\ Os olhos brancos cintilaram: — Pois näo é? Está a compreender porque é que tenho medo de que alguém queira abusar dela e me faga mulher martirizada e dedicada a um amor sem ganho? — Näo tenha. Porque iria alguém fazé-lo? E como havia de contar-se a história se uns estäo mortos e outros estäo longe? Ela sorriu-me como quem é consolado. — Ninguém ia, pois näo? — Nem pense nisso. l/ťtn-k Oberaus e oot'^KJ úovŕoj , 1 7 Urna Noite em Luddenden — Trinta anos — disse a cara no postigo —, trinta anos e näo vos compreendo. A cara combinava com a noite, nevada e resistente ao temporal. Timothy Wormald estava habituado a que aparecesse gente a altas horas. Mas um desconhecido com sotaque näo era frequente em Luddenden. Lidar com a estranheza, no entanto, jamais cons-tituira urn problema para os habitantes do medonho vale. Naquele dia, por exemplo, perpassara urn vento horizontal que assobiava na largura minüscula das ruas como se fosse o espfrito de um rio. E, nas encostas, todo o gelo brilhava sem que urn floco, uma fo-lha, se mexesse. Os carneiros desciam para junto do calor emana-do pelas casas. A tinta com que os donos os marcavam fazia lembrar mascaras de guerra. O sino da igreja de St. Mary tocara a despropösito mas isso näo transtornou ninguem. Medo haveria se se pensasse num tremor de terra. Wormald abriu a porta devagar. O vento horizontal fazia o hörnern procurar equilibrio, como um bebedo. «E quer entrar?» — Ja quero entrar desde ontem — respondeu o estrangeiro. — Mas perdi-me. O estalajadeiro olhou para dentro, rindo, porque o homem men-tia e ele achou graga. Ninguem que se perdesse no Inverno pode-ria viver para o contar. Restava nessa noite um so diente e era para ele que Timothy olhava, fazendo o comentärio sem palavras. Uns cabelos vermelhos oscilaram no limite da mesa. O movimen- to poderia tomar-se pelo efeito de uma corrente de ar sobre a luz pobre. Mas existiam na verdade aqueles cabelos, urn pequeno hörnern ruivo sem feicoes, como que corroido pelo escuro. No instante em que a porta se fechou, o forasteiro pareceu de-sanimar. Deixou cair o saco e pelos ombros muito curvados reve-lou a sua idade. «Chegue-se ao lume», disse Wormald, sem gen-tileza. A filha ja se retirara e ele näo tinha vontade de servir comida quente. Mas o hörnern sabia obedecer ou assim parecia. Aproximou-se da cintilacäo fraca da lareira e o coracäo de Timothy Wormald amoleceu ao ve-lo aureolado pelo vapor da sua propria roupa. Reparou na brancura da pele por sob a barba e nas mäos azuladas que tremiam. Por alguma razäo, nem o braseiro conseguia mudar a cor do hörnern. O estalajadeiro deitou mais turfa e o pequeno ruivo suspirou. Chegou-se aträs, incomodado pelas fafscas. Era nitidamente umapessoa que tern dificuldade em acordar, seja qual for a hora e o grau de interesse. Mas Wormald pös mais vinho sobre a mesa e o bater da caneca contra as täbuas fez com que um seräo novo comecasse. O hörnern engoliu a sua dose sem que o rosto perdesse a palidez. Compreendeu que tinha de explicar-se porque ao beber rodara um pouco e colocara-se como um parceiro de conversa entre outros dois. Os cödigos cor-teses das tabernas näo eram ignorados por ninguem. «Estou mes-mo no Lord Nelson!» — Sim, senhor. Uma estalagem que tem trato ate com Deus. Ja foi propriedade de vigärios e quando St. Mary esteve em obras celebravam-se aqui os baptizados. E eu, Timothy Wormald, sou sacristäo. Pode ver como e tudo respeitävel. O cavalheiro ingles näo e, pois näo? «Luso. De Portugal», gemeu o hörnern. Estava exausto de mais para recordar. « Mas vim hä muitos anos para cä. Com as tropas do Duque de Wellington.» O ruivo inclinou-se para a frente e depois arrastou toda a cadei-ra: — Andou nas guerras com o Duque? «Andei.» — Contra Napoleäo? t i «Isso que tem?» -š* a* •■ti — Hörnern, é um herói. «Näo há heróis. Dentro das guerras nunca se percebe nada. Eu, por exemplo, nem um tiro disparei.» O interlocutor estava a fitá-lo com tanta intensidade que o ma-goava. Mostrava finalmente o rosto magro, com vigorosos