta do Conselheiro. As janelas estavam todas fechadas e forradas por dentro com papel par do. Tinham acabado de proclamar a Republica, e uma criada desconhc-cida, vestida de luto, informou-me que o Senhor Conselheiro estava para fora, no estrangeiro, por causa das desordens e dos tiros. Era um episodio que findava. Comecei entao a viver so, de mim mesmo. Nunca mais vi ninguem daquela casa. A imaginagao e na verdade um vinho perigoso e sedutor. Eu achara esse refugio, como se, numa grande casa povoada, tivesse descoberto a porta dum jardim oculto e silencioso, meu dominio exclusive A vida passava por mim sem ferir esse dom de me elevar. (A propria morte de minha mae nao teve sobre mim a influencia terrivel que eu acima de tudo receara.) Esperava com secreto ardor as horas solita-rias da noite, para erguer a minha exaltagao nervosa ate ao delirio visionario, na obscuridade e no silencio. A vida exterior nada tinha com o meu sonho. 0 contacto das pessoas e a acgao eram-me odio- 38 39 JOSS RODRIQUES MIGUSIS PASCO A FELIZ sos. Na embriaguez da imaginacáo, porém, eu convivia, agia, era alguém num mundo sociál criado pelo meu desejo. Mal apagava a luz, sur-gia de todos os lados aquele tropei de imagens, de enredos, de aventuras. Algumas eram-me queridas — e eu continuava-as ou repetia-as noites e noites seguidas. Confundia-me com as ardentes imagens e partia com elas á louca aven-tura, ou para um amor que talvez nunca a rea-lidade tenha chegado a dar-me. Possuí tesouros, os maiores do universo, inesgotáveis. Dominei, revesti-me do doirado esplendor da gloria. Em batalhas cruéis, montado em fogosos ginetes, muitas vezeš fiz reluzir a minha espada, que redemoinhava e abria um sulco de mořte e de terror nas fileiras inimigas. Lutei, věnci, dominei. Atravessei cidades conquistadas por entre o estrépito das trombetas de guerra, a palpi-tagáo multicor dos estandartes e a turba deli-rante. Fui alternadamente cruel, generoso e apaixonado. As mais lindas mulheres, lánguidas, tépidas e nuas, que arrebatava para o meu cas-telo inexpugnável, desmaiavam de amor no meu abrago, resplandecentes de brancura, ébrias de paixáo, as bocas vermelhas entreabertas, os olhos desvairados, os seios agressivos, os cabe-los soltos. Amei com luxuriosa paixáo essas vagas mulheres de que o sonho povoava a vida obscura dos meus sentidos. Bastava-me alongar os bra-gos, nas trevas, para segurá-las e possuí-las; as minhas máos crispadas agarravam sombras, o meu corpo vibrava, contorcia-se, enquanto eu 40 murmurava palavras de ternura, beijando outras bocas impalpáveis, até que o sono e o can-gago me venciam. A manhä vinha encontrar-me acabrunhado, desiludido, com mais horror pela existencia. Pobre crianga triste, no meu instinto desabrochava doentiamente, tocada pela vara da imaginacäo, a flor rubra e caprichosa do desejo. Nunca mais a vida me ofereceu idénticas vi-tórias, nem sensagôes mais fortes. A realidade, mesmo no amor saciado, ficou sempre abaixo do meu sonho; nem houve nunca corpo de mulher que pudesse galvanizar-me num espasmo täo intenso e profundo como esses que eu sonhava solitariamente, nas longas insónias da minha puberdade. As recordagöes desse tempo voltam-me con-fusas, atropeladas. Como sofria, naturalmente procurava esquecer. Sei que odiava a luta, a corrida aos prémios. Revoltava-me a vida, mais custosa e violenta para os fracos. O meu päo era amargo. Desejei alguma coisa que vaga-mente suspeitava na existéncia. Ao contrario do que hoje penso, dizia comigo: «Os outros é que tern culpa do que eu sofro...» Desejaria amar sinceramente alguém, ser ale-gre, tornar alguém feliz: mas a amargura da vida comunicava-se a todos os meus pensamentos e aos meus actos... «A alegria e a bondade säo privilégio dos fortes», pensava. E, no entanto, reconhego agora que näo era, sob certos aspec- JOSS RODRIGVES MI OUSTS päsooa feliz tos, menos feliz que muitos por quern sentira in-veja. Nunca, a bem dizer, ambicionei o quer que fosse. A minha vida era um desejo vago, inde-finivel, doloroso. Mas cumpria. Fui honesto e moderado. O meu trabalho merecia elogios. A alma, porém, andava muito acima disso. Fre-quentei mais tarde um modesto café, onde ia ä noite ler o meu jornal, ouvindo as vozes breves, os risos dos jogadores e as pancadas secas das bolas, no bilhar. Servi num grande numero de lojas e escritó-rios. Mas era duma inconstäncia inexplicável. Em certos dias, acorria-me ä cabega uma subita revolta, um desejo de ser livre, de me comandar, de correr as ruas sem destino, de respirar ple-namente o ar fresco e šalino dos cais, de trepar äs colinas e olhar lá de cima durante muitas horas o horizonte vago, a linha irregular dos monies, o casario fugitivo e caprichoso, o fumo dos navios, o rio länguido que se entrega ao mar... Nesses dias recusava-me a cumprir a ordern mais simples. Uma observagäo exasperava--me até ä fúria. Ninguém tinha mäo em mim. «Este rapaz é doido!», diziam. Punha o chapéu, dava as boas-tardes, e nunca mais voltava. Sentia-me outro. Os meus tendöes pareciam de ago. Algumas vezes respondi com insultos äs eensuras, e até com pancada. Donde me vi-nha a forga? Era no tempo em que abundava a moeda de prata. Uma tarde, tive uma curta e violenta al-tercagäo com urn guarda-livros, meu superior, 42 a quem alias votava estima. Perto de nós al-guém estava a contar dinheiro, e empilhava as moedas em cima duma grande mesa. Numa ex-plosáo de fúria, deitei-lhe as máos e tombei-a no soalho, por onde as moedas rolaram, chocan-do-se e tinindo, perdidas sob os móveis e nas fendas. Como os outros, acusava-me entáo de louco. Mas depois destas cóleras brutais, a minha vida tinha um sabor de infinita liberdade e alegria. Passava alguns dias vagueando, dormindo ao acaso, comendo em tabernas ou restaurantes ba-ratos, consumindo solitariamente as economias que fizera. Fora disso, era humilde. Fui um bom empregado. Por isso depressa arranjava colo-cagáo, quando o cansago, a necessidade de dinheiro ou de actividade o exigiam. Assim vivi, trabalhando, durante muitos anos, deixando escoar insensivelmente a mocidade. Alguma coisa, decerto, mudara em mim; no fundo, porém, sentia-me sempře o mesmo. Mas isso náo tem interesse algum. Nem mesmo a historieta banal dum casamento... Sou, enfim, um homem que passou o melhor da juventude curvado sobre mesas de escritó-rios escuros, acanhados, duvidosamente limpos, fazendo escritas e redigindo cartas que em nada me interessavam. O meu destino era obedecer. Assim, a vida por todos os meios me impelia para a ilha solitária do sonho. JfS IV n asei pobre. Mas o men estado de espirito melhorou com o casamento. Cheguei quase a jul-gar-me feliz, ao perceber que alguém podia asso-ciar-se a mim, partilhar comigo, resignadamen-te, uma vida banal, sem horizontes. Ganhei es-tabilidade e acabei por fixar-me em casa dum tal Nogueira, homem afável, de calva rubra e óculos doirados. Ao fim de algum tempo, liga-vam-nos lagos de afecto que me fizeram esquecer a distáncia real que nos separava. Ele era rico. Náo sei como (ligando certos indicios dispersos, suspeito hoje alguma história sombria), fizera uma bela fortuna em Manaus, onde vivera para cima de trinta anos. A clientela da casa era res-trita mas boa. Faziam-se negócios seguros, de qualidade, segundo normas que os tempos de crise tornaram desusadas. Trabalhávamos juntos como dois camaradas. Nunca teve uma ex- 45 JOSH R ODRIGü e S MIGÜSIS pasc o a f eli z pressao mais dura comigo, e o seu bom humor parecia inesgotavel. — Porque trabalha o senhor desta maneira — perguntei-lhe um dia — se, como parece, tern fortuna? Encolheu os ombros, sorrindo: — Amigo, e para nao morrer de enfado. Esta coisa enferruja se a gente nao se rnexe. Em que quer voce que eu empregue meu tempo, e meu dinheiro, solteiro e velho como sou? — P6s-se muito serio, quase triste: — A inacgao dava cabo de mim. Caia ai para um canto. Vou jun-tando... Alguem o ha-de vir ca buscar. E o tra-balho faz-nos esquecer de tanta coisa! — A quern o senhor o diz... Curvei a cabega. 