II. O vocabulário portugués (II) No capítulo antcrior vimos como uma palavra muda de significacáo, conforme os diferentes contextos em que anda agrupada. Vamos ver agora como um conccito, uma ideia, admite várias palavras para se exprimir conforme os seus variados aspectos. 1. PLURALTDADE DOS MEIOS DE EXPRESSAO. — Perguntemos, por exemplo, a um amigo o que signi-fica a palavra inteligente. Logo nos responderá, sem hesitar, procurando explicar o termo por outros vocá-bulos ou locu^óes de sentido semelhante: — É o mesmo que esperto, hábů, entendedot das coisas, que as com-prcende bem, que Ihes penetra o sentido, que tem olho, etc. Claro que cada uma destas expressoes tem o seu valor, mas todas se agrupam no espírito cm volta da ideia geral, que as compreende a todas: inteligéncia. Portanto, quem escreve e quem fala tem á sua dis-posicáo, para traduzir exactamente o pensamento, séries de palavras, ligadas por um sentido comum, que aco-dem ao espírito, para as necessidades da expressáo. Quando se evoca uma delas, succdc gcralmente como quando se colhem cerejas: vém as outras atrás. A estas palavras ou modos de dizer, ligados entre si por uma nocáo comum, dá-se o nome de sinónimos. Estamos vendo a extraordinária importáncia do seu estudo c da sua prática para a técnica da redaccao. Com efeito, a artc de cscrcver rcpousa essencialmente na escolha do termo justo para a expressáo das nossas 27 ideias e dos nossos sentirnentos. Por outras palavras: só cscreveremos bem, quando, na série sinonímica, es-colhermos a palavra ou o grupo de palavras que melhor se ajustam áquilo que queremos exprimir. É nessa escoLha que reside, em grande parte, o segredo do estilo. 2. HÁ OU NÄO SINÖNIMOS? — Se entendermos por sinónimos as palavras que tém sentido semelhante, parecido, é evidente que existem sinónimos. Agora, se considerarmos, como fazia supor a gramática antiga, que sinónimos säo as palavras que tém o mesmo sentido, em breve nos convenceremos de que isso é impos-sívcl. Podem uma mesma ideia, urn mesmo acto, urn mesmo objecto ter nomes diferentes; esses nomes näo säo, näo podem ser exactamente equivalentes, como näo säo nem podem ser equivalentes as folhas da mesma árvore. Poder-se-á objectar com isto: há nomes de plantas, utensílios, produtos vários, que adquirem diferente nomenclatura, conforme as terras do Pais. Por exemplo, para des ig na ľ as agulhas do pinheiro em Portugal: ca-ruma, sama, branza, bicos, picos, etc. É certo; mas por isso mesmo que se repartem por terras diferentes, cada sítio ou regiäo adopta um só vocábulo em prejuízo dos outros, geralmente desconhecidos. A mesma coisa designa-se geralmente por uma só palavra, em čerta regiäo e em certo meio. Pode ao prin-cípio dar-se o caso de duas ou mais palavras designarem o mesmo objecto. É um momento fugaz; logo o espírito reage para destruir o perigoso equilíbrio, introduzindo cambiantes de sentido, promovendo a diversificagäo. 3. AS FORMAS DIVERGENTES.— A este respeito, é muito elucidativo o tratamento dado pela lingua ás formas chamadas divergentes. Chamam-sc formas divergentes as palavras oriundas dum mesmo termo (latim, árabe, grego, etc.), que se diferengaram depois, por motivo da evolucäo fonética. Estäo neste caso, entre outras: aveia — avena; areia — arena; bola — bula; cadeira — cátedra; caldo — cálido; cheio — pleno; choräo — floräo; catar — captar; crosta— crusta; det-gado — delicado; insosso — insulso; inteiro — integro; meigo — mágico; raeäo — razäo; solteiro — solitário; traigäo — Iradigäo, etc. Admitindo que estas palavras tivessem sido algum tempo sinónimas — näo o scriam, porque uma rcinava nos meios cultos, outra nos meios populäres — logo se diferencaram de diversa maneira, como se está vendo. Em alguns casos, o termo literário adoptou um sentido especializado, ex.: arena, cátedra, crusta, integro. Noutros casos foi o termo popular que se desviou do sentido originário, ex.: bola, choräo, catar, meigo, ragäo, solteiro. Pelo que diz respeito ä intensidade das diferencas entre os dois sentidos, observamos que a divergéncia vai do mínimo ao maximo. Em cheio — pleno, a dife-renca é insignificante, podendo até dizer-se que as duas palavras acusam o mesmo sentido. Simplesmente, uma é usada na linguagem corrente (cheio), outra na lingua-gem literária — e näo sempře (pleno). Esta ultima tem um ar falso, pretensioso, que, por isso mesmo, é do agrado dos principiantes. Enfim, säo termos usados em cireunstáncias diferentes e bašta esse facto para os tornar desiguais. Através de variantes intermediárias, as formas divergentes alcancaram o maximo de desvio semántico (isto é, de sentido) em traigäo — tradigäo. É quase in-crível que uma mesma palavra pudesse ter gerado acep-cöes täo diversas; mas o caso deu-se, como vamos ver. Tradigäo foi um velho termo de carácter jurídico, cujo significado era: «entrega, transmissäo de qualquer coisa a outrem». Na passagem do latim para o portugués, o vocábulo perdeu aquele d entrc vogais e comecou de significar outra ideia: «a entrega, a transmissäo dum segredo íntimo, militar, politico, ou duma fortaleza, vila, etc.». Vé-se pois como da simples ideia fundamental de «entrega», «transmissäo», se engendrou o significado moral de «traicäo», «infidelidade», «desleal-dade». Traigäo poderia definir-se como uma «entrega desleal». 28 29 Traáigáo também seguiu o seu rumo, também tornou um sentido moral. Passou a significar «a trans-missao de factos históricos, sistemas, lendas, etc., de idade em idade, sem prova auténtica ou escrita, pro-vindo da transmissáo oral ou de hábitos inveterados». Copiamos a definicáo dada por Cándido de Figueiredo no Pequeno Dicionário da Lingua Portuguesa. Como vemos, e náo obstante uma complicada evolucáo semán-tica, lá está bem visível ainda a ideia originária de «transmissao». Em conclusáo: poderemos formulář esta repra, de acordo com os mais rccentcs investigadores da lingua-gem e do cstilo: «Dois fenómenos de expressáo nunca s3o exactamente ifiuais.» O leitor está vendo as conse-quéncias děste princípio. Mao se pode ir ao dicionário escolher mais ou menos á toa os significados, como fazem geralmente os principiantes. O facto dá orieem a verdadeiros contra-sensos. Cada palavra, em dado momento, é portadora dum sentido, que adauire especial relevo no contexto. Náo pode pois baralbar-se com as outras. A arte do estilo consiste em escolher, nesses grandes armazéns de palavras que sao os dicionários, os termos justos, que báo-de dar forma e cor aos nossos pcnsamentos. 4. COMO NASCEM OS SINÓNTMOS. — É bom de ver que nem todos os conceitos se prestam de igual modo á producao de sinónimos. Dum modo geral, as palavras concretas prestam-se menos ás variacoes sino-nímicas. Se procurarmos no dicionário os equivalentes de tinteiro, água, chave, calcas, porta, veremos que estes termos náo tém própriamente sinónimos. Os dicio-naristas contentam-se com a sua definicáo por meio de perífrases e acrescentam algumas Iocucóes em que a palavra tem cabimento, com um sentido mais ou menos diferente. Por exemplo, para tinteiro, o Pequeno Dicionário apresenta apenas isto: «Pequeno vaso para conter tinta de escrever. Utensílio de escritório com um um ou mais vasos para tinta de escrever.» Realmente o vocábulo náo se presta a mais; identifica-se por si 30 próprio, conhece-se pela propria representacáo que sugere, scmprc a mesma: um recipiente com tinta. Outras palavras há, concretas cm bora, que impli-cam variadas formas, que váo do termo técnico, cien-tífico, até ás expressóes mais baixas da gíria popular: apéndice nasal — nariz — penca — ventas; abdómen — ventre — barriga — panqa, etc. Vemos pois que há no-coes pobres e nocóes ricas, na linguagem; umas contentam-se com uma só palavra, outras, sugerindo novas representa^čes em torno do objecto ou da ideia primitiva, geram uma família numerosa de sinónimos. Compreende-se que um dos principais geradores de sinónimos seja a variedade do emprego da mesma coisa, segundo os diferentes meios sociais. Para prova disso, dá-se geralmente este exemplo: o dinheiro rec-bido em troca da prestacao de servicos tem variadís-simas designacóes, conforme a escala social da pessoa que o recebe: honorários, ordenado, mensalidade, soldo, pré, salário, féria, etc. Seria extremamente reparável e incorrecto dizer-se: 1. O major recebeu o pré. 2. O salário do ministro é grande. É que as palavras evocam os meios sociais em que sao geralmente empregadas, e náo se pode confundir o seu uso, sem nos expormos a graves mal-entendidos. O termo pré lembra logo o ambiente militar dos sol-dados e dos cabos, salário sugere uma classe especial: a dos pequenos servicais. Isto é, as palavras, os sinónimos, sáo um espelho da sociedade: também se divi-dem em classes. No campo diz-se: comer uma tigela de CALDO; na cidade: comer um prato de SOPA. Vem a dar na mesma; mas o caldo sugere o campónio, a sopa é propria do homem da cidade. 