jose rodbigües migusis ra-me ao seu leito de ferro. No quarto paira um cheiro forte de remedios e desinfectantes. O Nogueira, e certo, continua a dar-me pro-vas duma cega confianga, mas eu e que a perdi de todo em mim mesmo e, o que e pior, ja. näo sei o que e estar tranquilo um momento. De dia para dia vou percebendo melhor o que fiz, medindo os estragos que pratiquei. Näo poder reparä-los! Trabalho calado, com o peito a noventa e a cem pulsacöes. Nem sei como posso resistir. Näo ha remedio senäo vender os möveis novos. A Luisa ve, com mudo espanto, desfazer-se isto tudo. Näo protesta. E eu näo me atrevo a expli-car-lhe. — E preciso, e precise Näo se discute. Sabes lä como os negocios andam maus!... B tudo a piorar, a piorar... IX .Ali passo os compridos seröes desse fim de Inverno chuvoso — toda a noite ouvindo o vento nas janelas altas e a chuva que bäte intermi-tentemente nas vidracas. Nesta rua, os rumores acabam cedo. Fico so, no quarto andar silen-cioso, enquanto ela repousa do longo dia de trabalho. Mas, de vez em quando, abre-me a porta. Pöe-se a espreitar, e eu vejo-lhe no escuro os olhos tristes e apagados no rosto sem cor, e a mancha do cabelo solto... Näo diz pala-vra. Fago-lhe um gesto para que se vä deitar, a porta cerra-se e continua o silencio. Dentro de mim, porem, uma indefinivel interrogaeäo nunca se cala. Sinto os solugos subirem-me ä garganta, e um mar de lägrimas que näo chego a libertär. A vida acabou por me parecer uma inütil tor- 92 93 joss rodriguez miguéis pasc o a feliz tura sem beleza nem grandeza, um desterro, onde se paga um minuto de prazer com longos anos de amargura. Trabalho como nunca. Pretendo salvar o meu filho, näo lhe deixar encargos nem dificuldades. Sei até que ponto os homens säo exigentes em matéria de honra — para com os vencidos e os humilhados. Se eu lhe falto! Arranjei escritas para casa e, altas horas da noite, só ougo o ranger da minha pena no papel calandrado, e o canário, na sala de jantar, assus-tado com a luz, afiando o bico no poleiro. Pia timidamente. K alguma pergunta incompreensí-vel, um conselho de amigo... Que fazem no mundo certos entes inúteis? O destino deste é comer e cantar. Mas outros sofrem como eu, embora irresponsáveis do mal que praticaram... Eu sofro — e ele canta! Näo é livre. Mas que séria dele sem a nossa protec-gäo, fora da gaiola doirada, onde nada lhe falta? (O próprio amor é urna luta de morte.) Muito bem, eu sou livre: mas prende-me ao sofrimento uma cadeia invisível e tenaz. Sou um prisio-neiro da liberdade! A liberdade é o direito de suportar heroicamente a dor — sem dela culpar ninguém. — Näo posso ouvi-lo cantar. Este con-traste encoleriza-me. Se o libertasse? Näo... Será melhor matá-lo! Precise de violěncia, a minha dor exige um escape. Uma noite, exasperado, fora de mim, abro a porta da casa de jantar... (Calou-se, talvez pressentindo o perigo.) Um momenta basta-me para compreender o instinto cego de vinganga, de réplica ao destino, que me impele a matá-lo. E a Luisa, que tem por ele tanto carinho! Näo, é melhor deixá-lo vi-ver. Mas este episódio torna mais agudos os con-trastes da minha existencia. Acabo por habituar-me a ouvi-lo. O trabalho, afinal, volta a ser o ópio que me liberta, que liberta o meu sonho de irresponsa-bilidade. O processo da morte desenrola-se aos meus olhos, até aos Ultimos limites da decomposigäo orgänica, em diabólica e perversa nitidez. Um calafrio... Recaio nas cifras com desespero, com uma pressa dolorosa de chegar — mas näo sei onde. Ah, eu acredito na remissäo dos meus pecados pelo sacrificio... Julgo talvez que me salvo! Em mim há, no f im de contas, como em toda a gente, várias personagens que se con-tradizem, predominando alternadamente na von-tade. E uma tendencia religiosa, o apelo para o «mais alto»! Somo, conto, escrevo, divido, numa febre. Os números voam, impelidos por um sopro aluci-nante. Como é possível trabalhar assim? Näo penso, näo chego a calcular. Dir-se-ia que alguém me segreda o resultado de operagöes que näo realizo; o meu trabalho é meeänico e veloz. Amontoam-se os cadernos de papel pau-tado, cobertos duma caligrafia nervosa. Quem comanda o meu trabalho mental, os movimentos do meu brago ? — Uma noite, ergo-me num gesto 95 joss rod rigu e s migüsis de revolta contra as sombras que me impelem. Bašta! Ninguém... É o delírio. Čada vez mais depressa! Sinto que resvalo na loucura. Um sopro de alucinagäo roca-me a pele e passa... Percebo debaixo de mim um abismo escuro — e vou sempre. Roo as unhas da mäo esquerda, como os estudantes que esperam a vez de entrar a exame. Doem-me as costas e o brago, de estar curvado a escrever. É preciso repor, salvá-lo. Mas as despesas que fago com a sua doenga absorvem-me os recursos por complete A minha pena rasteja, range, apressada, fúnebre, nervosa. O risco lutuoso que ela deixa parece alastrar, como um véu desen-rolado e flutuante, na casa, maior, quase deserta, desde que os móveis foram seguindo ao seu des-tino de miséria. Levo noites seguidas sem dormir. Durante as eurtas horas de repouso, revolvo-me na cama abafando os suspiros, com mil angústias e pen-samentos maus que me invadem a cabega com um rumor de cascata. É aí, sobretudo, na cämara eseura do meu quarto, que as visôes me surgem. Ě uma luta contínua, até ao amanhecer. A voz submissa pergunta-me do lado: — Que tens ? E eu: — Nada. Vé se dormes. Ouco-lhe um suspiro. E continuamos os dois a fiar a insónia. A sua companhia comega a parecer-me neces-sária. Pouco a pouco, passo a experimentar uma páscoa feliz dorida, infinita piedade por esta mulher, sempre de guarda á minha vida. Fago-lhe uma carícia fugitiva, seguro-lhe a máo, que třeme e deštila um suor impressionante. Esta mulher honesta — pudor e sacrifício acumulados — vejo-a de repente só, com o filhinho nos bragos, táo timida e táo fraca. Vejo-a! E luto em váo contra o receio de abandonar estes dois pobres seres. Morrer é o que menos me importa. Tenho de salvá-los, expiar o mal imenso que lhes fiz a todos (e ao Nogueira, táo bom, de falas táo mansas!), embora tenha de morrer depois, na paz do meu lar reconstruído e feliz. Ninguém pode supor o que é agora o ímpeto da minha vida, toda concentrada nesta ideia fixa. Ao romper da manhá, quando a máo da luz, discreta, bate nas vidragas, ergue-se ela sem rumor, e vai ccrrar devagarinho as portas inte-riores para que o sol náo me venha importunar. Náo volta mais á cama. Bern a sinto, mas náo posso abrir a boca para dizer-lhe «obrigado»! Recomego decerto a amá-la. Mas é um amor de saudade e renúncia... como direi?, um amor de arrependimento. Na urna branca do seu corpo — impossível tocá-lo! — olho o meu passado morto, sem remédio, inatingível. E amo-o como ele foi, ou antes — como desejaria que ele tivesse sido. O meu passado irreal e o verdadeiro! A sua lida, que a noite curta mal suspende, principia muito cedo. De madrugada, extenuado 96 97 josě rodrigues migusis pelo monólogo interior, eu escorrego quase insen-sivelmente numa lenta modorra, misto de sono, de cansago e de torpor. Dormito e ougo os passos cautelosos dela, em palmilhas de meias. Depois é a porta da escada que se abre com um suspiro de paz, quando ela sai as compras, ainda ao lusco-fusco. Através da ligeira cortina do meu sono, rememoro entáo distantes emogoes... O que? Reconhego esta voz que me fala... Aquele dia de chůva... «Na minha terra havia...» A recordacáo duma palavra amarga, duma injustica, enche-me dum remorso angus-tioso. Primeiro dia de escola, a minha solidáo, as lágrimas, o embrulhinho do lanche... Meu pai! Vejo-o morto — onde isso vai! — com as máos lívidas e magras enclavinhadas numa cruz de madeira, e o lenco manchado de sangue atado na cabega... Apavora-me a visáo que julgava extinta. E esta luz amarela ? Folhas estilizadas, ouro e negro — um rumor de solu-gos, de suspiros... Sobre o veludo negro escor-rem lágrimas que brilham como astros, e o meu dedo estende-se para lhes tocar... — «Náo! Náo!» Ponho-me, com esforgo, em busca de uma doce lembranga. É insuportável! Agora, é uma letra... «Náo. Também náo.» Aquela capa de pano verde-escuro, minha máe, que fomos os dois vender um dia — acabara-se o páo... «Náo quero! Náo quero!» — E de repente uma cruz sobrepoe-se ás primeiras imagens. Como é que... Apelo para o que há de bom no meu passado. Remorso, uma saudade... Um beijo. Que é feito dela? Também essa morreu... Uma planície rasa pascoa feliz — e cruzes. Os meus olhos, cerrados, intumes-cem-se de pranto, que desliza e goteja na almo-fada com um ligeiro rumor. — Estas horas! — Onde vais tu ? Náo saias! — Vou, tenho de ir! — Sáo quatro horas. Que vais fazer á rua? — Já te disse. Tenho de ir. — Chove a cántaros... — Que importa! —■ Oh, meu Deus! — Deixa-me ir, deixa-me ir... Eu tenho pressa, tu náo věs? — Mas queres alguma coisa ? Estás doente ? Tenta agarrar-me. Tenho de ir! Salto da cama abaixo, calgo-me, visto-me á pressa. As minhas máos tremem, náo acerto com os botoes... — Náo me digas nada! Náo me pegas mais nada! Levanto a gola do casaco e saio, fechando os ouvidos aos rogos da Luisa. Para onde vou eu? A minha resolugáo é firmě e absurda. Alguma coisa me cháma, imperiosamente... As ruas estáo desertas e alagadas. Só ougo os meus passos, que ecoam nas paredes fronteiras. Ace-lero a marcha. Está frio, bato os dentes. Esta casa... Paro. Náo a conhego. Náo sei bem onde estou. Tudo escuro... Tacteio pedras, portas. Entro. Sou eu que marcho? Sáo antes as coisas que se deslocam e transformam á minha volta. 98 99 j oss rodrigues migvsis Salaš, salas imensas, todas frias, obscuras e desertas. Uma casa abandonada. Náo sei aonde vou, mas uma forga impele-me, e obedego... Diante de mim está uma porta imensa e negra, de metal. Olho-a, apalpo-a: chega ao tecto, é fria, fria... Os meus dentes batem como casta-nholas. Doem-me os dedos enregelados, mas, com muito esforgo, luto para abri-la. Como é pesada! Gira silenciosamente. Um cofre ? Um cofre! Escuro, parece uma caverna... Tenho medo. Mas mergulho lá dentro, tacteando e explorando o negrume interior, onde há um vago reluzir de pedras e metais... E vejo! Vejo! O cofre abarrota de riquezas! O que, é tudo meu?, é tudo para mim? Embriaga-me a volu-pia da posse... Enterro, no ouro e nas pedrarias que cascalham com brandura entre os meus dedos, as máos, trémulas e lívidas na fosfores-céncia sobrenatural das jóias. Á pressa, meto nos bolsos, confusamente, quanto eles comportam. Náo poder levar tudo! Estou ébrio, um calor delicioso, voluptuoso, per-corre-me o corpo, invade-me as máos. E tudo isto comega a dangar em meu redor, as jóias saltam, rodopiam, luzem... Grito: «E tudo meu! É tudo meu!» Um estrondo, surdo e sinistro... Sumiu-se tudo, as jóias desapareceram como luzes que se apagam. «A porta! Abram a porta!» Alguém me fechou no cofre! «Abram a porta! A porta!» Bato desesperadamente. Mas agora já náo encontro nada, nem paredes, nem porta, nem jóias. «Abram! Abram!» Chega até mim um ranger 100 pasco a feliz de correntes... Vou morrer aqui dentro... «A porta!» Sufoco. «Ar!» Alaga-me um suor de agonia. Ja näo posso dormir. O sonho afugentou-me o sono. Ergo-me e vou sentar-me a ver ama-nhecer por deträs das vidragas, na melancolia cinzenta e silenciosa desta manhä de Inverno. Uraa tinta livida e amarga espalha-se nas facha-das, que väo surgindo aos poucos da penumbra caotica da noite. Formas e cores... As ärvores, sem folhas, esbracejam. E as ultimas gotas de chuva escorrem nas vidragas, como lägrimas silenciosas. Tomei horror ä cama e nunca me entrego con-fiado ao sono. Desperto num. sobressalto, a boca aberta e seca, e a impressäo de que me des-penho. Um terror, que näo posso dominar, saco-de-me o corpo e a cama, e fico durante muito tempo acordado, a seguir com doentio interesse a lenta acalmia das arterias. Aos pes da cama (voltämos ao nosso leito humilde do noivado), tilinta um ferro mal seguro, num risinho irö-nico, marcando o compasso das minhas pulsa-goes. Comprimo as roupas contra o importuno, para o näo ouvir. Imploro äs f orgas misteriosas da noite que me deixem repousar da luta, por algumas horas. Rezo entäo com fervor — näo sei o que, pois que ja näo creio em Deus, e julgava ate ter esque-cido as oragoes que em tempos aprendi. 