0 trabalho era talvez para mim tambem uma mascara anestesica. A casa era ali ao Cais da Areia, num pri-meiro andar antigo, de tectos baixos de tabuado, paredes amarelas e rodape de azulejos. As car-rogas e os camioes carregados trovejavam todo o santo dia no pavimento irregular da rua. Chei-rava ao mesmo tempo a gado, a fumo de car-vao, a maresia, ao peixe frito das tabernas vi-zinhas — e ao bafio do escritorio. Proximo dali, nas oficinas e armazens, retiniam ferros. Ran-giam correntes nos guindastes dos cais. As vo-zes do trabalho enchiam-me os ouvidos. Os api-tos das fabricas, alegres e estridentes, e as se-reias dos vapores, de som grave e rouco, faziam trepidar as vidragas. Em certas manhas de nevoa no rio, sobretudo, a voz dos paquetes e navios de carga que partiám e chegavam, com a sua into-nagäo de mugidos nostálgicos, dava-me a sensa-gäo aguda do ignorado, do mais-além, a angústia de estar retido e a änsia de agitar-me, de rasgar o espago em direcgäo a mundos novos para mim... O meu desejo de partir tornava-se dolo-roso sob a consciéncia duma inacgäo que me impedia de sonhar aventuras e viagens, como outrora, na adolescéncia. Quando passava junto das forjas, parava, olhando com infantil curiosidade: eram caver-nas infernais, cheias de sombras e claröes, onde os homens, negros e vermelhos, semelhantes a monströs, fabricavam estrelas, malhando nas bigornas. Forga e violencia... A actividade brutal daquela gente inspirava-me a concepgäo dum grande poema do trabalho — que nunca tentei, sequer, esbogar — e tornava mais humilde e mais pequeno o meu vulto pequeno e humilde. Invejei os homens que, com os seus músculos possantes, criam as formas e o movimento. Afiz-me, no entanto, ao meu trabalho, calmo na aparencia — mais talvez de hesitagäo e de expectativa que de serenidade verdadeira. Pouco a pouco, a minha exactidäo minuciosa, a minha pontualidade, o meu saber profissional só de experiencia feito, ganharam-me a confianga do paträo. Entregou-me comissöes de responsa-bilidade. A certa altura, eu näo era apenas guarda-livros, era quase um gerente. O No-gueira deixou de me dar ordens. Aconselhava-se 46 JOSS RODRIGVES MIGUEI8 pasc oa fe liz comigo, ouvia-me antes de tomar resolugöes de import áncia. O escritório era de pouco movimento. Além do mogo do armazém, eu tinha como auxiliar um rapazote. Havia horas de longa solidäo, todos os dias. Só a Remington cortava o silén-cio, martelando sob os dedos hesitantes do em-pregado, na saleta de entrada. A campainha do carreto retinia, trémula e alegre... Uma pausa. O carreto regressava com um choque seco. E de novo o lento, hesitante martelar... Ougo ainda a discreta pancada do relógio preto, redondo, empoeirado, quase esquecido ao rés do tecto. Trabalhei assim cinco, seis anos, talvez mais, näo sei quantos — nem me importa saber. Todas as recordagöes formám cadeia, os dias iguais aos dias. O tempo acabou por tornar-se imper-ceptível. A minha vida näo podia ser mais banal. Sentia-me adormecer. O meu desejo indefinível e sem objecto acal-mara depois do casamento. O matrimónio é um sedativo, um ópio, um normativo. Sentia-me in-capaz de praticar o mal e o bem. A vida meca-nizara-me a tal ponto que näo me baixaria para apanhar uma carteira e entregá-la a quem a ti-vesse perdido, nem para salvar-lhe a honra. Mas também me sentia incapaz de a erguer do chäo para a guardar... Com o andar do tempo, porém, enquanto re-digia cartas e alinhava algarismos, ao ranger If8 submisso e contínuo da pena — como uma nu-vem que se adensa, talvez sob a confusa exci-tagäo daquele ambiente, ou da modorra da casa (näo sei) —ia-se formando por si mesma, num mundo ä parte, dentro de mim, a ideia de qual-quer coisa de novo e extraordinário: um golpe. Assisti, de comeco sem grande sústo, ä for-macäo do «plano». Era um eompanheiro, um hóspede que se instalava era mim sem nenhum esforgo, e que eu näo tentava repelir. Porque näo confessá-lo? Despertava-me interesse a es-tranha operagäo que o meu subconsciente come-cava a realizar. A minha ideia revelou-se como as paisagens e as fisionomias: primeiro num conjunto vago, depois nos pormenores que a nossa curiosidade vai, pouco a pouco, descortinando, arrancando ao conjunto. Havia um desenrolar panorämico de imagens que se repetiam, cada vez mais pormenorizadas. A pena seguia, na lisura do papel, o seu ca-minho, cruzando as linhas verticais, encarnadas e azuis, ordenando cifras e algarismos. Dotado por assim dizer de visäo dupla, eu acompanhava interiormente o desenvolvimento do projecto, cuja minúcia crescente me surpreendia. Era uma verdadeira gestagäo espontänea. Todos os dias uma nova tarefa me ocupava: agora, uma vicia-gäo de escrita; depois, uma falsificagäo de nota de depósito; a seguir, um cheque... E a série repetia-se, apurada, lógica, ordenada. Jf9 6 JOSS RODRIOUES MIGUeIS PÄSOOA feliz — Está um tempo óptimo! — dizia o Noguei-ra, entrando no escritório. — Espléndido! — O senhor trabalha, ha ? — Trabalho... — Bom. Náo tem nada que eu f aga ? — Nada... — A remessa do Bonfils? — A despacho. — Bom. A conta-corrente de Baptista Irmáos, já... — Eneerrada. Saldo... 7936$20. — E duzentos ? Belo, eu vou até ä rua. Nem levantava a cabega. O Nogueira, á me- dida que a sua eonfianga em mim se afirmara, ia aparecendo menos. Vinha tarde, saía muito a «tomar ar». Doíam-me um pouco os rins, de estar de pé, curvado na banca. Quantas vezeš me irritara o sofrimento! Noutro tempo, pretextava um ser-vigo na rua para mudar de posigáo. Mas este novo passatempo eliminou de mim o cansago e a dor. Chegava ao escritório, pendurava o chapéu no cabide com um gesto mecánico, despia o casaco, enfiava um guarda-pó eomprido e mergulhava no trabalho e no projecto. Era a minha compa-nhia, um jogo delicioso em que me excitava pro-gressivamente. Para mim, a realidade era dis-tinta daquele sonho, como o dia da noite. A minha inteligencia adquirira ubiquidade. O meu trabalho era veloz, perfeito, pontual. O sonho eomunicava-me um poder actuante ex- traordinário. O Nogueira assombrava-se da cla-reza lacónica das minhas observagoes, dos meus pianos, da nitidez dos meus processos de trabalho : — Como pode o senhor trabalhar sozinho desta maneira! Tudo sempře em dia, tu do táo claro! Que homem! Dava-me nas costas uma palmada amigável... Sim, eu náo tinha máo em mim. E o negócio prosperava. Como explicar isto? As emogoes da puber-dade sáo as únicas comparáveis ás děste periodo espantoso. Nunca, desde a infáncia, eu conse-guira uma forga interior