5. O EUFEMISMO. — Este mesmo sentimento das conveniéncias sociais leva-nos muitas vezeš a atenuar a dureza e a franqueza de certas expressóes, que evocam imagens grosseiras ou desagradáveis. Certos termos que exprimem a mořte, o furto, a cmbriaguez, a idiotia, a mentira, etc., requerem eufemismos, isto é, 31 meios expressivos que adocam a brutal idade ou a incon-vcnicncia social dessas ideias. Para o hörnern, nada mais terrivel do que a mořte. Pois bem, na vida social, o vocábulo que define a ideia pura — morrer, é suavi-zado pelos seguintes eufemismos: falecer, expirar, deci-dir, acabar, perecer, ir para o céu, finar-se, fechar os olhos, entregar a alma a Deus, passar-se, etc. Tudo ex-pressöes que procuram atenuar a fealdade do horrivel transe. E quando se anuncia no jornal a morte de alguém, pessoa católica e de bom-tom, a sua família näo escreve, seca e trivialmente, morreu, mas sim um longo circunlóquio eufemístico: Foi Deus servido cha-mar á sua divina presenga Fuláno de tal. O emprcgo do eufemismo também caracteriza cer-tas camadas sociais. A um hörnern da plebe que comete um furto, as gazetas näo hesitam em exprobrar ao ladräo, ao gatuno, o roubo que praticou; mas se um hörnern da alta sociedade cometeu o mesmo crime, entäo os redactores adocam servilmcnte a frase e escre-vem: desvio de fundos, fraude, alcance, etc. O povo obscrvou perfeitamente esta injusťica e fez sobre ela um provérbio admirável: «Quem roubá um päo, é ladräo; quem roubá um milháo, é baräo.» Um hörnern do povo näo se etnbriaga; isso é proprio da gente fina; o plebeu emhebeda-se, e, empre-gando termos da gíria popular, torna a carraspana, o pifäo, o pilcque, fica grosso, colhe a trompa (gíria ga-lega), etc. Se num saläo aristocrático se ouvissem estes nomes, as senhoras corariam de indignacäo; se numa viela de Alfama, em Lisboa, alguém pronunciassc o vocábulo embriagar, era apupado e cscarnecido — caso verdadeiramente o entcndessem. O conselheiro Acácio, a famosa caricatura de Eca de Queiroz, conhecia bem o valor do eufemismo e em-pregava-o constantemente. Diz dele o escritor: «Nunca usava palavras triviais; näo dizia vomitar, fazia um gesto indicativo e empregava restituir.» Pode portanto dizer-se que há na linguagem uma dissimulacäo, uma espécie de hipocrisia — o reflexo de todas as atenuacóes, transigéncias e desigualdades que a vida social, como está conslituída, nos impöe. 6. AS SERIES SIN0N1MICAS. — Vejamos agora práticamente o problema da significacáo dos sinónimos, os seus matizes diferenciais. Para estudar os sinónimos temos os dicionários vulgares, que trazem, após a defi-nicáo, os vocábulos ou expressóes equivalentes; mas como as palavras adquirem no contexto as significacóes mais diversas, segue-se que a consulta dos dicionários correntes náo serve para o estudo dos sinónimos. O facto de esses dicionários náo trazerem o vocábulo inserido na frase ainda agrava a questáo, tornando a consulta perigosa para o principiante. Um exemplo: Procuremos no Pequeno Dicionário, de Cándido de Figueiredo, a rubrica deixar. Vemos que a palavra tem as seguintes significacóes: separar-se de; langar de si; largar; pór de lado; abandonar; permitir; cessar; resistir; adiar; ceder; omitir. Note-se, de pas-sagem, que resistir é erro tipográfico, em vez de desis-tir. Assim vcm na 1.* edicao do Novo Dicionário do mesmo autor. Os modernos revisores dos dois dicionários náo deram pelo erro, que assim se foi radicando e passando a oulros, estando contudo já corrigido na 10." edicáo. Reparando para o sentido daqueles diferentes termos, verifica-se que existem várias series de significacóes, digamos, várias series sinonímicas, isto é, grupos de palavras subordinadas a um sentido comum: 1. Deixar, separar-se de, largar; 2. Deixar, permitir; 3. Deixar, cessar, desistir; 4. Deixar, adiar; 5. Deixar, ceder; 6. Deixar, omitir. Isto č, verdadciramente a palavra deixar, tal como a encontramos nos pequenos dicionários, admite em si seis series sinonímicas, pelo menos. Se procurarmos num dicionário grande, admitirá muitas mais. Note-se que, se há series nltidamente diferencadas, como a l' e a 6.\ a 6.* e a 2.*, a 3." e a 2.*, já näo sucede o mesmo com a 1.* e a 5.*. Entre ceder e largar pode haver uma relacäo de significado, e entre desistir (3."), adiar (4.*) e largar (l.a) também näo será difícil achar uma ideia comum, se nos aplicarmos a isso. Por consequencia, os dicionários correntes näo säo um instrumento cómodo para a pesquisa dos sinónimos, porque baralham as series e näo enquadram o termo no seu contexto, onde alcanca a verdadeira significacäo. Para remediar esse mal fizeram-sc os dicionários de sinónimos. Aí aparece efectivamente a série, e dentro da série o sinonimista engenha-se em descobrir as dife-rencas de sentido. O dicionário de sinónimos mais celebrizado que temos é o velho Dicionário dos Sinónimos, Poético e de Epítetos da Lingua Portuguesa, dc Roqucte e Fon-seca. Tem tido muitas edicôes em Portugal e Brasil. É um instrumento antiquado, incompleto, que padece dos defeitos de toda essa espécie de tratados: a preo-cupacäo da etimologia e do uso clássico da lingua, sem se ter em conta o seu uso corrente, popular. É urna construcäo artificial, de reduzido valor, e que näo ó útil meter nas mäos de principiantes. Mal por mal, antes os dicionários comuns. Muito melhor do que ele temos agora o Dicionário de Sinónimos de Antenor Nascentes, que pode prestar bons servicos ao estudioso, quando manuseado com discernimento e sem espírito de rigor sistemático. 7. VALOR SENTIMENTAL E INTELECTUAL DAS PALAVRAS. — Em presenca das coisas, o nosso espírito reage da seguinte maneira: ou as percebe ou as sente. Quase sempře estas duas operacôes, a per-cepcäo (chamemos-lhe inteligencia) e o sentimento, an-dam liga Has, mas por via de regra em proporcóes dife-rentes. Piäticamente há objectos que despertam mais a nóšsa inteligencia, outros que chocam mais a nossa sensibilidade. Assim também as palavras: umas tém urna dominante afectiva, outras urna dominante intelectual. Vejamos um exemplo: 1. O lavrador deixou a casa e encaminhou-se para o trabalho. 