Chico Buarque Estorvo 8.1 edigao PUBIICACOES DOM QUIXOTE Publieacôes Dom Quixote, Lda. Rua Cfntura do Porto Urbanizacäo da Matinha - Lote A - 2.° C 1900-649 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legisla^äo em vigor © 1991, Chico Buarque © 1991, Publicacôes Dom Quixote Capa úľ.-. Miguel lmbiriba Foto do autor: Cristina Zappa Hcvisäo tipográfic.a: Maria do Mar Liz 1." ediyäo: Outubro de 1991 8." edigäo (l."de bolso): Novembro de 2001 Depósito legal n.°: 170 609/01 Fotocnmposigäo: ABC Gráfica, Lda. Inipressäo e acabamento: Gráficas Varona ISBN: 972-20-2011-0 eatorvo. estorvar, exturbare. distúrbio, perturbagäo. lorvacäo, turva, torvelinho. Lurbule.ncia, lurbilhäo, troväo. trouble, trápola, atropelo. tropei, torpor, estupor, estropiar, estrupício. estrovenga. estorvo 1 Pra mim é muito cedo, fui deitar dia claro, näo con-sigo definir aquele sujeito através do olho mágico. Estou zonzo, näo entendo o sujeito ali parádo de terno e gra-vata, seu rosto intumescido pela leňte. Deve ser coisa importante pois ouvi a campainha tocar várias vezeš, uma a caminho da porta e pelo menos trés dentro do sonho. Vou regulando a vista, e comeco a achar que eonhego aquele rosto de um tempo distante e confuso. Ou senao cheguei dormindo ao olho mágico, e conhego aquele rosto de quando ele ainda pertencia ao sonho. Tem a barba. Pode ser que eu já tenha visto aquele rosto sem barba, mas a barba é táo solida e rigorosa que parece anterior ao rosto. O terno e a gravata também me incomodam. Eu näo conheco muita gente de terno e gravata, muito menos com os cabelos escorridos até os ombros. Pessoas de terno e gravata que eu conheco, conheco atrás de mesa, guichet, näo säo pessoas que vém bater ä minha porta. Procuro imaginar aquele homem escanhoado e em mangas de camisa, desconto a deformacäo do olho mágico e é sempře alguém conhe-cido mas muito difícil de reconhecer. E o rosto do sujeito assim frontal e estático embaralha ainda mais o meu jul-gamento. Näo é bem um rosto, é mais a identidade de um rosto, que difere do rosto verdadeiro quanto mais vocé conhece a pessoa. Aquela imobilidade é o seu melhor disfarce, para mim. Chic o Buarque ľlstorvo 11 Recuo cautelosamente, andando no apartamento COmo dentro ďágua. Escorregarei de volta para a cama, n creio que o sujeito acabará desistindo, convencido de que näo há ninguém em casa. Mas nem bem ultrapasso a divisória imaginária do meu quarto-e-sala, e a cam-painha toca outra vez. Näo posso dormir com a imagera daquele homem fixo na minha porta. Volto ao olho mágico. Hei-de surpreender urna imprudencia dele, urna impaciéncia que o denuncie, que me permita ligar o gesto ä pessoa. Mas enquanto estou ali ele näo toca a campainha, näo olha o relógio, näo acende o cigarro, näo tira o olho do olho mágico. Agora me parece claro que ele está-me vendo o tempo todo. Através do olho mágico ao contrário. me vé como se eu fosse um homem côn-cavo. Assim ele me viu chegar, grudar o olho no buraco e tentar decifrá-lo, me viu fugir em cämara lenta, os movimentos largos, me viu voltar com a físionomia con-trafda e ver que ele me vé e me conhece melhor do que eu a ele. Porque eu sei apenas que ele näo é o que pre-tende aparentar, um vendedor, um administrador, um distraído. E ele me conhece o suficiente para saber que eu poderia até receber um estranho, mas nunca abriria a porta para alguém que, de facto, quisesse entrar. Agora ele já percebeu que é inútil, que näo me engana mais, que eu näo abro mesmo, que sou capaz de morrer ali em siléncio, posso virar um esqueleto em pé diante do esqueleto dele, entäo abana a cabega e sai do meu campo de visäo. E é nesse último vislumbre que o idenlifico com toda a evidencia, voltando a esquecé-lo imediatamente. Só sei que era alguém que há muito tempo esteve comigo, mas que eu näo deveria ter visto, qite eu näo precisava rever, porque foi alguém que um dia abanou a cabeca e saiu do meu campo de visäo, há iniiiln tempo. 0 sono está perdido. Da janela do meu sexto andar posso espreitar a calcada do ediíício. 0 homem logo aparece, pára no meio-fio e náo levanta os olhos para a minha janela, como eu faria se fosse ele. Com tanto tempo de espera no meu corredor, ele teria de arriscar mais uma olhadela. Qualquer um olharia para o sexto andar, mesmo sabendo que é inútil; olharia para confir-mar que náo há uma luz acesa, que náo há Uma toalha estendida no parapeito, olharia automaticamente, por um cacoete da esperanca. Só nao olharia se soubesse que está sendo olhado. Ele sabe que o vejo acenar para um taxi, embarcar no banco da frente e mandar pegar a primeira á direila. Enfio uma roupa ás pressas, cal-culando que neste momento ele esteja parádo no sinal vermelho da outra esquina. Calculando que eu esteja enfiando uma roupa ás pressas, ele dirá ao motorista para avancar o sinal e virar á direita novamente e nova-mente e novamente. Completará a volta do quarteiráo prevendo que eu esteja no elevador, ainda de camisa aberta. Mas eu me abotoo na janela, vendo o taxi com-pletar a volta do quarteiráo. Ele estará saltando do taxi quando bato com ťorga e definitivamente a porta do apartamento, o motorista mandando ele á merda por causa da corrida idiota. Ficará desapontado por náo topar comigo na portaria. Pergunlará ao porteiro por mim, que estou entre o quinto e o quarto andar, descendo a escada devagar porque as lámpadas queimaram. 0 porteiro ouvindo rádio vai responder que náo sabe da vida de ninguém no pré-dio. Chego ao segundo andar e ele entrará no elevador, depois de atochar o botáo quarenla vezeš. Perto do tér-reo cruzo com a luz da rua, que está subindo a escada pelas frontes dos degraus, ditas espelhos. No último laňce dessa escada retorcida piso em falso; piso na luz o atravesso desabalado a portaria, ele no meu corredor. .Já 12 Chico Buarque bstorvo 13 a&O tocará a campainha; desintegrará a fechadura, eu im i'iil(,:ada oposla. Näo preciso olhar o sexto andar para saber que ele nie vigia da minha janela. Vera que aperto o passo e sumo correndo na primeira ä esquerda. E chamará o elevador, e chamará o taxi, mas näo convencerá o motorista a me perseguir na contramäo. Tentará urna paralela, xnas eu emboco no tunel, alcanco outro bairro, res-piro novos ares. Empacará no tränsito e eu subo as encostas, as prateleiras da floresta, as ladeiras invisíveis com mansôes invisíveis de onde se avista a cidade inteira. O vigia na guarita fortificada é novo no servico, e tem a obrigacäo de me barrar no condomínio. Pergunta meu nome e destino, observando os meus sapatos. Interfona para a casa 16 e diz que há um cidadäo dizendo que é irmäo da dona da casa. A casa 16 responde alguma coisa que o vigia näo gosta e ťaz «hum». 0 portäo de grades de ferro verde e argolöes dourados abre-se aos pequenos trancos. como que relutando em me dar pas-sagem. 0 vigia me vě subindo a ladeira, repara nas minhas solas, e acredita que eu seja o primeiro pedestre autorizado a transpor aquele portäo. A casa 16, no final do condomínio, tem outro interíbne, outro portäo elec-trónico e dois segurancas armados. Os cäes ladram em coro e parám de ladrar de estalo. Um rapaz de Haněla na mäo abre a portinhola lateral e me faz entrar no jar-dim com um gesto da flaneia. A casa da minha irmá é uma pirámide de vidro, sem 0 vértice. Uma estrutura de aco sustenta as quatro faces, que se compöem de pegas de blindex em forma de tra-pézlo, ora pecas fixas, ora portas, ora janelas basculan-tes. As poucas paredes interiores de alvenaria foram projectadas de modo que quem entrasse no jardim pode- ria ver o oceano e as Uhas ao lundo, através da casa. I'ara refrescar os anibientes, porém, mais tarde pendu-raram por toda a parte cortinas brancas, pretas, azuis, vermelhas e amarelas, substituindo o horizonte por enorme painel abstracto. Também originalmente, o pátio circular no bojo da casa abrigava um fícus, cuja copa emergia no alto da pirámide frustrada. Sucedeu que a casa, quando ficou pronta. comecou a abafar o fícus que, em contrapartida, solapava os alicerces com as suas raizes. 0 arquitecto e o paisagista foram convocados, tro-caram acusacöes, e ficou patente que casa e fícus näo conviveriam mais. Eu sempře achei que aquela arquilectura premiada preferia habitar outro espaco. A casa livrou-se do fícus, mas není assim parece salisfeita com o terreno que Ihe cabe, o jardim que a envolve toda, o limo que pega nas sapatas de concreto, a hera que experimenta aderir aos vidros. Nessa disputa o jardineiro tornou as dores da casa, e passa os dias arrancando a hera, polindo o concreto, podando o que vé pela frente. Um dia, tomado de cólera, saiu revirando os canteiros, eliminou as hortén-sias, e teria reduzido o jardim a um campo de golfe, se minha irmá näo interviesse. Tendo feito um estágio no jardim botánico, minha irmá gosta de andar pelo arvo-redo ao largo da casa, podendo distinguir o ipé do car-valho, da oiticica, do jequitibá ou da magaranduba. Também zela pelas palmeiras, que estäo alinhadas ä parte, pois aprendeu que palmeiras säo de uma estirpe altiva de árvores, que as árvores sérias por sua vez des-denham. K quando tem tempo, minha irmá chega aos confins do terreno, onde o jardim toca o můro do horto Qorestal; só volta na hora do lusco-fusco, parando para ver e ouvir o jogo das folhagens, por atalhos que o jardineiro ignora. Mas hoje, com o sol a pino e sem uma brisa sequer, minha irmá está para dentro e as folhagens 11 Chico Buarque Ustorvo näojogam: cada folha é um exemplo de folha, com o seu verde-escuro ä luz e seu contraverde-claro ä sombra. Hoje é como se o jardira estivesse aprendendo arquitec-lura. O empregado näo sabe que porta da casa eu mereco, pois näo vim fazer entrega nem tenho aspecto de visita. Pára, torce a flanela para escoar a dúvida, e decide-se pela porta da garagem, que näo é aqui nem lá. Obede-eendo a sinais convulsos da flanela, contorno os auto-móveis na garagem transparente, subo por urna escada em caracol, e dou numa espécie de sala de estar com pé-direito descomunal, piso de granito, parede inclinada de vidro, outras paredes brancas e nuas, muito eco, urna sala de estar onde nunca vi ninguém sentado. Ä esquerda dessa sala corre a grande escada que vem do segundo andar. E ao pé da grande escada há urna salinha que eles chamam de jardim de Inverno, anexa ao pátio interno onde vivia o fícus. Eis minha irmä de peignoir. tomando o café da manhä numa mesa oval. Ela me acena com as sobrancelhas e volta a baixar a cabeca, os cabelos cobrindo-lhe o rosto. entretida com u mas fotos que folheia e organiza em pequenas pilhas. ľrepararam meu lugar de fronte para ela, um pouco dis-tante, e nas fotos que ela me passa sem me olhar näo há pessoas, somente parques, ruas, alguma neve, paisagens repetidas que despacho em meio minuto. Devem ser fotos do início da viagem, quando ela estava sozinha e emocionalmente abalada; embora tenha curso de fotografia, seus enquadramentos estäo irregulares, a luz msuficiente ou estourada, como se ela quisesse liquidar depressa o filme. Nas fotos que empilha fora do meu alcance, imagino que já apareca com a pela fresca, tal-vez abrindo os brayos numa ponte, tendo ensinado um desconhecido a manejar a máquina. E nas fotos mais recentes, que coloca de pé atrás do bule de leite, acho que entram os amigos que ela sempře vai fazendo. e os amigos dos amigos, e os artistas, e as autoridades, e as luzes do barco no jantar de despedida. 