101 JOSE BODRIGUES MIGÜSIS Alguns pesadelos, conheco-os täo bem como certos romanccs que relemos. Repetem-se, com as mesmas angústias e o mesmo domínio duma forga oculta. É inútil que a mim mesmo repita (no que existe sempre em mim de consciente) que é tudo uma rápida ilusäo. Tenho de sofrer esta prova. Submeto-me ao absurdo, como ä fatalidade inelutável. A minha inquietacäo näo tem limites. (Ainda lateja cm mim esta änsia de partir!) Tudo está deserto, o cais e o navio... Que estranha atmosféra de sobrenatural! É a hora exacta da par-tida. Näo há gritos, näo há rumores no cais nem a bordo. É um barco-fantasma, fluido, ima-terial. (Sonho, com certeza; mas é bom sonhar assim...) Caladamente, afasta-se da terra, que se esconde em densa bruma. Navegamos ao largo. Como tudo é rápido, ligeiro! O ar sufoca. Näo se ouve um grito de ave, nem urna voz humana. O navio corta as ondas... Bruscamente, desata-se um vento furioso e a chuva cai, con-tínua e cerrada. É belo ver chover sobre o mar. É tudo cor de cinza — o céu, as ondas enormes, o navio, eu proprio... Só uma faixa de luz ala-ranjada, que pouco a pouco empalidece em gra-dagôes mais suaves, até se tornar dum verde pálido, angustioso, rasga o horizonte. Näo posso fugir ä infinita tristeza desse pormenor: um suspiro de luz que corta o céu, rasando as ondas duma luz de Além... A noite desce, subita e opaca, sobre o mar fosforescente. Comega a minha angústia... No alto das ondas implacáveis refervem espumas. Ninguém! Ninguém! Nem um PÄ8C0A FELIZ grito! E estou só... Há muito que percorro o navio em todos os sentidos, tropegando, escor-regando, segurando-me ao cordame, as amura-das, a coisas que näo conhego nem distingo, no silěncio e na bruma. E näo vejo vivalma. De súbito, nas trevas, o navio transformou-se e encontro-me num bote, abandonado, sem remos nem velas, como num caixáo... Naufraguei. Luto há muitas horas contra o mar. O barco mete água. Esgoto-a furiosamente, e ela cresce sempre no fundo, zombando dos meus esforcos inú-teis. Extenuado, deito-me ao comprido, vol-tando para o céu o rosto humcdecido pelas lágrimas e pelos salpicos amargos do mar. Solugo e titubeio, implorando um vago Deus. E nisto deslizo para as ondas incansáveis e Mas. Mergulho, sobrenado, grito, bracejo desespera-damente, com os cabelos empastados nos olhos, e adivinhando sobre mim o voo raso e agoirento das a ves... Quanto tempo levo assim? As ondas arrastam-me em direcgáo a uma costa agressiva, de arribas empinadas, onde o mar quebra em altíssima espuma. No fundo nocturno, a bran-cura espectral e sinistra da rebentagäo desenro-la-se, agitada, pela costa fora, como uma mor-talha ululante... As ondas impelem-me irresisti-velmente. Abandono-me, sem forgas. A poucos metros já de mim, ruge a tormenta. As vagas desfazem-se na rochá com um rumor de tro-voada. A mořte, a mořte na espuma desvairada! Os corvos rogam na minha carne os seus bicos de ferro. Uma vaga mais alta ergue-me agora, vai 102 103 jose rodrigues migvsis despedagar-me contra as finas arestas da mura-lha, desfazer-me em farrapos sangrentos... E os corvos! Um grito imenso (eu de envolta na espuma) brota de mim, talvez da propria tempestade. Estendo e crispo as mäos, procuro suster-me, deter a forga que me arrasta... Arquejante, alucinado, a gemer, a solugar, amarfanho as roupas aflitivamente. As mäos dela serenam piedosamente a minha dor, ali-sam-me o cabelo revolto, afagam-me a testa humedecida, enrugada, envelhecida; a sua boca maternal derrama palavras balsämicas e mei-gas, que me fazem lembrar minha mäe — morta há tanto! Abraco-me a ela e choro. Ö meu Amor... Que séria, sem ti, o meu des-tino! Choro. E, mais sereno, beijo-a com ternura humilde e agradecida. X /v meu lado, o seu corpo branco e humilde espera sempře. Eu mal ouso tocar-lhe. É supers-tigáo ou timidez? Receio abrir uma comporta de ternura e de volúpia dolorosa. — Esta carne táo doce, que primeiro me embriagou e depois odiei, apenas a afloro numa rara carícia fugitiva. Nenhum de nós pode tornar a acreditar na volúpia. No entanto, sinto que ela me oferece o único prazer legítimo que resta á minha vida amarga e destrocada. (Eu náo me atrevo...) E deseja também — em silěncio, ou num mur-múrio často de água nascente. Será justo esmagar assim perpetuamente a carne e elevar a alma só na dor? Náo há direito a mais nada na vida? — Para ela o mundo já náo tem alegrias nem sol. Dar um pouco de amor a esta pobre mulher escravizada e sofre-dora, que tornei táo infeliz... 105 JOS e ROD RIGU E S MIGUĚIS É possível que um instinto de pureza reden-tora me iniba de apertá-la nos bragos como outrora. Mas de novo, e com todo o meu ser, desejo a mulher que beijei fresca e virgem. Rememoro o nosso antigo amor, puro e ardente, as noites rápidas em que a nossa carne ardia numa exaltacäo voluptuosa, até que a madru-gada vinha encontrar-nos adormecidos e enlaga-dos. Depois, a presenca do nosso f i lho encheu--nos de pudor. Agora — com o doente, ali no seu ninho alvo do quartinho ao lado... Näo, näo! Séria um sacrilégio apertá-la nos bragos... O nosso pra-zer séria como um grito de amor sobre um abismo, e os nossos espasmos acabariam talvez em lágrimas de dor. Vivo envolto na atmosféra de pesadelo como na propria realidade. Como as pessoas que escaparam dum incéndio ou dum naufrágio e ficam revendo em alucina-gôes o horror da tragédia, eu passei a viver sob o domínio do medo. Em pleno dia, na rua, as visôes tomam conta de mim. Tenho um receio horrível de enlouque-cer completamente. Quern me vir entäo correndo nas ruas, com a testa alagada, pára decerto a olhar para mim, supondo-me fugido ao manicómio ou á cadeia... Só a companhia da Luisa modera em mim o terror. Tranquiliza-me saber que a tenho ali para me consolar das torturas que sofro. Durante algumas noites consigo dormir tranquila-mente, e chego a julgar-me perto da cura. PÄSOOA FE LIZ Esta noite, depois de um trabalho extenuante, deitei-me em siléncio, com o peito opresso como de costume, e adormeci logo, coisa rara, nura sono de chumbo. De repente... «Como? Näo pode ser!» Vejo-me a caminhar ao longo duma rua larga, chcia dum tépido sol de Primavera. Vou alegre como o ar que me envolve, duma alegria saudável, primitiva, e com uma impressäo de seguranga, de bem-estar definitivo, que me espanta. «Mas como é... Se eu tenho ideia de me ter deitado tarde, morto de frio e de cansago... Como estou eu na rua, nesta rua, de manhä, com sol, e täo alegre? Näo, näo... Esta confianga, esta segu-ranga na vida, tudo é mentira, tudo alucinagäo.» Esforgo-me por ver claro. Procuro ver-me eu--próprio-urn-oiitro, como sucede tantas vezes, quando sonhamos. Inútil. Uma forga obriga-me a aceitar a realidade... «Mas se há pouco adormeci na minha cama!» E näo sei onde estou, nem aonde vou. B-me impossivel explicar isto, por mais que tente convencer-me de que durmo. Há tanto que näo experimento uma alegria saudável! Abandono-me. Se é täo bom viver assim, por momentos que seja!... Acreditar que se é feliz... Que fiz eu de extraordinário? Vou ligeiro e alegre. E no entanto, por estranho que parega, estas avenidas ciaras, soalhentas, limpas — eu näo as conhego, mas alguma coisa em mim as reconhece... Há nelas näo sei o quě de irreal... Näo me lembro de as ter visto... No entanto, sinto que devo conhecé-las. Uma cidade nova? Näo posso neste momento... O Brasil. O Brasil? 106 107 joss rodbigues migusis Ah, sim, e isso mesmo! O Nogueira — o Brasil, exactamente... Percebo, agora percebo muito bem: vou a caminho do meu escritorio, estou no Brasil, em... Que obstinagao! Deixa la o nome. — Que alegria! Ando, e olho as fachadas dos palacetes, os renques de arvores em flor. Alguma coisa paira de sobrenatural, como um perfume, como um pressentimento... E o ar tepido, o ar novo e lavado, o ceu em festa. (Sensagao que me davam na infancia os «dias santos»...) Silen-cio, silencio— e nas ruas desertas a claridade ri... Onde esta essa gente? Deve ser muito eedo. Respiro fundo, o ar consola. Que silencio! Ah, agora! Ja vejo homens. Duma esquina surge a testa dum cortejo, vagarosa. Oh, tanta gente... Homens, so homens, de eabega desco-berta e curvada. A multidao ondula, cerrada. Nao se ouve um grito, nao se ouve um passo. Dir-se-ia que pisam cautelosamente algum tapete. E eu caminho tambem sem rumor. O silencio deles impoe-se. Abro os olhos o mais que posso, para ver... La vem. E uma enchente. Dobram a esquina e derramam-se na rua, todos lentos e de negro. E um fluir continuo, regular; vejo a cadencia dos corpos, e o silencio mortal sufoca-me na luz. Nao se abre uma janela, e horrivel. Ha. qualquer coisa de estranho! A tris-teza, a angustia deles comunicam-se-me tambem. Cheio de espanto, apresso-me para ver. Nao dao conta de mim, nao me falam, nem mesmo quando me ponho a atravessar a multidao, que nao me oferece resistencia fisica. Estremego. Dir-se-ia que rogo e trespasso fantasmas, corpos visiveis 108 päscoa feliz mas etéreos, fora das leis da matéria sensível... Vultos, vultos (náo vejo a cara de nenhum) — e eis o núcleo do cortejo: os homens arrastam lentamente um carro pequeno e baixo, quase um carro de mäo... Ninguém olha para mim. Tenho de ver...—Näo vale a pena! — Já que vim até aqui... — Dá licenga... A minha curiosidade é angustiosa: «Eu bem dizia! Eu bem dizia!...» Vejo um caixäo enorme, negro e descoberto. «Näo quero ver, vou-me raas é embora!» O meu coragäo pulsa violentamente. A alegria evaporou-se no ar, tenho medo, tenho medo, mas preciso de ver... «Quero-me ir embora!» É uma atracgäo imperiosa. Absolute siléncio. Dou uma volta ao esquife... (Os homens andam sempre.) — «Mas se eu näo quero ver! — É preciso!» Desfalego de receio, quero desviar os olhos, tremo. Näo me em-purrem! A forga obriga-me a olhar... «0 qué? Sou eu próprio?! Eu! Näo quero, que horror! É absurdo!» A minha cara tem uma expres-säo cruel: a eabega numa torgäo aflitiva, os olhos fixos, revirados, perdidos no infinito... Duvido por momentos de mim mesmo. As minhas ideias... Tudo me choca e me desvaira. «Se aquele sou eu... Sou eu, entäo, outro?» Tenho de fugir. O esquife parou e a multidäo impalpável escoa-se em ondas silenciosas... O morto hipnotizou-me, näo lhe posso fugir. Um peso de chumbo caiu sobre mim, prende-me ao chäo. Fago um esforgo desesperado para me libertar, para romper a eadeia daquele siléncio 109 JOSE RODBIGÜES MIGVEIS de morte... «Larguem-me! Larguem-me!» De comego quero gritar, mas o ar näo vibra, näo liberta o som. Asfixio. Acabo por soltar um grito sobre-humano, que me dilacera o peito... A multidäo desfaz-se em fumo; fica a rua deserta, cheia de sol, e eu abandonado no es-quife... Sou eu! Sou eu! Deixam-me só!... Sinto que estou realmente no esquife, eu, morto e só! Näo desdobrado, como há pouco, mas um só eu. E de novo näo posso gritar. Estou morto. «Le-vem-me! Levem-me!» Mas quem pode ouvir o pensamento ? O ar é opaco. Escurece. B noite? Ficarei aqui para sempře? Um terror sem limi-tes. Que escuridäo horrivel! Sinto o esquife amo-lecer lentamenie sob o meu peso. Näo vejo nada. Tenho a rigidez dos mortos. Onde estou eu? Vivo... O meu coragäo bäte... Uma saudade penetrante daquele sol tépido, daquela Primavera sorridente... E a alegria de me sentir de novo «eu proprio»... Levo tempo a libertar-me do letargo. Terei morrido realmente e acordo para um mundo de trevas? Recomponho-me com esforgo. A pancada longínqua e regulär dum relógio restitui-me ä realidade. Oriento-me. Tenho näo sei que atroz suspeita... Ergo-me de salto (a Luisa dorme), e vou curvar-me sobre o leito imaculado e branco do meu filho: dorme também, serenamente, entre as cortinas, caidas como asas de anjos que velam. A sua almazinha deve pairar nalguma regiäo alegre e superior do mundo, embora o seu pobre corpo enfermo esteja aqui, ardendo numa febre teimosa e demorada. pás coa feljz O seu future. Ě täo dócil e täo bom, este menino! Nunea me importunou, como certos pequenos egoístas que toda a noite choram. A este bastava dizer-lhe «dorme!» para adorme-cer. E terá de ouvir palavras dolorosas: «Vá-se embora, o seu pai foi um ladräo!» (Crispo as mäos na grade do seu leito inocente.) Häo-de fechar-lhe as portas na cara, com receio e com desprezo... «Capaz de ser pior que o pai, que foi um gatuno de marca...» E eu, santo Deus!, morto ou no desterro, sem poder valer ao pobre cuja existencia envenenei desde o bergo... Nem acabando com a vida pode-rei poupá-lo. A minha morte séria para eles a desgraca completa. É preciso vi ver! Repito comigo mesmo: «Tenho de o salvar, tenho de os salvar!» Quando volto ä cama, rompe a madrugada. Tenho o coragäo mais tranquilo e a minha reso-lugäo é mais segura. 110 111 XI S enhor Renato, acho-o mudado, o senhor parece outro. Anda abatido, porque näo se trata? Va para fora, descansar algum tempo... Voce trabalha de mais, temos de arranjar quem vä se pondo ao corrente destes assuntos. Com as noites de insonia e pesadelo, e o tra-balho ineessante, o meu cansago e visivel. Todas as manhäs descubro novos cabelos brancos, Uma ruga triste e sinuosa persiste-me na testa, que tomou uma cor de oca desbotada. Despertou-lhe a atengäo o meu acabrunhamento. Olho-o dis-f argadamente: e por suspeita, ou e por verdadeiro interesse que ele assim me fala? Quem poderä dize-lo ? Näo quero abrir-me, despertar-lhe a atengäo. — Näo senhor, näo tenho nada, estou perfei-tamente... E talvez um pedago de anemia, ou o figado... Uma tristeza que me da de vez em quando, e mais nada. Isto passa. 