2. Os filhos, cheios de fome, abandonaram a casa paterna. Ligados por uma ideia comum, «a scparacao», aque-les dois verbos deixar e abandonar nao tern o mesmo valor. No primeiro caso, a separacao fez-se normal-mente, sem sobressalto afectivo; tarefa de todos os dias, feita a frio, mal iria ao lavrador se, de cada vez que deixava a casa, se pusesse a chorar de saudade ou de magoa. No segundo caso, o verbo abandonar esta ja penetrado de sentimento, tern uma sobrecarga afectiva que nao tinha o outro: os filhos deixaram a casa paterna com desespero, com dor e raiva. Ha pessoas — os puristas da lingua — que se erguem ainda hoje contra o emprego do verbo abandonar, por ser um galicismo. E que o vocabulo nos veio do frances, mas ha sdculos que e" usado na lingua, e corresponde, como acabamos de ver, a uma necessidade de express5o. Deixar nao significa o mesmo que abandonar. E isto que os puristas nao veem. Logo, numa s6rie de sin6nimos ha palavras que exprimem sobretudo uma ideia, outras que exnrimem um sentimento. E tarefa delicada, por vezes. a discrimi-nacao destes dois elementos; nao raro, 6 at6 impossfvel fazer essa distincao; mas esse esforco e" indispensavel a quern queira escrever bem. Vamos dar normas e exemplos, que auxiliarao o interessado nesse trabalho. 8. O TERMO IDENTIFICADOR. — Vejamos estas frases: a) O lutador ergueu-se, belo como uma estatua. b) Eram duas raparigas, qual delas a mais for-mosa. c) Simples e linda, a noiva safa da igreja. d) Laura trazia um bonito vestido de seda azul. Temos aqui uma seYie sinonfmica, que poderfamos aumentar consideravelmente. Belo, formosa, linda, bonito sao palavras realmente unidas por um identico scntido. Aquela que reunir a ideia comum a todas as 34 35 outras, que púder substituir-se a todas elas sem grande prejuízo de significacäo, é chamada em Estilística o termo identificador. A esse termo fundamental, que traduz a ideia pura, condensada, se referem todos os outros. É pois da maior conveniéncia saber fixar sempře numa série o termo identificador, trabalho alias näo muito difícil, porque o termo identificador é, por via de regra, o termo geral, o mais abstracto. Näo é, efectivamente, muito custoso determinar nesta série uma ideia fundamental: — o conceito de beleza abränge todos os outros: fortnosura, lindeza e boniteza. Se quiséssemos, poderíamos substituir os adjectivos das alineas b), c), d) pelo termo identificador: o sentido näo sofria prejuízo de maior, embora ficasse mais desbotado, menos expressivo: b) Eram duas raparigas, qual delas a mais bela. c) Simples e bela, a noiva saía da igreja. d) Trazia um belo vestido de seda azul. Se quisermos fazer o mesmo com os outros exem-plos, vcmos que o sentido já näo fica täo bem; e tería-mos até um efeito cómico, se disséssemos: «O lutador ergueu-se, bonito como uma estatua.» Por consequén-cia, é defeito empregar uniformemente, em todos os casos, o termo mais geral; e maior defeito é ainda baralhar o emprego das palavras dentro da série sino-nímica. Os principiantes säo naturalmente inclinados a isso. Procuremos agora definir o difercnte significado dos elementos da série. Nem precisamos de recorrer aos dicionários para näo lancarmos confusäo no nosso espírito. No primeiro exemplo, belo sugere-nos a ideia de perfeicäo e de harmonia de formas, e também uma čerta confianca serena na propria forca. No scgundo exemplo, formosa evoca apenas a perfeicäo da forma física. No terceiro exemplo, linda já se carrega dum forte matiz sentimental; näo é só beleza física, é também mimo, ternura, delieadeza da alma. Enfim, bonito representa a ideia de beleza diminuída, descida ao piano das coisas familiäres. É também um termo afec- 36 tivo, mas mais de andar pov casa. Quanto ao uso dos vocábulos, notamos que belo é vagamente literário, embora represente a ideia geral; formosa é vocábulo que só se emprega em literatura; Undo pertence a lingua corrente, e bonito pröpriamente ä linguagem familiar, onde adquire, a par da ideia de beleza, um certo matiz de bondade. Exemplo: «Os meninos bonitos näo fazem coisas dessas.» 9. DIFERENCAS QUANTITATIVAS E QUALITA-TATIVAS. — Consideremos esta frase: «0 companheiro tornou-se enfadonho, aborrecido, odioso.» Aquela série de adjectivos está colocada scgundo uma ordern logica, a propria logica dos sentimentos: a aversäo foi-se desen-volvendo numa ordem crescente: primeiro, uma vaga antipatia, depois, um pronunciado desafecto, por fim, um ódio declarado. Claro que näo poderíamos inverter a ordem dos adjectivos, que tém valores quantitativos diferentes. Vejamos agora esta frase de Fr. Luis de Sousa: «Näo havia cm todo aquele grande povo senäo medo, desordem, terror e confusäo.» Há nela duas series sinonímicas, artisticamente entrelacadas: a) medo — terror; b) desordem — confusäo. Sc observarmos o efeito produzido pelos termos duma e doutra, notaremos que a impressäo vai crescendo de intensidade. Na verdade, terror é um vocábulo mais intensivo que medo, confusäo mais intensivo que desordem. Logo, quem sabe eserever näo mistura arbi-tráriamente os sinónimos. Suponhamos que invertería-mos naquela frase a ordem dos termos sinonímicos: «Näo havia em todo aquele grande povo senäo terror, confusäo, medo e desordem.» Incorreríamos na censura de näo saber eserever, pondo o termo intensivo antes do outro. O efeito estilístico perder-se-ia total-mente. Há casos ainda mais complicados, em que a dis-posicäo das palavras obedece a certas exigéncias expres-sivas do discurso seguinte. Veja-se este passo de D. Francisco Manuel de Melo: «Estar um cidadäo em 37 sua casa dormindo, regalado, seguro c quieto, em noite tempestuosa de Dezembro e, a troco de uma pequena migalha de prata e ouro, estar o miserável pescador lutando com a mořte duas marés inteiras para lhe trazer de madrugada o guloso besugo ou o pintado salmo-nete!» A ordern decrescent; dos adjcctivos justilica-se aqui pela antitese que se segue: 1.° — noite tempestuosa, miséria, desconforto; 2.° — luta contra a morte; 3.° — a azáfama, a canseira de pescar duas marés inteiras e de lhe trazer o peixe a casa. Vemos pois que a ordern dos vocábulos foi determinada apropriadamente pela ordern dos elementos seguintes que lhe säo opostos. Enfim, repare-se nesta fiase de Ferreira de Castro: «A vida só existia através do seu desespero, do siléncio e dos remorsos; dos remorsus, do siléncio e do desespero.» A repeti^äo dos mesmos elementos na ordern inversa procura dar, e dá realmente, um efeito expres-sivo; um círculo vicioso, uma repeticäo constante de coisas, em que a alma se sentia abafar. A linguagem popular conhecc o processo, como se vé daquele dito chistoso: «Ao almoco me däo peras, ao jantar peras me däo, ä merenda päo com peras, á ceia peras com päo.» O escritor náo fez mais do que transpor para termos dc arte um modo expressivo empregado pelo povo. Nem sempře, contudo, numa série de palavras de igual categoria, se trata de uma ordern ascendente ou descendente. Exemplo disso, o seguinte verso das Cartas Chilenas (IX, 352), a famosa satira luso-brasileira do século XVIII, da autoria de Tomas Antonio Gonzaga: «Resistent, gritam, jerem, matam, prendem.» Alude-se a soldados que näo obedeciam äs ordens dos juízes, dcsrespeitando e agredindo os oficiais de justina que os iam prender. Um editor, Luis Francisco da Veiga, entendeu alterar assim a ordern dos termos: «Resistem, gritam, ferem, prendem, matam.» Estaria assim regularizada, efectivamente, a ordem ascendente da série; mas o autor o que quis dizer foi isto, «matam ou prendem», náo se tratando pois, em toda a extensäo, de uma ordem ascendente. 