0 copeiro entra com uma bandeja, sem que eu tenha ouvido minha irmá chamar, e recolhe as fotos discrimi-nando as pilhas. Eu ia pedir para ver a série completa, mas minha irmá ergue o rosto e pergunta se náo tenho visitado mamáe. Diz que mamáe tem andado táo sozinha, nem empregado ela quer, só tem uma diarista que ás tergas e quintas vai lá, mas diarista mamáe acha que náo é companhia. O ideal seria contratar uma enfer-meira, mas enfermeira mamáe acha que cria logo muita intimidade, e qualquer hora mamáe pode levar um tombo, porque anda enxergando cada vez pior. A medida que fala, minha irmá espalha uma película de geleia grená na torrada, como que esmaltando a torrada, depois analisa, desiste do grená e arremata com geleia cor-de-laranja: vai morder, muda de ideia. torna um gole de chá e se admira de como uma pessoa pode envelhe-cer da noite para o dia, pois quando papai morreu a gente pensou que mamáe fosse baquear. qual nada, con-tinuou a mil, ia ao teatro, jantava fora, andava a cavalo no sítio, como ela adorava o sítio, tomava seu uisquinho, jogava tenis, puxa, pensar que até o ano passado mamáe ainda jogava tenis. A garota surge correndo pelas minhas costas e atira-se no pescoco da máe. Usa uniformě escolar, lan-cheira amarrada nos ombros e trancas de maria-chiqui-nha. Minha irmá dá-lhe um beliscáo nas bochechas. senta-a nos joelhos e faz cavalo maluco, faz cosquinhas nos sovacos. beija beijo de índio e vira a marciana dum olho só. Elas colam perfil contra perfil e quedam horas assim, uma querendo ser a cara da outra. A menina diz «agora chega», pula para o cháo, avanca no cream cracker e por acaso nota a minha presenca. Minha irmá per- Iii Chico Buarque Estorvo I, finita se ela näo vai cumprimentar 0 tio. Ela me estende os bracos como que pedindo colo, mas subito transforma as mäos em duas pistolas, avanga contra mim e quase me fura os olhos. Depois solta uma gargalhada seca, gutural, anormal numa crianca; comega a tremer inteira e forca a gargalhada ate perder o fölego, que recupera num arquejo asmätico, e arranca nova gargalhada, arqueja e engasga, treme e gargalha e vai ficando azul. Vein a babä e carrega a garota para fora. Minha irmä cruza os talheres limpos sobre o prato com a torrada, e sei que a essa hora ela costuma se arru-inar para sair. Presumo que o chauffeur ja esteja a postos com um mapa na mäo para levä-la aonde ela mandar, e cada dia ela deve mandar seguir para um lugar dife-rente. Hoje talvez anuncie o nome de um bairro do outro lado da cidade, e lä chegando dirä «acho que e ali», ou «e na pröxima», ou «ja passou», deixando evidente que mais uma vez estarä improvisando um endereco. Fode ser que mande o chauffeur esperar diante de uma pen-säo amarela, e passe quatro horas lä dentro, saindo mais composta do que entrou e aflita para chegar em casa, na bora do rush. Pode ser que chegue ao mesmo tempo que 0 marido, os dois chauffeurs se emparelhando na ladeira clo condommio. Talvez suba com o marido para o quarto, e tirando a roupa diga que passou quatro horas numa pensäo amarela de uma cidade dormitörio, mas näo sei se o marido vai acreditar ou prestar atencäo. Näo sei se 0 marido vai se sentar na cama e afrouxar o cinto, e pddir para ela parar ali do jeito que estä, com as mäos mis cabelos. Tambem näo sei se o marido sabe que de vez em quando ela me da dinheiro. Sem que eu tenha perce-hido minha irmä fazer qualquer sinal, o copeiro traz uma Imnrieja com o taläo de cheques e a caneta de prata. I-IIa preenche o cheque, e seus cabelos castanhos näo mr permitem ver se estä mesmo sorrindo, nem se esse sorriso quer dizer que eu sou um pobre diabo. A assina-tura negligente, junto com o sorriso que näo posso ver, quer dizer que aquele dinheiro näo lhe fara falta. 0 ruido n'spido do cheque destacado de um só golpe pode querer dizer que esta é a ultima vez. Mas a maneira de encobrir e pousar o cheque ao lado do meu pires, como quern passa uma carta boa, e de retirar a palma acari-ciando a toalha, como quern apaga alguma coisa e diz «esquece», significa que poderei contar com ela sempre que precisar. Ela se levanta e diz que está atrasada, diz «fica ä vontade», näo sabe se sorri, molha os lábios com a lingua, leva os cabelos para trás da orelha e vai. Minha irmä andando realiza um movimento claro e completo. Parece que o corpo näo realiza nada, o corpo deixa de existir, e por baixo do peignoir de seda há ape-nas movimento. Um movimento que realiza as formas de um corpo, por baixo do peignoir de seda. E eu me per-gunlo, quando ela sobe a escada, se näo é um corpo assim dissimulado que as mäos tém maior desejo de tocar, näo para encontrar a carne, mas sonhando apal-par o próprio movimento. Algumas mulheres tém muita consciéncia dessas coisas. Mas tém consciéncia o tempo inteiro? A qualquer hora do dia? Em qualquer situacäo? Diante de qualquer um? E de repente minha irmä dá meia-volta no topo da escada, täo de repente como se fosse para me surpreender, como se fosse para saber se a estive olhando e como. Minha irmä rodopia na escada só para me dizer de novo «näo esquece de mamäe». Fico desequilibrado, sozinho naquela mesa oval, olhando o mel, o queijo de cabra, o chá de rosas, pen-sando na minha mäe. 0 copeiro traz uma bandeja com o telefóne sem fio; é um aparelho de teclas minúsculas. que dedilho rápido e sem olhar direito, um pouco que-rendo esbarrar noutros números. Ouco tocar uma, duas. cinco vezes, telefóne de casa de velho. Mamäe atende 18 Chico Buarque ums näo fala nada, nunca fala nada quando atende ao lelefone, porque acha vulgar mulher dizer aid. Eu digo «mamäe», e posso senti-la colar o fone na orelha, para travar o tremor da mäo esquerda. 0 copeiro entra com um carrinho, pergunta «terminou?» e retira os pratos sem sobrepö-los. Eu repito «mamäe», mas tambem näo tenho muito assunto, e o copeiro amassa o guardanapo que eu deixara intacto ä minha frente, em forma de canoa. Mamäe näo deve ter entendido que era eu, e pouco depois cai a linha. 0 copeiro passa um tipo de espätula na toalha azul-celeste, catando as migalhas de cream cracker, enquanto eu invento umas palavras no Chego á rodoviária com uma bolada em cada bolso da calca, quatro tijolos de notas miúdas, que o caixa do banco encasquetou de me trocar o cheque assim. A calca é justa e as protuberáncias dáo na vista. Consigo uma vaga no banheiro e separo o dinheiro da passagem. 0 homem do guichet examina cada nota, frente e verso, embora elas náo sejam muito velhas nem novas de mais. Com o bilhete na máo, ando de plataforma em plata-forma a fim de náo ficar táo exposto. Ando no meio do povo em linha recta, mas parece que cruzo sempře com as mesmas pessoas. E essas pessoas também parecem se admirar, me vendo passar táo repetido. Volto ao banheiro, e trancado espero a hora do ónibus. Nesse ónibus convém náo cochilar. A meu lado sen-tou-se um sujeito magro, de camisa quadriculada, que eu já havia visto encostado numa coluna. Estamos ombro a ombro no mesmo banco, e náo posso ver direito a sua cara. Posso ver suas maos, mas sáo máos de homem iguais a todas as máos sujas e cruzadas. Com o pormenor que de quando em quando ele abre os dedos da mao direita, um de cada vez, dando a impressáo de calcular alguma coisa, e fecha-os todos ao mesmo tempo. Acto contínuo abre a mao inteira para fechar os dedos um a um, refazendo os cálculos de tras para diante. Calca chinelos de tiras e esfrega o dedáo na falange vizinha, como quem contasse dinheiro com os 'ii Chi co B u ar que Kstorvo 21 |)('>s. Näo leva mala, nem sacola, nem pasta, nem jornal, nem história em quadrinhos, näo tem atitude de via-jante; mas também näo chega a ser viagem, essa hora e qttinze de curvas e aclives até o Posto Brialuz, que é nude vou saltar. Peco licenca, e ele tem de se levantar para me dar passagem. Falo «Posto Brialuz» para o motorista, e com a freada do ónibus o sujeito quadricu-lado vem degringolando pelo corredor, quase me atro-pelando. Desco do ónibus, ele atrás. Dou quatro passos na relva e giro o corpo de repente, um pouco como vi minha irmä fazer. Mas o sujeito já atravessou a estráda, e sobe a ribanceira que dá noutras bandas. F.ncontrar aberta a cancela do sítio me perturba. Penso nos portôes dos condomínios, e por um instante aquela cancela escancarada é mais impenetrável. Sinto que, ao cruzar a cancela, näo estarei entrando em algum lugar, mas saindo de todos os outros. Dali avisto todo o vale e seus limites, mas ainda assim é como se o vale cercasse o mundo e eu agora entrasse num lado de fóra. Após a besta hesitacäo. percebo que é esse mesmo o meu desejo. Piso o chäo do sítio e caio fóra. Piso o chäo do sítio, e para me garantir decido fechar a cancela atrás de mim. Só que ela está agarrada no chäo, incrus-tada e integrada ao barro seco. Quando deixei o sítio pela última vez, há cinco anos, devo ter largado a cancela aberta e nunca mais ninguém