de exaltagáo igual á děste sonho em que acabei por mergulhar com-pletamente. Projectava um roubo, longa, cuida-dosa, pacientemente elaborado. Como? Pode al-guém explicar certos sonhos, que nos parecem duma logica perfeita e ao despertar nos deixam uma comogáo indefinível, uma impressáo de absurdo ? É exactamente assim. O sonho é o domínio da loucura dentro da razáo. Para alem da nossa logica vulgar, uma outra logica existe, mais profunda, que só os loucos atingem. Todo o meu corpo vibrava por fim num de-sejo misterioso — o desejo duma posse inigua-lável, transcendente, que viria a ser afinal o meu crime. Mas só agora emprego esta palavra. Oh, embora me envergonhe de escrevé-lo, caí mo-ralmente numa espécie de onanismo criminal!... Nada, para alem do sonho, me interessava. Abandonei-me a essa embriaguez durante horas, 50 51 JOSS ROD RIG DBS MIGUĚIS PASCO A FELIZ todos os dias, e só dela saía para atender um cliente importante, resolver um assunto de maior gravidade ou travar com o Nogueira uma rápida palestra. Ele costumava reaparecer a meio da tarde, com o seu vasto sorriso, enxu-gando o suor da testa. — Novidades ? Enrolava um cigarro brasileiro. Dai a pouco espalhava-se na casa um aroma inconfundível, e eu voltava-me para ele, punha-me a escutá-lo distraidamente, a ouvir-lhe os pianos, com a pena entalada numa orelha, a máo esquerda na cintura, apoiando na banca o meu braco direito. Cámbios, o Brasil, onde ele pensava ir uma ultima vez liquidar os seus assuntos... O Brasil, para ele, era sempře a mesma terra afastacla, quase primitiva, pais de febres, de ouro e de pretos. Conversávamos, e o tom da minha voz, tao sereno, espantava-me, depois do tumulto interior de que acabava de emergir. — O seu Renato anda trabalhando de mais... Sou eu que lho digo! — Náo, náo, isso sim. De mais, eu? (O «Pata-Choca»! Eles sabiam la do que era capaz o «Pata-Choca», o mosquinha-morta de outro tempo!...) — O trabalho para mim, senhor Nogueira, é um grande estimulante. Sou mais alegre e mais feliz quando trabalho! Dava-me arrepios a lembranga da zona sub-terranea que o meu espirito acabava de atra-vessar. E sorria interiormente, algumas vezes, daquele vicio inquietante de arquitectar aventu- ras. «Como?», pensava. «Eu havia de roubar este bom, este simples homem que se interessa por mim, pela minha vida? Este homem que me deixa entrever um futuro melhor... Náo, que ideia estúpida! Seria o ultimo dos miscrá-veis... Mas isto é tudo um sonho, isto náo passa de imaginagáo...» Enterneci-me. Tive desejos de abracá-lo e beijá-lo, como a um pai. Lamen-tei a minha actividade doentia, que acabava, nestas reflexoes, por julgar inoperante, inofen-siva. Mas, como certos toxicómanos, eu tinha simultaneamente o horror e o orgulho do meu vício. «Tudo isto», dizia, «é o excesso das lei-turas; é o meu temperamento imaginoso!» Quando chegava a tarde, ao sair extenuado da minha obsessáo para reingressar na vida fi-sica, era como se voltasse da imobilidade dum ermo escuro para a luz: fazia estalar as arti-culacoes, abria os bragos, e o meu espirito re-colhia-se as coisas deste mundo, honestas e banais. 52 53 JL/urante muito tempo trabalhei nisto apenas durante as horas calmas do servigo. Dentro do escritorio, continuei a dominar-me na aparen-cia. As imagens nao me perseguiam pela rua, e eu sentia-me por vezes senhor dum equilibrio, duma forga, duma lucidez surpreendentes. Dir--se-ia que o sonho era o abcesso fixador dos elementos maus do meu instinto. Ganhava bem. A minha vida melhorou: mu-dei-me para um quarto andar nas Avenidas Novas, com bom ar e bom sol, para fugir aos ve-lhos bairros infectos, sujos, onde passara a mo-cidade, e aos quais, sem embargo, me ligavam suaves e queridas recordagoes. Mobilei de novo a minha casa, com mais gosto, comprei livros, permiti-me dispor dumas economias para o luxo dum passeio. — Para que, tudo isto! — dizia-me a Luisa. — Viviamos tao felizes, tao bem, com a nossa 55 JOSE R0DRIQVE8 MIQUSIS PASCOA FELIZ modéstia!... Eu näo gosto de passeios. Gosto da minha easinha. — Fazem-te bem. E o pequeno precisa. — ...Quando estiver aborrecida, vou até ä ja-nela. Ar e sol näo nos faltam! Conservara o hábito da pobreza. Economizava e pensava com ternura no futuro do filho. — Com o dinheiro destes móveis, quase que se educava o pequeno! Tanto luxo... Vira, com uma lágrima de saudade, sair de casa o velho aparador de mogno, com folhas e frutos esculpidos num. floräo, e a mesa oval da nossa casa de jantar. — Se guardássemos isto? Quem sabe se um dia... — Näo sejas tola. Que ideia fazes tu do futuro? Eu, pela minha parte, nunca fiz uma «ideia do futuro». Mas gostei sempre de cortar ex abrupto com o passado. De meses a meses, abria as gavetas e passava horas a rasgar papéis, apontamentos, tentativas — todo o rasto que o tempo deixa na vida dum hörnern solitário como eu fui. — Oh, näo deites isto fora!... Täo bonito! Era uma estampa, um boneco, um desenho do meu tempo da escola. — Para que quero eu isto? Recordagöes!... Eu encolhia os ombros, e a Luisa corria a guardar a coisa numa gaveta privativa. — Gostava tanto da nossa caminha de ferro... Fomos täo felizes! — Mas também agora o somos. Porque näo? 56 — Oh... —■ Nao se vende, entao. Temos onde a guardar? Beijou-me com impeto, corou e disse-me: «Obrigada!» O Nogueira andava satisfeito. Deu-me as cha-ves do cofre e aumentou a minha partieipagao nos lucres. Passei a assinar quase toda a cor-respondencia. Pegava no lapis-tinta — zz... zz... — Voce, agora, e senhor disto tudo! — Ri-mo-nos um para o outro. — Um dia destes ha-vemos de fazer a escritura. Acarinhava o projecto de deixar de vez os negocios, para se ir meter numa quinta, no Mi-nho, longe de Lisboa, onde pudesse acabar os dias como entrara na vida: entre as arvores e um retalho de ceu azul... Falava-me frequente-mente do seu passado obstinado e lutador. Atra-ves das suas palavras, eu espreitava um recanto da paisagem do Amazonas — os jacares, a flo-resta enredada, a «cobra do igarape», que todos os imigrantes da Amazonia contam ter encon-trado, ao menos uma vez. — ...Sentei-me num tronco a descansar o meu bocado, tirei o chapeu largo, e, como o facao me incomodava a cinta, eu tirei ele para espetar na casca grossa do tronco. Se voc§ visse! De repente, quando dei a picada, senti a arvore se mexer e ouvi os cabras gritando: «A cobra, senhor, a cobra!» E abalaram a fugir, deixaram--me so. Tinha-me sentado em cima da cobra do igarape! Fugi sem destino, e so parei bem longe dali... 57 JOSS HODRJOUES MIOVSIS PASCO a fel1z Mas nunca mais do que isso. Que fizera por lá? Como alcangara a fortuna? As máos, tinha--as grossas, máos plebeias de trabalhador, onde os diamantes produziam um contraste impres-sionante. Olhei-o... — Quem andou náo tem para andar. Preciso de repouso. Vou nos setenta, e para o tempo que me resta... Conservava a acentuagáo brasílica na voz. Respondi-lhe que o achava rijo e moco. — Aparéncia, aparéncia! Quando menos se es-pera, vem o Diabo e leva a gente. O seu pensamento era passar-me todo o ne-gócio, progressivamente, reservando-me uma parte dos lucros. Aterrou-me a seguranga com que se iam rea-lizando as condigoes exteriores do meu projecto. Náo podia deté-lo. Atropelava-me a sua forga imperiosa. A certeza de que viria a ser um dia, e por meios legais, dono daquela easa, náo es-batia o meu desejo. Ao contrário, as promessas do Nogueira pareciam espicagar-me. As minhas subintengoes eram absurdas, sentia-o bem; mas o sonho alastrava, rolava, impelia-me, quebran-do-me a vontade... Comecei a reeear o turbilháo que, a princípio, cuidara náo passasse dum en-tretenimento. Era, afinal, como um cancro nos tecidos vivos. Como um doente que sabe a mořte que o espera, acreditei subitamente que álgutna coisa tiriha de se produzir, e foi esse império da fatalidade a origem dum terror que só mais tarde me devia abandonar. Um dia olhei para o Nogueira e disse-lhe, quase sem pensar no que fazia, com o coragao as upas: — Nunca ninguem o roubou ? — Ora essa! — E se um dia o roubasse ? — Quem ? — Eu! — Ora adeus! Voce pensa que eu nao sei com quem lido? — Pois sim, mas suponha... —Nao suponho! — Podia muito bem ser... — Outro, no seu lugar, talvez! — O senhor deu-me as chaves, eu disponho de tudo!