tracos de irlandés. Os olhos, habituados a captar populacöes para os outros invisiveis, näo se adaptavam facilmente ao modo pouco envolvente dos diálogos comuns. Ganhara fama de dissimulado porque baixava as pálpebras, tentando eonter aquele fulgor. Na-quele momento, porém, o entusiasmo intoxicava-o, ardia como o álcool e ele brilhava. — Säo esses os heróis da minha vida. Cresci com eles, noite e dia, entende? «Sim», disse o portugués. «Perfeitamente.» «Trinta anos e näo vos compreendo», gritara a cara dele pelo postigo. Dizia «sim» para acabar ali com a esquisita eufória que soava täo desapropriada ao ambiente. Em resumo, mentia uma vez mais. Era vulgar entre os sobreviventes. Dentro do Lord Nelson, Timothy Wormald tolerava comportamentos que, enquanto capeläo, no rigor dos domingos, proscrevia. O portugués, mais do que um hörnern sem carácter, parecia gasto pela sua propria história. Näo se achava ä altura do lugar. O estalajadeiro pôs na chapa um naco de toucinho. Com certeza que o forasteiro tinha falta de comida. Ele inclinou-se para agradecer. Ainda assim, con-tinuava branco e sem vontade de comunicar. Percebia-se bem que a velha guerra descera no sistema da memoria e jazia em camadas subterräneas. Ao contrario de muitos outros casos, näo produzira uma mitomania. Mas o pequeno ruivo, ante a presenca täo física de histórias da infäncia, aguardava o relato, iluminado por uma espécie de antecipacäo. Wormald achou que o hörnern era ingrato. — Fale um bocado aqui com o senhor Bronte. Näo pense que se trata de um inútil. Com esta idade sabe mais que os mestres. É capaz de escrever com as duas mäos ao mesmo tempo, um lado em grego, outro em latim. O portugués passou os dedos pela boca, depois lambeu-os, evi-tando o desperdício. Toda a sua atencäo se concentrava no ali- • •• '. Hélia Correia ,/jopedaco de toucinho. Os seus olhos tornavam-se peque-ííavia nele um organismo que se enrola para minimizar os prejuízos. Os outros aguardavam, sem piedade. — Este senhor é Patrick Branwell Brontě. O Brontě dele nao se relaciona com o duque de Bronte, o Lord Nelson que é a gloria de toda a Grá-Bretanha. Nao foi só esta, muitas estalagens passaram a usar o nome dele. — Enquanto o meu nome de família morre comigo — disse Patrick Brontě. Sabia produzir frases amargas numa voz compla-cente e musical. Wormald perguntava-se a si mesmo se deveria pór mais uma vela. A que ardia na mesa tremulava, já sem volume, uma mortalha de si propria. Ele sentia-se um tanto compelido a fazer o retrato elogioso de Patrick: — E o chefe da estacao. Um dia destes chamam-no de Manchester. Talvez até de Londres. Porque ele pinta e faz bons versos, pode acreditar. O forasteiro dobrava o peito para o chao. Patrick pusera-se en-tretanto a odiar, cerrando os denies, o estalajadeiro. Tudo aquilo que ele dizia o humilhava. Wormald nao via nele senao o bébedo, o brigao que nao queria regressar ao seu quarto alugado a meio do monte. Permanecia no Lord Nelson tanto tempo que tinha uma cadeira exclusiva. E a sua imagem, tao miúda e desfocada, tao sugestiva de uma perdicao nas suas cores, no seu afilamento, dava uma informagao de um só sentido. Era alguém que gastara o seu carácter tal como outros gastavam uma heranca. Timothy Wormald atribuía-lhe uma gloria cuja irrealidade o exasperava porque, no fundo, acreditava nela. Toda a sua família acreditara, para lá dos limites do bom senso. Mas nao restava, no pequeno Brontě, vestígio algum daquilo que prometera. Trabalhava naquele fim do mundo, entre comboios de mercadorias, dispondo apenas de um subordinado no qual confiava mais do que devia. Os seus cader-nos tinham manchas negras e números de carga misturados com pedacos de textos literários. Comecava a sentir-se arrependido do modo cosno recebera o portugués, pedindo-lhe o estatuto de emissário das suas fantasias privativas sobre uma guerra que jamais coincidira com a guerra Vinte Degräiis e Outros Contös 87 4. real entre as nacoes. Entao, o forasteiro deslizou muito suavemen-te da banqueta. A manga