a veio fechar. Abandonei e esqueci isto acpui durante cinco anos. I.ilvez a inércia do sítio na minha mente, mais do que a longa estiagem, explique agora essa claridade dura, a paisagem chapada. Vencida a cancela. nan sei mais poľ onde passar. Minha brechá pode ser a noite, que comeca a nascer lá em baixo, no fundo do vale. Ainda há sol no alto das montanhas, e a noite vem subindo pelas ver-lentes como um óleo. Sento-me na pedra redonda onde eu me sentava quando era pequeno, quando pensava que a noite primeiro enehia o vale. depois é que trans-bordava para a terra e o céu. Quando a noite se consuma, perfeita, sem lua nem estrelas, sem encantos, sem nadá, salto da pedra e vou descendo a estradinha de terra batida sítio adentro. A estradinha segue recta até encostar no riacho e se envol-ver com ele. Mas näo eseuto o riacho. Na verdade, já näo sei so estou pisando a terra batida ou algum caminho vegetal. Mais provável do que eu me extraviar no sítio, séria o matagal ter invadido a estráda, e o riacho eva-porado. Mas ali há urna música que me desnorteia o tempo inteiro. Demoro a admitir, pois nunca houve música no sítio; mas há músicas, muitas músicas ocu-pando todos os espagos. com a substancia que a música no eseuro tem. É quase resvalando nelas que chego ä ponte de tábuas sobre o riacho. Atravesso a ponte, e da outra margem ouve-se ape-nas o riacho, a água absorvendo as músicas. Há urna luzinha intermitente na casa principal do sítio, mas näo preciso dela para chegar ao olho do vale, onde eu pensava que nascia a noite. E näo ando longe do meu des-tino quando eseuto o primeiro rosnado. No ermo em que estou, só posso fugir em direccäo ä casa, e o volume erescente dos latidos dá-me a impressäo de estar cor-rendo ao encontro dos cäes. E por í'ugir ao contrário, sinto-me duas vezes mais veloz; imagino romper a mati-Iha como dois trens que se eruzam. Atiro-me contra a porta da frente, que está travada por dentro com crave-lho. Contorno a varanda, e os cäes emudecem assim que invado a cozinha. O velho sentado no tamborete faz um grande esforco para erguer a cabeca, e é o tempo que eu necessitava para reconhecer nosso antigo caseiro. Deixou erescer os cabelos que, ä parte as raizes brancas, parecem ter II Chicü Buarque Estorvo Ii mergulhado num balde de asfalto. A pele do seu rosto resultou mais pälida e murcha do que ja era, e ele me Uta com um ar interrogativo que näo consigo interpre-tar, talvez se pergunte quem sou eu, talvez me pergunte se a tintura Ihe cai bem. Penso em Ihe dar um tapa nas costas e dizer «hä quantos anos. meu tio», mas a inti-midade soaria falsa. Meu pai entraria soltando uma gar-galhada na cara do velho, passaria a mäo naquele eabelo gorduroso, talvez chutasse o tamborete e dis-sesse «levanta dai, sacana!». Meu pai tinha talento para gritar com os empregados; xingava, botava na rua, cha-inava de volta, despedia de novo e no seu enterro esta-vam todos lä. Eu, se disser «hä quandos anos, meu tio», pode ser que ofenda, porque e outro idioma. Sem aviso o velho da um pulo de sapo e vai parar no centro da cozinha, apontando para mim. Usa o calgäo amarrado com barbante abaixo da cintura, e suas per-nas cinzentas ainda säo musculosas, as canelas Ii nas: e como se ele fosse de uma raca mista que näo envelhe-cesse por igual. Aproxima-se com molejo de jogador, tnas com o törax cavado e os bracos cai'dos, papeira, a boca de läbios grossos aberta com tres dentes, os olhos azuis ja encharcados. E abraca-me, beija-me, rocua um passo, fica-me olhando como um cego olha, näo nos olhos, mas em tomo do meu rosto, como que procurando a minha aura. «Deus Ihe abencoe, Deus Ihe abencoe», diz. Depois pergunta «que e de Osbenio?, que e de Clauir?», e entendo que ele esperava outra pessoa. algum parente, quem sabe. Um cacho de bananas verdes no chäo da cozinha lembra-me que passei o dia a chä e bolacha. Na gela-deira, que e um mövel atarracado de abrir por cima, «•ii Chico Buarque Näo sei o que essas pessoas pensavam de mim. do meu amigo, da nossa amizade. Mas quando ele estava lúcido, e ťalava coisas que para mim éram revelacôes, os outros mal o ouviam, olhavam-no com a fisionomia embacada. Hra como se estivessem separados dele, näo por urna mesa, mas por camadas de tempo. Äs vezes eu achava que ele preferia mesmo dizer coisas que os outros stí pudessem compreender anos depois. As pala-vras que buscava, as pausas, e sobretudo o seu tom de voz. täo grave, faziam-me crer que ele era dessas poúčaš pessoas que sabem pensar e falar com o tempo den-tro. Hoje. porém, quando procuro me lembrar do que ele ľalava. ouco puramente a sua voz, lisa de palavras. E se penso no meu amigo é porque, ao pular dos fundos de urna escola pública para o terreno de um sobrado em demolicäo, me dou conta que ele mora ou morava nesta mesma avenida sem árvores, no ediľício mais antigo do bairro, um edifício recuado e cinzento com um bar ao lado. Pretendo passar recto. Säo trés da tarde, e é bem provável que o meu amigo ainda esteja dormindo. Näo tenho nada para lhe falar, nem ele há-de ter ánimo para abrir a boca. Se eu subir, nem sei se ele abrirá a porta; me verá pelo olho mágico, e talvez se faca de morto até eu ir embora. No caso de ele abrir a porta, talvez eu me surpreenda por encontrá-lo igualzinho a cinco anos atrás. Talvez ele me pareca apenas um pouco mais baixo do que era, dois centímetros se tanto, mas até será capaz de estar usando a mesma camisa social para fora da calga, com a mesma mancha de café no colarinho. Näo terá perdido um fio sequer dos cabelos negros, que lhe cairäo na testa exactamente como da última vez que o vi. Eu quase desejarei abracá-lo, entrar como entrava no seu apartamento, espichar-me no sofá da sala e dor-mir até amanhä. Mas ao fitá-lo com maior atencäo, tal- lístnrvo 37 vez volte a me intrigar a sua estatura; meu amigo era mais alto, coisa ä toa, mas era. Cinco anos depois, séria normál que estivesse encolhido de ombros, com o estô-mago dilatado ou um pequeno desvio de coluna. Mas ele eslará erecto, como se lhe tivessem simplesmente ser-rado dois centímetros da canela. Aquilo näo me pare-cerá honesto. E eu näo saberei lidar com alguém que me dará a impressäo de ser urna cópia do meu amigo. Que passará a mäo nos cabelos como ele passava, o que me enervará. pois quanto mais perfeita for a cópia, maior será a sensacäo de logro. E que morderá a língua do lado direito, como ele mordia quando näo gostava de alguma coisa, pois talvez ele também desconfie que eu seja urna cópia. E que me verá ali plantado, e que sabendo que estou com a boca amarga. näo me ofere-cerá um copo ďágua. E que dirá «com licenca», fazendo voz de barítono, e que baterá a porta na minha cara. Vejo tumulto defronte ao edifício do meu amigo. Aglomeracäo, um camburäo, duas joaninhas, um rabe-cäo, vários carros de reportagem, guardas desviando o tränsito. No meio do povo, compreendo que houve um crime, alguém morreu esfaqueado e estrangulado. Vem chegando a siréne de um segundo camburäo, e o empurra-empurra acaba por me Ievar ao miolo do acon-tecimento. Urna corda vermelha isola a calcada do velho prédio. formando urna espécie de ringue. A televisäo entrevista o zelador sob a marquise da porlaria. Deve estar ruim de filmár, pois o zelador olha para o chäo e näo fala direito, parece um condenado. Penso que é ele o criminoso, mas em seguida me convenco de que está somente muito envergonhado pelo seu edifício. 0 reportér pergunta se a vítima costumava receber rapazes, e o zelador faz sim com a cabeca, mais confessando que assentindo. A entrevista é prejudicada por urna baixinha com cara de índia e lenco na cabeca, que se desvencilha .is Chico Buarque inn policial e investe contra o zelador, gritando «diga que conhece meu filho, miseravel!». O policial levanta a índia baixinha e deposita-a fora do cordäo de isola-mento. Ela passa outra vez sob o cordäo e agora se dirige ao publico. Diz «näo tem televisäo aí?» e diz «nin-guém vai me entrevistar?». Um rapaz que se apresenta como reporter do Diário Vigilante pergunta o que fazia o suspeito no local do crime. Ela diz «que suspeito o quě» e «que local do crime o qué», e diz «meu filho veio-me ver, foi detido entrando no prédio, se fosse suspeito estaria fugindo», e diz «onde é que já se viu suspeito fugir para dentro?» Sem mais nem mais, comeco a ficar a favor da mäe india. O do Diário Vigilante vai fazer outra pergunta, mas ela o interrompe e diz que trabalha no 204 há quinze anos, que todo o mundo sabe quem ela é, que aquele miserável ali conhece o filho dela e näo o defende porque tem preconceito de cor. Vai atacar de novo o zelador, mas é suspensa pelu policial. Outro reporter de tévě indaga do zelador se a vítima era homossexual. O zelador resmunga «isso aí eu näo sei porque nunca vi». A india responde ä Rádio Primazia que prenderam o filho porque ele estava sem docu-mento. Diz «meu filho estava voltando da praia, näo é crime ir na praia, ninguém vai na praia com carteira de trabalho metida no calcäo». Um sujeito atrás de mim diz que também é de jornal e pergunta «afinal a bichona era artista ou o qué?». Ela responde «a bichona sei lá, parece que era professor de ginastica». Aproxima-se o reporter da TV Promontório dizendo «ouvimos também a máe do principal suspeito». Aí a india perde a razáo, agarra as lapelas do reporter e desata a chorar no niiirofone e berrar «ele näo é criminoso!, meu filho é um muco decente!», mas o cameraman, que está trepado no capot da camioneta, grita «näo valeu, näo gravou nada, truca a bateria!». A india pára de chorar, olha para o listorvo sector da imprensa e diz «imagine meu filho, que ate" e" doente, estrangulando um professor de ginastica». Volta 0 reporter da TV Promontdrio e pede-lhe para repetir a lala anterior, que ele achou bem forte. Eu fiquei com von-lade que ela nao repetisse aqudo, mas agora nao adianta, ela ja esta chorando mais que antes e berrando «ele nan e criminoso!, meu filho e um moco decente!, ele e serio e trabalhador!». Eu preferia que ela nao fizesse aquela cena porque saiu confusa, e vai comprometer ainda mais o filho na televisao. E quando ela falou que o filho e serio e trabalhador, justo naquele instante o rapaz apareceu na portaria, e a camara o pegou descendo na calcada com uma sunga de borracha, imitando pele de onca, fl um negro do tamanho de quatro maes, na ver-dade mais balofo que forte. Vem empurrado pelos guar-das, os pulsus algemados e o corpo curvado para a frente, mas vem com a cara para o alto e ri. Ri para a camara no capot, ri para as janelas dos vizinhos, ri para ninguem, ele ri para o sol, e eu creio que aquilo na boca dele nao e bem um riso. A mae lenta segura-lo, uma garota grita «tesao!», outro grita «maconheiro!», e o rapaz e jogado no fundo do camburao. A mae esgoela-se e corre as unhas na porta traseira do carro, quer pene-trar nas frinchas da porta. Consegue enfim ser presa e trancada no segundo camburao. As duas viaturas dispa-ram as sirenes e partem debaixo de vaias. Dois funcionarios com jaleco do lnstituto Medico-Legal saem agora do edificio transportando o corpo, envolto em cobertores e lencois, e quern esta proximo, ate mesmo o pessoal do bar, emudece. Chego a perceber 0 fluxo do silencio, e e como um silencio que viesse por baixo do chao, e o chao se enrolasse feito tapete que fosse abafando todos os sons ate o outro lado da avenida. 