—O Nogueira olhava-me, sorrindo.—O me-lhor e o senhor guardar as chaves. Eu nao preciso delas. — Receia perde-las ? — Nao, mas... Arrependi-me da minha estupida sinceridade, mas a confianga que o Nogueira em mim depo-sitava parecia inabalavel. Isto deu-me uma ale-gria selvatica, feroz, e ao mesmo tempo um terror sem fim. Desinteressei-me por completo do futuro. A ideia do meu filho... Mas nem mesmo ja essa me detinha. As minhas ideias eram claroes. Pensava por imagens. Vivia em permanentes contrastes de euforia e de terror. O eixo da minha vontade deslocava-se brutalmente. «Isto e irremediavel. Oh, meu Deus!» As maos tremiam-me. «Pois se isto ha-de ser teu, que seja ja, que seja ja!», 58 59 OSS BODRIO UBS MI OUST S päsooa eeliz pensava. «E porque nao? O velho cada vez con-fia mais...» — «Nao pode ser! Nao pode ser!» A forga dessa voz intimidava-me, ia dominar--me... Ja nao podia ouvir, sem me impacientar, o martelar da Remington, a pancada seca repe-tindo-se indefinidamente e o timbre do sinal, que umas vezes tinha nao sei que riso diabolico, outras parecia segredar-me incitamentos. 0 meu trabalho, que fora num crescendo de precipitagao vertiginosa, comegou a tomar-se confuso. Com facilidade me irritava. Um esforgo de atengao mais aturado exasperava-me. A mi-nha caligrafia tornou-se irregular, era-me precise um esforgo enorme para segurar a caneta eritre os dedos, e enganei-me nos numeros, nas contas. Entre o momento em que olhava uma verba e aquele em que a langava num livro, ela transformava-se na minha pena, como por arte magica ou prestidigitagao. «Como errei eu isto ?» Os erros angustiavam-me. Davam-me a nogao do meu desdobramento, do meu automa-tismo. (De facto, reconheci que a forgo, era dis-tinta da minha vontade, e obedecia-lhe.) Tinha vertigens, rangia os dentes, a vista escurecia--se-me, durante instantes perdia a consciencia — e voltava a mim, para recomegar. As arti-culagoes doiam-me, como se chumbo derretido as queimasse, e vinha-me o desejo brutal de exercer forgas, crispando os musculos... Via-me forgado a suspender frequentemente o trabalho. Mais de uma vez parti o aparo contra a mesa, num gesto brusco de impaciencia. E o peito opresso, de quando em quando a dispneia... «Eu tenho mas é uma lesäo...» Experimen-tava repetidamente a necessidade de ar novo e movimento. Saía a refrescar a cabega e os pul-môes. la até aos cais ver os embarques, aquela agitaeäo que noutro tempo me distraía, ten-tando reatar o meu velho sonho de viagens a distantes continentes. Debalde. A ideia ferrara-me na vida uma garra impiedosa. Já näo me abandonava, como dantes, na rua, no bulício da gente. A existencia tornou-se-me desesperadoramente lenta e monó-tona. Cheguei a ser brutal... — Que tens tu ? Andas doente ? — perguntou--me um dia a Luisa, que fitava com terror a sombra erescente nos meus olhos. — Näo tenho nada! Trata da tua vida. Por esse tempo, como um navio cuja amarra se partiu, e navega sem governo, comecei a abandoná-la. Um outro amor, abstracto, ima-terial, incoercível, comegava a ocupar em mim o lugar dessa afeigäo tranquila — o amor do fantasma que em mim se gerara e concebia len-tamente. Sim, era um verdadeiro amor, um es-tranho narcisismo, uma embriaguez deliciosa e odiosa, que me queimava as energias afectivas, como as amantes que adivinham os nossos mais ocultos desejos, para os satisfazer até ä loucura, o esgotamento e a mořte. Apenas me restava forga para amar o meu filho. Oh, esse eu continuava a amá-lo, a ver na sua carne branca o reflexo palpável do meu 60 61 jose r0drigue8 mi QU eis päscoa feliz ser... Tudo o mais odiei. Repeli quanto se opunha ao meu projecto. Apeteceu-me florir o escritório, embelezá-lo, dar-lhe aparéncia, um ar moderno, espalhar um perfume qualquer naquela sala viciada pelos maus pensamen tos e o cheiro a mofo. Quando ali entrava, agora, entristecia, desalentado e ao mesmo tempo colérico. Apetecia-me ir ao cofre, arrancar-lhe o dinheiro e fugir, liquidando duma vez o que algum dia viria a ser meu. «Mas porquě ? porque?» Como subira o passa-tempo a mau desejo, a obsessäo, até se apossar das minhas fibras mais íntimas? «Agora já é tarde, meu Deus!» Caíra sob o poder duma su-gestáo de que nada podia libertar-me. Quem podia resistir áquele combate absurdo e desi-gual? «Vou sogobrar, deixar-me arrastar pela corrente...» O Nogueira entrava, rubro, ofegante, limpando a calva, com os olhos sorridentes por detrás dos óculos brilhantes — e eu já náo sentia a mesma calma: era antes um terrível azedume. E tinha de apertar as máos uma na outra, para náo... «Mas náo, isso nunca!» Era a logica do outro. Comecei, náo sei como, a odiar o velho. Sus-peitei que me espiava disfargadamente. Vinha a horas sempře diferentes. «Quer-me surpreender em flagrante delito.» Mas que de-lito? Se eu náo furtara coisa alguma! Em cer-tas horas, no entanto, ao vě-lo entrar, eu estre-mecia como se, na verdade, ele me tivesse sur-preendido em flagrante. Tomei precaugoes para o despistar. Preparei confusoes, discordáncias na escrita, erros desti-nados a agugar-lhe a curiosidade, para depois os desfazer triunfantemente, renovando a sua confianga em mim. Ria-me a sós, com um riso doloroso e cruel, satisfeito com a candura do velho. Muitas vezeš, porém, a sua confianga estúpida me exasperava: «Porque náo suspeita? Porque fecha os olhos, o imbecil?...» Mas ele náo queria... Abanava a cabega: — Resolva o senhor como entender. Tenho fé que tudo se há-de esclarecer. Este jogo perigosíssimo embriagava-me: le-vá-lo até aos limites da suspeita, e bruscamente retomar-lhe de assalto a confianga. Infelizměnte, ele náo podia compreender que essa confianga me desarmava para a minha própria defesa. Via-me forgado a explicar-lhe: — Afinal, resolveu-se aquela confusáo de que ontem Ihe falei... — Melhor, melhor. Eu bem lhe disse! — Imagine que... — Deixe, deixe, náo tem que ver. la-se embora: náo queria explicagoes! Muitas outras vezeš desejei ardentemente a sua presenga, no pavor de náo poder resistir mais áquilo. Oh, a minha vida foi uma tortura barbara, mongólica, que suportei com a cora-gem de um estóico. 