do casaco,ja enxuta, arrastou um pedaco do braseiro e um cheiro a fazenda chamuscada fez o estalajadeiro reagir. Patrick Branwell Bronte olhava para o homem desmaiado nas lajes, para Wormald que o arrastava pelas pernas para longe do lume, praguejando. Tudo aquilo lhe parecia natural. Aquele estran-geiro nao honrava uma catastrofe que obviamente o escolhera a certa altura ou mais do que uma vez na sua vida. Aquele corpo abatia-se a si proprio. Wormald deitou-lhe um pouco de vinho sobre os labios mas quase todo o liquido escorreu em duas linhas roxas, queixo abaixo. Nao era uma bebida para estragar. Havia tanto de irritacao como de socorrismo nas pancadas que deu contra aquele rosto com a mao cheia ate que o homem despertou. No andar superior do Lord Nelson estava instalada a Biblioteca de Luddenden. Funcionava por quotizacöes numa organizacäo quase sem falhas. Os livros mais ousados em politica e em filoso-fia tinham sido expurgados anos antes, de maneira que a correc-cäo moral dos conteüdos constituia uma sölida certeza. Os söcios, todos eles fespeitäveis, atravessavam os vapores alcoölicos, o fumo e os improperios da taberna para subirem a escada e näo mostravam qualquer constrangimento no trajecto. Entre eles e os operärios muito bebedos erguia-se uma säbia opacidade. So Patrick Bronte desfrutava de ambos os pisos. Nunca se fez membro e o seu acesso aos livros tinha o gosto de uma coisa pueril, como o esgueirar-se 'desnecessariamente pela janela. E conhecia bem todos os cantos, os canapes näo muito confortäveis, o armärio com os livros do registo quer das aquisicöes quer dos empresti-mos. Por isso foi ä frente, a preparar um velho cadeiräo adamas-cado que todos evitavam por cerimönia, enquanto Timothy erguia o homem com a facilidade de quem ja encaminhou muitos em-briagados. O portugues mostrou-se intimidado pelos vultos dos livros nas estantes. A presenca de humanos confortou-o. Timothy Wormald nemí v orreia deu-lhe um cálice de Porto e isso ou a memória do desmaio tor-nou-o de repente loquaz. «Porto, näo é?» Olhou para a garrafa que reflectia a vela como um espelho. «Vim no engodo desse Porto. Diziam que era o ouro do portugués. Diziam mal. Para o portugués, ouro nenhum. Fiz todos os trabalhos que Deus quis mas de negócios, nada. Eu já sabia.» Patrick Branwell interessava-se outra vez. Passava por ali um fatalismo, um sentimento que adocava o ar. E o obséquio do vinho, daquele vinho que o iludira como uma mulher, despertava no horném uma nova disposi^äo para as confidéncias pessoais. Agia fi-nalmente como alguém que tivesse chegado ao seu destino. O ál-cool näo lhe de vol vera a cor e ele falava com esforco, suspirando. Havia, no entanto, alguma pressa, urna tendencia para resumir, e a sua juventude, com a guerra peninsular e os exércitos ingleses que tentavam, em väo, criar maneiras nos Portugueses que se incorpo-ravam, pouca atencäo ganhou na narrativa. O jovem Brontě desis-tira de perguntas. O encavalgamento das palavras do portugués determinava o ritmo. Wormald desceu para avivar as brasas e levou muito tempo a regressar. «António Pixes», apresentou-se o homem. E esclareceu que esse era um nome sem nobreza, um home a condizer com a sua vida. Näo chegara a formar urna família, näo chegara sequer a ter ami-gos. Andara de um trabalho para outro, de um lugar para outro, transtornado por urna terra cujos habitantes tinham grandes segre-dos a guardar. Näo existia ali a porta aberta, a ofensa, o regateio. O próprio medo parecia algo de incomunicável, ficava atrás dos ros-tos, a escurecer. Ele ia de provincia em provincia como um enfeiti-cado, sem projecto. Tinha aprendido facilmente a lingua porém nunca enganara um inglés. Desconfiavam dele por instinto e, no entanto, davam-lhe trabalho. Nas tabernas, gostavam de o ver bébe-do. Ele chorava e cantava, com langor. A čerta altura convenceu-se de que o sol, a alegria histérica dos seus compatriotas estavam fora do alcance para sempre e de que aquele estatuto de estrangeiro, ainda que inferior, lhe fornecia