0 corpo passa diante dos meus olhos. 0 primeiro funcio-nario, de nariz inchado, sustenta-o pelas axilas, deixando Ill Chi co Buarque Estorvo 41 ;i i ahcca pender como um saco. 0 segundo abraca-o por tnis dos joelhos e, com seu passo incerto. franze e dis-lende-o como um fole. Os pes do morto ficaram desco-bertos, e sáo pes bem tratados, apenas as solas meio encardidas. mas sáo pes que me parecem enormes, sáo pes que deviam calcar quarenta e seis, quarenta e sete. 0 corpo é encaixado numa gaveta do rabecáo. Eu espe-rei que pingasse sangue, mas náo pingou. A partida do rabecáo desencadeia o tránsito. Váo-se as equipas de televisáo, desfaz-se o cordáo de isola-mento, o povo circula, e o zelador parece sentir o brusco desamparo da celebridade, mesmo tendo sido um artista limido; ergue o rosto e olha para todos os lados, antes de se recolher ao interior do prédio. Restam apenas uma joaninha com duas rodas sobre a calcada, e dois poli-eiais na portaria. Se eu entrasse agora para visitar o meu amigo, certamente me fariam perguntas. Entro no bar ao lado, e o balcáo está apinhado de cotovelos. Há um mictório nos fundos, mas a pia foi arrancada da parede. No trajecto para a casa de minha ex-mulher. a sede que eu tinha foi suplantada por atroz urgéncia urinaria. O tanque bebido em pensamento por pouco me explode a bexiga, enquanto forco inutilmente a chave na porta que já foi minha. Custo a atinar com a fechadura, que deve ter sido trocada e agora abre para a direita, e sáo Ires voltas, e náo suporto mesmo, estou a poucos metros do alvo, a urina foi avisada e já avanca pelo seu canal. Atravesso a sala correndo, baixando o ziper, entro no banheiro e náo é, é a cozinha, mas a esta altura náo dá mnis para conter a grossa mijada no mármore da pia e em sua cuba de aco inoxidável repleta de loucas de Miilem (> copos com restos de vinho tinto. Ao doloroso ali-vlo segue a náusea. Abro a geladeira atrás de água. e Mbfl me um cheiro doce de goiaba. Volto á sala com ton- turas, e tenho a impressäo de que ela está invertida. Teriam tapado as duas janelas e aberto outras duas na parede oposta. As torneiras também só querem girar para o outro lado, capricho a que cedo constrangido, sentindo a alma canhota. Tensa, a água do chuveiro cai na minha pele e näo escorre, ricochetcia. Com paciéncia, consigo regular o temperamento da água, e entäo comecamos a nos reconhecer, meu chuveiro e eu. Recomecam a coincidir as irregularidades dele e as do meu corpo. Fecho a cor-tina do box, e o vapor vai-me comendo. Vou perdendo de vista o meu corpo e o resto. Um dia, na sauna, meu amigo disse que os antigos chamavam esses banhos de lacónicos. Pode ser. Näo sei o que uma coisa tem a ver com a outra. Só sei que vou levar uns bons anos até acertar com outro chuveiro igual a este. Näo vai ser nada fácil. No meu apartamento, o chuveiro era de um jorro todo bem torneado, correcto, justo, macico, era um chuveiro burro. Aqui näo, aqui eu me sinto pleno. Alias, os antigos talvez náo fossem täo lerdos quanto parecem, e näo gostassem de ficar assim muito tempo cogitando no banho. Banhos lacónicos. Eu, por mim, levava no vapor o resto da existencia. Mas acho melhor parar um pouco, porque meus pés estäo algo moles, pesados. Sinto que a água me bate nas canelas. Vou olhar, e parece que o box está sem fundo. Desligo o chuveiro, deixo desanu-viar, e constato que o chäo do box é uma poca de água preta. Deve ter entupido tudo. Vejo a água marron no ladrilho do banheiro, amarelastra invadindo a sala. Saio do box passo a passo. Há duas toalhas no cabide do banheiro. Ela deve guardar as outras no armádo do quarto. Calculo que, com cinco ou seis toalhas, eu possa montar uma barragem na sala e evitar a calamidade. Abro o armário do quarto e, pelo espelho interno, deparo com as minhas pegadas barrentas na carpete ■\:> Chico Buarque pi't'ola. Ela vai pensar que foi de propósito. Preciso ir einhora. Náo posso ficar aqui parado. Minha mala deve eslar no (undo do armário. Para apanhar a mala, tenho de tirar as roupas dela do armário. Vejo um paleto de tweed que parece de homem. mas náo é meu. As roupas fieam espalhadas pelo quarto, igual á boutique. Ela só pode pensar que foi de propósito. Mas a mala náo está no fundo do armário. Náo adianta ficar aqui parado. Tenho de encontrar essa mala. Sento-me na cama que já foi nossa. Ela náo disse onde enfiou a mala. Náo adianta ficar aqui parado. Eu náo posso me esconder eternamente de um homem que náo sei quern é. Preciso saber se ele pretende continuar me perse-guindo. Quando esse homem cansar de tocar a campai-nha e for embora, me levantarei da cama e irei atrás. Já terá caído a tarde, e ele dará por encerrado o expediente, decidindo voltar a pé para casa. Estará cansado, estará ficando corcunda, e lastimará mais um dia de tra-balho [mítil. Morará numa casa de vila náo longe daqui, mas assim que lhe puser os pés, šerá de manhá. Pela janela o verei recém-chegado, e já se despedindo da mulher gravida. A mulher gravida nunca saberá se ele vai beijá-la. ou se está apenas cada dia mais corcunda. Sairá da vila e atravessará a rua sem me ver. Entrará na empresa, um prédio com cinquenta e cinco andares, e sen departamento funcionará no terceiro subsolo. Eu serei barrado por falta de crachat, mas poderei espiá-lo pelo circuito fechado. Passará a manhá cotejando suas fichas com a documentacáo do arquivo central, que estará no cháo. Haverá muito servico atrasado, sem con-tar o que ele pega por fora para completar o salário Receberá instrucoes para perseguir um árabe que moru no subúrbio, e que ele já terá perseguido outras vo/rs. sem ěxito. A frota da empresa recusará missáo no subúrbio, e a verba para o taxi estará suspensa I■*I■ • sairá do prédio pouco disposto a tomar trés ónibus <> um II Chico Buarque lícní para perseguir um árabe que näo pára em casa. NAo notará que o acompanho até o cinema da esquina. onde levam um filme porno. Arranjarei lugar na fila alrás da sua, e conhecerei a nuca do meu perseguidor. I.argará o filme na cena das duas gravidas, e andará cabisbaixo pela cidade, pensando no árabe. Já estará anoitecendo quando ele reconhecerá as pedras portu-guesas da calcada do prédio em L, onde estarei morando com minha ex-mulher. Entäo se lembrará de me perseguir e ainda pegar o jantar em casa, podendo fraudar um relatório antes de dormir. Näo suspeitará que o vejo parar a. minha porta, corrigindo a poslura diante do olho mágico, e terá unha imunda o grosso polegar que aperta campainhas. Quando ele esmurrar a porta, estarei na cama. Tentará arrombar a porta, mas dormirei profundamente. Sonharei que ele grita meu nome e tem voz de mulher afónica. É ela. Salto da cama. Minha ex-mulher entra em casa cheia de gás, mas só consegue pronunciar «voce...». Näo con-tava me ver nu abrindo a porta, e vacila com a visäo do apartamento. Faz o giro da sala, pára na entrada do banheiro, sai andando de costas, anda que nem bébada. entra no quarto e mergulha na cama aos prantos. Pensei que ela fosse dizer «tá satisfeito?», mas näo diz mais nadá, fica deitada de brucos, soluca com o corpo inteiro, e näo sei o que fazer. Só posso olhar o corpo dela se debatendo, o lado esquerdo bem mais que o direito e, olliando aquilo, de repente me vem um forte desejo. Eu incsmo näo entendo esse desejo, é contra mim. É um i onu ,'isenso, pois se ela agora me chamasse, e com a boča molhada dissesse «vem», ou «sou tua», ou «faz oomlgo o que te der prazer», talvez eu näo sentisse desejo algum. Mas ela chorá da cabeca aos pés, os pes i ODtorcidos para dentro e as mäos arrancando os cabe-I«• - - nuni cspasmo que me deixa espantado, um espanto Estorvo I i que aumenta o meu desejo. Eu näo queria desejar uma mulher assim arrebentada. E se ela me vir neste estado, vai achar que é de propósito. Procuro pensar noutras coisas, e lembro que ela sempre guardou nossas malas em baixo da cama. A minha é uma meio antiga, de cur-vim. Visto uns jeans, uma camiseta branca sem publici-dade. e ainda descubro no fundo da mala uns tenis pouco rodados e de bom tamanho que nem sei se eram meus. É noite e faz um calor abafado. A mala até que está leve, mas carregá-la é incómodo, cháma a atencäo. Páro no meio-fio e faco de conta que espero um taxi. Um taxi freia e eu saio andando com a mala, fingindo conferir a numeracäo dos ediíTcios. Dobro a esquina e tomo uma rua sem movimento; talvez um assaltante me li vr e da mala. Com o sono em dia e de banho tornado, poderia andar por ai até amanhä, sem compromisso. Mas um homem sem compromisso, com uma mala na mäo, está comprometido com o destino da mala. Ela me obriga a andar torto e depressa. Quando dou por mim, estou ao pé das ladeiras que levam ä casa da minha irmä. Parece que era esse o camin ho arrevesado que eu faria se fosse cego. E estas säo as ladeiras ingremes que subo como água ladeira abaixo. Fazia tempo que näo vinha aqui de noite, e quando vi ä dištancia a nova iluminacäo do condomínio, pensei que fosse uma filmagem. Um aparato de holofotes azula os paralelepipedos, devassa as árvores por baixo das copas e ofusca a vista de quem chega. Näo localizo o vigia que pede para eu me identificar. É mais de um vigia, säo várias vozes que repetem meu nome como um eco na guarita. A resposta também chega em série, e tenho que ouvir «näo Consta da lista», «näo Consta da lista», «näo Consta da lista». Depois ouco uma risada que vai e volta, Chico Buarque Estorvo 11 e uma cigarra emaranha-se nos meus cabelos. Náo sei