38 É de notár que as diferencas quantitativas podem ter um carácter meramente intelectual, como uso — abuso, mar — oceano, ribeiro — rio. Näo intervém nes-tas series o sentimento. Mas já em surpreendido — espantado, docil — humilde, pensar — Cismar, etc., fä-cilmente vemos que o segundo vocábulo, o termo in ten-sivo, tem uma dose maior de sentimento. No geral, o que predomina nas series é a intensidade afectiva; e é isso que verdadeiramente importa para a Estilística. Isto, pelo que diz respeito aos caracteres quantitatives da expressáo. Há porém uma noeäo qualitativa que näo tem menor importáncia. É sabido que, quando nos referimos äs coisas, actos, ideias, Ihes damos um valor que eles em si näo tém, mas que referimos sempře a nós próprios. Por exemplo, väo trés amigos ao teatro ver uma peca. Ao sair, exclama um: — £ admirável! Diz o outro:— é escapatória. Acode o terceiro:—£ uma coisa insípida. O primeiro referiu-se ä peca de um modo «melhorativo», o terceiro de um modo «pejorativo». O segundo colocou-se em um mcio-termo, sofrivelmente neutral. £ assim o nosso poder de apreciacáo: tendemos para achar boas ou más as coisas, segundo nos causam prazer ou desgosto. E este facto necessáriamente há-de reflectir-se na linguagem. Suponhamos que Fulano vé o seu figadal inimigo, vestido a primor e montado num soberbo cavalo. Diz logo em tom de mofa para o vizi-nho:—Ali vai aquele pedante, escarranchado na sua pileca! Deu um sentido pejorativo ás suas representa-cöes (pedante em vez de bem vestido, escarranchado por montado, pileca em lugar de cavalo), levado pelo seu sentimento pessoal. A lingua está cheia destas expressöes, que encerram numa série sinonímica valores melhorativos ou pejo-rativos: leito — catre; lábio — beigo; religioso — beato; fino — manhoso; económico — avarento, etc. £ claro que as series podem conter mais palavras, e várias delas podem ter um sentido mais ou menos pejorativo. Exemplo: palácio — solar — vivenda — casa — pardieiro — casebre — choupana — tugúrio — barraco. A propósito justamente de casa, escreveu Eca uma página cheia de graca, por ocasiäo da visita que o Impe-rador do Brasil fez a Herculano, em 1872. Os jornais noticiaram o caso e, para acentuarem a honra prestada pelo soberano ao austero historiador, diminuíram a habitacäo děste a proporcöes ínfimas, empregando pejo-rativos literários, que tém aqui um efeito desnatural e cómico: «Sua Majestade Imperial visitou o Sr. Alexandre Herculano. O facto em si ó inieiramenle incontestável. Todos sobre ele estäo acordes, e a Histórla tranquila. No que porém as opinioes radical-mente divergem ó acerca do lugar em que se realizou a visita do Imperador brasileiro ao historiador portugués. 0 Diário de Noticias diz que o Imperador foi á mansšo do Sr. Herculano. O Diário Populär, ao contrario, afirma que o Imperador fol ao retiro do hörnern eminente que... O Sr. Silva Túlio, porém, declara que o Imperador foi ao tugůrio de Herculano: (ainda que linhas depols se contradiz, confessando que o Imperador esteve realmente na tebaida do ilustre historiador que-.). Uma correspondéncia para um jornal do Porto afianca que o Imperador foi ao aprisco do grande, etc. Outra vem todavia que sus-tenta que o Imperador foi ao abrigo desse que... Alguns jornais de Lisboa, por seu turno, ensinam que Sua Majestade fol ao alber-gue daquele que... Outros contudo sustentam que Sua Majestade fol a solidäo do eminente vulto que... E um ultimo mantem que o imperante foi ao exllio do venerando cidadáo que... Ora, no meio disto, uma coisa terrfvel se nos afigura: é que Sua Majestade se esqueceu de Ir simplesmente a casa do Sr Herculano!» (Uma Campanha Alegre, II, 87-88). 10. OS EFEITOS EVOCATIVOS. — Pelos exemplos apresentados atc aqui, já temos visto que as palavras sinónimas podem evocar certas formas de vida e acti-vidade, certos meios sociais. Por exemplo, alguém diz para um doente: — Entäo, vai melhor dos seus achá-ques? Aquela palavra näo é a usual, em casos seme-lhantes. Costumamos dizer padecimentos, doencas, so-jrimentos. A expressäo, desusada, produz em nós certo efeito. Lembramo-nos de que ouvimos o termo a pessoas velhas, que já o encontrámos em livros velhos. Trata-se pois de um vocábulo antiquado, usado na literatura. O seu emprcgo choca-nos, cvocando logo em nös um ambiente conservador e certa afectacäo literäria. fi a isto que se chama o «efeito por evocaeäo» das palavras. Esse efeito pode ser de natureza variada, como 6 de calcular. Vejamos estas quatro frases: a) 0 pobre hörnern morreu cheio de sofrimento. b) As dez horas o mariola estieava o pernil. c) O estadista expirou com o pensamento no seu pafs. d) Faleceu ontem o Sr. Antonio dos Santos Abreu. No primeiro exemplo, morreu e o termo usual e tambem o termo identificador, aquele que contem a ideia geral, menos expressiva, por assim dizer. No segundo exemplo, pasmamos do atrevimento da expressäo; sentimos imediatamente que esticar o pernil 6 um termo de giria popular, que evoca esferas inferiores da populaeäo. No tereeiro exemplo, expirar aparece-nos como um vocäbulo literärio, so usado nos livros. Enfim, no ultimo exemplo, faleceu da-nos a impressäo de um meio buroeratico, jornalistico. A palavra, que tem ca-räcter eufemlstico, 6 empregada em estilo correcto, cerimonioso e levemente afectado. Uma das coisas que melhor denunciam o aprendiz de estilo e o desconheeimento desta lei importante, que consiste em empregar as palavras que condigam com o ambiente psicolögico ou social. Suponhamos esta fräse: «Eurico, nas solidöes do Calpe, näo esquecia a mulher de quem gostara um dia.» Aquele gostar intro-duz no discurso uma nota quase cömica, porque, sendo um termo familiar, de andar por casa, näo se pode aplicar ä paixäo devoradora dum romäntico tal como Eurico. Se as palavras evocam o meio social, claro estä que näo poderemos por na boca dum campönio que conta um acidente, uma expressäo como esta: «Quando o pedregulho caiu, fiquei um momento perturbatio.» 40 41 O que elc ccrtamente diria era azoinado, aparvalhado, etc., palavras que correspondem aos seus hábitos lin-guisticos. Note-se ainda que há também tendencia de quem fala para se aproximar do entendimento daquele que ouve. Um cavador foi agradecer ao médico um acto de generosidade. O doutor näo lhe diz, se souber falar: — Penhorou-me a sua amabilidade; repito, porém, nada tem que me agradecer. Isso diria a um seu igual, em estilo epistolar, literário. Ao pobre hörnern, para que ele compreendesse bem, diria mais ou menos isto: — Ú hörnern, muito obrigado pcla sua atencäo, mas nada tem que me agradecer, valha-o Deus! 11. OS DICIONÁRIOS ANALÖGICOS. —Acabámos de ver palavras que apresentam vários aspectos de uma mesma ideia; mas é natural que cada um dos elementos de uma série sinonímica sugira por seu turno outras palavras, com que tem ou pode ter certas afinidades. Entra em jogo a chamada associaeäo de ideias, que desempenha um papel importante no mecanismo do nosso espirito e, portanto, na teenica de expressäo. Os vocábulos bélo, amor, frio, morrer, säo coneeitos abstractos, que se identificam e esclarecem no nosso espirito por meio da noeäo contraria: feio, ódio, calor, viver. Estas palavras, que designam o contrario ou a face oposta das coisas ou ideias, chamam-se antónimas. Estäo implicitas nos termos abstractos, como que fazem parte da sua definicäo. O povo diz com graca e com uma certa verdade: — Que vem a ser bonito? — É aquilo que näo é feio. Fugindo da complicaeäo das definicöes, sempre delicadas, define um termo pelo seu contrario. E procede com certa razäo: a maneira mais prática de definirmos o belo e o feio é pô-los a par um do outro. De modo que o princípio da analógia leva a consi-derar numa palavra em primeiro lugar o seu contrario; depois, todos os termos que se lhe ligám por associaeäo de ideias. Para näo sairmos da nocäo de belo, fixemos desde já o antónimo feio e vejamos os vocábulos e locucôes mais correntes que se ligám aos dois termos: 42 BELO ExpressOes substantives: be leza, formosura, grapa, encanto atractivo, lindeza, boniteza, ama bllldade, elegancia, boa aparěn cla, boa parecenpa, perfeipäo majestade, Adónis, Narciso, nar cisismo, Vénus, Helena, garri dice, loucanla, querubim, gen-tileza, donalre, etc. Expressôes verbais: ser belo, brllhar, luzir, resplandecer, aformosear, florescer, embele-zar, allndar, enfeitar, adornar, ornar, parecer bem, transfor-mar-se de fela lagarta em lln-da borboleta, estar que nem um palmito, estar mesmo um amor, — um primor, etc. Expressôes adjectivas: belo, Undo, bonito, gentll, garrldo, especloso, loucäo, vistoso, bem