113 j08s rodrigues migvsis Näo, eu näo preciso de mais nenhum empre-gado. Näo quero testemunhas. Näo admito que ninguem aqui entre, ainda que tenha de centu-plicar o meu esforgo. Se lhe dissesse a razäo principal do meu aba-timento? Mas näo. Ele quereria com certeza ir ver o pequeno. E depois? Notaria a falta dos moveis que la conheceu no «bom tempo». (Como tudo isso parece ir longe!) A casa estä täo triste! As plantas da sacada murcharam, abandonadas. — Hä muito que näo vejo o seu pequeno. E a sua senhora? Replico, sem responder com o meu olhar ao olhar que sinto pousado ein mim: — Estäo bons, estäo rijos. O pequeno tem crescido muito. — Deve estar um homenzinho. — Um homenzinho... Um anel vermelho cinge-me as imagens. Por-que me olha täo insistentemente ? Parece apreen-sivo. Anda mais serio do que antes. E preciso que eu me mostre risonho e bem disposto. Quanto tempo vai durar esta horrivel comedia? As suas perguntas embaragam-me, confundem--me. Balbucio, arquitecto respostas ininteligiveis, adio indefinidamente certos esclarecimentos so-bre assuntos de caixa. — Näo ha, maneira de eu compreender... Antigamente näo ligava importäncia a coisas que parecem hoje obceca-lo. Estende o labio inferior, coga a barbicha, le todas as cartas, faz-me rosärios de perguntas. — Voce precisa que eu ajude. m päscoa feliz Tenho-lhe medo. A cada pergunta sua, tre-mem-me os joelhos. Entro no escritorio e dou com ele curvado sobre os livros, com dossiers abertos, os oculos reluzindo sobre uma ruga que lhe sulca a testa, vermelha do esforgo de atengäo. — Bons dias. Täo cedo! — Ando a matutar cä num negocio... Empalidego, amargurado. «Näo hä düvida que ele ja sabe.» Penduro o meu chapeu e, calado como um fantasma, nas pontas dos pes, vou ao meu servigo. Isto forga-me a sair de casa cada vez mais cedo, semimorto de terror. E ele chega cada vez mais cedo! Sinto que esta no fio da meada. Hä-de custar-lhe a chegar ao fim. E näo tenho coragem para abrir a boca. Se confessar, a minha salvagäo e talvez ainda possivel... Ah, mas ao contrario, o medo transforma-se em ödio. «Bandido! Miserävel!» Renasce-me o desejo de o matar pelas costas, assim curvado sobre os livros, inerme, oferecendo-me a nuca... E depois ? Estou doido! Posso eu lä fazer isso! Um dia, no entanto, em freute dele, tenho uma crispagäo irreprimivel, homicida. Agarro-me ao tampo duma mesa, como a uma täbua de salvagäo. A voz dele chega-me de muito longe: — Que tem voce? Que tem voce? Estä mal? Olhe que palidez! E a suar em bica! Sente-se, hörnern... Caramba, que cara a sua... A casa e os moveis dangam ä minha roda. A mesa a que me agarro estremece violenta-mente, e o Nogueira fita-me apavorado: — Beba um copo de ägua fresca... 115 JOSE ROD RI GUB S MIGüElS Sento-me e bebo devagar pela sua mäo — como um supliciado — a água que me oferece solici-tamente, com o ar condoído e severo dum pai. Sou pequeno e humilde, junto dele. «Podia ser agora... Se eu...» Sacudo as gotas que me es-correram sobre a gravata e o colete. — Vá para casa, vá descansar. O senhor näo anda bom de saúde! Oh, ele é mais cinico do que eu! Sabe de tudo, sabe que a sua atitude me vai matando lenta-mente de terror, e näo me diz uma palavra. Quer forgar-me a confessar! O som breve da sua voz arrefece-me a since-ridade. Há dias em que me sinto horrivelmente can-sado. Se eu o insultasse e fugisse, e näo pen-sasse mais no roubo, na família, no demónio! Contenho-me. É preciso levar a tortura até ao f im. Mas quando poderei pagar-lhe o que f urtei ? Onde irei buscar forgas? O hörnern tem dentro de si energias espan-tosas que desconhece, e é nas horas de luta que as revela. Se as aplicássemos somente ao bem... A invernia passou. O pequeno vai entrar, finalmente, em convalescence. Na terra e no céu passa um prenúncio de Primavera. De quando em quando, um gor-jeio de ave cruza em frente das janelas batidas pelo sol. O doutor, que chega sempře cedo para visitar esta florinha entorpecida, antes de ir ver PÁSCOA FELIZ os doentes adultos, diz-nos sorrindo através da sua barba paternal: — Este barquinho está salvo... A Luisa ouve-o com os olhos túmidos de lágri-mas, torcendo nervosamente o aventalinho branco, e fica toda corada. As noites e os dias correm, entáo, mais sua-ves. Um sopro de confianga e reconforto vai refazer-nos a vida. O sol, pálido e alegre, ri nas vidragas, e a vozinha tagarela ressurge da febre, na luz cor-de-rosa do quarto tranquilo. — É uma florinha que escapou dum incén-dio... A máe diz-lhe: — Cala-te, náo faleš. Olha o «homem do saco»! Aconchega-o carinhosamente. Ele percebe-lhe o embuste e sorri, agradecido. Quero cobri-lo de beijos. Mas, como quase se some sob as roupas, mal ouso tocar-lhe, para o náo magoar. A minha confianga vai renascer. Tudo isto náo passou dum pesadelo. Acabou-se. A minha vida reconstrói-se. O que é preciso é vontade. Mas, e o Nogueira? Porque náo lhe direi tudo simplesmente, sem rodeios, com serenidade, pe-dindo-lhe perdáo e o tempo necessário para a reparagáo da minha falta? Dir-lhe-ei: «Senhor Nogueira, eu abusei da confianga que o senhor depositou em mim... Roubeio-o...» E depois: «Estou pronto a compensá-lo dos prejuizos...» Mas este minuto de coragem nunca chega. Em frente do velho, o meu crime é sempře monstruo- 116 111 joss rodrigves migusis so, indigno, inconfessável. Redobro de esforgo, näo descanso na reconstrugäo da nossa vida. O tempo corre velozmente, é-me quase insen-sível. Atravessei o turbilhäo do Carnaval sem o notar. A bonanga foi de pouca dura e, um dia, recomega a chůva e o vento sopra, com a sua tristeza, nas janelas altas da casa. — Vamos ter uma Páscoa de mau tempo — diz a Luisa. — Que pena!... Se o tempo melho-rasse, talvez o pudéssemos levar para fora... — Quisera eu! Cose junto da janela, enquanto o pequenito, cuja convalescenga se arrasta desesperadoramen-te, brinca na cama com bonecos e postais. Olha-mos, através das vidragas, a chuva que alaga em rajadas os telhados vizinhos, crepitando, fu-megando, impelida pelo vento. A chuva, a ela, enehe-a de poesia e de tristeza. Suspende a agu-lha e pöe-se a olhar o filho. Depois segreda-me pressentimentos... — Se ele näo melhora depressa!... — Bah, que histórias!... Vamos mas é pór isto a direito! — respondo-lhe. — Imaginas tu que um hörnern pode passar o seu tempo a ma-tutar nessas tolices? Pressentimentos... histórias? A pobre julga, naturalmente, que «por isto a direito» é apenas refazer a casa quase nua e vol-tar ä suave monotonia de outro tempo! Ah, se ela pudesse imaginär!... Se algum dia lhe dis-sessem que peso... Mas nunca me fez uma per-gunta, nem mesmo sobre a vida sem rumo que levei durante alguns meses. pascoa feliz Ao mesmo tempo que a chuva pegou, entris-tecendo a cidade, que parece assolapada, pega-josa, sob a intemperie, o Nogueira recomega de subito as pesquisas, insiste nas verbas, nos langa-mentos, nas facturas, nos documentos de caixa, examina os livros de cheques e o livro de ar-mazem... Um dia, ao subir para o escritorio, cruzo-me na. escada com um tipo que nao me e desconhe-cido; paro, volto atras para me certificar, e quando o homem chega ao patamar, a luz que vem de baixo revela-mo: e o empregado que em tempos despedi. Encosto-me a parede para nao cair... «Coragem! Coragem! Agora pouco fal-ta.» O Nogueira nao me diz uma palavra sobre esta visita. E portanto certo que... Mas porque fala tantas vezes com o mogo do armazem ? — Recebe cartas que nao me da, a ler e a que res-ponde demoradamente; folheia a corresponden-cia. Certas paginas dos livros parecem intri-ga-lo: fica a olha-las, assobiando baixo e ba-tendo no tampo da mesa com os dedos gordos, afogados nos aneis. Nao sei o que me esmaga — se o seu, se o meu silencio. Tudo isto e insupor-tavel. O meu silencio e uma confissao, a mais clara. Sim, nao ha remedio: e curvo-me sobre ele, num esforgo enorme, para lhe perguntar, quando consigo veneer a minha timidez: —^Tem alguma diivida? Sera engano meu... — Nao, nao ha nada. B ca uma coisa. A sua voz tornou-se breve, seca e fria. Nao sei se o sofrimento nos embota a sensi-bilidade moral. Eu sei que sofro. Mas nao posso 118 119 j08s BODBIGVES MIQUĚIS PÁSOOA FELIZ explicar como me sujeito a semelhante tormen-to, a tanta humilhagáo. Os dias sáo todos iguais, e as noites iguais aos dias... O tempo é chumbo fundido que vai escorrendo em fio sobre mim. Já náo tento — náo posso — mostrar-me, em casa, alegre e confiado. Náo acerto uma conta. Tartamudeio, erro os langamentos. Sou incapaz duma expres-sáo ordenada e clara das ideias. Sabem o que me apetece ? Apetece-me outra vez fugir, iso-lar-me e escrever tudo o que me tortura. Mas vou-me arrastando sem vontade. Sou como um ébrio. Nem mesmo a forga que me impeliu ao crime reaparece para me auxiliar. Vou levado na corrente, de bragos abertos... Oh, chega a ser bom, quase voluptuoso, em certos momen-tos, viver assim, no limbo da consciéncia. Se me apontassem uma pistola ao peito, encolhe-ria os ombros: náo desejo viver nem morrer. É curioso que náo sinto agora cólera nenhuma contra esse velho que alternadamente me foi simpático e odioso. Ele remexe nos livros, e eu olho-o com indiferenga. Parece que perdi os sen-tidos. Volto a pensar: «Quero lá saber!» Chego ao escritório e o Nogueira diz-me: — Olhe que este ano fechamos o escritório por uns dias. Desde terga-feira até depois da Páscoa. Mas aparega por cá, se quiser. Temos muito que conversar. Ele já sabe tudo. Só um cego náo veria os erros, as mentiras... A Luisa diz-me: — Este ano, a Páscoa veio mais cedo... Olho o calendário: — Näo sei, parece que sim. Nem sei a quan-tas ando. — Mas já estamos na Páscoa, filho! — A minha cabega näo regula. 120 121 XII Äo precisamente dez horas da manhä. Subo com todo o meu vagar, abro a cancela, a porta, e entro com um sossego perfeito. «Que manhä de soll», penso. «Seria bom ir passear no campo, estar alegre, abrir na relva uma toa-lha branca, dispor os copos, os talheres, tirar da canastrinha o frango ainda morno, doirado e gordo, e ver brilhar ao sol o vinho, rubro e translúcido como uma jóia líquida... O pequeno, o pequeno a brincar...—Näo corras! — diz-lhe a mäe. — Deixa-o correr. Faz-lhe bem. Sempre metido em casa! —Näo quero que an de ao sol... — Dá-lhe o chapéu. Torna o chapéu... Anda, vai brincar, vai correr... Mas näo te afastes...» — Bons dias. Ah, já nem me lembrava... Em pé ao fundo da casa, de bracos cruzados no peito, os olhos contraídos, ele espia-me através dos óculos doi- 123 JOSE RODRIGUBS MIGÜElS rados. 01ho-o com interesse: tern a barbicha se-veramente comprimida sobre a gravata, onde um topäzio reluz. A casa... Por cima das mesas, livros com fo-lhas marcadas, contas, facturas, dossiers ... 0 cofre aberto, com o molho das chaves pendente da fechadura... Sim senhor; uma ordern impressionante, o depoimento silencioso das coisas... Sim senhor, muito bem... Acabou tudo? Compreendo. Vamos a isto. Tudo parece olhar--me, interrogar-me, exibindo provas. Oh, filhos, isso para mim... Finalmente! — Nenhum terror. Absolutamente nenhum. 