uma patria pequena^para seu'uso e sua pessoal exibicäo. Estranhamente, a guerra de onde vinha näo 1. ■m v- •I WE lhe dava pretextos para brilhar. Ele vira alguns confrontos em nas, entraranas igrejas saqueadas pelos franceses e benzera-se. Mas das grandes batalhas näo sabia. Rastejara, entre as ervas, devorado por urna sede intensa. O cavalheiro que lhe desculpasse, disse, fa-zendo vénia a Patrick Branwell, mas da guerra ele lembrava-se da sede. Wormald, estimulado pela palavra, serviu-o de outro cálice de vinho. António Piŕes soniu-lhe. A gratidäo confundia-se um tanto com lascívia nos seus olhos escuros e pouco abertos. A sua fala revelava urna dištancia, quase um processo de elabo-ragäo que remetia aquele passado para a pura suavidade de urna coisa dita, uma coisa que tinha por missäo arrepiar um pouco e seduzir, como todas as histórias inventadas. O corpo dele, enve-lhecido e gelado, descolava-se muito das palavras, alastrava no velho cadeiräo com a inconsisténcia de uma sombra. Ao claräo da manhä, dissipar-se-ia com os restantes pesadelos da vila. As bati-das do tempo comecavam a exercer pressäo em Patrick Branwell, que via Wormald bocejar e detectava, numa subtil luminescencia dos objectos, o fim das horas próprias ao inconfessável. Tocou no portugués para o estimular, empurrando-Ihe o peito com os dedos. — E que lhe aconteceu agora, aqui? Porque andava ä procura do Lord Nelson! António Pires reagiu. Dir-se-ia que o contacto de Patrick o queimava. Voľtava a ser um homem assustado, um homem singular no seu terror. «Eu preciso é de um padre! Um padre a sério! Um padre que me possa perdoar!» — Eu sou o sacristäo — lembrou Wormald. Porém, fazia-o sem entusiasmo. Estava, de facto, muito fatigado e o portugués deixara de interessar-lhe. Anps atrás, quando a igreja fora refeita e amplia-da, os baptizados celebravam-se dentro da estalagem. Era um lugar de Deus ao mesmo tempo que um lugar de consolo pelo vício. Wormald pensou tudo isto mas achou que näo se impunha um tal esclarecimento. Talvez fosse católico, o estrangeiro. Tratava-se de gente choramingas, sem resisténcia aos desafios morais. — De que pecados quer falar? — perguntou Patrick. — Per-doar, näo. Ninguém perdoa aqui. Mas f ale comigo. Eu gosto de pecados. 0-ugs'chegou-se para tras. Kxistia no outro aquela gula i a confiindir um curioso com um ser desprovido de pudor. ,.otu\ha, porem, como se deter. O espirito do alcool animava-o, fa/Ja o scu trabalho habitual, gerando incontinencia nas palavras. Liru uraa daquelas circunstancias em que se balbucia e, no entanto, se comunica formidavelmente. Ele viera apalavrado para uma das fábricas de lä de Luddenden. Tinha a carta no bolso ou, pelo menos, assim supunha. Näo veri-ficara. Acontecia muito raramente admitirem-se empregados no Inverno, mas naquele lugar, de vez em quando, alguém metia pela estráda fora, sem avisar, e nunca mais voltava, deixando vago um posto de trabalho. — É certo — disse Patrick. — Ve-se ao longe um vulto contra a neve e nada mais. Antonio Pires entrara no comboio e enganara-se no sitio da saída. O comboio parara a meio do nada como as vezes parava. Ele avistara uns telhados cinzentos e descera, confundido pelas névoas do crepúsculo. Alguém gritou para o avisar, lembrava. Mas julgou que trocavam, que diziam o adeus de quem vé um solitário a caminhar sem muita conviccäo. O comboio servia muito mais para transportar carväo do que pessoas. E as próprias pessoas que ele levava deixavam čerta sujidade no contacto. Tudo o que ele queria era chegar ao seu destino, procurar a estalagem de Lord Nelson onde o esperava uma primeira refeigäo e cujo dono o encaminharia para a fábrica onde iria trabalhar. Por sobre o gelo e a negridäo das urzes, dirigiu-se ao aglomerado de edifí-cios. Atravessou a ponte sobre um rio que levava águas bravas, cor de cobre. E quando se virou, com a certeza de que näo se apeara em Luddenden, viu a locomotiva a fumegar, numa dištancia já fora de alcance quer dos seus gestos, quer da sua voz. Os edifícios näo