proporcionado, formoso, perfei-to, airoso, catita, donoso, lus-troso, guapo, divino, bizarro, ancantador, gracioso, atraente, jlegante, chique, bem-parecido, majesioso, estético, garboso, donalroso, belo como um querubim, galhardo, venusto, di-vinal, Undo como os amores, etc. FEIO Expressoes substantivas: teal-dade, monstruosidade, enormi-dade, detormidade, despropor-cao, ma aparencia, ma cata-dura, sujidade, imundicie, Po-lifemo, Vulcano, Sileno, Quasimodo, diabo, bruxa, chimpanze, bode, sapo, osga, mostrengo, bicho, urso, macaco, estafermo, aleijao, etc. Expressoes verbais: ser feio, ter ma aparencia, — ma catadlira, fazer caretas, ter a pele engelhada, ser urn aleijao, ser estropiado. deformar, aleijar, es-tropiar, sujar, lambuzar, borrar, besuntar, deturpar, sarapintar, enfarruscar, ser feio como urn bode, — como o diabo, etc. Expressdes adiectivas: feio, sem beleza, desengracado, he-diondo, feio de meter medo, caricatural, horrendo, asquero-so, nojento, repulsivo, repug-nante, mal-parecido, horrivel, horroroso, h6rrido, horripilante, monstruoso. informe, disforme, grotesco, desproporcionado, im-perfelto, desgracioso, desele-gante, tosco, fruste, desairoso, desajeitado, gebo, desfigura-do. etc. Se fizcrmos isto para todas as coisas e ideias fundamentals que possam arrastar outras ideias e por consequéncia outras formas de expressäo, teremos feito um «dicionario analogico», ou «ideologico». Säo de grande benefício para o eseritor, que por vezeš procura a expressäo mais adequada a certas ideias. Té-la-á ä sua disposicäo nesses repertórios, quando bem elabo-rados. Só em 1936, apareceu um dicionário desses para a nossa lingua, com certo desenvolvimento. É o Dicionário Analógico da Lingua Portuguesa, do P." Carlos Spitzer 43 (Porto Alegre, Livraria do Globo). Adopta uma siste-matizacäo muito discutível e embaracosa para o cstu-dioso e inclui, sem discriminacäo, os idiotismos Portugueses e brasileiros, o que pode levar a certas confusöes. Mais claro, embora menos completo, é o Vocabulário Analógico saído um pouco antes, da autoria do lexicó-logo brasileiro Firmino Costa, o qual dá por vezeš a abonacáo literária das expressöes. Ültimamente, em 1950, foi publicado, também no Brasil, o Dicionário Analógico, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Padece dos mesmos defeitos, mas é talvez mais pru-dente e criterioso na escolha de termos de idéntico significado. As duas colunas sobre belo e feio foram em grande parte aproveitadas de Spitzer; mas näo incluimos alguns termos nele contidos, por abusarem um pouco do con-ceito da analogia: careca, calvo, bexigoso, vermelhaco, cabelo de fogo, desaire, etc. É evidente que, a propósito de feio, se podem suscitar representacöes de bexigoso, calvo, etc.: mas säo evocacöes menos naturais, menos directas. Estas palavras teriam melhor cabimento sob as rubricas doenqa e cabelo. Com efeito, é aí que andam, nos bons dicionários analógicos. III. O vocabulário portugués (III) 1. HISTORIA E FISIONOMIA DO VOCABULÁRIO PORTUGUÉS. —A grande maioria, poderemos dizer a quase totalidade das palavras usuais portuguesas, pro-vém do latim; náo daquele latim polido, empregado pelos eseritores da Roma imperial, mas da lingua ple-beia das tabernas e alfurjas, falada por soldados, por colonos e pequenos mercadores. Foram estes elementos da populacáo romana que introduziram a sua lingua na Peninsula Hispánica, nos momentos da invasáo e da conquista. Era a lingua dos vencedores: ficou sendo pouco a pouco a lingua dos vencidos, porque trazia consigo o prestígio de uma grande civilizacáo. A lingua portuguesa, como afinal as outras línguas aparentadas, tem portanto, como se vé, uma origem bem humilde, caracteristicamente popular. Náo nasceu em berco doirado. Esse latim popular, que, mais tarde, por transforma-coes de vária ordem, deu o portugués, era, como toda a linguagem plebeia, um instrumento de comunicacáo social, tosco, abreviado e sobretudo conereto. Usava um vocabulário em muitos pontos distinto do latim literá-rio. Por exemplo, para designar «boca», dizia bucca e nao ore; para «cavaIo» dizia caballu e náo équu; para «casa» dizia casa e nao domu; para «grande» dizia grande e nao magnu. Estamos vendo a importáncia děste facto: a escolha feita pelo latim vulgar ainda hoje vale para a lingua comum. Efectivamente, em linguagem despretensiosa 44 45 Os restantes vocábulos podem dividir-se nos seguin-tes grupos: 1. Palavras conhccidas, mas de emprego menos frequente: atenuagäo, atenuadamente, atenuador, ate-nuar-se, atenuativo, atenuável, atěqui (até aqui, — expressäo apenas oral); 2. Palavras pouco conhecidas ou antiquadas: ate-riciado, atericiar, atericiar-se, atermado, atermar, ater-marse; 3. Palavras desconhecidas com carácter regional: atequipera, aterlondrar; 4. Palavras tccnicas, geralmente desconhecidas: aterandra, aterantera, atereba, ateríceros, aterina, ate-rinídeos, atérix, atermal, atermancia, atermaneidade, atérmano, atůrmico, aterolépsis, ateroma, ateromasia, ateromatoso, ateropogäo, aterosperma, aterospérmeas. Feito este cxame de consciéncia lexical, reconhe-cemos a nossa ignorancia em matéria de vocabulário; mas em breve nos consolamos, se repararmos nisto: os termos cujo sentido nos escapa säo os que tém carácter técnico muito especial (terminológia da botánica, da zoológia e da medicína), os de natureza regional, e enfim os vocábulos antiquados, de circulacäo restrita. Ao leitor sucederá o mesmo que sucedeu a nós. Näo se desespere com a sua ignorancia das «palavras difí-ceis». Por via de regra, säo absolutamente inúteis para o estilo, que deve evitar sempře o palavräo tčcnico, arre-vesado e inexpressive O manejo acertado do vocabulário usual é que verdadeiramente importa. A esse, sim, deverá dedicar a mais eserupulosa atencäo. 74 I I V. Fraseologia. 0 cliche. i 1. OS GRUPOS FRASEOLÖGICOS. — No capf-tulo I, a propösito do significado das palavras, vimos os värios sentidos em que se emprega o termo cabega. Contudo, em certos casos, nota-se claramente que esse vocäbulo sö adquire o seu verdadeiro significado quando em ligaeäo com outros elementos do contexto. Por exemplo, nesta fräse — «O hörnern perdeu por completo a cabega» — e" impossivel separar o elemento cabega do artigo e do verbo: per der a cabega forma um todo, uma estrutura, que näo se pode decompor nas suas partes. Se nos dessemos a esse trabalho de anälise minuciosa, chegarfamos a um absurdo: com efeito, nos podemos perder um lenco, um documento, mas näo podemos perder, com vida, a cabeca, a parte superior do corpo. Sö em sentido figurado o poderemos admitir. No outro exemplo, referido no mesmo capitulo, temos: «Deu-lhe agora na cabega fazer versos.» O sentido näo estä sö concentrado em cabega. O vocäbulo, por si sö, pouco ou nada representa. O que vale verdadeiramente 6 o conjunto, a locueäo dar na cabega a algu&m, para designar um capricho subito, momentäneo. Sem sairmos desta palavra, vejamos ainda outro exemplo: «O Francisco 6 um cabega no ar.» 0 espirito apreende logo o grupo cabega no ar como formando uma unidade de pensamento, equiva-lente a «estouvado», «tonto», «leviano». Quando pro-nunciamos ou ouvimos essa locueäo, näo tomamos ä letra esse modo de dizer, vendo uma cabeca andando 75 pelos ares. Todos os elementos do grupo concorrem para nos darem uma ideia única; as partes compo-nentes sacrificam o seu significado individual em bene-ficio do conjunto. Tanto assim é, que a propria locucäo é considerada um nome masculino: a palavra cabega até perde, ou pode perder, a favor do grupo, o seu género feminino. Temos pois, nos exemplos referidos, a confirmacäo dum facto já várias vezeš apontado: as palavras näo levam vida isolada, dependem mais ou menos umas das outras. E assim como nas nacóes os indivíduos perdem um tanto da sua personalidade em prol do bem comum, também na linguagem os vocábulos perdem a sua fisio-nomia, quando aparecem integrados numa locucäo. O nosso pensamento näo se faz tanto por palavras como por frases; e como o homem tende a economizar o seu esforco, achá van tágem em que as palavras lhe ocorram por grupos, para as suas necessidades de expressäo. E mais vantagem ainda, quando esses grupos já vém formados desde o passado da lingua, em frases feitas. Chamamos portanto grupos fraseológicos, idiotis-mos, frases feitas ou locugôes estereotipadas a esses con juntos de palavras, em que os elementos andam mais ou menos intimamente ligados, para exprimirem determinada ideia. A designasäo de grupo fraseológico é mais geral, a que melhor convém; as duas últimas já presumem certo grau de cristalizacáo, que nem todos os grupos possuem, como veremos. 