0 meu olhar deve ser de alivio, de libertacäo. Jä näo tenho que fingir mais... Quer dizer... Näo, o meu olhar confessa tudo. Nada tenho que dizer. Para que? Os documentos falaram? Melhor, esta tudo dito. Hein? Ele espia-me, esta admirävel, com um olho quase fechado... E inütil, filho; isto näo me comove... Tenho mas e o desejo de fechar os olhos, de adormecer e esquecer tudo... Curvo a cabega. Ora esta! Ele näo diz nada? Esta ä espera que eu fale?... Tenho os nervös amole-cidos. Negar? Como e para que!... Mas que sossego! Alguem passa na rua, asso-biando. Sigo-lhe mentalmente os passos. Quinta--Feira Santa! Um silencio mortal pesa sobre nos ambos, nesta casa amarela com o seu rodape de velhos azulejos. Isto, hoje, tem um ar mais alegre. Este sossego deslassa-me, tenho a impres-säo de que vou rir idiotamente... — Hä? PÄSCOA FE liz — Sabe muito bem o que isto quer dizer, näo e assim? Ha muito que eu andava pesquisan-do... E o senhor bem viu. Mas nem uma palavra! Que cinismo o seu, hein? Eu bem adivinhava, eu lia em si näo sei o que... Qual! «Ele e se-rio!», dizia com os meus botöes. E, afinal, viu--se. Voce tem-me roubado, roubou-me para cima de trinta contos, seu ladräo! O senhor e um ladräo, näo passa dum gatuno! Para mim, filho, as palavras... Fico indife-rente ao insulto. E depois, rubro, com o sotaque brasileiro, e quase comico, o Nogueira. O que, esperas talvez que me ponha de joelhos, a cho-rar e a pedir-te perdäo!... Era bom — era talvez bonito — mas näo posso. Näo posso! Descon-eerta-o a minha fleuma. Ai, agora pöe-se a con-tar-me tudo, os casos evidentes, «verdadeiras confissöes por escrito». Como se eu näo sou-besse. Basta, basta! Deu voltas ao inferno. Ora, adeus! E o meu filho... Que tem ele que ver com isso! A doenga, os moveis empenhados... Oh, senhor Nogueira! Näo vale a pena exaltar--se dessa forma... Näo grite, näo grite mais! — Eu devia ter aqui dois policias, entende?, para o levarem direito ao calabougo! Mas näo o fago! Ainda tenho a generosidade de o pou-par... Mas näo e por voce, ouviu?, e por eles, pela sua mulher, coitada, e pelo seu pequeno. Eu tenho coragäo... Talvez faga mal; näo devia te-lo para um ladräo que me roubou assim, como um traidor! Voce foi um traidor que eu meti na minha casa! Oh, senhores! E näo ha um castigo do ceu! Um hörnern de quem fui um 124 125 JOSE RODRIGUEZ MIGÜSIS PÄSCOA FELIZ amigo, a quem prometi tudo, a quern entreguei a minha vida, para quem fui um pai... (Podia ser pior, senhor Nogueira, muito pior...) Custa-lhe a falar, ve-se perfeitamente. E ele que tern vontade de chorar — e eu com ganas de rir! — Um homem sempre se regenera. Ajudem--no — e queira ele. O senhor nao era mau, nao era. Isto foi alguem... Ora diga la: alguem o aconselhou? Responda! Nao responde. Que o leve o Diabo. Imagine! (Ri-se com amargura.) Imagine! Depois da sua pouca-vergonha, ainda acredito na regeneragao moral! E o senhor? (O seu riso torna-se doloroso.) E o senhor? Que diz a isto? Responda, caramba! Levante--me essa cabega, tenha ao menos firmeza!... Que quer ele que eu responda? Nem sequer experimento gratidao. Resmunga e passeia fu-rioso no pequeno espago. — A mim, senhores! A mim! Um maroto a quem eu dei a mao, a quem entreguei tudo, com os olhos fechados!... A sua vida... Sim, sim, eu bem percebo... Mas ha-de pagar, oh, se ha-de... O que ai vai! Agora insulta-me e mastiga palavras incompreensiveis, com os punhos cer-rados atras das costas, furioso, capaz de me bater, desesperado com a minha atitude — ou com a sua clemencia exagerada. — Nao ter pudor! Nao se lembrar desses po-bres que tem la em casa! Os livros näo podem esquivar-se aos murros que ele distribui. Levanta-se uma poeira tenue que rebrilha ao sol... O que? Que e isto? Ba-ter-me?! Ah, isso... Pega-me num brago, saco-de-me, pergunta-me como cheguei a esta mi-seria. — Quem foi que o induziu? Quem foi, que lhe quero pedir contas? — Fui eu so, fui eu so, senhor... (Eu — e o outro. Mas quem pode saber?) Ex-plico-lhe em poucas palavras os meus processos. Olha-me atonito, abanando a cabega. Tudo isto e, para ele, incsperado, absurdo. — Um ano! Dou-lhe um ano para a reparacäo do seu erro. Dentro de uma semana, as garan-tias — um fiador idoneo, o que quiser. Nem mais um dia: uma semana. Ja sabe, hein, de contrario — cadeia. A vergonha, o tribunal, a desgraga dos seus. Ouviu? O senhor parece que nem ouve. O senhor esta, mas e doido, doido! Passeia em mangas de camisa, troveja, sua, dä pontapes nas cadeiras e nas pernas das mesas. Comego a acha-lo comico, eu — o ladräo, o miserävel! —, que estou para aqui sem um gesto, sem uma defesa nem uma revolta, como um trapo desprezivel que se pendura a escorrer, dum prego, ao canto dum saguäo. De repente, näo sei como, abre-se-me a boca, e ougo-me a contar-lhe em voz humilde e hesi-tante, como quem repete uma ligäo, a doenga do meu filho, os sacrificios que fizemos, os mo-veis que empenhämos. Digo maquinalmente fra-ses literärias, rebuscadas, que pensei hä muito 126 127 JOSS RODRIGUES MIGUSIS e julgava ter esquecido. Desconhego-me. Julga-va-me incapaz de semelhante estilo, desta voz arrastada e chorosa de bandido vulgar... As mi-nhas palavras devem transpirar cobardia e trai-gao. O Nogueira ouve-me, a princlpio irritado, mas serenando progressivamente. Nao, nao e implacavel. 0 coracao pode nele mais que a vontade. Os labios tremem-lhe quando lhe falo da pobre crianca «que nao tem culpa dos meus erros». Acabei. Estamos sós. A manhä, clara e alegre, anuncia afinal uma Páscoa risonha. Uma calma desusada avoluma o siléncio pascal da rua, enquanto sol doira suavemente o interior da casa, onde cheira a bafio e a sabonete de alca-träo. De novo um siléncio profundo e vivo nos estreita. Ele passeia, passeia, de mäos atrás, assobiando de leve uma valsa que passou de moda há vinte anos. Ouco o tiquetaque familiar do relógio de péndulo invisível. Afinal nada mu-dou. A vida estaciona. Apenas o relógio insiste na passagem do tempo... Urna lágrima espreitou--me um instante dos olhos, durante o meu dis-curso, e recolheu-se arrependida. A propria me-lopeia das minhas palavras acabou por me tran-quilizar. Näo há nada triste entre nós dois. Mas isto é odioso, o meu cinismo, esta indife-renga que se apossou de mim! Sinto urna vaga sonoléncia. Como séria bom dormir... Creio que esbogo um sorriso. A minha cara, agora, deve ser horrível, idiota! Sim, sim, aliviei, ora aí es- PÄSCOA FELIZ tá... No f undo, depois desta tortura solitária, indescritível, sinto-me de bem comigo mesmo. Ah, respiro fundo, que satisfagäo! É exacta-mente como se tivesse escapado a um grande perigo. E agora? Näo, mas eu quero resistir a esta coisa estúpida; claro que näo tenho o di-reito de me sentir tranquilo. Näo, quero resistir ao bem-estar, ä imensa paz que me ameaga mim momento täo grave, lutar. Que miserável! O que eu precisava era de uma tortura física medonha. Näo, é meiner ver... Quero ver a minha desgraga a toda a luz, sofrer, arrepender-me. Remexo a recordagäo de certas coisas que me torturaram, concentro-me furio-samente no meu crime, insulto-me. Vou mais longe... Evoco o tribunal, a penitenciária, a de-sonra publica e aparatosa, o degrcdo, as misé-rias do corpo... Nada! Nada! Nem um movi-mento de dor. Tudo isso me é indiferente. O futuro näo me interessa. Intimamente, com-paro-me a certos amorais, insensíveis através de tudo ä desgraga. Vou mais longe ainda: ä miséria do meu filho, insultado, pedindo esmola, desgracadinho de todo, escarnecido... Nada, nada! Tudo isto näo passa de um esforgo hi-pócrita, desde a atitude humilde äs palavras rebuscadas, äs frases feitas — tudo preparado para comover, como num drama. Que miserável! Näo penso, discurso-me interiormentc. Sou odioso. Encarnigo contra mim toda a raiva, toda a cólera, todo o desprezo que posso imaginär. Houve bandidos que mostravam nobreza de alma. Eu näo. Sou um canalha digno de todas as 128 10 129 joss rodrigües migusis penas. E assisto impassivel a semelhante coisa! Nunca pensei no bem dos outros, esta e que e a verdade. O meu desespero, que muitas vezes mascarei de luta interior por urn vago ideal, era apenas resultante da minha ineapacidade para ser feliz, vencendo e dominando. Se ao menos tivesse ganho no azar da exis-tencia! Mas näo. Depois, inutilizei a vida äquela pobre rapariga. Gerei urn filho para o desonrar e abandonar. Roubei o hörnern que pensou em fazer de mim alguem. Desesperos, fome, agonias eternas, desilusäo... E nem sequer remorsos sinto! Tenho medo, palavra, da miseria moral a que cheguei. Queria chorar, cair de joelhos, arrepelar-me, gemer, beijar as mäos deste bom velho energieo e sublime que näo me entrega ä policia — e näo posso, näo posso! (E ainda tenho vontade de rir...) Se o tentasse fazer, e claro, os meus gestos resultariam falsos, estu-dados. Como cheguei aqui, meu Deus? Porven-tura, eu, que tambem sofri, acabei por me tornar insensivel ä dor? E enquanto ele passeia reflectindo e a mancha de sol vai escorregando, num silencio mortal, pelo sobrado limpo e sobre as mesas, sinto fugir no meu intimo, para urn fundo inacessivel, as derradeiras sombras do respeito por mim mes-mo. O respeito, sim; ou melhor, a confianga de que cada hörnern precisa para viver. Embora este honrado velho ja me tenha dito: «Eu näo dou queixa contra voce, creio na regeneragäo dos criminosos...» — ainda que me assegurasse que tudo estava esquecido e me permitisse vol- PaSCOA feliz tar amanha para o servigo — nem mesmo assim eu ganharia confianga! Tudo acabou. Antes a cadeia por toda a vida do que esta liberdade insuportavel. Bater no meu peito e bater num tumulo. Durante a doenga do meu filho, ainda julguei acreditar... Mas agora! Para mim ja nao ha salvagao moral. E o Nogueira ainda ere... Sinto que isto nao tern cur a. Naufraguei em mim mesmo, estou pronto. Nem perdao — nem castigo. O Nogueira parou. O seu olhar penetrante trespassa-me como os raios X: — Eu sabia dessa coisa que o seu pequeno teve... E depois ? Hesita. Ai, meu Deus, recomega o passeio! Entao isto nao se acaba? E se ele me perdoa ? Ainda sera pior... Eu tenho que sofrer. Ira ele ver o meu pequeno? Ainda e capaz de... O que, uma ideia de interesse ?! Curva-se de novo sobre os livros. Parece alheado. Talvez relembre os meus erros, para nao se apiedar... «Porque se espera?», pergunta-me a voz, iro-nica, insubmissa. O tempo, agora, e como um fio de azeite. O Nogueira, de oculos na testa, inspecciona os documentos, fungando, mastigando sons de vez em quando. Abana a cabega afirmativamente, bate na mesa um compasso de marcha... Esta diante de mim: — Dentro de um mes — va la — quero aqui as garantias. E depois e um ano, lembre-se bem: um ano. Nao se fala mais nisso. E um caso 130 131 JOSS BODBIGÜE 8 MIGUBIS arrumado. Considere-se despedido. É possivel que mais tarde se arranje alguma coisa no Brasil, em Manaus... O Brasil, aquele sonho... Bern me importa a mim! Dá-me conselhos, fala-me do filho e do future: — Ah, quern mo dera a mim, um filho! Um filho, senhor, é um compromisso que assumi-mos sobre o futuro. É preciso honrá-lo. É como um espelho onde se reflectem as nossas man-chas... Pique, entäo, sabendo: é só por causa dele que assim procedo. Se ele näo fosse, a estas horas estava o senhor na cadeia. As palavras rogam-me, näo me penetram, tombam. O meu eansago näo tem limites. Do-bram-se-me as pernas. Como seria bom deixar--me cair no chäo e esquecer tudo! E esta caricia — uma coisa que brilha — que vem näo sei don-de... e que me atrai... Circunvago os olhos. É isso! O meu coragäo pulsa fortemente. A faca! Fascina-me a lamina brilhante e longa duma faca de papel, poisada sobre a mesa. Os meus olhos näo a largam. Mil raios vivos, irisados, acariciam-me os olhos; um mundo misterioso, colorido e cintilante, onde eu desejaria penetrar, tornando-me invisível, vibrando como um áto-mo... Atrai-me aquele pedago de metal, täo fino, cuja frescura eu gostaria de sentir nas mäos, na testa, no pescogo... Estremego. A ideia da caricia da lamina gelada, penetrando devagar na minha carne, rasgando nervos, músculos, artérias, produz em mim um bem-estar dormen- PÁSCOA FE LIZ te, sensual, um repouso quase absolute. Os meus olhos cerram-se de sono, suavemente, sob o im-pério daquele reflexo vivo. Sorrio-lhe amorosa-iiiente. Continuo a vé-la, de olhos fechados. A casa gira com lentidäo ä minha volta. Oh, como seria bom sentir no sangue a frieza do metal... E aquele brilho... Mil raios coloridos, espiralados, como um turbilhäo de luz, dangam no meu cranio... — ... e pronto. Cumpra agora o seu dever, se é hörnern e se quer merecer o seu nome de pai. Adeus. Enfia com dificuldade a mäo direita no bolso das calgas. B natural. Depois, num passo lento e firme, atravessa o gabinete e a sala de entra-da. Sigo-o devagar, sonambulicamente. Poe a mäo no ferrolho da porta, e a penumbra esti-mula-o a dizer-me: — Todos nós erramos uma vez na vida, pelo menos. A muitos é a vida que os inibe de re-parar o mal que praticaram! — Suspira, fita-me e desvia os olhos, muito grave: —■ Hei-de ir ver o seu pequeno, pobrezinho. Desferrolha lentamente a velha porta chapea-da, verde-escura, abre a caneela e faz-me um gesto. Passo curvado, sem olhar para trás, como quem sai duma prisäo — farto daquela cena. A escada é sombria; vem de baixo um cheiro reles, de gatos e de lixo. Para onde vou eu? Desgo o primeiro lango com o chapéu na mäo, hesitando, como se alguma coisa me tivesse es-quecido; sinto que ele me fita demoradamente pelas costas, de pé no limiar da porta. 