passavam de ruínas, umas grandes ruínas con-ventuais. Mostrava mais tijolo do que pedra nas paredes semides-moronadas, denunciando assim uma pobreza que éontrastava com ft a amplidäo. António Pires näo era assustadigo. A perspectiva de passar a noite que avangava depressa num local abandonado näo o perturbava. Tinha os recursos de um sobrevivente. Sabia estabe-lecer prioridades e sabia o tamanho dos perigos aos quais um imprudente se exporia se desprezasse as trevas naturais. Havia, aliás, vestígios de outra gente que se abrigara ali: cinzas, excre-mentos. O coragäo batia-lhe sem glória, tal como um coragäo apavorado, enquanto ele procurava troncos secos. Só minutos depois compreendeu aquilo que o coragäo estava a ouvir. A voz chamava muito fracamente, num misto de cangäo e de queixume. Ressoava por dentro das abóbadas e, a espagos, perdia--se nos ares que revoluteavam pelas fendas. Era urna voz claríssi-ma, apesar da pouca intensidade. O portugues ficou imóvel e pensou que a voz chamara por ele desde o comboio, ou mesmo antes, que aquela voz chamara toda a vida, criando o movimento que o forgava, tanta deslocagäo de terra em terra. «Recorda-te de mim», dizia a voz, numa frescura de raparigui-nha. António Pires benzeu-se. Conhecia as histórias das almas em tormento. Achava-se preparado para tudo menos para essa espécie de terror. Mas a luz do crepúsculo penetrava ainda muito dentro das ruínas. Estava longe de oferecer consolo mas, pelo menos, propunha um contraponto, suavizava a imaginagäo. O portugues ganhou a calma necessária para se adentrar um pouco mais, dizen-do para si próprio que fazia apenas o reconhecimento do terreno. Näo se tornava fácil perceber qual o piano daquela arquitectura, ao mesmo tempo ambiciosa e descuidada. Os corredores, cheios de um vento duro que podia, sozinho, responder pela destruigäo, desembocavam em recintos isolados onde alguns bichos iam pro-criar. A voz aproximava-se e fugia. António conseguiu escutar os passos, uns passos muito leves. E, pensando ler um sinal humano nesse som, seguiu-lhe no encalgo com bastante menos receio e muito mais prudéncia. Deixou de ver subitamente, o que era um facto habitual naqueles Invernos. E, embora receasse urna cilada, dizia para si próprio que urna täo violenta escuridäo näo poderia senäo provir de causas naturais. Por isso, ao divisar ao fundo um vulto cuja brancura a custo se afirmava, António Pires pôde racio- ___cinar, interpretar a eseassa informaeäo c coneluir que havia ali uma mulher. A mancha, vagamente feminina na sua forma de panejamento, mostrava mais da sua condicäo numa fragilidade que a fazia dila-tar e encolher como quem tréme. Dela vinha, sem dúvida, essa voz que lhe soava täo familiar porque era a voz de uma mulher magoada. Ele conhecia-a desde que nascera, na toada da mäe cansada e cheia já de outro filho, nas raparigas com os dentes negros que cantavam nas ruas de Lisboa. As inglesas näo canta-vam, porém riam e o alto riso ecoava nas vielas, angustiando os transeuntes a tal ponto que as vezes apareciam estranguladas. As mais sérias preferiam recitar mas, nas noites de Veräo, pelas jane-las, passavam estäncias de melancolia em que a má sorte se dé-nunciava. António Pires pensou que, a existir uma ameaca na aparicäo, séria o excesso de imaginacäo com que as mulheres, ainda quando inglesas, véem surgir paixoes em cada esquina. Num misto de luxúria e caridade, aproximou-se. Ela emanava čerta luz, uma radiacäo de rapariga e os tracos do seu rosto dis-tinguiam-se, levemente azulados. Tinha um vestido largo e mal talhado, talvez uma camisa de dormir já muito massacrada pela lama. Qualquer inglés suspeitaria de imediato que se tratava de um tecido de mortalha e trataria de escapar depressa, sabendo que a mulher esvoacaria. Ao portugues, porém, faltava aquela educa-cäo que atribuía aos mortos um ser físico. Os fantasmas das terras lusitanas näo atingiam mais que a transparéncia e de maneira al-guma conduziam a libido dos homens ao equívoco. E ele, que havia quase trinta anos