2. SERIES E UNIDADES FRASEOLOGICAS. — A ligacáo entre os elementos do grupo pode ser mais ou menos íntima. Há grupos que se formám de momento, e logo após näo deixam vcstígios; outros que resistem um pouco mais; outros, enfim, que formám um todo compacto, inalterável. Vamos ver exemplos que demonstram os vários graus de cocsáo entre as partes do grupo: 1. O José tem um cavalo. 2. O Joáo tem automóvel. 3. Esse homem tem fortuna. 4. Tem cuidado, náo vás lá! 5. Ninguém tem nada com isso. 6. Foi ter com ele á festa. No primeiro exemplo, o verbo ter, com o sentido normal de «possuir», conserva independéncia em relacäo a cavalo. No segundo exemplo, essa autonomia já foi afec-tada um pouco. A falta de artigo contribui sem dúvida para ligar mais o verbo ao substantivo; ter automóvel tende em nosso espírito para formar čerta unidade de pensamento, porque ao facto simples da posse anda ligada uma ideia acessória de suficiéncia, de abastanca. No terceiro exemplo, o verbo ter fortuna já náo nos causa embaraco: é evidentemente uma locucäo fra-seológica, imposta pelo uso vivo da lingua, que corres-ponde no nosso espírito a «ser rico». Contudo, repa-rando bem, ainda os dois elementos, ter e fortuna, näo perderam por completo a sua independéncia. Ter ainda conserva o significado proprio de «possuir». No quarto exemplo já se näo dá o mesmo: os dois vocábulos estäo mais estreitamente soldados; e se cuidado guarda ainda um pouco da sua significaeäo, o verbo ter já variou de sentido. Tanto assim, que por vezeš se substitui por «tomar»: torna cuidado. No quinto exemplo, a locucäo — näo tem nada com isso — é extremamente confusa, se nos dermos ä pachorra de analisar um por um os seus elementos. Parece faltar ali qualquer coisa. Efectivamente, o grupo deverá ser uma condensacáo dum outro mais explícito: näo tem nada que ver com isso. Agora está mais claro; mas, ainda assim, o idiotismo só atinge a perfeita significaeäo, considerado no seu conjunto; os elementos de que se compöe por si só pouco nos dizem. Enfim, no sexto exemplo alcanca-se o cúmulo da extravagáncia e do absurdo: ir ter com significa «diri-gir-se a um lugar, com tencäo de se reunir a outra pessoa». O milagre da lingua consegue exprimir sintě-«camente, por trés palavrinhas, esta ideia complicada. c o mais extraordinário é que o realiza perfeitamente, 77 é através duma ligacäo quase inacreditável, como é a daqueles 11 ôs vocábulos. Os grupos em quc a coesäo dos termos é apenas relativa chamam-se, em Estilística, séries fraseológicas. Estäo neste caso os n.0' 2 e 3 dos exemplos acima refe-ridos. Aqueles em que essa coesäo é absoluta säo conhccidos por unidades fraseológicas. Entram nessa categoria os n.°* 4, 5 e 6. Convém todavia observar que os limites entre urna e outra categoria nem sempře se definem com perfeita nitidez. O examc das locucôes estereotipadas conduz-nos portanto a esta conclusäo, que näo deixa de ser curiosa: näo há dúvida que o hörnern diz, quando fala e quando escreve, coisas perfeitamentc absurdas. O que lhe vale é näo atender äs palavras isoladas, mas ä estrutura, ä locucäo fraseológica. E a sua desculpa está em que näo foi ele quem inventou esses modos de dizer: encon-trou-os fcitos, para designar ideias ccrtas e comuns, e utiliza-os, porque lhe poupam muito trabalho. A vida é assim constituída: pela hcranca passiva e cómoda do passado e pela criacäo activa e por vezes revolta do presente. Estas duas forcas presidem a todo o trabalho da linguagem, como temos visto e veremos ainda neste capítulo. 3. VEST1GIOS ARCAICOS NOS GRUPOS FRA-SEOLÖGICOS. — Sc as locucôes estereotipadas säo uma heranca do passado, necessäriamente haveräo de conter arcaísmos, quer de vocabulário, quer de cons-trucäo. Suponhamos este grupo — estar de viseira caída. Percebemos muito bem o sentido geral da frase: «estar com ar carrancudo, zangado». Esse termo transpor-ta-nos ä Idade Média, ä época em que os cavaleiros se vestiam de ferro e cobriam o rosto com a viseira. Quando a viseira estava caída, era sinal de que o guer-reiro, näo decerto sorridente, se aprontava para a luta. Aqui está, em miúdos, explicado o sentido da locucäo. Mas quem fala ou escreve näo precisa de ir ä história para apreender-lhe o significado. Esse significado, afec-tando todos os elcmentos do grupo, apresenta-se ainda ao espírito dum modo bem preciso. É possível porém que o idiotismo, pelo seu carácter arcaico, näo dure muito tempo. Hoje já uns lhe preferem «estar de car-ranca», «estar trombudo», quc säo mais populäres e menos literários. Outro exemplo: fazer alarde de alguma coisa. Todos sabemos que a fräse significa «exibir, ostentar com afectacäo e vaidade». Mas aquele vocábulo alarde é-nos um pouco estranho, embora o encontremos no verbo derivado alardear. O dicionário diz-nos que alardo (é esta a forma primitiva da palavra) era a revista anual que se fazia ás tropas, para verificar do seu numero, do estado dos homens e das armas que tra-ziam. Nessa paráda, que conduz também á Idade Média, o peäo e o cavaleiro exibiam com orgulho as suas armas e as suas pessoas. Se o leitor, curioso de se instruir, quiser formar a ideia de um alardo medieval, näo tem mais que ler a soberba página li terária eserita por Fernäo Lopes sobre o alardo da Valarica, em tempo de D. Joäo I ('). Nos dois exemplos que apresentámos. ainda, com boa vontade, se poderia considerar o vocábulo arcaico como susceptível de se libertär do contexto. Na verdade, o historiador ou o romancista historko podem perfei-tamente eserever: «0 cavaleiro, pondo a viseira, prepa-rava-se para a refrega.» Já um pouco mais difícil será alguém eserever: «0 excessivo alarde de imaginárias prendas desagradou ao pai do noivo.» É que o vocábulo alarde, irresisťivelmente, cháma a si o verbo fazer, com que está intimamente soldado. Dificilmente poderá andar ä solta. Essa impossibilidade de libertaeäo aparece, por exemplo, no grupo fraseológico, nltidamente arcaizante, ä guisa de, já nosso conhecido, ou na locucäo desta guisa, ainda usada, por exemplo, em Euclides da Cunha. Aqui, todos os elementos säo de tal forma solidários, que näo podem separar-se. No tempo de D. Joäo I ainda se podia eserever: «de muitas guisas se diz esta sen- ♦n« yi ,Nos ^uadr°s da Crónica de D. Joäo I. Colecpáo de «Tex-'os Literarios», Ed. Seara Nova. 78 79 ♦ tenca». Guisa é um velho substantivo portugués, de origem germanica, que significava «maneira, modo». Se fösscmos a dizer ou a escrever hoje qualquer coisa como isto — «Näo gosto das guisas de Fulano» — era uma gargalhada geral, e o pobre que tal dissesse ou escrevesse arriscava-se a ser internado numa casa de ,saúde. Convém alias frisar que a locucäo ä guisa de — «ä maneira de», já é de uso muito restrito, pura-mente litcrário e muito afectado. Por isso, se usa muitas vezes com fins humoristicos. Em outros casos essa impossibilidade de separacäo ainda é mais evidente, porque a palavra que forma o núcleo do grupo é de origem incerta e significado