132 133 JOSE ROD RIGU ES MIGUĚIS — Lembre-se de que hoje é Quinta-Feira Santa... Que tenha uma Páscoa feliz! O que? Que diz ele? Foi ele quern falou? Que voz! Ougo fechar a porta com urn rumor de fer-rolhos antigos. Näo tenho a certeza. Fico só. Desgo alguns degraus e paro, indeciso. Aquelas palavras... E esta? Parece que me esqueci de al-guma coisa. Näo posso dizer o que, mas esqueci. É uma certeza imperiosa. Obedeco-lhe. Curvo a cabeca e torno a subir a escada. «Uma Páscoa feliz... uma Páscoa feliz...» Foi uma irónia? Paro junto da cancela. Porque voltei eu atrás? Que foi o que me esqueceu ? É melhor ver. É me-lhor ver, claro. Pela primeira vez, noto que o cordäo da campainha tem vários nós. Puxo por ele com um gesto sereno, firme e determinado. Passos... Lá vem ele. De novo o correr de fer-rolhos... Através das ripas da cancela ve jo o Nogueira, de olhos espantados que me fitam. Parece de repente mais velho. — Fui eu que... — Como? Esqueceu-lhe alguma coisa? Quer f alar comigo? Aceno-lhe que sim. Näo há dúvida, esqueci o quer que fosse. Entro devagar, com o passo in-seguro de quem procura saber o que deseja. Comega a produzir-se em mim uma eferves-céncia surda, quase uma irritagäo, que só posso atribuir aquelas palavras, em que paira näo sei que sentido irónico e oculto. O sangue invade--me em torrente o corpo inteiro, como uma cháma que me fosse lambendo. Voltamos dentro, ele atrás de mim, em silěncio, passivamente. PÁSCOA FE LI Z Tudo guarda o mesmo aspecto de há pouco. Mas alguma coisa mudou, näo sei o qué... Surpreende-me e enche-me de curiosidade o meu procedimento. Porque voltei eu aqui? E ao mesmo tempo a «voz» dentro de mim insiste: «É impossível que ele te perdoe. Vai daqui en-tregar-te ä prisäo.» De súbito, os ineus olhos caem sobre a mesa. Tudo o mais se apaga. O «olhar» da lamina fulgura, fascina-me. Sor-rio-lhe. Que Undo cabo de marfim! Inquieto, o Nogueira interroga-me: — Mas que quer vocé? Diga lá o que quer! Coloca-se ao meu lado. A minha mäo alon- ga-se até ä mesa... Agarro a faca e, näo sei como, o Nogueira e eu estamos frente a frente. — Que deseja de mim? O que vem a ser isto? Näo sei porque o fago. Tremo. Cerro os olhos — e vejo. Sorrio suavemente... Näo sou eu, é um outro quem age... Näo sei se lhe digo alguma coisa: mas nunca esquecerei o seu olhar de espanto nem o movimento da cabega a dizer-me que näo... Os meus dedos correm a delgada lamina da faca. O frio do metal dá-me uma volú-pia alegre, penetrante e doce. Os meus dedos seguem pelo gume fora, até ä ponta, e tenho a impressäo de que eu proprio assim sou — longo, delgado e cortante — todo eu sou um punhal... «É tudo um sonho, eu estou a sonhar, isto é absurdo, absurdo!» Para que reagir? Eu sonho. Uma curiosidade cruel... A ver. É mais um a jun-tar aos outros pesadelos. Ougo um nome? É pos-sível. Talvez o do meu filho, com que o velho me exorta pela ultima vez. Tudo se apaga. «Uma 135 JOSE RODRIGÜES MI GUß IS Páscoa feliz... uma Páscoa feliz...» Náo tenho energia para pensar, nem ele tem tempo de dizer mais nada. Sou mudo, surdo, insensível. A faca e o vulto, nada mais. Deito-lhe a má o esquerda á gola do casaco, e ele segura-me o pulso com as duas máos, a tremer, cerrando os olhos. Com a máo direita firo-o rapidamente no pes-cogo, duas, trés vezeš — náo sei ao certo. O san-gue vermelho e vivo gorgoleja, alagando o casaco e a camisa. O velho fica de olhos cerra-dos, com um suspiro fundo, quase de bem-estar. Larga-me o braco. Náo tem uma crispagáo. Se-renarnente, desliza ao longo da parede, até ficar sentado, a cabeca junto do cofre ainda aberto, e uma eascata de sangue a ensopar-lhe a roupa até correr no sobrado limpo e claro, onde se some nos interstícios das tábuas. Poiso a faca junto dele. Enxugo a uma toalha as máos que o sangue nem sequer manchou, componho o chapéu, e com uma naturalidade que me surpreende, a calma de quern obedece a um comando irresistível, fecho a porta e a cancela sobre o corpo do Nogueira, sobre o meu passado, e desgo vagarosamente. Um silěncio irreal... Que belo tempo! Que sol! Seria bom ir passear no campo, estender os bragos doridos na relva ainda fresca e olhar o céu através da folhagem nova dos loureiros e dos choupos! Uma Páscoa feliz... Sinto-me lime. Comego a andar. Um véu desce sobre a minha consciéncia. Que vou eu fazer? Vagueio, náo sei por onde, durante mui-tas horas. XIII — urante muitas horas. Ate que, ja tar de, experimento a necessidade imperiosa de ir ver o Nogueira, de Ihe explicar demoradamente eomo abusei da sua confianga Quero pedir-lhe perdäo, agradecer-lhe a sua bondade, as palavras finais, täo comovidas, que näo podem sair-me dos ouvi-dos. Sinto, enfim, aquele remorso que me desco-bre o fundo humano do meu coragäo. Julgo-me quase feliz de sofrer, assim, com a ideia do mal que fiz aos outros. A ultima recordagäo... Exactamente. O mo-mento em que ele fechou a porta. Depois... Mas eu preciso de lhe falar. A estas horas. Vou pro-cura-lo naturalmente. Atravesso a pe toda a cidade, subo äs Avenidas Novas. Daqui a pouco anoitece. O palacete... Hesito. Este aqui? Ou e aquele? Näo, enganei-me... Agora. (Tenho a impressäo de que saio duma longa embriaguez.) Tudo fe- 136 137 JOSE RODRIGUBS MIGUEIS chado. E melhor entrar ja. Abro o portäo, atra-vesso o jardim, subo quatro degraus e espreito pelos vidros da porta. Aträs de mim ougo um rumor de chuva na folhagem. Bato. No primeiro andar hä uma janela aberta. Grito: — Senhor Nogueira! Senhor Nogueira! Silencio. Aparece ä janela uma criada velha. — Ah, e o senhor. —Sou eu. — Quer subir? Espere, que eu vou lä abaixo... — O paträo esta? — Näo, ainda näo veio. Ate estou em cuidado. Costuma chegar muito mais cedo. Mas näo es-teve com ele no escritorio? — No escritorio? Ah, sim, de manhä... A sua pergunta fez-me empalidecer. Porque näo estive eu durante o dia no escritorio? — Boa noite! A velha pergunta-me qualquer coisa que eu jä näo quero ouvir, e saio precipitadamente. O coragäo estala-me no peito. Volto ä Baixa, enquanto as ruas e avenidas väo mergulhando numa sombra azulada. Corro e choro, näo sei porque. Tenho pressa. Pergunto a mim mesmo se e o remorso que me faz chorar. Näo sei. Näo sei nada! Alguma coisa que se estilhagou cä dentro — e choro... As lägrimas aliviam, recon-fortam, quase däo alegria. Este peso no peito e nas fontes desaparece aos poucos. A minha agitagäo decresce. Ha quanto tempo näo cho-rava assim! Correm-me as lägrimas em fio, e eu orgulho-me delas. Desde pequeno que me ha-bituei a considerar as lägrimas como um sinal pa8coa FELIZ de vergonha e sofrimento. Se eu choro é porque sofro... Este café... Renovo um gesto que foi quase inconsciente em mim, há muitos anos. Abro o guarda-vento: ainda säo os mesmos vidros foscos. Reunia-me outrora, nesta casa quase sempre cerrada aos olhos indiscretos da rua, a um grupo de rapazes com quern bebia bocks loiros. De-baixo destes tectos, entre as paredes pintadas a óleo verde-sujo e os espelhos embaciados e corroídos, a vida pareceu-me sempre estúpida e monótona, mas suportável. Um dia, as mudan-gas de emprego e o casamento afastaram-me deste ambiente acanhado. Uma vida nova me chamava, e abandonei os modestos companhei-ros desse tempo. Porventura, algum deles... Abro. Um ar opaco, fumarento e morno esbate os contornos e as fisionomias. A luz é triste, amarelada. Todas as mesas estäo ocupadas. Paira um murmúrio contínuo de conversas que parece coado através duma parede. Uma por uma, olho com esforgo as caras inclinadas sobre as mesas: näo as conhego. Tilintam copos. Que venho eu fazer aqui? Há quantos anos... Agora sinto-me estranho. O rumor das conversas e a atmosféra baga entontecem. Passeio vagamente os olhos nos tampos de mármore cor-de-rosa, nos espelhos, nas palmeiras artificiais perpetuamente estúpidas e verdes nos seus vasos de faianga colorida. Ninguém repara em mim. Terno e de- 188 139 J OSS RODRIGUES MI GU SI 8 PJLSCOA FELIZ sejo simultaneamente encontrar alguem, um amigo a quern possa dizer... Eu ja nao tenho amigos. Nunca na verdade os tive. Isso nao impede. O que me trouxe aqui foi um desejo absurdo de comunicagao. Exaeerba-se em mim o eontraste entre o desejo e a vontade frouxa, Abandonado, amarfanhado, em cima desta mesa esta um jornal com o ar duma coisa que se esgotou servindo. Letras vermelhas — «Le Journal... Le Journal...» Repito embrutecida-mente o nome. O meu espirito entorpecido pega na palavra colorida como num brinquedo, e vai fazendo com ela um jogo malabar. As pala-vras contem uma oculta, misteriosa emogao que eu explore. «Le Journal...» Nao sei que horas sao. Um criado passa por mim dizendo qualquer coisa. Saio. Esmago o meu desejo. Atras de mim, a porta bate secamente. Fico de novo entre os predios indiferentes, inexpugnaveis, e a gente que passa. Sao horas de recolher a casa. Vul-tos escuros, apressados, e um rumor de passos batendo o chao confusamente. O crepusculo agoniza... O ceu de nuvens baixas, contrastando com as paredes avermelhadas, parece dum azul intenso, artificioso. «Le Journal... Le Journal...» Este ritmo embala-me. Vou por-me a correr de novo as ruas, desolado, sem destino e sem motive Se alguem ou um acontecimento ines-perado viessem arrancar-me ao meu estupido marasmo interior! — E a sorte, meu senhor, a sorte grande! Dum xaile, um trapo negro, sai a máo duma velha, esquelética, engelhada. As cautelas bran-cas e amarrotadas dangam, e a voz é sacudida, esfarrapada e sem timbre: — É a sorte, meu senhor! Compre-me esta cautelinha pela sua saúde... Esta velha náo me chega ao ombro, com a sua farripa de cabelos crespos sobre o rosto indis-tinto e o nariz comprido. Olho-a com terror. As cautelas tremem-lhe na máo direita, enquanto ela faz esforcos para roer uma códea que leva com a máo esquerda á boča, onde náo lhe resta um dente. — Pelas suas alminhas... — Deixe-me! Odeio-a brutalmente, náo por ela, mas pela sua humildade — a humildade de todos os fra-cos, que é a primeira vitória dos fortes. Para que serve isto? Para sofrer... Valia mais aca-bar-lhe com a vida! A voz embrulhada e suja, que parece feita de solugos, insiste: — Faga-me esta esmola... Pode ser a sua sorte... Ajude-me a viver! Olho-a contrariado, de revés, e ela, interpre-tando mal o meu olhar, avanga mais a máo engelhada e trepidante, agarra-me pela manga do casaco com os dedos repelentes como cobras: — É o 2713! Estremego. Diabos a levém! Treze... Odeio o treze, creio na sua maléfica influéncia. Sacudo aquele contacto enauseante e, sem piedade, quase capaz de lhe bater, grito: — Vá-se embora, mulher! J OS B R ODRI GV E S MIGÜElS PÄSCOA FELIZ Séria capaz de a agredir brutalmente, eu sei lá. A velha afasta-se, a resmungar. O numero, porém, já me näo deixa. Fosfo-resce-me na retina, até ao ämago do cérebro; sobrepôe-se, como um reclamo luminoso no fundo escuro da noite, ä imagem do cabegalho vermelho do jornal. Fago esforgos desesperados para o repelir... Näo há nada que apague certas imagens, näo há pálpebras que eerrem os olhos da imaginagäo. Os algarismos voltam sempre, dangando, deformando-se, irónicos e vivos... K como se existissem, reais, dentro de mim. Já näo tenho forgas para lutar. Acabo por näo ver mais nada. E submeto-me a esta alucinagäo grosseira até que eles me deixem, fartos de me supliciar. Tenho a certeza de que este numero significa para mim alguma coisa. Um sinal. A velha... Mas agora reparo, ela era corcunda. Corcunda ou anä... Os algarismos dangam infernalmente. Um suor angustioso humedece-me a testa. Abro os olhos e volto atrás. A velha decerto dobrou a esquina, perdeu-se no escuro e na inquietagäo dos transeuntes apressados. Encosto-me aqui ä parede e espero. Os algarismos dangam. Chega a ser curioso... De súbito, como se o elo que os prendia se houvesse quebrado, pulam sepa-rados, loucos, ilógicos, sobem, descem, rodopiam, como um fogo-de-vista... Como isto é curioso e estranho! Agora formám combinagôes —7213 —1273 —1327 — afastam-se, de novo se apro-ximam, até que inexplicavelmente se fundem, U2 se conjugam, rodopiando como bailarinos loucos: «13». Fica o numero 13... Com este numero odioso gravado na retina, ponho-me a andar a toda a pressa. Procuro as ruas mais estreitas, onde há menos luz e o movimento é menor. Na penumbra, avultam carrogas de muares enormes e tranquilas roendo o jantar com as cabegas mergulhadas nas alco-fas. Junta-se gente nas tabernas, donde sai urn rumor grosseiro de vozes e de lougas que se entrechocam, e um fumo acre de azeite quei-mado e peixe frito. Urn fumo azul... Olho o céu: é noite fechada e, por cima dos telhados, alastra o claräo sanguíneo das luzes e passa confuso o clangor das buzinas dos autos. — Perdäo, queira desculpar... Um mogo de casaco amarelo esbarra comigo, ao sair duma tabacaria para pôr os taipais. Säo horas de fechar. Entro e pego um copo de água. Há luz de gas, como noutro tempo. Lembrou-me agora a Baixa vasta e sossegada, que a melan-colia verde do gas iluminava, a Baixa da minha infäneia, com o seu ar täo simples e honesto, limpa e discreta... E sinto saudades. A loja tem o tecto baixo, a armagáo antiga, de mogno vermelho-escuro. E ao fundo, por detrás dos poteš de vidro e de barro fino, assentes numa prancha de