62 63 JOSE RODRIGUEZ MIGUĚIS PÄSCOA FELIZ As minhas mäos, lívidas e frias, tremiam ao folhear as notas e os cheques. «Ele näo pode saber... Ele näo pode...» Para näo estar só, abria a porta de vidro fosco e punha-me a conversar com o empregadito. Um dia, notei que me olhava espantado: — Que estás tu a olhar para mim dessa maneira ? — O senhor está doente ? Sente alguma coisa ? — O que ? — Tem hoje uma cara... — Que tenho eu na cara ? — Näo sei... Parece outro, acho-o mudado! Olhei-me num espelhinho: estava irreconhe- cível. — Näo tenho nada, é parvo! — respond! furioso, bruscamente apavorado. Dirigi-me para a porta da escada, hesitante. — Senhor Renato... — Näo me maces mais! — Olhe o seu chapéu... O rapaz estendeu-me, a sorrir, o chapéu que me esquecera. Espiar-me-ia ele também ? Faria isto para me perturbar? Olhei-o de tal modo que o fiz recuar um passo. Desci a escada, enrai-vecido, pensando: «Uma crianga descobre a minha agitagäo, atreve-se a brincar comigo. E ele näo percebe nada, nada!» A sua cegueira tornava-mo duplamente odioso. No dia seguinte näo me atrevi a olhar de f rente o empregado. A sua presenga incomodava-me. Era uma teste-munha perigosa. Tomei-lhe medo. Um pretexto, e té-lo-ia despedido logo. O meu desejo foi correr ao cambista da Baixa onde o Nogueira passava as tardes e gritar-lhe: «0 senhor näo ve que eu me perco? Mande-me embora, ou mande-me prender!» Os actos näo säo quase nada. O delito é a obra do pensamento. E para esse näo há grades nem prisöes... 6 65 VI A vida apagada a que me afiz sem esforgo comega a pesar-me. Alem da minha angustia, sinto um comego de revolta. Noutro tempo, os serôes eram curtos e tranquilos. Lia, e no silén-cio da minha casa, junto do candeeiro que ilu-minava a costura da Luisa, apenas se erguia, calma, a voz dos nossos pensamentos. Agora, uma torrente devasta-me interiormente, ruge, näo me deixa perceber o que leio. Fecho o livro, desesperado, ao fim de poucos minutos de esforgo para ler. Ardem-me os olhos. Diante deles, as letras dangam... O tempo é lento, odio-samente lento. E näo acalmo. Já näo é só o mal do espírito, o que eu tenho: é urna doenga física. Tento reagir... O qué?, levar os serôes a boce jar, ou a tra-balhar, até ao fim de tudo, ao pé desta mu-lher modesta, sempře amedrontada? A existěn- 67 JOSS BODBIGUES MIGUSIS cia filtra-me um sabor a definitivo que me aterra. O rumor e o riso... Aqui ninguém já ri. O meu filho é uma crianga triste, capaz de brincar com uma palhinha, um nada, um dia inteiro. O meu corpo reclama um esforgo, alguma coisa nova. Desejo contrastes, uma vida carnal que até hoje náo fiz. Assim estou, prisioneiro, como um expresso o é das linhas duras, intermináveis, dos rails. Mas náo! E preciso saltar, ainda que, liberto, role no declive, até ao fundo dos abismos, como o trem que descarrila. A Luisa tornou-se-me indiferente. A sua pre-senga, mesmo, as vezes, parece-me indiscreta. É estranha ao meu conflito e as minhas preo-cupagoes. A sua humildade irrita-me, indis-poe-me. Agora saio todas as noites, contra o costume que durava desde o nosso casamento. Desgo até á Baixa, entro nos cafés — salas de visitas de quem náo tem sala nem visitas — vagueio nas ruas mais iluminadas e nas pragas, fumando. Tenho nisto um prazer extraordinário. Como é que eu náo tinha descoberto a cidade? Achava perfeitamente natural ficar á noite em casa, ler um livro ou um jornal, deitar-me cedo; era uma aventura sair depois do jantar. Agora, já con-trai relagoes para a conversa. Chego a supor que vou curar-me da minha obsessáo... (Que náo teria eu feito para o conseguir?) Objectivos novos. Frequento cinemas, vou ao teatro. A minha audácia espanta-me. Arranjo PASCOA FELIZ apresentagöes para gente do palco. Há dias dei comigo, näo sei como, no camarim duma actriz de revista, para a cumprimentar. Hein? Estas mulheres que se pintam... Que interesse novo! Parece que nunca as vir a. Par o e olho para trás. Tenho apetites. As imagens destes corpos quebrados, novos, devassados, brancos... Esboca-se em mim um riso novo. Sinto-me feliz. A estas horas, o meu pequeno, tagarela, mete-o a mäe na cama, com um sus-piro. E ele pergunta: «0 pai?... O pai?...» Consigo reatar algumas amizades dos primei-ros empregos, tipos que subiram, que se afir-maram. Há uma čerta indulgéncia a minha volta. Sou outro! Eles těm levado uma vida bem diversa da minha. Bah, que me importa a consciencia? Como deixei passar tudo isto por mim, sem Ihe esten-der a máo! Quando saio do escritório, já náo vou direito a casa, como antigamente. No meio da hones-tidade insípida da minha vida, experimento a mais absurda atracgáo do prazer, do vício e da acgáo. Uma noite, depois da genebra e do café, um grupo de companheiros lá consegue arrastar-me a um clube. — ... O jazz? — Que horas sáo ? — Meia-noite. — Náo hesites! 68 69 JOSä RODRIGUES MIGUSIS PASCO A FELJZ O jazz! Resisto: — Mas eu nunca lá entrei! Voces sáo doidos! Eu... — ...Só para ver! Entras e sais! Deixo-me levar. É-me impossível resistir. Meia embriaguez. (—Bebe outro copo!) Atmosféra doirada. Fecho os olhos, e o meu corpo foge, voa através das coisas, do espago, para alem do tempo. Alegria! Alegria! Oh, que vertigem! — A mesa danga! A mesa danga! Acendam a luz! — Esta doido, ele é doido. Ninguém apagou a luz! — Abre os olhos... Tantos olhos que me fitam! Luz de incéndio... Meu Deus, agora rompe a madrugada... Vio-letas, violetas num prado verde... Desgo ao fundo do mar... Algas, flutuo... É de ouro a luz... Meu Deus, que tristeza, essa voz náo se cala! As minhas máos, máos de defunto, per-deram a forga... Se eu pudesse erguer o copo até á boca! Tenho as unhas roxas. — Náo te levantes. Segura-o tu! — Eu quero... Náo... Quern sáo eles? Tam-bém quero dangar... — É doido, quer agora dangar! Bebe outro copo. Náo o deixes. E a luz... É luz, ou sáo miosótis que chovem? A brasa do meu cigarro agora é branca, livida, evanescente, na luz vermelha que reaparece. O luar, que luar! As minhas máos sáo azuis — e as unhas roxas... Náo pode ser, basta! Que orquestra, senhor!, despedaga-me o coragáo... Oh, que desejo de rir... e de chorar! — O Oriente: bailadeiras, tendas, minaretes — que céu fulvo! — e os corpos quebrados!... Ah, ah! Agora! Já näo tenho forgas para rir. My heart is now waiting for you... — Sossega! Tu partes isso!... Luz viva! Luz branca! — Deita mais, enche-me o copo! Isto é alegria, isto vibra, isto grita-me aos ouvidos! It's a long, long way to Tipperary... Que riso, que alegria! Tinir de copos no compasso... Tira a mäoí E o desejo de aventuras bogais! O mar! O mar! Via jo a bordo... Música de arranha--céus! Olha o negro, aquela besta! Quern é o tipo? Eh, rei-preto! Eh, bobo! Olha, atira a batuta, o palhago! Rio perdidamente, num arrepio de alegria lou-ca... Tenho que fazer-lhe alguma coisa. Rio-me... A taga! A minha taga... Estilhago-a no chäo... — Voces näo viram? Ah! Ah! Ah! Ninguém repara no meu gesto no meio do tumulto. Ninguém... Näo sei se falo alto. Eu atirei real-mente o copo? Eu grito? — Vé se te calas!... Este gajo é doido! — Ninguém! Quero lá saber! Pro raio que os parta... Eu também os näo vejo. Rio, rio idiotamente, amarfanhado no meu banco de veludo. Sou um farrapo. — Como é bom, como é bom libertar-me do corpo... Fitas multicores, enroladas a mim como serpentes... As imagens disformes, hilariantes... Os meus gestos, lentos, incompletos... Meu Deus, que dissonäncias na cabega... Aperto-a... Cerro os 70 71 SB RODRIGVES MIGUSIS PÁSGOA FELIZ olhos e parto, num declive, a desfilada... — Oh, que prazer, que alegria, que alegria! E que medo... Segurem-me! Segurem-me! Eu vou cair, eu caio! Ah! — Acorda la! Transpus a forma, a luz, a cor. Que e isto ? — Dois bracos brancos rodeiam-me o pescoco. Oh, deixa-me rogar os labios — que frescura! — na tua pele! Como tu es linda... (Ela ouve ? Nao sei.) Os teus bragos refres-cam-me a cabega e os olhos — fechar os olhos e rogar as palpebras nesta coisa branca e macia... Assim... Assim... 