  • que lišta estáo falando, só quero deixar uma mala na rasa 16, e devo ter algum problema porque as vozes vao-se alterando. Perguntam o que trago naquela mala, 0 antes que eu possa responder, uma silhueta arranca a alca da minha man. Apesar do tranco, fico agradecido; a mala encontrou seu destino e estou afinal solto dela. Penso que estou solto de tudo, que a cidade me espera, mas quando ensaio a retirada, umas garras penetram meu braco e arrastam-me de volta ao foco de luz. Um ramarada de jaquetáo bege vem-me abracar, depois desce as máos pel as minhas costas, apalpa as minhas nádegas, virilhas, coxas, atrás do joelho, e está revis-tando meu tornozelo quando chega um carro grande e preto com vidros fumés. Abre-se um centimetro na janela da frente, e o homem que está na direccao fala um nome comprido de mulher. A guarita acha que está bom e acciona o portáo electrónico, mas o carro náo dá a partida. Uma voz de mulher pergunta se náo quero subir. Procuro a mulher no claráo da guarita, mas a voz vem da treva do fundo do carro preto. Todos os vigias baixam da guarita para atender á voz. falam «positivo madame», em seguida o chauffeur sai do carro e abre a porta de trás para eu entrar. É uma amiga magrinha da minha irmá que conheco de olá há muitos anos, e está com um binóculo na boca. Pergunta se gosto de cowboy, e oferece-me um gole do binóculo. Depois apanha uma garrafa de uísque atrás do encosto e diz que meu eunhado, náo dá para confiar ncm na bebida dele. Tenta baldear o uísque da garrafa para o gargalinho do binóculo, mas o carro bordeja na ladelra, ela sacode-se de rir, e o uísque ensopa a saia curia do seu tailleur. Fala «ih, caceta». Há um conges-llnnaitientn no final da ladeira. e ela resolve sahar ali iiiťsmo. Saracoteia de salto agulha nos paralelepípedos. Entra na festa com os sapatos na máo e o binóculo pen-durado no pesco^o. Se eu soubesse que minha irmá dava uma festa, teria ao menos feito a barba. Teria escolhido uma roupa ade-quada, se bem que ali hajá gente de tudo que é jeito: jeito de banqueiro, jeito de plat/boy, de embaixador, de cantor, de adolescente, de arquitecto, de paisagista, de psicana-lista, de bailarina. de actriz, de militar, de estrangeiro, de colunista, de juiz, de filantropa, de ministro, de jogador, de construtor, de economista, de figurinista, de contra-bandista. de publicitário, de víciado, de fazendeiro, de literato, de astrologa, de fológrafo, de cineasta, de politico, e meu nome náo constava da lišta. Parte desses convidados ocupa as mesas redondas que foram armadas no jardim. Comii náo conheco ninguém, tenho liber-dade para contornar as mesas e emendar fragmentos de discursos, discussóes. gargalhadas. Outras pessoas reú-nem-se de pé na extensáo do gramado, formando uma sequéncia de círculos. Posso observar como se comporta um círculo, como se fecha, como se abre, como um cír-culo se incorpora a outros. Vejo circunferěncias que se dilatam exageradamente, até que se rompem feito bolhas e dáo vida a novas rodas de conversa. Vejo rodas sonolentas, que permanecem rodas pela geometria, náo pelo assunto. Tento acompanhar assuntos que saem de uma roda para animar a outra, e a outra, e a outra, como uma engrenagem. Há instantes em que a festa inteira parece combinar uma pausa, c ouve-se entáo um acorde da orquestra que toca músicas dancantes no interior da casa. Desco por uma aleia á luz de tochas onde já náo há rodas; as pessoas encontram-se de par em par e con-versam em surdina. Passa por mim um rapaz com uma ta^a de vinho branco em cada máo. 0 rapaz tem um rosto bonito, um pouco bonito de mais, e desaparece 4H Chico Buarque nuiita depressäo do terreno, alem das tochas. 0 céu é o mesmo céu bruto de ontem ä noite, e ainda näo vi minha irmä. Lá no fundo, o círculo translúcido da piscina salta do negrume como urn antipogo. Rodeio a piscina, o vestiário, a quadra de tenis, e sinto que as folhagens comecam a se agitar naquela bai-xada. Tento seguir até ao final do terreno, no limite do liorto florestal. mas o vento lanca areia nos meus olhos. Acho improvável que minha irmä esteja ali, e quase esbarro no rapaz muito bonito, que sobe de volta des-penteado. Passa olhando por cima da minha cabeca, leva as duas tacas de vinho ainda cheias, e desvia por urn atalho que eu näo conhecia. 0 atalho termina num m'vel abaixo da casa, onde há um barranco de terra compactada entre alicerces, um ponto onde ninguém marcaria encontro. Nas juntas dos pilares de aco com a laje de sustentacäo da pirämide foram chumbados pane-löes de luz amarela que atraem e fulminam todos os insectos. 0 rapaz dá voltas erráticas sob a laje do grande saläo, que balanca na cadéncia da orquestra. Anda com a cintura presa, por equilihrar as tacas, e mantém a fisionomia compenetrada, como um modelo fotográfico. Pára diante de um paneläo de luz e vira o rosto para mim num movimento abrupto, jogando para trás os cabelos que lhe caíam na testa. Pergunta «que horas säo?», mas estou de camiseta e é evidente que näo uso relógio. Subo a escadinha de pedra de volta ao jardim. que recebeu nova leva de convidados. Abro caminho em direcfSo ä casa, e no hall de entrada me envolvo com um grupo de mocas que saem da danca se abanando, soprando os decotes de suas blusas pretas. Vém che-gando do jardim dois homens de uns cinquenta anos, lininzeados, bebendo vodka, ambos com sapatos bran-I us c jeilo de sócios do late Clube. 0 mais alto traja um hltisrr H/.ul-marinho com botôes dourados, e usa gel nos Kstorvo cabelos grisalhos. 0 baixinho de axilas encharcadas usa uma cinta anatómica por baixo da roupa, deformando o abdomen que supôe disfarcar; é esse o marido da minha irmä, e aponta para mim. Enfio-me entre as mocas de preto, entro na casa, busco um banheiro, mas sou inter -ceptado por um rapaz que julga me conhecer. Sacoleja meus ombros e diz «vocé estava certo!, vocé tinha razäo!». Diz outras coisas que näo entendo, com grande veeméncia e velocidade, como se me transmitisse uma corrida de cavalos. Meu cunhado me alcanga com o amigo grisalho, a quern me apresenta dizendo «é esse». 0 grisalho diz que é sempre assim, que em toda a família que se preze existe um porra-louca. Meu cunhado quer-me defender e diz que sou meio artista, dá-me um soco nas vertebras e diz «näo é mesmo?». Diz que o amigo tem uma casa de campo vizinha ao nosso sítio, mas desistiu do veraneio porque a regiäo anda muito mal frequentada. Diz que o amigo diz que deixei nosso sítio virar um antro de vagabundos. Vejo passar um gar-con afoito, salo no encalco de um uísque e me infiltro no saläo, onde as pessoas dancam e batem palmas mar-cando o tempo da música. Atravesso o saläo por trás da orquestra, e vou dar na sala de jantar. Abordo o buffet. hesito entre os canapés e uns camarôes espetados num repolho, quando escuto «vagabundos, marginais, delin-quentes». Meu cunhado diz «näo acredito», puxa a minha camiseta e pergunta «vocé sabia?». O grisalho diz «vá lá ver», e meu cunhado, «nunca fui, minha mulher detesta». 0 grisalho diz «era um paraísow, meu cunhado, «e a polícia?», o grisalho «cansei de dar queixa», e näo sei o que mais dizem, pois assisto ä escalada da ventania que apagou tocha por tocha nas aleias, e agora revira os rnóveis do jartiim. Garcons galopam no gramado com toalhas de mesa coloridas, parecendo festejar um cam-peonato. so Chico Buarque Abro uma porta que dá na copa, e o rodeio de ban-dejas me desorienta para uma outra sala, desproporcio-nada, deserta e branca, que desconfio ser uma sala de troféus de caga sem troféus de caga. Nas paredes altas parece reverberar a voz do meu cunhado, «minha mulher detesta», «minha mulher detesta». Espio o jar-dim de Inverno. o pátio interno äs escuras, a mesa oval, a grande escada, e ali também näo há ninguém. Aquela é uma escada atraente, mais larga que alta, que um casal poderia descer dancando. Se eu subisse agora para o segundo andar, ninguém me veria, como ninguém viu da primeira vez. Era um domingo no início deste Veräo, e eu viera visitar minha irmä de surpresa. Ela estava na piscina com uns amigos, e lembro que usava um maillot inteiro, cor de vinho. Dei um mergulho, passei óleo no corpo, tomei sol, mas näo me entrosei porque ali só se falava de viagens, de cidades c pessoas interessantes que nunca vi. Rodei pelos jardins sem ser notado, entrei em casa e bebi uma cerveja na cozinha, onde um rapaz pendurado nuns andaimes limpava a gordura das vidragas. Meu cunhado havia saido, acho que a filha também, e era folga da maioria dos empregados. Liguei a aparelhagem de som, passeei de sandálias pelos salöes, e vim dar ncsta escada. Vi-me subindo a grande escada. Vi-me näo tanto querendo ir, mas como que sendo chamado pelo quarto da minha irmä. Näo sei porqué, passou-me a ideia de que minha irmä queria que eu olhasse o seu quarto, dispensando família, amigos e criadagem do meu caminho. Atravessei um corredor cheio de portas falsas, sabendo muito bem onde era o quarto. Eu näo preclsaria entrar para saber como era o quarto dela, puis já imaginava conhecě- lo intimamente. Mas a curio-sldade é mesmo feita do que já se conhece rum a imagi-iwcáo i-Mirci no quarto ainda desarrumado e reconheci Kstorvo :.l os espacos, a temperatura, a luminosidade, o torn pastel, gravuras orientals pelas paredes. No meio daquilo. a cama de casal me apareceu como uma instalacäo insen-sata; eu jamais pudera imaginär que minha irmä e o marido dormissem no mesmo quarto. Hoje encontro a porta encostada, o quarto escuro, e arrependo-me urn pouco de ter entrado. Os metais da orquestra chegam cä em cima com toda a