mármore branco, um espelho invalido, crivado. Tranquilizo-me. Afinal, o quer que foi alte-rou-se na existencia. Näo fui eu só que mudei. US J08M RODRIGUEZ MIGVĚIS PÄSCOA FELIZ Isto é doutro tempo. Dórmi talvez durante mui-tos anos... — Quanto devo ? — Näo é nada. — Muito obrigado. O qué? Só agora me lembro! Bern me queria parecer que tinha esquecido quaiquer coisa... Retine-me aos ouvidos a vozinha doce, desde o fundo do quarto cor-de-rosa, onde paira um ar tépido e aconchegado, de entre as cortinas castas e brancas: «Paizinho, paizinho! Näo se esquega das minhas améndoas!» «Meu filho...» «Uma Páscoa fcliz...» Urna dor atravessa-me o peito como um dar do. Eu tenho lá coragem! Se fugisse?... (E a morte?) Näo posso abandoná-lo assim. «Paizinho! Paizinho!» «Meu filho...» Um beijo. As mäozinhas brancas... «As tuas mäozinhas estäo f rias!... Esconde, esconde...» Um sorriso. Como tudo é branco! O sorriso dele é branco... Flores? Näo, näo! Isso näo! Flores näo! (Mas f lores...) «Que insisténcia, meu Deus! Tirem isso daí! Tirem isso... Flores näo! Tudo täo branco, senhor! Que impressäo... Tens as mäos täo f rias... Tapa, tapa... Eu te agasalho, deixa...» (Mas eu deliro, com certeza.) «E essas Iuzes, para que säo todas essas luzes em pleno dia, senhor? E amarelas! Apaguem isso! Apaguem isso! Eu apago...» Sopro. Náo, impossível: náo se apagam. Deliro e sofro. «01ha para mim! Um beijo, um beijo! Abre os olhos!» Transpiro horrivelmente e estendo as máos para arredar a visáo. Respiro fundo. Isto náo é nada, é o pesadelo que me assedia de novo em plena rua, o terror que me volta, mascarado na ilusáo. «E logo havia de ser hoje...» Hoje — o qué? Náo me posso lembrar. Inde-ciso, apalpo as algibeiras. Que procuro eu? Tenho as máos enregeladas e o suor trespas-sa-me a roupa. «Logo havia de ser hoje...» Mas o qué? Hoje. Donde me vem esta ideia de coincidéncia? Coin-cidéncia, mas de qué? Que insuportável angús-tia! O pequeno está quase bom, livre de perigo. O médico acha que ele pode comer de tudo, e apeteceram-lhe améndoas. As criangas sáo assim. É preciso fazer-lhe a vontade. Prometi levar--lhas, mas náo pensei mais nisso, durante este dia horroroso. E dinheiro? A vozinha fresca e doce náo me sai dos ouvidos: «Paizinho, paizinho! Náo se esquega!» Vibra-me até dentro da alma, como uma luz sonora e suave — a única coisa que me resta—, uma luz pálida que erra á superfície dum mar deserto e ameagador... Que escuridáo, meu Deus! A noite asfixia, extin-gue as luzes... Tenho um calafrio... Lá vém, lá vém os corvos outra vez rasgar-me a pele... Outra vez o naufrágio? Oh, é de mais. Isto é mentira! Arquejo, abandonado... Á roda de mim Uf5 íi j os ä RODRIGUES MIGUSIS um sorvedoiro de água, imenso, atroador, gira vertiginosamente. A água oleosa reluz, picada aqui e além de pirilampos ou fogos-fátuos. Afun-do-me. Socorro! Socorro! Através da massa de água, ehega-me aos ouvidos aquela voz amada e ténue. Um f undo de calma em tudo isto... Ah, é bom deixar-me assim levar, para o fundo, para o fundo... Luisa, o teu sorriso! Eu sorrio também. Vejo-te agora! És bonita e os teus olhos tém uma luz de violetas no crepúsculo. E ele? Estendo-vos os bragos. Säo voces... Isto é bom. Oh, que vertigem... Talvez a morte! Uma cara curvada sobre mim, dois olhos negros cuja fixidez me aterra, e um bigode. Cerro os olhos e torno a abri-los. Tenho a cara, o pescogo e o colarinho molhados. Duas máos sacodem-me pelos ombros. Vejo brilhar uma coisa branca... Um botäo. B um botáo de metal. Outro e outro. Abro completamente as pálpe-bras, que me pesám, e reparo que é um polícia. Circunvago os olhos. Estou deitado por terra, no meio dum grupo — só pernas e caras atentas. A lingua pesa-me horrivelmente. — Responda! Está melhor? Ouve o que eu lhe digo? Gemo, embora nada me doa, e aceno que sim. — Veja lá se pode pôr-se em pé... Percebo confusamente que sou alvo duma curiosidade infame, e fago um esforgo enorme. Muitos bragos se estendem para me ajudar, e levanto-me. U6 PÄSCOA FEL1Z — Ele tem-se em pé? — Ajudem-no daí. — Sabe ir para casa? Veja lá... — Olha EL Cclľcl dele, coitado. — Parece que náo está no seu juízo. — Náo preciso de a juda! — Ele tem é vinho a mais... — Que olhos! Metem medo! — Se calhar é fome. Déem-lhe alguma coisa de comer. — Deixem passar, vá! Fazem favor de dis-persar. Um movimento enorme, que me estonteia, estabelece-se á minha volta. Que tive eu? De repente compreendo tudo, e a vergonha quei-ma-me o rosto; sinto-me sumir no cháo, mas uma energia inesperada desentorpeee-me as pernas e, num movimento brusco, rompo a mura-lha de curiosos que me rodeiam. Fujo a correr, envergonhado e aterrado, ouvindo atrás de mim um rumor de comentários e de gargalhadas, dobro a primeira esquina e só paro muito longe, numa rua qualquer onde o movimento é quase nulo. Eu tenho febre, delirei. Desde manhá que náo como, e perdi os sentidos. Foi o que foi. Mas agora estou senhor de mim. Gragas a Deus! Que é? Ougo música... Tem graga! Apete-ce-me ouvir. Alguns homens estäo parados ä porta duma loja. Como fico na sombra, ninguém repara em mim, e espreito lá para dentro, por baixo dum brago apoiado á ombreira da porta. É um bazar onde se vende de tudo — bugigan- josé bodrioub8 miquěi8 gas e postais, livros e brinquedos, guloseimas. Como é tempo de festa, o dono instalou no bal-cáo, sobre uma pilha de caixas, um velho gramofone que abre para a porta uma goela aver-melhada, com estrias brancas, como uma grande flor exótica, absurda. Para alem, na sombra, o lojista espreita os fregueses. E ali fico a escutar, feito pató. Um som áspero e rouco sai daquela flor. Bern sei: é um fado antigo, marialva, que ressurge num andamento de galope. Uma mulher canta, mas náo se percebem as palavras que diz. Ouve-se o martelar confuso do acompanhamento num piano aguitarrado, que as mäos dum louco tocam. Conhego-o bem, este fadinho. O que isto me faz lembrar! Sinto a vida correr velozmente para longe, e uma dor, um remorso inexplicável. O fio dos meus pensamentos parte-se de novo e, quando volto a mim, calou-se a voz. O grupo dispersou. Dois homens conversam baixo, ao pé de mim, fumando, e cospem no empedrado do passeio. Recomego a vaguear. «Paizinho, paizinho! Näo se esquega!» Que hei-de eu fazer? Sinto que a vida me vai abandonar. Se me dá outra coisa e digo tudo? Reajo. Näo quero ser olhado com piedade. Isso näo! Paro. As luzes formám linhas sinuosas nos passeios desertos. Dou balango äs algibeiras e reúno alguns tostôes. Näo chega para nada. Como vai ser isto? Abotoo o paleto e ponho-me a andar depressa, cheio de temores. M8 päscoa FELIZ Se amanhä... Mas a voz näo me deixa, mur-mura nos meus ouvidos, täo próxima, täo viva, que sinto um hálito tépido, quase um rogar de lábios numa orelha... «Paizinho... Paizinho...» Que vai ser de mim! Näo posso mais, näo posso. Como hei-de eu tornar a vé-lo, se já näo sei ser alegre ? E que dizer-lhe, a ela? Deito a correr ao acaso nas ruas molhadas de chůva, e, de repente, dou comigo em frente do escritório, ao Cais da Areia. Estou doido: a esta hora! Está tudo deserto. Näo compreendo nada. E, nisto, a imagem duma gota de sangue, que atravessa qualquer coisa e cai, faz-me estre-mecer de frio. Volto ä Baixa. As amendoas! Mas o dinheiro ? O dinheiro? Näo hei-de ir roubá-lo! Mordo angustiosamente os dedos. Onde está a coragem que eu tive?... O rio. A ideia de me ir deitar ao Tejo cor de tinta, que corre ali a pouca dištancia, calado, ameagador, dá-me vertigens voluptuosas. A quem hei-de eu ir pedir! Sinto bem até que ponto estou só na vida, na solidäo que voluntária, gostosamente edifiquei. B tarde, a Luisa há-de estranhar esta demora. O pequeno adormeceu já, com certeza, depois de ter perguntado muitas vezeš em väo: «E o paizinho, näo vem?» Näo poder eu ao menos acabar com isto! Remexo nos bolsos do colete, e descubro a caneta, o único bem que me resta alem da roupa do corpo. Mas espera! O coragäo bate-me de U9 JOSE bodrigub s migvěis alegria. Volto ao café de há pouco, e fago a proposta a um criado: — O senhor náo me conhece, já lá váo muitos anos... O Bento, sim. Ele náo está cá? Olha-me desconfiado: — Näo há eá Bento nenhum. Pode ser que o gerente... Este vem, ar céptico, experimenta o aparo: escreve bem. Náo tem uso quase nenhum. — Foi um caso urgente, é só até amanhá, dez ou quinze escudos... — Sim senhor... Eu tenho uma ideia, a sua cara näo me é estranha. Agarro o dinheiro e saio como um louco. Algumas lojas fecham. Entro numa a correr e pego améndoas finas: — Quero das melhores, olhe que sáo para um doentinho!... Meto na algibeira o troco, sem contar. Mas que alegria, meu Deus! Náo penso noutra coisa: vé-lo sorrir é o meu único desejo. Quem sabe se depois terei coragem?... Vou ansioso e con-tente. A casa fica lá táo longe! Salto para um eléctrico que vai com um vagar desesperador. Uma carroga atravessada na linha, em frente do carro, decide-me a pular para a calgada. E melhor ir a pé. Irei a correr — o movimento acalma os nervos. Com a boča aberta e o coragäo desvairado, corro ao longo das avenidas, como se os lobos me perseguissem. Os meus pés mal tocam no empedrado. Sou a projecgáo do meu desejo. Näo vejo quem passa por mim, esbarro, näo sei se derrubo alguém. É o instinto do perigo pascoa feliz iminente que me leva. Mas Lisboa parece inter-minável «Meu pai, meu paizinho...» Dobro a ultima esquina... Estaco. Uma angústia horrível esmaga-me o coragäo, como se alguém mo segurasse, fenden-do-me o tronco pelas costas. A minha vida neste instante é um esforgo decisive Olho a casa de longe: tudo eseuro. É tarde. Porque parei ? E porque tenho tanta pressa ? Entro e galgo a eseada estreita. Maquinalmente, como sempre, vou contando os degraus, os langos — «pri-meiro... segundo...» — e respiro alto, como um cäo esfalfado. «Terceiro!» — Só mais um andar e... Mas nisto o meu pé näo se firma, o corrimäo foge-me, escorrego para baixo — é um relance — e caio desamparadamente contra os ferros da balaustrada, deslizando de brugos nos degraus. O pequeno cartucho escapa-me da mäo, e o peso do meu corpo esmaga-o na queda, contra a grade... Fico estendido um instante e, enquanto proeuro apoiar-me e levantar-me, atordoado, ougo pela eseada abaixo um erepitar de améndoas. Um rumor de vozes, de passos, na casa dum vizinho. Ponho-me de pé. O meu desejo séria langar-me de cabega para baixo no pogo negro da eseada. A minha dor é täo grande que dou punhadas no rosto e mordo os dedos, sem poder gritar nem chorar. O pequeno sonho... «Paizi-nho, näo se esquega...» Sufoco de raiva, gemo surdamente. Tento acender fósforos, näo sei para que, mas o tremor das mäos näo mo con- 150 151 joss RODRIOVES MIQUÉIS sente. Encosto-me ä parede e baixinho, desalen-tado, pego-lhe perdäo: «Meu filho, meu filhi-nho...» As lágrimas correm-me em fio. Mas que é? Estremego. Alguma coisa roga por mim. Sinto nitidamente que duas mäozinhas me acariciam com meiguice o rosto... Uma voz pró-xima e distante, doce e triste, diz-me aos ouvi-dos: «Paizinho, deixa, näo te importes...» O qué? Näo pode ser! Meu Deus, que signi-fica isto? Eu estou doido? Um momento de espanto doloroso. Os arrepios correm-me a pele como descargas eléctricas. Um poder sobrena-tural permite que eu me transcenda... Tudo isto é rápido. Ougo vozes, um murmúrio confuso de passos, solugos e gemidos... No mesmo instante, toda a memória do meu dia se desenrola em mim, e vejo o meu crime. Alguma coisa me vai esmagar — agora... Espero... E agora! Um grito. Foi lá em cima. Um grito estrídulo e agudo rompe, varando as trevas duma luz estranha, um grito dilacerado, que sobe como o jacto dum repuxo, e logo decresee devagar, desfeito, quebrado, solugado, como a água que tomba repartida em gotas. Depois, um estertor enrou-quecido. Alguém desmaia... Reconhego aquela voz que nunca ouvi gritar: é ela! Compreendo. Já. näo tenho que fazer lá em cima. Tudo é duma espantosa evidencia. O Nogueira... Bern, acabou-se. É extraordiná-ria a minha serenidade diante da catástrofe. Antes que se abram portas, é melhor descer. päsooa Fe LIZ Parece que nem me sinto. Nunca mais voltarei a subir esta escada. Desgo aos tropegôes, entre a gente que acor-reu com luzes aos patamares e me olha em siléncio. Alguma coisa estala debaixo dos meus pés. Saio ä rua e respiro fundo. Ponho-me a caminhar sem destino, sem lágrimas, sem dor, como se realmente já tivesse morrido e conser-vasse por milagre a consciéncia fria do que se passa ä minha volta. Neste momento näo desejo nada. Nem morrer. Näo voltei mais a casa. Näo me lembro senäo disto: alguns dias depois fui preso numa estráda, a caminho de Mafra, seminu, esfomeado, sem opor resisténcia. O resto já o doutor o sabe. Näo me pergunte mais nada, foi exactamente assim que tudo se passou — nem podia ser de outra maneira, embora eu próprio duvide algu-mas vezes, e o senhor possa julgar que eu näo passo dum pobre alucinado. 