0 meu rosto queima, hein? Oh, que frescura... Suave, incomparavel vertigem!... — Segura-me! Segura-me... — Oh, como eu estou bem assim... Oh, Senhor, e possi-vel sentir-me tao feliz?! Aperta-me... Nao me largues mais... Oh, meu Deus! Parece que me abismo, que caio indefinidamente... (No teu seio redondo, nessa boca a mord...)— E de veludo preto, o teu vestido? Luto... — Nao durmas. Tu vais adormecer. Vamos embora, trouxa! — 0 teu perfume! Eu ja nao sei dizer pala- vras... Penso-as, balbucio... Como e bom! Como e bom! (Eu sou pequeno, pequenino...) Que suave balango, dir-se-ia que voo. Doido? Que me importa? Bebi de mais... Calem-se voces, eu nao durmo, sinto-me feliz... Se soubessem como... Ah! Ah! E agora? E agora? (Eles podem la, saber!) — Segura-me! Segura-me! De novo deslizo, mansamente, velozmente... Ah, que susto! 72 — Levanta-te! Obedego. Vou-me sem vontade, feliz, outro. — Ela... (Já náo me lembro.) Náo tenho pernas. Sonámbulamente, deslizo no parqué polido; levam-me seguro sob os bragos. Todos me olham. Vejo risos. Que bom, sentir-me assim levado, sem forgas... O meu corpo? Eu rio (—Poe-te em pé!), eu rio perdidamente, um riso inextinguível, sobre-humano, doloroso, que no fundo me entristece... Que horas seráo? O tempo náo existe. E vou... De madrugada, menos embriagado, ao enfiar na cama o corpo ainda oscilante, batido pelo ritmo barbaro do jazz — que siléncio espantoso agora, o desta casa! — compreendo definitiva-mente o odioso da minha vida sempře igual, junto desta fémea indiferente á minha carne. Esta mulher, que náo diz uma palavra de pro-testo, acabou por me irritar. Nem sequer me pergunta a razáo da minha extravagáncia, dos confetti, dos restos de serpentinas agarrados ao casaco e ao peitilho da camisa. A minha raiva surda recobra fulgor no seu ar humilde e resignado, nos olhos pisados pelo choro e a longa insónia — os olhos que exprimem doloro-sas, mudas perguntas. Antes ela me interro-gasse... (Atravessam-me a retina as imagens da noite.) Intimida-me. Náo quero dar contas dos meus actos a ninguém. Se ela chorasse ao pé de mim, era capaz até de Ihe bater. Estou farto de escravidáo! Mas ela náo me diz nada. As outras, ao menos, náo querem saber da nossa vida. E sáo novas, sáo diferentes. Quero eu lá 73 JOS® RODBIGÜBS MIGUSI8 saber do cansago e do deboche! Säo interessantes, que me importa o mais! Näo me desculpo, nein lhe dou a mais leve expucagao. — Boa noite. ^ Amanhece, por sinal. E adormego profunda- VII V^hego tarde ao escritorio. 0 empregado espe-ra-me, encolhido nos umbrais da porta. 33 ver-dade que sinto dores nos rins, mas trago uma vida nova nas arterias, na epiderme, nos nervös. O sol parece-me de novo alegre. Reparo que tenho melhor cor. A minha obsessäo ate-nua-se sensivelmente. Trabalho com mais per-feigäo. Vou talvez libertar-me do pesadelo. Sou outro, näo hä que ver. Näo volto, nesta noite, ao clube. Folheio revistas num cafe, com uma surpreendente segu-ranga de mim mesmo. Sobem-me ideias agradä-veis, projectos optimistas. Desejaria comegar a escrever alguma coisa. Regresso tarde a casa, sem ter escrito uma palavra. Sera outro dia. — E se fössemos ao Bristol? — O que, outra vez? n 75 JOSS RODRIGUEZ MIGUSIS — Fizeste um sucesso! — Vais ver hoje a... — ... Voces lembram-se ? — Oh, é admirável! — ...e ele com a taga... — Nunca a chegaste a ver? — A quern ? —> Á Monna Rubia. — Nunca... — ...e foi preciso levá-lo assim... — Náo, antes quero cerveja. Se tu visses como eu... — É extraordinária. Tem as pemas mais lin-das de... (Palmas.) Só vinte anos, caramba! Perco-me no riso, nas mil trajectórias da con-versa. Impossível seguir um diálogo. Frases dis-persas, desarticuladas. Como tudo isto me é necessário! Proteste a rir — já náo fago um esforgo para escusar-me á tentagáo. Volto. Vol-tarei sempře. Rio-me sem cessar. Sensagáo pura, de alegria imotivada. Vejo num espelho o ful-gor novo dos meus olhos, o rubor das minhas faces... Sou outro, sou outro. Estou contente comigo. Agora, chego sempre tarde ao escritorio. Como o empregado tern que entrar a horas, dou-lhe uma chave. Todas as noites me reuno a esse grupo de amigos. Quase todos trabalham, como eu, sao rapazes honestos. Gostam simplesmente de se divertir. Acho isso natural. O Nogueira recolhe cedo a casa, nao ha o perigo de saber 76 PASCO A FELIZ onde eu passo as minhas noites. Se por acaso vem a propósito, nunca deixo de lne falar nos meus «seroes de trabalho». O tempo rola sem incidentes, como uma grande esfera silenciosa e polida. Abro e esvazio a carteira sem pestanejar. As minhas notas voam confusamente. A bolinha salta, num riso breve e seco. Quem teve uma juventude como eu, alguma vez devia tirar a desforra, náo é assim ? Eis o que eu fago. Demais, o negócio prospera. O passado e a previděncia do Nogueira, a colaboragáo que lhe prestei, deram á casa uma situagáo invejável. Recuso-me a admitir um ajudante para a escrita, a pretexte de que posso muito bem com todo o trabalho. Mas a verdade é que uma parte da escrituragao, dou-a agora a fazer a um antigo camarada. Gosto do cinema porque me exacerba a fantasia. Aquele prazer solitário e silencioso, numa sala povoada que a penumbra torna deserta, dá-me a verdadeira plenitude interior, de que tanto preciso. Certos filmes sáo, para mim, os meus próprios pensamentos animados, projecta-dos na tela. Entretanto, melhoro as minhas relagoes. Apuro o vestuário, tenho outras exigéncias de toilette, e conhego mulheres cuja posse breve, no fim de contas, representa para mim, pelo menos, um més de vida caseira. Náo me sinto cansado. Durante algum tempo aumento mesmo de peso. Afinal, o prazer é um exercício fisico como outro qualquer e um calmante psiquico, 77 JOSS RODRIGUES MIGUSIS PASCOA FELIZ que eu pago generosamente. O que eu tinha t era fome disto. É domingo, está um lindo dia, e o Nogueira aparece em minha casa, muito cedo. Uma esto-pada — eu ainda na cama, com a barba por fazer, e a Luisa a dar banho ao filho numa I azáfama. Traz um cartucho de bolos para o meu pequeno e um corte tailleur para a Luisa. j Pega no garoto ao colo, fá-lo saltar sobre os joelhos, imitando o galope dum cavalo, ergue-o I no ar, dá-lhe beijos, corado, risonho, contando histórias do mato brasileiro. É um avô maravi-Ihado, enternecido. A Luisa contempla-o com um sorriso de simpatia triste. — Diz vôw! Diz vôvôl — Oh, senhor Nogueira... Do meu canto, observo-o sombriamente. Este velho parece querer chegar-se, ter família... Irrita-me aquela ideia de fazer-se passar por avô do pequeno. (A Luisa é filha de pais incognitos.) Ä saída, mete cinquenta escudos na mäo do garoto e promete voltar. Acha-o deli-cioso, e muito simpática a Luisa. — Quem sabe ? — diz-me esta depois de ele ter