obscuro. Tomcmos por exemplo esta locucäo, ainda hoje muito populär: andar numa fona. Tem, como se sabe, a significacäo de «andar numa roda-viva, sem descansar, ä lufa-lufa». Que significa aquele elemento fona? Segundo os dicionários, fona é a faúlha que se desprende do lume e volita no ar, já apagada e em forma de cinza. O termo parece ter origem germanica; teria vindo do gótico fon = lume. O certo é que, salvo nalgum recanto provinciano, ninguém hoje o emprega, a näo ser inserido naquele grupo fraseológico. Aquilino Ribeiro porém chamou-o de novo ä vida, desenterran-do-o do léxico beiräo: «Optaram pela cacoila, rcsguar-dada das fonas pelo testo» (Volfrámio, pág. 197). Outras locucóes sinónimas de andar numa fona também conservam arcaísmos: andar num virote e andar num badanal. Virote era a pequena seta que des-pediam os besteiros, na Tdade Média. Se supuséssemos que uma pessoa pudesse andar äs cavalitas num desses instrumentos de atirar, fácilmente imaginamos que an-dasse bem ligeira. Assim se explicará talvcz a locucäo. O termo badanal, existente na outra, näo tem significado claro; hoje ninguém o emprega isoladamente. Supóe-se que seja termo hebraico, usado nos Salmos bíblicos. Como também badaná designa tira pendente da roupa sacudida pelo vento, dessa imagem de con-fusäo movimentada poderia ter resultado a cxpressäo. É uma hipótese; ao certo ninguém sabe o que seja. O mesmo fenómeno de arcaísmo, impenetrável, ou quase, se dá com outras locucóes: de cor, a toda a brida, a trouxe-mouxe, nem chus nem bus, de bom grado, ä toa, de lés a lés, á puridade, dar azo a, ter o mau sestro de, ao léu, etc. Näo compreendemos o vocábulo isolado, nem é preciso: bašta que compreenda-mos o sentido global da locucäo. Só esse tem impor-táncia. A demasiada insisténcia etimológica, como vi-mos, pode levar-nos a despropósitos. O passado da lingua só tem valor, quando vivo ainda e aplicado ao pre-sente. Na verdade, de que serviria ao aprendiz de re-daccäo vir algitém dizer-lhe que o vocábulo cor, é um velho galicismo e significa coracáo, conhecimento, cons-ciéncia? Poderia ser para ele até um motivo de emba-raco. porque a locucäo näo tem hoje valor sentimental e refere-se simplesmente a uma operacäo de memoria. A näo ser que lhe apontássemos para o verbo recordar, que ainda está ligado, pela forma e por um dos signifi-cados, a esse arcaísmo venerável. 4. SÉRTES VERBAIS. — Dos exemplos citados temos visto que o verbo desempenha papel importante na formacáo das locucóes. A maior parte das vezes um verbo simples pode substituir-se por um grupo fraseológico, portador do mesmo significado: «decidir» = tomar a decisáo de; «venccr» = álcancar vitória sóbre; «acreditar» = dar crédito a; «combater» = dar com-bate a, etc. 0 verbo dar presta-se sobretudo a isso, como já notou com finura Caldas Aulete no seu Dicio-nário, o mais completo para o estudo fraseolóeico da lingua. Nestas perifrases ainda aparece a palavra derivada ou primitiva, isto é, ainda se ioga, no fundo, com a mesma familia vocabular: decidir — decisáo; veneer — vitória; acreditar — crédito; combater — combate; mas o verbo dar empreea-se ainda com outros nomes, formando uma série perifrásica: dar pontos = = coser; dar esperancas — prometer; dar indlcios = revelar; dar ás pernas = correr, etc. Como vemos, esta constituicáo de formas nerifrá-sicas tem um duplo valor: permite variar o estilo, evi-tando repeticóes, e adoca ainda a crueza de certos 80 81 verbos simples. A perífrase vale como uma espécie de eufemismo: näo há dúvida de que tomar a resoluqäo é menos brusco, menos violento do que resolver; dar crédito atenua um pouco a ideia de aereditar. A pessoa fina, de boa sociedade, näo diz com rudeza: O senhor mente! — mas emprega urna série verbal eufemística: O senhor falta á verdade! A delieadeza leva muitos a dizerem deitar fora a comida, em vez do mais franco e brutal vomitar. As series verbais säo ainda euriosas por outro aspecto: bašta urna ligeira alteracäo na série, a pre-senca ou auséncia duma preposicäo, dum artigo, a troca dum dos elementos, para o sentido mudar äs vezes por completo. Vejamos estas series: deitar á terra e deitar por terra, metidas numa frase: 1. O lavrador deitou á terra a semeňte. 2. O lutador deitou por terra o adversário. 0 sentido, como se vé, é totalmente diferente, e baštou para isso a simples troca da preposicäo. Suponhamos agora estas duas series: dar motivo e dar por motivo. O aerescentamento da preposicäo dá ä série um signifieado bem diverso, como se vé destes dois exemplos: 1. Isso deu motivo a que ele o pusesse fora de casa. 2. Faltou, dando por motivo a sua pouca saúde. No primeiro exemplo há urna relacäo dc conse-quencia («dar motivo» = ter como consequéncia), no segundo urna relacäo de causa («dar por motivo» = dar como causa). .. . Ainda um tereeiro. exemplo, que mostra como a presenca do artigo dá menos coesäo ä série: . . 1. Vé se dás o lugar a teu irmäo. 2. O caso deu lugar a que desconfiassem dele. No primeiro exemplo, a relacäo entre os trés elementos da série é bastante frouxa, quase conservam a I sua independencia. No segundo, o desaparecimento do artigo trouxe como resultado uma perfeita coesäo do grupo. É uma verdadeira unidade fraseológica. 5. OS DICIONARIOS E A FRASEOLOGIA. — É precisamente neste capítulo da fraseologia, muito importante, que os dicionários correntes deixam mais a desejar. O mais celebrado de entre eles e o mais moderno dos grandes dicionários, o de Cándido de Figueiredo, é muito pobre em grupos fraseológicos, o que constitui grave defeito, porque é nessas locu?ôes que se imprimc o chamado génio da lingua. Como repository de fraseologia, interpretada com acerto e inteligencia, nada há que possa substituir entre nos o Dicionário Contemporáneo de Caldas Aulete. Há tam-bém, do lado brasileiro, o Tcsouro da Fraseologia Brasileira de Antenor Nascentes, que pode prestar ser-vicos, embora näo seja completo. Comprecndc-se, até certo ponto, a razáo por que os dicionaristas evitam os grupos fraseológicos: é de-vido ä extrema dificuldade da sua arrumacäo e até ás vezes da sua determinacäo. Em que rubrica, por exemplo, se deve meter a locucäo vir a talho de foice? Em teória, poderíamos pô-la em qualquer das trés — vir, talho, foice, pois o sentido por todas se espalha, atingindo até as pequeninas preposicôes. Nas locucôes arcaizantes a dificuldade ainda é maior. Assim, Can-dido de Figueiredo, no Pequeno Dicionário, regista cor e, sem mais explicacôes, manda ver dc cor. Ora, seria talvez mais rigoroso interpretar a locucäo na rubrica cor; por outro lado isso näo deixava de ser estranho, porque o termo cor há muitos séculos que desaparcccu do uso da lingua e só se conservou na-quele idiotismo. É portanto nos dicionários analógicos onde os grupos encontram melhor guarida. Aí näo se olha ä forma, mas sim ao sentido. Nos dicionários analógicos já citados por nós há grande abundáncia deles, mas a mistura indiseriminada de idiotismos Portugueses e brasileiros pode tornar difícil, como já dis-semos, esse instrumento de consulta. 