potencia, mas estou certo de ter ouvido um suspiro, um suspiro de voz conhecida. Sinto que me habituarei ä penumbra e verei dois corpos na cama. 0 hörnern poderä ser o rapaz bonito das tagas de vinho, e terd os ombros muito bran-cos. E a mulher, ela vera que estou ali, mas näo vai mais conseguir interromper, näo vai querer interromper, e estarä com os cabelos caslanhos abertos como urn leque no lengol, e vai-me olhar de um modo que nunca me olhou. Pretenderei virar as costas, mas estarei emper-rado. Experimentarei dizer «agora chega», mas sairäo outras palavras. Determinarei näo enxergar mais nada, o que sera ingenuo; fecharei os olhos com tanto impeto, que as pälpebras cairäo no chäo. Minha visäo clareia e näo hä ninguem no quarto. Ali estä a cama impecävel, com uma colcha de renda antiga e almofadöes. Naquele domingo aquela cama me des-gostou, o lado do marido todo amarfanhado, e dei o quarto por visto. Estava-me retirando quando ouvi uns passos no corredor. Se eu tivesse pedido ä minha irmä, claro que ela largaria os amigos na piscina e me mos-traria a casa inteira de bom grado. Mas ela topar comigo no quarto, ela me flagrar de calgäo htimido no quarto dela, seria lamentävel. Precipitei-me por uma porta ao lado da cama, e dei num closet que era mais uma sala. com vista para o pätio interno, clara como um aquario e sem outra saida. Os passos chegaram ao quarto, e eu estava encurralado. Achei que ela entraria no closet Chico Buarque lístorvo para trocar de maillot, porque há uma hora em que elas trocam de maillot. E eu me esconderia entre as roupas de Inverno, e pelo espelho a veria a ponto de despir o maillot cor de vinho. E ela poderia rodopiar e me sur-preender pelo mesmo ängulo, ou talvez apenas me pres-sentisse. e desejasse despir-se distraidamente para mim. Mas os passos em ziguezague pelo quarto näo eram dela. Os ruídos eram de arrumadeira. correndo as cor-tinas e basculando as janelas, juntando copos, cinzeiros, jornais e suplementos pelo chäo. Percebi que o servico iria demorar, pois näo se tratava de arrumacäo domin-gueira, de puxar os lencóis fazendo montinho em baixo do colchäo; eram flops generosos de lencóis-bandeiras, próprios de camareira de grande hotel. Entro hoje naquele doset pela segunda vez, e mesmo sem acender a luz, sei por onde ando. Ando pelo sector dela e rogo camisolas, véus, vestidos, balanco mangas de seda. Sei que metade da parede esquerda é ocupada por urna sapateira que naquele domingo me encheu os olhos: botas, mocassins, escarpins, quantidade de mode-los em todas as cores. Atrás da sapateira há uma reen-träncia de que me lembro bem, pois foi ali que me embuti quando a arrumadeira entrou no closet, levou um bom tempo manejando cabides, e encerrou o servico. Naquele meu canto havia urna estante repleta de caixas que fui abrindo, encontrando mais sapatos, ainda vir-gens. Depois abri urna caixa redonda tipo chapeleira, e dentro dela estava outra caixa, também redonda, e saiu mitra de dentro, e mais urna, que nem boneca russa. Dentro da ultima chapeleirinha encontrei uma bolsa de camurca clara. Intrometi-lhe a mäo e toquei as jóias da ininha 11'11 j . i Im mostruário ou em corpo de mulher, minha vista pode näo discernir a jóia nobre. Mas havia como que iinwi Iranspiracäo naquelas pedras, e minha mäo logo captou a sua natureza. A máo já entorpecia ali dentro. e náo sabia mais largar as pedras. Larguei. refiz o laco no cordáo de camur^a, e coloquei de volta a bolsa com as jóias na caixa da caixa da caixa da caixa. Lembrei-me da conversa na piscina, as mulheres comentando que nesta cidade ninguém mais é louco de andar com jóias. «Na Europa é supernormal», dizia uma, inclusive no metro, usar jóia é supernormal». Significava que, para a pró-xima viagem. minha irmá viria buscar suas jóias nessa bolsa de camurca. Faltasse alguma coisa, uma missanga que fosse, e a arrumadeira iria para o olho da rua. Dei-xei o closet considerando-me um bom sujeito. Des-pedi-me de longe do pessoal na piscina, mas creio que nem minha irmá me ouviu. Agora tacteio a estante das caixas e reconheco a chapeleira. Levanto as sucessivas tampas e aliso a camurca. Repartir as jóias entre os quatro bolsos dos meus jeans é um gesto rápido como um reflexo. Um acto táo silencioso e obscuro que nem eu mesmo teste-munho. Um acto impensado, um acto táo manual que pode se esquecer. Que pode se negar, um acto que pode náo ter sido. Ao passar do doset para o quarto, sou paralisado por um «olá» de mulher. Desta vez há mesmo alguém na cama. Ela vem-se chegando descalga, e é a magrinha amiga da minha irmá com um baton na máo. Penso que vai pintar a boča, mas é á narina que ela leva o baton e aspira fundo. Fala «ih, caceta» e atira longe o baton. Atraca o corpo ao meu e diz «melou». Abraca- me, corn-prime suas coxas contra as minhas. e deve sentir a saliěn-cia das jóias nos meus bolsos. Desembaraco-me. procuro a saída, mas ela grita «olha!». Abre dois botóes do tail-leur. vai descobrindo o seio esquerdo e diz «vocě náo me conhece». No corredor. ainda escuto «eu sou carinhosa!» e «eu sou hiperdoida!». 54 Chico Buarque A escada está desimpedida, o jardira de Inverno, a sala de troféus, e num pulo alcanco a escada em caraeol que dá na garagem; que daria na garagem, porque a porta está trancada e levaram a chave. Sou obrigado a voitar pela copa. Ali me vejo no meio de uns homens que parecem de outra circunstäncia, cada qual com seu embrulho ou sacola de supermercado, e cara de quem náo gostou da festa. Sem querer, faco parte do cortejo desses homens de roupas tristes, saindo pela porta de servico. A luz da manhä, barbas comecando a pontilhar sous rostos, parecem homens destituídos, carregando yarcons embrulhados debaixo dos bracos. Como eles, recebo um envelope de um rapaz que diz «gratificacäo do dono da casa». Sento-me com eles numa das kombis que esperam lá fora. Partimos em siléncio. A kombi dá voltas sem rumo pela cidade, e ninguém se manifesta. Äs vezeš desce um, como que mareado. Ao cabo de muitas voltas, restamos eu e o motorista. Estacionamos numa práca, e náo sei se é ponto final ou se acabou a gasolina. Abro a porta e vou a pé para a rodoviária. O ónibus é um calhambeque e sobe a serra superlo-tado. Vai passageiro em pé, perdi meu lugar na janela, meu vizinho de banco é eorpulento, levo jóias nos bolsos, estou sentado em pedras, mas viajo com uma sensacäo de conform. Acho que é porque chove. 0 asfalto espelhado, o verde retinto, árvores como roupa torcida, essa estráda é minha. Numa curva intensa para a direita, sinto o ombro do meu vizinho de banco pressionando o meu, e rio por dentro. Rio porque me lembro de quando í'amos para o sítio de carro com me us pais, eu e minha irmä no banco traseiro. Curva para o meu lado, e eu jogava o corpo para cima dela, fazendo «ôôôôôôôô», Curva para o lado dela, e era ela que caía para cá: «ôôôóoôôô». A lem-branca me bate com tanta forca que chego a sentir o cheiro da cabeca da minha irmä, que ela dizia que era do cabelo, e eu dizia que era da cabeca, porque ela mudava de shampoo e o cheiro continuava o mesmo, e ela dizia que eu era crianca e confundia tudo, mas eu tinha certeza que aquele cheiro era da cabega dela, entäo ela me perguntava como era o cheiro, e eu perdia a graga porque nao sabia explicar urn cheiro, dai ela dizia «tá vendo», mas a verdade é que nunca esqueci, já cheirei a cabeca de muitas mulheres e nunca mais sentl nada igual. Agora a curva fecha para a esquerda. e sem querer me vejo abandonando o corpo contra o corpo do vizinho, quase fazendo «ôôôôôôôô». Talvez ele tenhii Chico Buarque lamhém uma boa lembranca, talvez ele tenha tido uma uniíi como a minha, com cheiro de cabeca igual a ela, e VOl rir baixinho como eu ri. Acho raesmo que ele gosta da coisa, pois a curva é em S e lá vem ele descambando para cima de mim. Náo é razoável que tenha chovido tanto em minha iulancia. Mas me vejo menino, e chove. Minha irmá já adolescente, e chove. Os dois no riacho, em roupa de banho, queimados de sol, e chove. 0 sol, vejo o sol no cimento, vejo o gato deitado no sol do cimento, e chove. Pode ser que entáo náo chovesse; a chůva imprimiu-se mais tarde na memória. E já havia me esquecido da brincadeira, quando o grandalháo da janela vem des-nioronando aquele corpo todo para o meu lado, numa curva bem mais aberta do que era antigamente. Náo estou mais a lim daquilo, comeco a achar chato. Mais uns duzentos metros, e lá vem ele outra vez. Vou recla-mar, vou cutucar seu braco, mas quando olho as máos do indivíduo, as máos do indivíduo sáo de cera. Juro que parecem de cera aquelas máos, eu nunca havia visto máos daquela cor, a náo ser as máos cruzadas do meu pai no caixáo. Olho para o rosto dele, e é feito da mesma cera, da mesma auséncia de cor cinza-oliva, e tem uma expressáo que é de quem náo vai mais para lugar nenhum. Talvez eu devesse gritar, fugir, mandar parar o únibus, mas ninguém ali se incomoda de ver um defunto sentado comigo. As pessoas que viajam em pé, de frente para o meu banco, estáo achando normál. Menos uma pieta gorda com os olhos esbugalhados, mas é para mim que ela olha, náo para o cadáver. Talvez eu devesse iiiesmo tomar alguma providéncia, mas está chegando o mru ponto. Levanto-me com cuidado, escorando o deliittto para que náo desabe, e a preta gorda ocupa logo o meu lugar. Falo «Posto Brialuz» para o motorista, e olho o lundo do ónibus. Com a freada, tenho a impres- Kstorvo sáo de que o defunto cai duro para a frente, dá com a testa no banco dianteiro e volta ao seu assento. Salto do ónibus, dou quatro passos na relva, viro-me de repente e vejo a cabeca do morto no centro da janela, olhando fixo para mim. 0 ónibus demora a partir, e náo consign escapar do morto. Ando na relva para lá e para cá. e para qualquer lado que eu vá o morto me olha de frente, mesmo sem virar o rosto, parecendo um locutor de tele-jornal, mudo. O ónibus parte devagar, e agora a cabeca do morto vai girando para trás, sempře olhando para mim, como se o seu pescoco fosse uma rosea. A cancela do sítio náo está aberta nem fechada. Solta do barro após cinco anos, chicoteia para dentro e para fora, tal qual vela de