saído. — Talvez para o pequeno fosse um bom protector, uma espécie de avô... Porque näo havemos nós de o eonvidar um dia... j Em lugar de responder äs suas reflexöes, ergo j os ombros: — Deixa-te de tolices. Trata da tua vida. Para \ pensar no futuro do pequeno estou cá eu. j — A sua senhora tem um ar triste, estará ela ' anémica? Faziam-lhe bem os ares do campo... —■ diz-me ele no dia seguinte. Esta simpatia deixa-me na defensiva. Näo vá ele meter-se de mais na minha vida, ouvir alguma confidéncia! Ponho-me a espiá-lo. Quando regresso a casa, já de madrugada, queimado e gasto dos prazeres que se väo tor-nando odiosamente iguais, vou direito ao quarto, descalgo-me, tiro o casaco, desaperto o colari-nho, que me sufoca — e ponho-me a ouvir a respiragäo do meu pequeno. Afasto a cortina do leito: dorme de lado, espalhando na alvura da almofada os caracóis dourados, com a mäo direita sob a face, o brago esquerdo ao léu, e a mäo fechada, guardando minusculos, invisiveis tesouros... A cama de ferro estremece ao ritmo da respiragäo tranquila. «Dizer que isto há-de ser hörnern, um dia...» Uma angústia instrui-me do futuro que lhe estou preparando. Surpreende-me, quase me assusta a graga, a cor desta crianga, täo dife-rente do que eu fui em pequeno, e da mulher que o trouxe no ventre. Tenho orgulho e ciúme. Loiro, é com a mäe que ele se parece. Em väo procuro no seu rosto um sinal, um indício de mim. O narizinho, correcto, ainda mal definido, tem a graga, a frescura duma espuma. As ore-lhas säo perfeitas como jóias, rosadas, peque-ninas. Os olhos, claros, säo puros, serenos e profundus ; cobrem-nos as pálpebras, que pareôem de seda, orladas de pestanas loiras, longas e den- 78 79 JOSS RODRIGUES MIG U EI S PÄSCOA FELIZ sas. A boea, apetece devora-la com beijos — e rubra, recortada em pequenas curvas harmo-niosas, que morrem em duas cavidades minia-turais... Apontada num biquinho, dir-se-ia bus-car urn seio ou oferecer-se num beijo. E esta vida perfumada, fui eu quern a gerou! Olho-o e as ideias dangam-me na cabega. «fi a ti que eu estou roubando!» A sua cabecinha aparece-me aureolada duma luz distante — uma estrela que eu contemplo do fundo dos abismos... A minha testa sulca-se de rugas. Sinto as veias intumescidas sob a mecha rebelde dos cabelos, onde me vein assomando muitas brancas. Meto-lhe o bracinho debaixo da roupa e vou em silencio, abafando urn suspiro, para a cama. Para näo me incomodar, ela finge dormir, e o seu corpo deixa-me um grande espago livre. Bern o percebo no tremor que a agita, na res-piragäo contida. Renasce em mim a colera, o desprezo, a vila-nia, o esquecimento. O desejo do mal convul-siona-me. Chego a crispar sobre ela, num im-pulso homicida, as minhas mäos de ladräo nocturne Sou injusto e cruel, bem o sei. Näo percebo este odio infame, eu que a vi, solteira, täo poe-tica, täo simples, täo digna dum amor constante e fiel, na modestia dos trajos escurinhos, com as palpebras länguidas, ingenuas, sobre os olhos como duas violetas escondidas. Cheguei, na ver-dade, a ter-lhe amor? Deito-me em silencio. Todas as manhäs durante o almogo tenho no colo o meu petiz. Saio com a boca amarga, depois do beijo distraido no rosto da Luisa, que se ve definhar. Da janela, o pequeno grita-me coisas ternas, insignificantes, atirando-me beijos que me fazem chegar o pranto aos olhos: — Adeus, paizinho! Adeus, paizinho! A vozita ri no alto, ao sol das manhäs claras, como um gorjeio de ave arremessando müsica no espago... Vejo-o a falar com a mäe, bater a pedra com os pezinhos, apontar qualquer coisa e rir, por entre as grades. Volto-me a dizer-lhe adeus, ä esquina (se o näo fago, tenho que ouvi-lo, ä tarde) e, quando entro no carro, recaio na estüpida monotonia dos meus dias. Sinto que os nervos, lassos do prazer, reclamam repouso e quietagäo. O f im do ano aproxima-se. O Nogueira partiu enfim para o Brasil, onde vai liquidar o seu negócio. Partiu, eu fico só em campo, com a minha vida brutal — noita-das, mulheres, ceias e jogo. Os criados dos res-taurantes nocturnos, dos clubes e casinos dos arredores da capital conhecem-me a generosi-dade e curvam-se risonhos para me saudar. Antes de encerrado o balango do ano que finda, cobro a minha percentagem, que o Nogueira elevou mais uma vez. Digo ao empregado: — Fechamos isto por quatro ou cinco dias. Venha por cá buscar a correspondéncia, veja o 80 7 81 JOSS B ODRI QU E S MIGVSIS que houver de urgente, e guarde-ma até que eu volte. A Luisa pergunta-me, surpreendida: — Para onde vais tu? — Viagem de negócio. — Neste tempo! E o escritório ? — Isso näo é da tua conta. — Escreve-me! — Talvez. Se tiver tempo, claro. Seis dias. Durante seis dias, um turbilhäo desperdica-me o fruto do trabalho dum ano. Per-corro a Andalúzia de automóvel, com mulheres e amigos. É o ultimo claräo dum grande incéndio. Num dia nevoento e frio de Janeiro, a minha cölera explode. Voltei esgotado e sem recursos. As contas aparecem em desordem, como se a mäo dum louco ou as artes dum bruxo tivessem baralhado tudo. — Näo e possivel que fosse eu quem fez isto! Mas fui eu. Os meus olhos, agora, veem. E inütil revol-tar-me contra a nitidez dos factos. Uma amar-gura insuportävel e o desejo de fechar os olhos, dormir ou morrer. A presenga deste empregado pode ser-me fatal. Procuro um pretexto, ponho-o na rua e tomo a servigo um rapaz desconhecido. O meu cansago näo tem limites, e perco brus-camente o desejo desta vida aventurosa que fiz nos Ultimos tempos. Passo a detestar os com- PÁSCOA FELIZ panheiros preferidos, furto-me äs suas visitas importunas, e deixo de os procurar. Até onde sobem as minhas dívidas ? Näo posso calculá-lo. Pago-as com uma serenidade horrivel. Os credores roubam-me, evidentemente. Mas näo ouso, näo posso discutir. Pago, ou melhor, é o cofre do Nogueira que paga. Os dias correm, sombrios e len tos. O velho tornou há pouco do Brasil, e a sua presenga aviva-me a nogäo do estado a que cheguei. «Quero lá saber!», respondo a mim mesmo, constantemente. Uma náusea da vida, uma incapacidade para raciocinar, um encolher de ombros indiferente. Ah, se um golpe rude näo me vem sacudir, afundar-me-ei pouco a pouco nesta areia movediga. Traigoeiramento, quase sem eu dar por isso, a vontade oculta venceu-me. Esforgo-me por ver claro na minha ruina — a desgraga do meu fi-lho — mas nem assim me decido a salvar-me. O outro, que me inspirou e me guiou, coman-da-me o resto; falsifico o balango, as notas de depósito nos bancos. O Nogueira ri, satisfeito, ao medir os resultados deste ano. Bate-me nas costas uma palmada alegre e enfia-me num dedo um anel de platina, com um belo diamante brasileiro. Agradego-lhe a lembranga — e dois dias depois vendo o anel ocultamente. — Porque näo pöe o senhor o anel que eu lhe trouxe? — Sabe, näo estou costumado a usar jóias de valor. Guardei-o no Montepio. 