ia calcorreando aquele pais, näo trocara de fé nem de visôes. Na completa ignorancia do real, António Pires chegou-se ä rapariga e propôs-se acender uma fogueira. «Oh, näo acha que estamos bem assim?», retorquiu ela. A sua voz tremia, e isso dava aos ouvidos masculinos uma promessa de submissäo. Ele pensou que uma forma de pudor lhe estava a exi-gir a escuridäo e o pensamento entrou no corpo e aqueceu-o. «Perdeu-se no caminho?», perguntou. «Perco-me sempre.» Sussurrava, perto do cabelo do hqmem, sussurrava sem hálito. «E o senhor?» f «Qucria sair cm Luddenden.» «E perto. É por onde o reverendo Grisham anda.» «Disso näo sei», respondeu ele. Näo conseguia evocar um reverendo sem censura. Os padres näo deviam fornicar. A mulher riu. A sua carne jovem dava sinais por baixo do vestido. O sexo distraía o portugués da história que ela tinha para con-tar. Era a história de amor de William Grisham, cuja mulher mor-rera muito nova. Ele como que fugira do lugar, tomara conta da paróquia de Haworth onde a bocalidade e o desrespeito pelos mi-nistros de Deus criara fama. A amargura do reverendo que, a prin-cipio, fizera dele um homem revoltado tornou depois a direccäo correcta. A igreja que Grisham encontrara vazia foi-se enchendo com a gente que ele tirava, ä forca de chicote, das tabernas. Muitos anos depois, quando o erudito Patrick Brontě herdou aquele lugar, já desfrutou de uma populacäo disciplinada que apreciava o impro-viso dos sermoes. No momente da morte, William Grisham exigiu que o levassem pela charneca para ser enterrado em Luddenden, dentro da sepultura da mulher. Os homens de Haworth carregaram o caixäo pelos campos agrestes, escorregando, intrigados com o peso excessivo daquele velho. Nenhum deles revelou essa vontade que os tornava nervosos, o desejo de espreitarem para dentro, a confirmar se o aspecto de Grisham se mantinha. Quando ampliaram a igreja e aquela zona do cemitério desapa-receu, o casal de cadáveres retomou a sua trajectória sobre a terra. Rara era a noite em que um dos habitantes näo ia dar com a cama amarrotada e respeitosamente se mudava com a esposa, se a tives-se, parata cozinha. Se o forasteiro se instalasse em Luddenden, talvez viesse a receber essa visita. Mas tal ocasiäo näo haveria. Se António Pires seguisse a narrativa, este final deixá-lo-ia apreensivo. Porém, aquela voz entorpecera-o e ele oscilava, sob o peso de uma hipnose e de uma forte excitacäo sanguínea. Tinha grande experiéncia de bordéis mas näo sabia como a aplicar. Só quando o riso da desconhecida se tornou gutural, como o que vinha do opulento peito das rameiras, ele investiu sobre aquele corpo que afinal revelava magreza e frigidez. i, entre homens, posso conťessar quc jamais conheei um > assim. Nao que ela tivesse arte. Certamente era uma dessas de que ouvi falar, das que se deitam sem fazerem nada. Os senho-res desculpem o á-vontade. Nao vejo outra maneira de contar. Chegado a certo ponto, ela mordeu. Cravou-me os dentes no pěšcovo, sem largar. Doía. E vinha, dessa dor extraordinária, um prazer de uma tal ordem que eu, as tantas, perdi a consciéncia. Mas, quando abri os olhos, o que eu vi...» O portugues furtava o rosto aos seus ouvintes. A vela, quase inteiramente consumida, emitia uma cháma irregular. As sombras ondulavam e as estantes saltavam por momentos das paredes. Patrick Branwell Brontě levantou-se. Esfregava a nuca, com per-turba§ao, e as suas passadas tinham ar de sérem provocadas pelo escándalo. Mas as palavras iam empurradas, já nao pela vontade do falante mas pela sua forca de atropelo. Timothy Wormald, entretanto, reagira á sonoléncia provocada pelas horas. Escutava o relato sem paciéncia, mudando a posicao a cada instante. A pressa fora um elemento dessa noite, uma pres-sa sem tempo, inexplicável, que continuava a exercer pressáo. Quando o reverendo Grisham foi citado, ele deu, movendo as maos, a entender que dispensavam bem essa passagem. A história pertencia a Luddenden e nao fjcava bem em boča alheia. — O pastor de Haworth é o pai aqui do