barco na procela. Para vencé-la, tenho que aguardar sua lambada em minha direecáo, esquivar-me com ginga de boxeador e imobilizá-la nas ancas. Estou legrando essa facanha quando desponta um furgáo caramelo-metálico, novo em folha, sem placa. Vem deslizanso a mil no lodacal. espirrando para todos os lados, mas ele mesmo vem imaculado, reluzente, cor de sol. O motorista é atencioso e freia a trés metros da entrada, poupando-me do banho de lama. Faco sinal para ele passar primeiro, pois náo me custa reter a cancela naquela posicáo. Mas um mulato longilíneo, de brinco na orelha esquerda, cabelo alisado e óculos escu-ros, desce pela porta de trás e convida-me a entrar no carro. Sento-me entre ele e um que parece seu irmáo gémeo, brinco, cabelo e tudo, tendo á frente o motorista ruivo e cheio de anéis, e o co-piloto mais velho que os outros, quase calvo e de nariz achatado. A cancela, que se manteve aberta e trémula nesse entretempo, dá umu bofetada no ar assim que nós passamos. Descemos a estradinha do sítio até o riacho. de onde desviamos para a antiga casa de hóspedes. A cousinu ..n> Ľbico Buarque caiada com madeirame azul hoje parece apenas uma base para a ampla aba de amianto que cobre um pavi-Ihäo anexo, onde se instalou uma espécie de oficina mecánica. Nosso furgäo estaciona entre uma carcaca de carro incenclado e um jipe pintado com zarcäo; ali tam-bém estäo alguns chassis e motores abertos, as trés motos vermelhas que eu já conhecia, mais duas pick-ups, um carro esporte imitando modelo antigo e um conver-sível com placa do estrangeiro. Atrás do pavilhäo há ainda meia dúzia de trailers enfileirados feito um com-boio. 0 gémeo encaminha-me ao ultimo carro, faz-me entrar e fecha a porta por fora. Séria um trailer espacoso. se houvesse sobrado algum espaco entre os tonéis de ferro e caixotes acumu-lados. 0 oxigénio circula pouco ali dentro, e o ambiente cheira a acetona. Sento-me numa nesga de chäo, de frente para a única janela que ficou desimpedida. Escu-rece de repente, e levo uns segundos para entender que uma vaca malhada encostou a cabeca no vidro da janela. A cabega da vaca enquadra-se na janela com exactidäo, e se estabelece. É uma vaca fatigada. Sua pálpebra de (|iiando em quando lambe o olho, num movimento grave que aprendo a prever. Também me familiarizo com a baba no canto da sua boca, que pende a meio palmo e sobe. pende e sobe de novo. E äs vezes a vaca malhada meneia o queixo para a frente, de leve, como quern me pergunta «e aí?», ou «como é que é?», ou «o que é que vocé acha?». Quando o gémeo reaparece na porta, deduzo que se passou um longo tempo. Mas foi um tempo que näo me pešou esperar, talvez por eu ter espe-nulo com o tempo da vaca. O gémeo acende a luz e posta-se ä minha frente, (apaudo a janela e a vaca. Tem as pernas magras e muito • oiiqirldas, e usa uma cal^a de couro que aperta e alas-11 n oh ncus eolhôes. Seu cinto é uma corrente de bronze. ľsiorvo Iraz as maos a cintura e a jaqueta acolchoada semia-berta, deixando ver a ponta de um cano que escapa de uma bainha interna. Continua de oculos ray-ban e parece excitado, pois comeca a esfregar a sola da bota no piso do trailer. Estamos separados por um caixote baixinho, e e ali que vou depositando as jdias: placa de brilhantes, reldgio de ouro, colar de perolas de quatro voltas com fecho de brilhantes, pingente de rubi com brilhantes, broche de safiras, par de brincos de safiras, con-junto de brincos, pulseira e anel de esmeraldas, anel de platlna e agua-marinha, alianca de brilhantes, solitario. Ele ergue os oculos e permanece algum tempo calado diante das jdias, sem toca-las. Depois faz um bico do tamanho de um figo, diz «hum hum», balanca a cabeca com aprovacao e diz «material beleza». Sai, bate a porta e volta dai a pouco, mas deve ser o outro gemeo porque ja chega desmanchando a exposicao. Feito biscoitos, varre as jdias do caixote com as costas da mao e diz «a gente aqui nao mexe com isso». Quando vou catar as pedras, recebo na face direita um golpe violento, nao sei se de algum objecto ou de joelho, ou ponta de bota ou karate, e o susto e maior do que a primeira dor. 0 foco da dor adormece e ela se irradia para o resto da minha cabeca, e a envolve, e e fora da cabeca que a dor me ddi. Hodeado de dor, eu mesmo nao sinto mais nada. e estou cego e surdo. Ainda cego. comeco a ouvir uma desavenca que nao entendo, mas sei que se da entre os dois gemeos; discu-tem com vozes tao identicas que parecem vozes de um so homem em contradicao. Depois um deles se retira, e o outro me levanta pelo pescoco, conduzindo-me para fora. Quando recupero a visao, ja estou entrando mini outro trailer, maior que o primeiro, com cheiro de novo e todo atapetado, macio de pisar. 0 ruivo esta inclinado sobre uma mesa com tampo de vidro roxo, dedilhaiido 60 Chico Buarque os minhas jóias. Sobre a mesa há ainda um vaso de cristas um punhal com cabo de marfim trabalhado, uma televisäo portátil, vidros e tubos de remédio, um buda de porcelana, um estojo de madrepérola e um telefone imi-tundo tartaruga. Os gémeos ficaram de pé junto a porta, como duas pilastras. E o quarto homem, de cabelos ralos e nariz de pugiUsta, está recostado com as pernas aber-tas numa poltrona, me observando. Afinal o ruivo pigar-reia para anunciar a fala, e fala olliando para as jóias, com uma voz que eu näo esperava täo suave, quase feminina. Diz «a mercadoria é boa». Ergue um broche, fecha o olho esquerdo, gira a safira contra a luz da janela e diz «tem jogo». Guarda as jóias nos oito bolsos do seu paleto de veludo e, falando comigo por tabela, diz «volta outro dia» olhando para o ex-pugilista. Quando vou saindo, um gémeo barra a minha passagem; o outro me oferece água, que ponho na boča e vira sangue. É dia ainda, quase bate um sol, e me pergunto se chegou a chover dentro do sítio. A estradinha e a vege-tacäo estäo enxutas até o nível da cancela, e dali para fora näo se vě mais nada; o sítio é uma ilha boiando no nada, com a neblina espessa vedando os seus contornos. Se eu agora cruzasse a cancela, acho que näo teria onde pisar. Desco a estradinha de terra, e constato que ela se bilurca um pouco antes de chegar ao riacho. No meio do bambuzal abriram uma picada que vai dar num rocado novo, onde foi montado um camping. Säo dezenas de harraras de polyester <'in verdes camuflados, que näo pude ver na outra noite porque entrei äs cegas, nein na iiianhä seguinte porque saí com pressa. Desvio-me entre as |)«'(|iienas tendas de formatos variados. cubos, prismas, pirämides, circos. iglus, caramujos, e näo há sinal ilr vnla lá perto da ponte de tábuas escuto LUH nudu ■ Iii ironico, e uma inadiacáo de futebol que vem de umu Imrraru semelhante a uma lagarta. Penso em per- .slurvo 61 guntar o resultado, como todo mundo faz, mesmo sem saber quem está jogando. Ajoelho-me diante do postigo, removo o mosquiteiro, e lá dentro alguém protesta com um gemido rouco. Dirijo-me ä casa principal, e julgo avistar sombras arrastando-se das vertentes para as bandas do camping, como um exército escangalhado. Dobro o passo, entro na casa pela cozinha, e encontro a menina da cabeleira crespa diante do fogäo de lenha. Trepada no lamborete, segura com as duas mäos a enorme colher de pau, mais remando que mexendo a sopa no caldeiräo. Hstaca um segundo quando me vé, mas logo sorri e Incrementa O remelexo. 0 caseiro velho dorme rijo na diagonal de uma cadeira, um blusäo de nylon vermelho cobrindo seu rosto, e uma touca de plástico prendendo seus cabelos recém-lingidos de acaju. Vai despertar com a algazarra das criancas, umas vinte, que daí a pouco acometem a casa. Trazem dinheiros húmidos, que o velho colecta de mäo em mäo e joga numa mocnila. Só entäo ele me vě e se encabula, depois se emociona e diz «Deus lhe abencoe, Deus lhe abencoe», fazendo questäo de me acompanhar ao meu antigo quarto. Näo demora a bater a menina da cabeleira. Já estou deitado e acho ruim, acho que ela vai querer dormir no colchonete. Näo abro, mas ela entra assim mesmo, tra-zendo um prato de sopa. Canta em falsete uma melódia indefinida, com palavras inventadas. Quando vejo que já vai, sinto vontade de lhe perguntar qualquer coisa, mas ela tem os ouvidos tapados com um fone de walkman. Sua sopa é uma vaga canja, um caldo de arroz que torno sem dissabor. Há um videogame parádo na televisäo, carros de formula 1 no grid de largada. O sangue estan-cou nas minhas gengivas, mas alguns molares no lado direito me parecem bambos. Fecho os olhos e vejo din-mantes. Ouco um gemido rouco que näo sei se 6 nun 6 A dor latejante me arranca da cama de manhazinha. A porrada da véspera, eu ha via esquecido e, sem querer, perdoado. Rm represália ao perdao, meu rosto inchou durante a noite e a boca acordou gelatinosa. Saio do quarto para náo dar com a cabeca nas paredes. Saio dis-posto a estrebuchar no pasto, mas o ronco do velho me sorve para dentro da despensa. Ele dorme nu, encara-colado no meio de umas estopas, a garrafa de underberg espetada nas pregas da pele, ou da estopa. Agadanho a garrafa. Atravesso a cozinha e, para sair. tenho de afas-tar com a porta as pernas da menina da cabeleira, que está deitada no cháo de lajotas e náo se perturba; dorme ouvindo o walkman e cantando baixinho, na lingua do seu son ho. Lá fora. bochechando com underberg, me animo mais ou menos para a nova Jornada. O céu amanhece encar-nado, e vem por aí um sol rancoroso. Livro-me da garrafa quando estoura a voz do velho, que despertou mal-humorado e ameaca tocar fogo na casa. As criancas pipocam das janelas e disparam a caminho do pomar, trocando rasteiras e safanoes. Voltam carregando limoes. mais do que podem seus embornais, e sobem cuspindo-se pelo sítio afora. Apanho um limáo que carambola AO talude, e vem-me um arroubo de ir embora atrás do bando. Era um arroubo idiota, como todos, e meu folrgo esgota-se no plateau da piscina vazia. I.I Chico Buarque Com um limäo galego na mäo, mais o álcool me ardendo nas bochechas, näo posso näo pensar no meu amigo. Lembro-me de dias inteiros tomando caipirinha, eu e ele nesta beira de piscina. Lembro-me bem do nosso ultimo fim de tarde no sítio, cinco anos