82 83 JOSE RODRIGUBS MIGÜEIS O negocio do Brasil esta enfim liquidado. Durante dias inteiros, enfastiado, escuto porme-nores sern fim. O Nogueira resolveu comprar a quinta dos seus sonhos, e confia-me o dinheiro. Se ele vai ao banco e, por acaso, descobre a falsificacäo dos depositos? Para evitar näo sei quo desgraca, corro a depositar esta enorme quantia. Um fio invisivel estrangula-me. Mas näo. Ele frequenta a Rua do Comercio — os cor-retores, um cambista amigo — mas nunca pöe os pes no banco. A vida, assim, e-me insuportävel. Näo posso fazer um gesto. Sou como os convalescentes que perderam a nocäo de certos movimentos e preci-sam de reaprender tudo. Um toque de tambor acelerado pöe-me constantemente em sobressalto. Devagar! — näo ha meio. Ternura e alegria, sofrimento e amor, tudo quanto forma o passado, o meu passado, esta sepultado no fundo deste lodo. So uma coisa paira e persiste em mim, com o murmürio casto e musical dum fio de ägua que nem o Estio mais ardente faz secar: o amor do meu filho. E o que me prende ä vida — ao trabalho, ä mulher insipida, cuja submissäo me enche de revolta. Um filho... O amor perdeu, com a satisfagäo das primeiras curiosidades, o impulso e a chama, e transformou-se nura vago enternecimento que se apagou por sua vez, deixando apenas a tarefa. A mulher foi espirito e carne, depois so carne, que por fim se tornou inütil e pesada. O espirito, anseio de criagäo, abandonou-a com o pri- PÁSCOA FBLIZ meiro filho. Este sim! É a carne da minha came, prolongamento da minha vida, promessa impressionante e misteriosa de imortalidade... Um filho é um passo da vida para alem de nós, um pedago de futuro que geramos e atiramos para alem de nós. A luz que as estrelas, mor-tas há muito, ainda irradiam no éter. ! 84 85 VIII C^hego a casa para jantar. B sexta-feira. O meu filho näo vem ä porta. — O pequeno, que e dele ? E a minha pergunta habitual. A Luiza näo diz nada. Tern os olhos inchados e vermelhos. — Responde, parva! Que e do rapaz? Sacudo-a com forga. — Estä doente, estä na cama... — Que dizes tu ? Rompe em solugos täo fortes que empalidego de medo. Agarra-me chorando eonvulsivamente. A sua dor contida procura um coragäo. Repilo-a quase brutalmente: — Deixa-me, estüpida! Que estäs tu a chorar ? Näo gosto de pieguices. As lägrimas irri- tam-me, parecem-me de mau agouro. Entro no quarto como urn pe-de-vento: na cama desco-berta, o meu filho dormita de costas, vermelho, com os olhos cerrados. Tern os punhos na dobra 87 JOSS RODBIGVES MIGUSIS PÁSCOA WELIZ exterior do lencol, que é duma alvura impres-sionante. Estremego. Curvo-me sobre ele: res-pira depressa e com dificuldade. Como de costume, meto-lhe os bracitos moles sob a roupa, e apalpo-lhe a testa: queima. Geme, baixo, sem abrir os olhos. Chamará por mim? Invadem-me o terror e a fraqueza. Sinto as pernas entorpe-cidas. — Ele está mal, está mal! O suor escorre-me da testa e pergunto á Luisa, que me seguiu em siléncio: — Mas isto como foi? E medico, chamaste algum? Que disse ele? Fala baixo... Os meus olhos náo a deixam. Á porta do quarto, com a voz trémula do choro reprimido, conta-me que há dois dias que o pequeno andava indisposto. Náo queria comer. Chorava por tudo, queixava-se da cabega e da garganta. — Náo to disse mais cedo para te náo ralar. Julguei que fosse coisa passageira... Náo se te pode contar nada, náo paras em casa! Agarro-lhe um pulso, táo delgado, e sinto que třeme. Náo tenho palavras para dizer-lhe. Um nó aperta-me a garganta. Percebo que ela faz também um grande esforgo para falar, e fico a ouvi-la, assim. A sua voz tem um sabor de violetas molhadas... — Vi-o táo mal... Depois ficou amodorrado. Chamei entáo a vizinha do lado, pedi-lhe que me trouxesse um medico... Eu nem sei como tive coragem de ficar aqui sozinha com ele! Mal toco no modesto jantar. Ougo os suspiros da Luisa, que me fita ansiosamente, numa per-gunta muda. Nenhum de nós se atreve. — Entáo, e tu, náo comes? — Eu nem o posso olhar... Estou táo ralada! Á noite fico sentado ao pé dele. Reprimo os ais que me sobem á garganta. Era o que me faltava! Vejo-o com as máozinhas cruzadas, no caixáo... Ergo-me bruscamentc. Está vivo! Mas a visáo repete-se vezeš sem conto. Ougo-o res-pirar — o ar raspa-lhe a garganta. Uma lampa-rina espalha claroes vermelhos, flutuantes, nas paredes. Há um ar de expectativa ansiosa nas coisas. Pareceu-me que ele se tinha mexido... Náo, foi a luz, foram as sombras que oscila-ram. Realizo fantasmas nas paredes lisas. Cubro os olhos com as máos para os náo ver. De vez em quando o pequeno murmura palavras incom-preensiveis. Curvo-me para ouvir. Delira com certeza. — Entáo esse médico, náo vem? A dor martela-me o peito, as fontes. Será eZe que vai pagar os meus erros? — Porque náo hei-de ser eu... — Tu que dizes? — Ah, tu estás aí?... Náo disse nada. E penso, desesperado: «Antes ele morra! O que?! Sou doido! Pode lá ser! Ele tem que viver, eu quero que ele viva, o meu filho! Eu quero! Meu querido, meu lindo filho...» — Que tens tu? Estás a chorar? Náo chores... — Deixa-me. Deixa-me cá com as minhas... As lágrimas náo me deixam acabar. 88 89 JOSE rod RIOVEH MIGUĚIS O médico chega, enfim. B um velho simpático, de grandes barbas brancas e lunetas. O seu ar, a sua presenga tranquilizam. Parece-me infinite o tempo que leva a examinar o doentinho. Com que vagar ele lava as máos! Estendo-lhe uma toalha de linho, com barras de renda, e ele des-dobra-a cuidadosamente. A Luisa foge, náo quer ouvi-lo. Eu fito-o com angustia. —E entáo, senhor doutor? — Vamos a ver. Por enquanto, náo fago um diagnóstico definitivo. Náo me agrada nada aquela garganta. Má respiragáo. Eu volto amanhá de manhá. Veja se reanima a sua mulher. Ela é fraca, é nervosa. Dé-lhe um cal-mante, eu lho receito. Senta-se á escrivaninha do nosso quarto e escreve em silěncio, com uma letra miudinha, ilegível, pesando as palavras. Parece-me que vou desfalecer. Um relógio palpita angustiosa-mente em qualquer parte, dir-se-ia que o som voeja através do quarto. — Ao pequeno... — Como? — Mudem-no de quarto quanto antes. Mais ar e mais sol. E nós veremos. Isto para sua mulher. Uma colher de chá a cada refeigáo. Desinfectem as roupas. Para as máos... Dá-nos instrugoes, serenamente, e guarda no bolso a caneta e qualquer coisa que brilha, tubo de vidro ou metal. — Passem muito bem. — Alumia o senhor doutor. Tento sorrir. A cabega anda-me á roda. Volto PÄSCOA FELIZ ao quarto a correr e olho o meu filho. Está mais rubro, arde em febre... Tenho medo. Se chamássemos outro médico ? Tranquilizo como posso a Luisa. Faz-se-lhe a caminha numa casa da frente, onde o sol bate muito cedo. Ali, onde foi a saleta, é agora o ninho duma avezinha doente. As paredes, cor-de-rosa-queimado, reanimam, dáo esperanga. Dormito em sobressalto, obcecado por um desejo indefinível. A manhá chega e, abatido pela dor, parece-me que desprezo menos esta mulher honesta e sofredora; fito com piedade amarga os seus olhos, que tem a tristeza de duas nascentes no Inverno... Beijo-lhos — sáo duas florinhas orvalhadas. — Vé sc tens coragem, filha. É o meu primeiro instante de ternura desde que resvalei. Desgo a escada, uma comogáo vio-lenta aperta-me a garganta, e as lágrimas rom-pem-me novamente. Oh, meu Deus, ainda posso chorar, ainda me comovo, ainda tenho coragáo! Olho da rua, por hábito, as janelas fechadas. Vejo o vulto dela, entre as cortinas que arredou, e um lengo branco. Digo-lhe adeus. Tenho um imenso dó, dela e de mim. E remorso, medo, pressentimentos. O meu desterro agora vai ser mais pesado. — Cobarde! Já náo sei andar na rua, de noite. Por toda a parte ele me aparece, sufocado, com as máo-zinhas estendidas para mim... O medo amar- 90 91