Patrick — disse, usan-do de alguma brusquidáo, para mostrar que conhecia o episódio e as personagens. O portugues nao reparou que ele evitava cruzar o seu olhar com Patrick Branwell. Queria chegar ao fim e adoptava uma postura de suplicante, de alguém que reza para ser ouvido. «Abri os olhos», insistiu. «Continuava aquele escuro cerrado mas eu vi. A mulher estava em pé, á minha frente, e o seu vestido endurecera. Mais parecia uma estátua tingida de vermelho. Subi-tamente eu percebi que me deitara entre as pernas do diabo e persignei-me. Isso nao lhe fez nada. Ela sorriu.» — E entao mostrou-lhe os dentes, caninos longos, os caninos de uma fera. «Nao. De que dentes fala? Ela sorria como as mulheres seguras de si mesmas. Surgia já pelo areo da entrada uma névoa, o cinzen- to da manha e eu pensava apenas cm fugir. No entanto, tinha de passar por ela. Fechei ós olhos para rezar mas nao sabia que oracáo poderia socorrer-me. Senti entáo a sua máo tocar-me. Havia muita paz naquela mao. Atrevi-me a espreitar por entre os dedos. Entao pensei que delirara toda a noite pois vi apenas uma menininha.» Aparentava uns dez, onze anos, disse. E o seu vestido fora feito para o Veráo, de um pano leve onde bordaram flores azuis, Os anéis do cabelo comecavam a fulgurar nessa manha pequena, nessa manha ainda por nascer. Estava a dirigir-se para a saída e tudo nela se encontrava limpo, sem vestígios de lama ou de vermelho. A cara dela nao se distinguia, nem mesmo quando, ao fundo, se virou: «Recorda-te de mim», pediu. Antonio Pires viu-a desaparecer e a memória daquilo que acon-tecera horrorizou-o. Havia confusáo na sua mentě porém nao no seu corpo masculino, exaltado e exausto. Do semen que vertera para o tecido das suas calcas vinha o cheiro adocicado que umas horas depois se modifica. Nao tinha forcas para dar um passo. Pensou nessas eriancas dos asilos que as vezeš se escapavam e enchiam as escadas de acesso aos lupanares. Nada, porém, naquela rapariga indicava abandono ou privacoes. «Que espécie de gente sáo vocés», perguntou bruscamente o forasteiro, «para dei-xarem sair assim as filhas? Falta-lhes é conventos. Falta tudo o que pode salvar um bom cristao.» Timothy Wormald nao lhe ripostou. Uma compreensao assusta-dora contraía-lhe a těsta. — Como veio até ao Lord Nelsoni «E que nao sei. É que nao dei por nada. Foi como se voasse até aqui. Aquele grande pecado endoideceu-me.» O estalajadeiro aproximou-se e forcou-lhe a cabeca para o lado. — Veja — disse para Patrick. O jovem Bronté nao lhe deu aten-cao. Olhava em falso para uma superfície inexistente. — Estao aqui duas marcas bem visíveis. Por isso é que se sente assim táo fraco. Ouca, nao há vampiros na sua terra? Mortos que bebem sangue e contagiam? «Temos as bruxas e os lobisomens, e já nos chegam», ponderou Antonio Pires. «0 que há no meu pescoco?» — Há a dcntada. Ilomcm. hoje ainda nao, mas amanha voce também se torna um vampiro. Fuj a, volte para lá. O meu dever era matá-lo aqui agora mesmo. O portugues tentou rir alto mas as forcas consentiram-lhe ape-nas um gemido. Nunca entendera o humor dos ingleses e, para os enganar, estudára čerta erispacáo de malícia nos seus olhos que costumava anunciar a ironia. Mas quase nunca interpretava os sinais bem e as gargalhadas que soltava a despropósito levavam ao siléncio os ingleses. — Só o aviso porque voce estava realmente inocente. Náo sa-bia. Com um de nós isso nao ia acontecer. Ninguém se abriga á noite nas ruínas. «Sao as ruínas de um convento.» — Nao, náo sao — disse Patrick. Falava iradamente e os seus membros miúdos e elásticos batiam, numa espécie de voo. Assim diziam que caminhava o filho de Coleridge com quern Patrick Branwell se encontrara. Mas neste caso náo se expunha uma leve-za, a qualidade propria de uma cria gerada entre poemas e opiá-ceos. Patrick lidava com o horror, aquele que nos rebenta o rosto se for dito. Wormald compadeceu-se do estrangeiro, táo condenado e tao ignorante. — Nao sao — repetiu ele, suavemente. — A construcao junto da ponte era um