82 83 6. SERIES USUAIS DE INTENSIDADE. — Há urna outra categoria dc grupos fraseológicos, que tern muita importäncia para o estilo: säo os grupos usuais ou series usuais de intensidade. Suponhamos que al-guém está muito doente. A nossa tendencia é para di-zermos invariävelmente: «Fulano tem uma grave doen-ca», ou entäo: «Fulano está gravemente doente.» Os dois elemcntos doenca-grave mantém a sua autonómia, mas, por forca do hábito, andam aqui ligados, para nos darem determinada representagäo. Alguém chorá descsperadamente, diante de nós. Queremos qualificar a intensidade desse choro. Vem--nos logo ä ideia um casal de palavras: choro convul-sivo. Esses dois termos andavam associados no nosso espírito e acudiram prontamente ä chamada. Para a ideia contrária, dá-se o mcsmo: «Fulano ria äs garga-lhadas.» A frase está prontinha desde o tempo dos nossos avós, é expressiva, é cómoda, näo temos mais que aplicá-la. Suponhamos agora que, numa roda de tagarelas, surge inopinadamente um facto que obriga a calar toda a gente. Näo se ouve o zumbido duma mosca, como é costume dizer. Se quisermos qualificar aquelc silôncio, em linguagem fortemente literária, podcmos escrever isto: «Fez-se na sala súbitamente um siléncio sepul-cral.» Também poderíamos dizer silôncio prof undo; mas aquele sepúlcral dá uma nota mais intensiva, por-que evoca o siléncio medonho dos cemitérios. O que se dá com o substantivo e o adiectivo, dá-se naruralmente com o adjectivo, com o verbo c o advér-bio. Vejamos, por exemplo, esta série usual, que serve para as trés categorias: 1. Sentiu com a notícia um abalo prof undo. 2. Ficou profundamente abalado com esta notícia. 3. A triste notícia ahalou-o profundamente. Repare-se bcm agora para estes grupos usuais: uns säo mais naturais do que outros. Quem tiver um pouco de experiéncia e de gosto, logo distinguirá entre estas duas locucôes: grave doenga c siléncio sepulcral. A pri- mcira série é corrente, impóe-se invariávelmente ao nosso uso; a segunda tem carácter literário, cheira a romantismo fúnebre, é exagerada, pretensiosa. Poderíamos substituí-la por outras locucoes, menos pomposas e triviais. Por exemplo: a) Fez-se na sala súbitamente um grande siléncio. b) Fez-se na sala súbitamente um siléncio religiose c) Fez-se na sala súbitamente um siléncio cons-trangido. d) De repente, tudo na sala ficou no mais abso-luto siléncio. A frasc é susceptível de muitas outras variacoes, se quisermos evitar o emprego dessas series, pretensio-samente literárias, safadas pelo muito uso, a que se dá o nome de cliches, chapas, chavoes. Para fugir precisamente á trivialidade do cliché, já Eca tinha eserito: «Houve um siléncio cóncavo, hostil» (A Capital, pág. 215); Rodrigues Miguéis descobriu o adjectivo cavernoso: «Fcz-sc na sala um siléncio caver-noso»; Aquilino Ribeiro usa «siléncio de chumbo», «si-léncio atrido», siléncio absoluto e infesto»; e um grande eseritor brasileiro, Graciliano Ramos, consegue belo efeito com um adjectivo banal, grande, posposto ao subs, tantivo: «E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arras-tada, num siléncio grande* (Vidas Secas, 2." ed., pág. 9). Também usou, no mesmo romance, o adjectivo compri-do, mas com menor poder de sugestáo: «No siléncio comprido só se ouvia um rumor dc asas.» José Lins do Rego, num trecho dc paisagem natal, experimenta o adjectivo bom, produto afectivo da saudade: «As cabrei-ras amarelas, e o bom siléncio da estráda, quebrado de quando em vez pela enxada do pobre tinindo em alcuma pedra escondida no rošádo» (Doidinho, 6.3 ed., pág. 156). Enfim, o jovem eseritor galego Méndez Ferrin descobre os adjectivos solido e duro para a qualificacáo intensiva do substantivo: «Un siléncio solido e duro ergueuse como unha muralla (O Crepúsculo e as Formigas, Pág. 67). 84 7. O «DICIONARIO POETICO» DE CÄNDIDO LUSITANO. —No tempo da renovacäo arcádica, em 17ö5, toi publicada em Lisboa uma obra em dois volumes, com o seguinte titulo: «Dicionaiio poético para uso dos que prmcipiam a exercitar-se na poesia portu-guesa. ÜDra igualmente úlil ao orador principiante». U seu autor era Francisco José Freire, alcunhado poéti-camente de Cändido Lusitano. Foi hörnern de solidos conhecimentos linguísticos, e dcixou-nos umas Refle-xöes sobre a Lingua Portuguesa, que ainda hoje se leem com algum proveito. Por esse tempo, em que os poetas mendigavam com sonetos as migalnas que caiam das mesas dos fidalgos e dos conventos abastados, julgava-se que a lingua era uma construcäo mais ou menos rixada pelo bom uso. Para se escrever bem, nada mais era necessário que seguir ä risca o exemplo dos antigos, escolhendo no espólio das ŕormas herdadas o que mais conviesse a cada urn. Logo, um repositório que coleccionasse esses dizeres clássicos séria bem-vindo e faria, se näo poetas de génio, ao menos escritores correctos. O Dicionário de Cändido Lusitano pretendeu alcancar esse fim. É um vocabulärio de sinónimos e de series usuais. Säo estas as que mais interessam ao nosso caso. Vcjamos um exemplo. Sob o nome siléncio, o autor dá os seguintes adjectivos, que andam ou podem andar ligados a esse substantivo: Alto, profundo, longo, secreto, fiel, fido, amigo, mudo, táclto, taciturno, nocturno, soporifero, plácido, tranquilo, sabio, judlcioso, cauto, acautelado, prudente, honesto, modesto, reverente, respeitoso, oportuno, disereto, ignorante, ignaro, estulto, estólido, tatuo, nôscio, insano, intempestlvo, indisereto, obediente, pacienta. Vé-se logo o carácter convencional da série. Tirante alto, profundo, longo, nocturno, plácido e mais um ou outro, aqueles adjectivos estäo ali um pouco foreados. Näo constituem, em ligaeäo com o substantivo, grupos usuais prôpriamente ditos. O autor propunha-os, para aliviar em tudo a tarefa do aprendiz das musas. O que mais nos impressiona hojc, ao lermos esse Dicionário, é a alteracäo que se fez, de entäo para 86 cá, na escolha das series usuais. As palavras também seguem a moda e também passam com ela. Na lista de Cändido Lusilano näo vem o adjectivo sepulcral. Ainda näo estava em uso, só veio depois com o Romantismo, que teve certa inclinaeäo para o macabro. Também achamos de menos nela certos adjectivos empregados pelos escritores modernos, como augusto, religioso, absoluto, fino. Em compensaeäo, Eca de Queiroz apro-veitou o adjectivo ulto, registado ao comeco da lista, tirando dele belo efeito, por já näo estar em uso: «A noite fazia um siléncio alto, duma melancolia palida» (O Primo Basilio). Em batalha näo vem encarnigada, em base näo vem essencial, fundamental, em entusiasmo näo se mencionam os adjectivos que formám hoje a série: delirante, indeseritível. Enfim, os vocábulos dúvida, dor, noite, odor, sede desconhecem ainda os qualificativos que hoje costumam acompanhá-los: cruel; cruciante, pungente; luarenta, enluarada; capitoso, ine-briante; inextinguível. É assim: a linguagem está sempře em constante movimento, como a propria vida. 8. CAMILO E AS SERIES USUAIS. — Camilo, com o seu grande conhecimento da lingua, näo podia deixar de ver o que o grupo usual e o cliché tem de estafado e trivial. Numa crónica de 1858, observa o grande eseritor com muita graca o problema das cha-pas consagradas: «Obriga-se o cronlsta a manter invariáveis os seguintes adjectivos, quando vierem usados para os seguintes substantivos: Prelado será sempře virtuoso; cantora será sempře mimosa: lornalista será sempře conscioncioso; lovem eseritor será sempře esperancoso; patriota será sempře eximio; negociante será sempře honrado; caluniador será sempře infame. As maneiras de quem dá um balle seräo sempře amáveis; os convidados sairio sempře penhorados. O tolhetinista será sempře espirituoso; o poeta será sempře inspirado. Os irmäos terceiros seräo sempře vene-ráveis. Os sócios de qualquer coisa mercantil seráo sempře acre-dltados. Os meninos recém-nascidos seräo sempře robustos. As viúvas seráo sempře inconsoláveis. Se o rleaco der doze vinténs aos inválidos, este feito será sempře um rasgo fitantróplco. e a fortuna dele será sempře aben-coada. Nao haverá baile que náo seja animado, nem jantar que 87 näo seja lauto, nem serWco que näo seja abundante, ou profuso, para variar. Northum hörnern rlco terá amigos que náo sejam numerosos. Todas as tlrmas da praca comerclal seräo sempře respeitůveia. O voto de qualquer parvoinho será sempře ilustrado; e mais depressa morrcrá o cronista do que deixará de ser eloquente o discurso de qualquer Cicero fanhoso. Todo o casamento será pióspero. Ninguém podere morrer que nao (ique sendo bom cida-dáo, bom pai, bom mando, e