152 153 NOTA DO AUTOR (Á SEGUNDA EDigÁO) Esta edigao definitiva da Páscoa Feliz suge-re-me algumas consideragoes. Antes de mais, desejo registar aqui, com enternecida gratidáo, que, durante a minha Tonga amentia, o poeta Luis de Montalvor tinha carinhosamente conspi-rado com Maria Keil e Manuel Mendes uma se-gunda edigao, ilustrada, que chegou a estar inteiramente composta e revista, em 191f1, mas que, por motivos que desconhego, nunca foi publicada. Nela se teriam incluido algumas outras novelas curtas do periodo que, pedante-mente, eu chamava «nocturno». Dizia eu em nota final: «Por vezeš, ao rever estas histórias, assal-tou-me a impressáo de estar editando os papéis dum querido amigo que houvesse desaparecido antes de nos dizer a sua mensagem definitiva. Com efeito, diante da vigorosa objectividade que 155 JOSS ROD RIOV E S miquěi8 hoje caracteriza a literatura de ficgäo em Portugal, o autor näo -pode deixar de sentir-se apa-gado e humilde.» Näo tenho que alterar uma vírgula neste juízo um tanto severo de mim mesmo. Ainda me sinto com frequěncia como um hörnern que corre atrás do comboio que perdeu. ~~~ A ideia original da Páscoa, se tal houve, deve ter-me surgido entre 1924 e 1926, como reacgäo contra a tenděncia polémica e ultra-realista que entäo por vezeš me dominava superficiálmente. Como foi ela concebida e executada? Como muito do que escrevi (com a excepgäo do Idealista no Mundo Real *) até para alem dos trinta anos: sem piano, sem ideias preconcebidas, sem saber aonde ia, abandonando-me ao «transe» e ao sabor da fantasia. Como certo escritor, eu podia dizer entäo: «Quem escreve näo sou eu, é a minha pena.» Trabalhei nela alguns anos com fervor, mas sem pressa (nunca tive pressa de nada) e talvez mesmo sem esperanga. Nem sequer a dúvida me atormentava: sentia-me seguro dos meus modestos recursos. Também me näo apo-quentava o seu destino. Como urn actor que representasse num teatro as escuras, eu sentia a presenga do publico invisível. (E näo terá a solidäo do escritório, com a nudez da folha de papel em frente de nós, alguma coisa da insula-ridade do confessionário?) * Publicado em folhetins na Seam Nova desde Janeiro de 1964, foi a dada altura suspenso pela Censura previa. (Nota da 4.» edigäo.) pä8coa PELIZ Facti e torrencial na expressäo, raras vezes me detenho a procurar uma palavra: mas fui sempre lento e laborioso na composigäo e acaba-mento. Em 1927, um colega e amigo, vendo-me cürvado sobre esta novela, disse-me urn dia com cordial rancor: «Sofre, desgragado!» Na reali-dade, contra o que queria o bom amigo e mau psicólogo, eu näo sofria: gozava. Era, como hoje, o gozo íntimo, fecundo e proibido, de criar com amor e com metier, ainda que para tal eu tivesse de «torcer todos os pescogos do destino», inclusive a felicidade pessoal, como escrupulosa-mente tenho feito. Escrevi-a assim toda umas sete vezes. Alguns capitulos talvez dez. Sem nada The tirar de essen-cial, cilindrei-a, desidratei-a, até The ter espre-mido e catado, quanto possível, todo o «desne-cessário que inga tantas inúteis páginas de ficgäo. Reduzi-a a metade. Assim trato sempre as minhas histórias, algumas das quais a Lúcia--Miguel Pereira e a Casais Monteiro pareceram romances condensados. (Alguns leitores diziam--me depois que Ihes fora impossivel interromper a leitura, uma vez iniciada: er am duos a trés horas de corpo a corpo com a ficgäo.) Acabado o manuscrito, em papel almago de trita e cinco linhas, andei com ele algum tempo sem saber o que fazer. Onde estavam entäo os editores que hoje, por bem da nossa gloria lite-rária, pululam em Portugal? Chianca de Garcia leu-a e propös-se publicá-la: mas a editorial a que estava ligado desapareceu, e com ela a esperanga do prémio que ele me profetizava. Li-a 156 157 jose rodriques miousis mais tarde a Cámara Heys, que deu ä estampa, na Seara Nova, o segundo capitulo. Mas a novela continuou inedita. Até que um próspero sindicato operário con-descendeu em editá-la: na Páscoa de 1932, com uma ortografia atrabíliária, impressa em mau papel, e com o único chamariz da capa de Fred Kradolfer. Näo se fizeram anúncios, näo houve radiopropaganda, nem dei entrevistas aos jor-nais. O prego (populär) era de seis escudos, e a üragem, de trés mil exemplares, escoou-se len-tamente: o exito intelectual näo parece de bom augúrio.' Näo pedi nein cöbrei direitos de autor: o sacriftcio era de regra para o escritor «interveniere» , ainda que nas veias The corresse, exclu-sivamente, o sangue de pedreiros, carpinteiros, oleiros e lábregos. Com excepgäo da Presenga, que a tratou com juvenil severidade pela mäo do meu amigo Aľbano Nogueira, a crítica foi pródiga com a Páscoa. O Dr. Joäo de Barros saudou-a como «estreia vitoriosa». O jornalista David Carvalho viu nela, generosamente, um romance «proleta-rio». Casais Monteiro (em carta, do Porto) acen-tuou e aplaudiu a nota de angústia. Hernäni Cidade chamou-lhe «es mais notável revelagäo de romancista da nova geragäo». Para o jornal O Raio, da Covilhä, eu era «racionalista», e a minha arte «social». Assim disse também Juliäo Quintinha. Ao contrario, Jose Osório de Oliveira achou que eu näo trouxera para este livro as minhas «preocupagöes politicas e sociais». Todos insistiam na «psicologia». Falou-se, era inevitá- päscoa fe liz vel, dos russos, e alguém mencionou Korolenko — que eu näo lera. A verdade é que, psicologia a mais, angústia a menos, o «Renato» desta novela é apenas o subproduto duma fauna provinciana que em Lis-boa desagua, se dissolve e perece: o pai, bragal, morre asfixiado no fundo dum tanque de cer-veja; a mäe submissa pöe brilho nos altos cola-rinhos de ver a Deus e a el-rei dum Excelentís-simo Senlior Doutor Conselheiro, á Rua do Sali-tre; e ele proprio, órfäo recolhido por caridade, é succssivamente margano, caixeiro e empregado de escritório. Necessariamente obscura, porque narrada pelo protagonista psicopata, a Páscoa é a história dum esquizofrénico paranoide encerrado em si mesmo, isolado do mundo (mas näo alheio a ele), vivendo na e da sua propria fantasia, como protesto, se o querem, contra a miséria, a humi-Ihagäo, a hostilidade que, desde cedo, fizeram dele o «Pata-Choca». Haja o que houver de verdade nos seus delirios de acgäo, posse e gozo ou agressäo, ele identifica-se com um herói de folhe-tim, para negar a sua propria fraqueza ou impotencia, e exprime um desejo de reivindicagäo. No manicómio («Sinto-me bem nesta cadeia», diz ele) declara ter encontrado enfim o Eu, «que a presenga dos outros dissipa e confunde»; e através da culpa, que é o prego dessa libertagäo pelo confinamento e a irresponsabilidade, afirma, a justificar-se: «Sou o hörnern que obedeceu...» Para alcangar essa «paz» da confianga em si mesmo e da reconciliagäo com a sua miséria, 158 159 JOSS RODRIQUES MIOUSIS cria-se uma vida falsa e presta-se a sofrer, inclu-sivamente, a perda do filho, único orgulho da sua pobre existencia. Demasiado debil para lutar, veneer, vingar-se de opressôes, refugia-se no deli-rio gratificante do crime. O que eu, escuso de acentuá-lo, categoricamente repudio. Sou todo a favor das solugoes reais, construtivas, huma-nas; e contra qualquer forma de libertagäo au retribuigäo que descentre o indivíduo do sen com-plexo social. Mas isto näo podia ele dizé-lo sem prejudicar a trama e o fio da novela, sem a trans-formar num mero panfleto, sem cair em absurdas contradigoes. A sua verdade é a da loucura. Näo há nisto, que eu saiba, rigorosamente falando, um «problema de consciéncia»; nuda de místico, religioso ou transcendente. Äo tempo, nós comegávamos tardiamente, em Portugal, a dar-nos conta da existencia dos natu-ralistas russos do século passado. O «mistério da alma eslava», fruto muitas vezes de imper-feitas versoes francesas ou da necessidade em que os autores se viam de exprimir-se em mean-dros para evadir os rigores da censura czarista, era tornado como axioma, e dispensava-nos de conhecer o terreno que produzira esse natura-lismo e a lingua que o corporizava. Dai que tudo o que parecesse obscuro, nocturno, angustioso, místico, irracional, polivalente, tinha por forga de ser «russo». Näo haveria, entäo, fora da Russia, problemas de consciěncia, piedade, ambiva-lěncias, misticismo, obscuridades de alma? Com o nosso hábito das facets generalizagoes e das classificagôes comparativas (somos padres- PÄSCOÁ FELIZ -mestres em tudo, mesmo quando virados do avesso), nunca hesitamos em situar um eseritor num quadro feito, em etiquetá-lo como a um bicho empalhado de museu de história natural. Eu teria de ser criptogámico ou angiospérmico, celenterado ou coleóptero. De outro modo, näo estaria dentro da lógica, séria absurdo, inespe-rado, inquietante. Näo se admite que seja eu mesmo, tenho que ser — tenho até que escolher entre ser — russo ou queirosiano, romántico ou realista. Näo posso ser outra coisa, e esta fata-lidade persegue-me. Ě como se partissemos da premissa de que em Portugal näo pode haver um eseritor nem urna ideia original — tudo säo esco-las ou modus importadas! É tal o hábito, entre nós, do copiango e do plágio, a desconfianga no trabalho criador, que — embora empenhados em pregar a inconfundí-vel originalidade do Portugués — näo fazemos na realidade senäo demonstrar a cada passo, com gosto e acinte, a sua perfeita incapacidade criadora. E sufocá-la. Se dum lado elogiamos os Estrangeirados, como veículos e agentes de civi-lizagäo, por outro, se alguém se deixa, por deses-pero ou amor da perfeigäo, estrangeirar um pouco, caem-lhe todos em cima — aqui ďel-rei que ele näo é dos nossos, näo é de cá, é um desadaptado ou está vendido ä estranja. Quando apareceu «A Mancha Näo Se Apaga» houve quem me dissesse: «Parece uma daquelas coisas que se publicam lá fora.» E da Aventura Inquietante (193Jf) um leitor comenťou: «Isto é Georges Simenon!» 160 12 161 JOSS r0drigües MIOUĚIS PÄSCOA F ELI Z Mas eu näo era mats russo, mais cosmopolita, mais eu, em suma, na Páscoa ou nas histórias nocturnas, do que o sou na «Genciana», na «Linha Invisivel», na «Beleza Orgulhosa», no zRegresso ä Cupula da Pena» ou no «Morgado de Pedra-Má»; ou no que, ao depois, se irá lendo. Para os obcecados da estranja, que só a veern como representagäo, através dos livros, e que nunca por lá se fixaram para aprender pela expe-riéncia, madre das comas, que o mundo humano é uma reaUdade continua no espago e no tempo, e unidade na diversidade — eu teria de ser russo ou americano, mas näo posso ser portugués sem cair na «lama do Rossio», do Ega, ou no «pavé da Avenida», de Joäo Ghagas. Se, tendo morado muitos anos em Nova York, näo sou Faulkner nem Steinbeck, e desisti de ser russo (sem nunca ter ido ä Russia), é preciso encontrar-me outra etiqueta, fazer-me entrar noutra família, género ou espécie zoológica. De contrário näo existo. Parece, por outra parte, que näo sou neo--realista, nem humano nem nacionalista, nem moderno nem antigo. Näo sou nada. Näo satis-fago nenhum standard ou padräo, nenhuma ideia esquemática e preconcebida dos sabichôes desta Alameda Tavirense dilatada ás dimensôes nacio-nais e äs pretensoes universalistas. É talvez por-que sou eu, sou diferente, sou outro, näo me con f undo? A final de contas, pessoal? Se o meu neo-realismo, onde existe, näo é dos que se metem pelos olhos dentro, dos que satis-fazem ä vista desarmada os catalogadores e agri-mensores da literatúra e da vida — como se fos- sem as categorias e classificagöes que fazem a realidade, e näo o contrário; e como se a substancia importasse menos do que as fórmulas e receitas, e a convicgäo e a acgäo menos do que a profissäo de f é — pergunto eu se näo será pre-ferível que eu de uma nota destoante, e perma-nega fiel ä minha maneira, sincero, espontäneo e laborioso, variado na minha unidade essencial? Idéntico a mim mesmo, poliédrico se querem, aberto a todos os ventos que por mim rocem, mas, apesar de tudo, com ešte ar de família, apto a traduzir o que, ä falta de melhor termo, cKämamos a sensibilidade portuguesa? Esta, pelo menos, parece ser inegável. A verdade é que todos reconhecem que sou portugués: ou porque sou cosmopolita («raga de coragöes partidos pelo mundo...»), ou porque pinto com as cores que me ministra o amor e a dor de ser de cá. O poeta Carlos Queirós, que leu a Páscoa por conta-gotas e se confessava empólgado, dizia-me: «Era capaz de reconhecer os bairros de Lisboa, com os olhos vendados, só pelos cheiros da sua novela!» Ele näo teria decerto confundido a Avenida da Dona Genciana, aonde chegava de longe o eco dos tiros, com a Avenida da Liberdade, donde eles partiám. Mas isto é um pormenor de somenos importáncia quando nos preocupamos com dogmas, chavetas e etiquetas, e näo com a substancia e a vida. Há sempre alguma coisa que escapa äs classificagöes e generalizagôes, mesmo quando näo sejam apressadas, improvisadas ou impressio-nistas. 