abrigo para os caminhantes. Caiu por ele, como tinha de cair. Ninguém passava ali mais que uma noite. E depois a palavra circulou e há muitos anos que ninguém lá fica. «Havia cinzas.» — Outros forasteiros. Pois voce sabe bem como a voz chama. O portugues passou as maos pelo corpo. Percorria-o um frio, um mal-estar. A sua carne havia percebido mais cedo do que ele e transformava-se. Cheias de pó, as veias tinham sede. As bistórias de aldeia da infáncia contavam como um homem assistia á eclo-sáo do lobo, do focinho, das garras em si próprio, ao plenilunio. E, no entanto, o processo de transfiguracao nao era equivalente. O lobisomem vagueava pela noite com tristeza. Nao chegava a pecar. Sofria só. Mas na mulher e na rapariguinha vibrava uma alegria, uma maldade. E o sexo dominara aquele encontro, nao ■ » HI *\& ■1 um sexo animal, irresponsavel, mas um sexo indiciado de culpa humana, em que tambem a alma se implicava. A luz da vela tinha-se extinguido sem que os vultos, por isso, se sumissem. Era a manha que entrava pelas frestas. Timothy Wormald sacudiu o portugues. — Volte, volte para la. Eu dar-Ihe-ia o consolo da igreja, se pudesse. Mas a igreja nao vos tern em conta. Nao sao coisas de Deus nem do Diabo. Sao coisas de um poder que ainda anda a solta. Com lentidao, abriu uma portada e Antonio Pires encolheu-se, defendendo as palpebras fechadas com os dedos. — Hoje e a transicao e ja lhe custa. Amanha, morre a menor luz do dia. Saia, corra de volta para o abrigo. Sobretudo, nao fale com ninguem. Veja os seus dentes. Ja nao sao normais. Se alguem desconfiar, espeta-lhe um pau pelo peito dentro, ate que saia o grito. «Nao compreendo», disse o portugues. «Nao compreendo nada do que dizem!» Mas tinha apenas o estalajadeiro como interlocutor. Patrick Bran-well deixara de falar. Ia pisando, com uma grande colera, o soalho. Ao lamento de Antonio Pires estacou. — Levante-se, que eu vou consigo ate la — disse. O estalajadeiro recuou sob o impacto da surpresa: — E doidd? — Eu levo o homem para o seu destino. «Recorda-te de mim»: tem a certeza de que foi isso o que a crianca disse? — Disse-o a voz, assim que me apeei. Essa voz foi o fio que me prendeu. Se se aproxima, esta sujeito ao mesmo. — Essa crianca e a minha irma Maria. Essas palavras sao-me dirigidas. E a mmha irma morta que me chama. Ouvi-a muita vez. So que ate hoje eu nunca soube de onde me chamava. — Uma vampira ja nao chama por ninguem — disse Wormald, com a sua autoridade. Recebiam os tres a cor leitosa que entrava pela janela e a palidez tornava-se comum a toda a saia. Os livros branquejavam como ossadas. Patrick Branwell repetiu: Helder e Djalme I A mulher vem da Grecia, onde a paisagem e ensurdecedora. Apaisagem falante entra nas casas, mistura-se na sesta, näo descan-sa. A intensa linguagem dos antigos foi soterrada com a sua morte, porem näo se desfez. Ficou inscrita no interior das pedras, nos torröes, nos olivais em cujo corpo ainda se nota algum estremeci-mento quando descem pelas encostas azuis ate ao mar. A exaustao que muitos visitantes atribuem ao esforco das subidas deve-se, mais que tudo, a tanta voz. Hä um efeito de atordoamento de que ninguem consegue aperceber-se. Ä escala humana, so a vibracao das asas das cigarras atinge os timpanos, se torna inteligfvel como um som. E a camada superficial da cancäo sem garganta. Isso, eles entendem. Tudo o resto, näo. O encontro que esperavam näo existe. Tomam, sem pressa, o alimento dos turistas, as praias com arbus-tos, as varandas que a madrugada näo arrefeceu. Fora de alcance, um texto revoltoso abre fendas na rocha, gnta, grita. Esgueiram-se os fragmentos de epopeias como pequenos animais magoados. Ainda hä timbres que se reconhecem, por exemplo, o de Pericles em Atenas, convocando para a guerra, mais que os deuses, a obra erguida pelas mäos dos homens. Noite apös noite, o campo de rumas devolve aos ares a voz que o im-pregnou e ela esvoaca em volta da Acröpole, ä altura dos ombros dos passantes. Os mais afortunados deles hesitam por um instante,