162 163 JOSS ROD RIG UE 8 MIGUSIS Sim, a Páscoa é um livro nosso, poríugués, alfacinha, de cá. Sobretudo pelas deficiéncias. Näo tem a amplitude, a profundidade de análise, a forga de caracterizagäo e estruturagäo, nem a transcendencia satírica dos naturalistas russos — oxalá tivesse. E quem é que as tem cá? Praia da casa, como tudo o mais. E como häo-de ser russos, americanos, ingleses ou franceses os escritores dum pais cuja Inteligencia, mal-grado tantos esforgos e uma nutrigäo cosmopolita, teima em ficar confinada entre o Choupal e o Chiado? Mas já alguém visionou um Proust, um Steinbeck ou um Chólokhov ali no Chiado, a dis-cutir as novidades literárias? E se, por milagre, isso acontecesse, correríamos todos, de Barcelos a Maura, a suprimi-los. Quanto a sermos dife-rentes uns dos outros, olhem, näo mais, para a galéria dos escritores franceses da primeira metade deste século, e digam-me se há ali dois parecidos. E como todos eram franceses! Até hoje só escrevi as histórias cujo terna, ambiente, situagôes e caracteres tém apelado para o meu temper amento: polémico e pedagó-gico, ou apiedado e solidário. Assim sou eu. Eú e a minha adesäo orgánica a certas realidades, a minha consubstanciagäo com o Outro, o meu riso e as minhas lágrimas, a minha dialéctica Sujeito-Objecto. E assim continuarei a ser por todos os meios ao meu alcance. De todas as leituras, de todas as experiéncias pessoais, da estruturagäo mesma dum carácter, PÄSCOA FE LIZ da posigäo e reacgôes do escritor ao seu meio e ä época, ä mentalidade e aos costumes — de tudo isso, quem poderia exumar, destringar e definir as influéncias que actuam numa obra f Era menino quando li uma noveleta de Tolstói, Kátia *, que me impressionou perduravelmente pela serena e límpida profundidade dos sentimen-tos que a informam. Näo tornei a Jer nenhum russo até cerca dos vinte anos (a näo ser talvez algum Gorki, em tradugôes de terceira mäo). Entretanto, desde a Enciclopédia das Famílias, livros de aventuras, novelas policiais, folhetins, pornografia, brochuras francesas de quiosque, Campos Junior — en f im, todo o lixo que entulha e nutre a insaciável curiosidade e sede de vida, aventuras e acgäo da infáncia e puberdade — quanto mais näo U eu, que esqueci! Cedo de-vorei as Mil e Uma Noites, que, a par da ima-ginagäo narrativa de minha mäe, iriam afei-goar-me para sempre. Aos onze ou dose anos, deitado no chäo, de cotovelos nas tábuas e as mäos no queixo, eu lia, e relia Os Miseráveis, num imenso volume ilustrado, e derramava lágrimas sentidas sobre a sorte de Jean Val jean e de Fantina, que «era bela sem o saber». Fui depois, como toda a gente, leitor sôfrego e apaixonado de Camilo. Menos, de Herculano e Garrett e Júlio Dinis. Só muito mais tarde descobri o Ega: e com reti-céncias. Aquilino ainda mais tarde. Sei que ao * Colecgäo Económica (100 réis), da Parceria A. M. Pereira. 165 JOSE RODRIGVBS MIGUĚIS PASCO A FR LIZ tempo me apaixonava a História, lia e comen-tava a Biblia, devorava grossos calhamagos sobre as Religióes. Defendia o Naturalismo contra o Romantismo, e este contra os Arcades (que eu pronunciava arcades,). Dumas-pai passou por mim como a água efémera do enxurro numa ravina. Detestei A Dama das Camélias e os sen-timentalistas (mas li-os) como aborrecia as fal-sificagôes arquitectónicas: de instinto. Era estil-pido, sonhador e abúlico. Näo jogava o xadrez nem mesmo o burro. Como o Repórter-X, meu coevo e meu senior, cheguei a apanhar zero em Portugu.es: sempře a história do Patinho Feio! Na aula geral do Colégio Frances compunha histórias de aventuras para os colegas, que me forneciam o papel. Já no liceu, um amigo que-rido (cruel como só os amigos verdadeiros) dizia com desdém, quando eu The confessava as minhas aspiragôes: «Escritor! Isso näo é car-reira...» Como ele tinha razäo! A tudo isso esca-pei, e a muito pior. Em jornais escolares, para as familias, ensaiei-me na reportagem humoristica dos meus desaires. Chegámos a organizar uma «acade-mia», e discorri sobre Arte Grega. Aos quinze anos, mandei á Capital a minha priiňeířa história, uma coisa mística que nadá tinha em comum com a realidade da minha vida nem com a politico do vespertino. Comprei-o religiosamente dias seguidos, com crescente inquietagäo: o que näo teriam rido á minha custa os redactores! Caia-me a cara, de vergonha. E uma noite o conto apareceu na íntegra, sem um comentário. Onde guardarei eu essa primeira transgressäo? Tinha sonhado a carreira naval e a mediana, mas enveredei pelas Letras (que er am «tretas») e aceitei o Direito como mal menor, on tangente do menor esforgo. Fui, é claro, um estudante distinto, urna das esperangas do meu curso. O jornaUsmo atraia-me e apaixonava-me. Sen-tia-me nascido para ele. Aos vinte anos (1922), estreei-me na República com uma série de cró-nicas sob o título geral de Poeira da Rua. Ribeiro de Carvalho saudou-me com o hábitual calor. Houve leitores que me imaginaram hörnern de barbas compridas, calvo, de meia-idade: Dos-toievski, em suma. Fiz desenhos para um ilus-trado do Século e para a edigäo nocturna do Diário de Notícias, de efémera existencia. Ini-ciei-me na Seara Nova com «Milagre de Joane», um conto de feigäo mística, em que, sem o sáber, plagiei o Padre Manuel Bernardes, disse-mo Antonio Sergio caridosamente. Seguiu-se-lhe «Noite Infinita», já mais inclinado ä piedade. Passado tempo, encetei as Reflexöes Dum Bur-gués, que ainda hoje me perseguem, e artigos de reforma. E fiz discursos, está visto. A veia satírica e política comegava a concorrer com a minha tendencia nocturna e pietista da Poeira da Rua. Por esse tempo, o meu sectarismo e o idealismo da Seara Nova, com o seu contágio de isengäo e sacrifício, cortaram-me os voos profis-sionais: um incidente — a greve dos jornais — matou de uma cajadada o Notícias da noite e os meus sonhos de «galeriano da Imprensa». 166 167 JOSS ROD RIGU E S MIGÜSIS PASCO A FELIZ As crónicas da República (tudo ali me lem-brava Raul Brandäg, que por lá passara) er am talhadas em pleno materiál do mestre da Farsa. A sua sensibilidade luarenta e espectral coinci-dia visceralmente com o meu modo de ser. Lis-boeta, e como tal um perpétuo exilado entre os provincianos que de há séculos comandam a «desordem endemica» da cupital — sim, säo eles, os provincianos, que a fizeram sempře, ó calu-niado povo de Lisboa! —, boémio, tímido e diva-gante, risonho e sonhador, eu náo podia deixar de me apaixonar pelo mágico pintor do Gebo e do Gabiru, cuja paleta alucinada me segredava mistérios novos da expressäo. O seu génio bur-lesco e a sua prodigiosa mistificagäo mostra-vam-me como a linguagem, mesmo pobre, se des-dobra e renova; que ela näo é feit a dum embre-chado de pálavras e frases, nem de exercícios gramaticais, estilísticos e lexicológicos; antes, como a pintura, vive do sentimento e da perso-nálidade que a instruem, da composigäo, da jus-taposigäo de cores, e dos efeitos; e que a maneira de narrar é que faz a virtude da narragäo. A frieza caricatural do Ega repelia-me, e Aqui-lino (que me deslumbrou) intimidava-me com a riqueza soalhenta e vigorosa da sua experiéncia e do seu vocabuMrio, para mim inatingiveis. O proprio Fialko, ao lado de Raul Brandäo, me parecia rocaille. Para mim, Raul reatava a tra-digäo camiliana no piano do impressionismo social. Uma admiragäo silenciosa eclipsou tudo o mais. Quando o conheci pessoalmente, na Seara e na Biblioteca Nacional, o meu fervor tornou-se adoragäo. Dai, que a minha primeira fuse fosse de franca e desabusada imitagäo — melhor seria dizer de impregnagäo. Se alguma influéncia a Páscoa revela, é a dele: com todas as distáncias dum estilo mágico e incoercível ao estilo ainda tacteante e sincopado duma primeira novela «moderna», que, apesar de tudo, se queria dife-rente. Um dia, Teixeira de Pascoais, a quem a ofereci, disse-me no Chiado: «Sim senhor. Morreu-nos um Raul Brandäo, já temos outro!» Este comentário generoso e limitativo deixou-me confuso de gratidäo. Luis de Montalvor achava em mim um eco do seu querido Sá-Carneiro, da Confissäo de Lucio: mas a Páscoa tinha urna intengäo humana, naturalista e social, embora subjacente, que nos divergia. É noutro poeta — brasileiro, rio-grandense, boémio com algo de Baudelaire e Nerval vazado em parnasiano-simbolista — que se filiam certas tonálidades da Páscoa Feliz. Devia eu ter oito ou nove anos, meu pai trouxe para casa um poéma luxuosamente impresso nas oficinas grá-ficas da Livraria Americana, Porto Alegre, Brasil, Agosto de 1907*, com dedicatória manuscrita de Marcondes Mala «ao meu car o amigo Joa-quim ď Almeida (doutor)», e datada de «Porto Alegre 19 Novembro 907»: Noite de Insomnia, * E näo 1908, como diz o excelente Panorama da Poesia Brasileira de Fernando Goes (Rio de Janeiro, 1959-60, vol. 4, «Simbolismo»). (Nota da 4." edigäo.) 168 169 jose rodrigues mi qu eis por Marcello Gama. Que é que Togo me atraiu nele? Foi talvez o primeiro poema que Ii na integra. Apaixonou-me. Reli-o cem vezes. Depois, esqueci-o no fundo dum bau. O poeta, de seu verdadeiro nome Possidônio Machado, nasceu em Mostardas, R. G. do 8., em 3 de Margo de 1878, e «morreu tragicamente, na madrugada de 7 de Margo de 1915», ao ser projectado, do «bonde» em que viajava, do alto do viaduto de Santa Teresa (Rio de Janeiro). Tivera por madrinha Dona Amargura e por pa-drinho o Belo, que escolheram o nome heróico de Marcello. O poema abria assim: Mal vos posso dizer as torturas supremas desta noite que foi de ilustragöes aos poemas do tenebroso Poe. Longa noite sinistra... A tonalidade pessimista, que me repelia em Jose Duro, empolgava-me nele: Fora rude o meu dia, ao latir dos perversos, que näo valem, talvez, o pior dos meus versos... Em que recessos do subconsciente se ocultou por tantos anos, uns vinte, em que eu deixara de o Ter e o julgava esquecido? Tempos depois de publicada a novela, apercebi-me, com terror, que os pesadelos, os corvos encarnigados, a tonalidade nocturna, me vinham dele directamente. päsooa feliz Mas é člaro que näo há na trama e intengäo da Páscoa nada que nele possa filiar-se. Que teria de «russo» este poeta dos antípodas e comego do século ? Os Pobres esperaram vinte anos pela consa-gragäo, que só veio com o triunfo da tradugäo castelhana. Ainda entäo restavam algumas cen-tenas de exemplares da edigäo original. Essa injustiga — eu era novo — revoltou-me. Quanta glória fácil! A Páscoa reaparece a vinte e seis anos de intervalo: mas näo admira, é um fio de voz ao lado daquela epopeia. Além disso, a meus olhos, a vida pessoal tornou-se há muito um tecido contínuo, urna unidade em prospecto e retros-pecto, e a cronologia subjectiva perdeu muito da significagäo que possa ter para os mais novos. Pertence a um estrato, a um tempo ultrapas-sado. Se nunca se disse dela nem todo o bem nem todo o mal que merecia; embora eu proprio tenha reagido há muito contra os Raskolnikovs de pacotilha que depois dela ingaram certo seg-mento da nossa literatura; com todos os seus defeitos e apesar de ter envelhecido sob certos aspectos, encerra muito da minha continuidade, e ainda hoje a näo repudio. Em todo o caso, é consolador saber que esta novela, cuja técnica, expressäo e estilo «näo eram perfeitos, nem sequer pessoais» — escreveu há pouco Joäo Gaspar Simöes — muito embora se näo pudessem considerar «ja vistos», ensinou «um caminho por onde näo passara ainda a nossa literatura de ficgäo» e é hoje (para o 170 171 JOSS RODRIGUEZ MIGUSIS tempo, é claro, em que surgiu) «qualquer coisa de novo, adentro, pelo menos, do quadro das letras nacionais». Näo se poderia esperar mats generoso reconhecimento ao cabo de tantos anos, no decorrer dos qua-is encontrei sugestöes, influéncias, reflexos evidentes da sua leitura em mogos novelistas: o que näo é de espantar, pois a mim mesmo ela ainda äs vezes me comove. Limitei-me, para esta edigäo definitíva, a dar--Ihe alguns retoques de pormenor e a adicionar--The uma ou duas curtas passagens anterior-mente suprimidas. Seria desonesto de outro modo transformá-la ou actualizá-la. Quero, por fim, consignor aqui a minha gra-tidäo a Nataniel Costa e aos Editores que cora-josamente empreenderam esta pubUcagäo, e aos amigos que me estimularam a reatar, através do trabalho incessante, o contacto com o publico: em particular a Jose Gomes Ferreira. Lisboa, Junho de 1958. José Rodeigues Miguéis 112