atrás, ele sentado ali mesmo, já meio grogue, com a fala cremosa. lile olhando o horizonte e passando os dedos nos cabe-Icts. passando os cabelos lisos para trás da orelha, num gesto que, lembrando agora, parece copiado da minha irmä. No dia em que ele fez esse gesto eu näo achei nada, e na čerta näo tinha nada que achar. Mas hoje, alem do gesto, descubro um brilho em seus olhos que me incomoda. O brilho deve ser reflexo do horizonte que ele olhava, mas na minha lembranca näo entra o horizonte, e os olhos brilham por brilhar. Meu amigo bebia comigo na piscina, e äquela altura a sua conversa já näo fluía. Acho que ele falava de literatura russa, mas näo tenho certeza, pois as palavras saíam enroladas e se perderam. Mas sua imagem me volta cada vez mais nitida; lá está a correntinha de ouro no pescoco, meio embaracada, a pinta cabeluda logo abaixo do cotovelo, as costelas saltadas no flanco feito um teclado, o calcäo branco com trés listras verdes verticals. Só näo consigo me lembrar dos pes do meu amigo. Vivíamos descalcos, e näo me ocorre ter olhado alguma vez aqueles pes. Nunca reparei se éram grandes ou bonitos. Näo sei dizer se os pés do meu amigo éram enormes, como os do professor de ginástica assassinado. Torno a me lembrar do meu amigo olhando o horizonte, seus cabelos molhados negros como nunca, e ele agora se penteia com mais vagar que antes. Provavel-iiiente se sentindo lembrado, tira longo proveito da situa-cAo. iraga um cigarro, que na lembranca anterior nem ľxislia, e fica-se deixando olhar, como um actor de perlil Que se vira para mim de repente, querendo me sur- I .lllľVO preender, com um brilho nos olhos que me incomoda de novo. E já vai anoitecer sem que eu tenha conseguido olhar seus pés. Mas mesmo aquilo que a gente näo se lembra de ter visto um dia, talvez se possa ver depois por algum viés da lembranca. Talvez dar orbita de hoje aos olhos daquele dia. E é assim que vejo finalmente os pés do meu amigo, pelo rabo do olho da lembranca. Vejo mas näo sei como säo; säo pés refractados dentro da água turva, impossíveis de julgar. Imagine meu amigo recebendo rapazes no aparta-mento. Meu amigo no sofá da sala, tomando campari e dizendo poesia para os rapazes. Com os pés descalcos no sofá, mas disťarcados entre as almofadas, meu amigo passando os cabelos para trás da orelha, e imagino algum rapaz se irritando com a coisa toda. Meu amigo abrindo o album dos poetas franceses, e o rapaz enco-lhendo-se no sofá. E enchendo-se de ódio, e sofrendo de um outro ódio por näo entender que ódio cruzado é aquele que o domina, e que é feito de muita humilhacäo e que é desprezo ao mesmo tempo. Imagino a poesia sendo interminável e o rapaz enlouquecendo, indo bus-car uma corda no varal, ou uma faca na cozinha, mas daí para a frente já näo dá para imaginar, porque o meu amigo nunca séria professor de ginástica. Lembro-me mais urna vez dele ao meu lado, olhando o horizonte, os bracos apoiados na borda da piscina, e nem biceps o meu amigo tinha. Lembro-me do instante em que ele ergueu o copo, agitou o copo seco com uma rodela de limäo grudada no fundo. e fez mencäo de se levantar para reforcar a caipirinha. Ameacou trazer os pés á tona, e eu os veria de muito perto, como vi anos depois os pés do morto. Agora me dá grande aflicäo a ideia de ter visto os pés do meu amigo, pés que eu olharia tra n quilamente no tempo da lembranca. Mas o gesto insiin tivo deve ser reflexo de urna intencäo que está noutro (lil Chicü líuarquo l'.slorvo b7 tempo. E naquela tarde eu pus a mäo no seu joelho sem saber por que o fazia, e disse «näo». Arranquei-lhe o copo e fui preparar a caipirinha dupla. O áleool que levava o meu amigo para o lado da poe-sia também podia atacar seus nervos, deixá-lo agressivo. Era noite, e já estávamos jantando na varanda quando ele decidiu que eu era um bosta, sem mais nem menos. Disse assim mesmo: «voce é um bosta». E disse que eu devia fazer igualao escritor russo que renunciou a tudo, que andava vestido como um camponés, que cozinhava seu arroz, que abandonou suas terras e morreu numa estacäo de trem. Disse que eu também devia renunciar äs terras, mesmo que para isso tivesse de enfrenlar minha família, que era outra bosta. Também éram bosta toda lei vigente e todos os governos; e o meu amigo cornecou a se inflamar na varanda, gritando frases, ati-rando pratos e cadeiras no pátio, num escarcéu que acabou juntando o povo do sítio para ver. Ele gritava «venham os camponeses», e os camponeses que vinham éram o jardineiro, o homem dos cavalos, o caseiro velho e sua mulher cozinheira, mais os filhos e filhas e genros e noras dessa gente, com as criangas de colo. Värias vezeš o meu amigo gritou «a terra é dos camponeses!», e aquele pessoal achou diferente. Mais tarde ele sosse-gou. Jogámos as nossas coisas no porta-malas do carro dele, um rabo-de-peixe caindo aos pedacos, e fomos embora do sítio deixando a cancela aberta. Dessa noite eu näo me esqueco porque terminou na oidade, num apartamento de cobertura perto da praia, onde uns estudantes de antropológia comemoravam a Im niatiira. Näo conhecíamos ninguém, e näo sei como Ioiiios parar naquele lugar. Também näo sei quem me apreseiitou a uma das antropólogas, que tentou-me oiisimu uma danga africana. Depois ela me contou que pretemlia conhecer o Egipto, falou de sua experiěncia no cinema, como continuísta, e no fim da festa botou tarol para mim. Quando meu amigo me deixou em casa, ainda tne lembro dele dizendo que näo achou grandes coisas, n antropologa. Eu näo discuti, nunca discuti com ele. Mas antes de dormir fiquei pensando que ele podia äs vezeš näo estar com tanla razäo. Casei com a antropologa no més seguinte, vivi trancado com ela quatro anos ľ meio, e nunca mais soube do meu amigo. «Fora dar! Xô! Já disse fora daí!», é o caseiro velho que chega ralhando com os dois sapos que estáo no leito da piscina vazia. O sapo menor, na parte rasa, pula insistentemente, bate com as patas nas paredes, mas näo vai atingir a borda nunca. Num salto mais arrojado, e torto, cai na parte lunda e fica cara a cara com o sapo gordo. Este já sabe que näo adianta pular para lado nenhum. E seus olhos dourados parecem acompanhar o caseiro velho, que desce a escadinha frouxa que dá na parte funda, e pisa com confianca aquele chäo de limo. 0 sapo gordo parece mesmo conhecer o velho, pois agora ergue o lombo e infla a cabeca, que dobra de tamanho. O velho apanha o sapo gordo e o arremessa longe. Ľnquanlo isso, o sapo menor pulou para o raso e recomecou a dar com as patas nas paredes. 0 velho sobe a rampa de joelhos e vai de cócoras atrás do sapo menor. Quando está para agarrá-lo, este dá o salto impossível e atinge a borda. Logo depois, porém, como deslumbrado com seu recorde, salta de costas, revertendo a parabola. 0 velho agarra o sapo no ar e o atira na copa de uma mangueira. Penso que, quando o ruivo vender as jóias, o meu quinhäo dé para viver o qué, oito meses, um ano, talvez mais. Talvez dé para viajar, conhecer o Egipto, ir para a Europa e andar no metro onde as mulheres usam jóias. Mas prefiro que o ruivo demore a fechar negócio. N&u Chico Buarque mr desagrada estar assim suspenso no tempo, contandt os azulejos da piscina, chupando as mangas que o velho me trouxe. No final da tarde deixo a piscina, tres mil quatrocentos e cinquenta e seis azulejos, e reencontro o velho atrás do pomar, nos fundos do sítio, lancando cas-calhos no bananal e gritando «fora daí!». Eu me lembrava de bananeiras, näo de uma lavoura assim exuberante. O bananal cobre toda a vertente posterior do vale. Nas trilhas reguläres entre as bananeiras, foram cultivados arbustos de folhas agudas e tensas, e como que umas espigas marron-bronzeadas nas extre-midades de seus galhos mais altos. Sem se importar com o velho, homens e mulheres descartam as folhas e colhem as inflorescéncias com mäos oblíquas, furtivas. Ä noitinha sobem o morro capengando, com os balaios que os homens sustentam nos ombros e as mulheres equilibram na cabeca. Deixam a carga no celeiro e saem apressados, no que capengam ainda mais. Näo calculo quantos sejam, pois andam em grupos e se parecem uns aos outros, todos muito magros e muito flácidos. Viram o rosto quando cruzam comigo, mas dá para notar que tern manchas brancas ou verrugas apinhadas na pele. No relance, vejo que alguns těm lälhas na boca, nas orelhas, no nariz, e uma mulher, que nem deve ser velha, parece que em vez de rosto tem uma esponja. Convergem para o camping e enfurnam-se nas barracas, dois a dois. As barracas accionam suas inúsicas, uma querendo sobrepujar a outra, e o som que em ana é insuportável. As criangas dos limöes passam correndo, e penso que i' hora de eu lambém descer para casa. Mas &0 chegar h ponte de tábuas, encontro-a tornáda por trěs pastores iilcmňes. que ofegam. Um pouco adiante está um dos ei iik'os Sorri, mas näo sei se é o sorriso de quern me (lnu um copo ďágua, ou de quern me espatifou a cara. lístorvo (.<) Hou meia-volta e vou subindo a estradinha de terra batida sem olhar para tras, mas consciente de estar sendo seguido de muito perto pelos caes espumando, e pelo gemeo risonho que os retem com a respiracao. 0 escriipulo que rege cada passo torna a minha cami-nhada longa e extenuante. Quando chego a cancela, esta fechada com corrente e cadeado. Sem reflectir ponho-me a sacudi-la, e o cho- 1 alhar das correntes e a senha para o ataque. Os caesja me abocanham o calcanhar, a coxa e o braco, quando uma voz esgarcada chama «Guso! Pordeval! Sussanha!». 6 o moleque da cabeca raspada, irmao da menina da cabeleira. Os dois machos correm a lamber seus pes, mas a cadela mantem os dentes fincados no meu pulso. Sinto que. se ela virar o focinho de repelao, descarna a minha mao como uma luva. Mas o moleque Ihe aplica uma bambuada no cranio, e ela abre a boca para ganir. 0 gemeo da risada e me oferece um drops de hortela. O moleque e os pastores escoltam-me em silencio na descida do vale, ate a casa principal. Escuto apenas, de vez em quando, o zumbido do bambu varejando o ar. So mesmo o bambu na mao do moleque Ihe da credito de moleque. Porque suas feicoes sao severas, o rosto ossudo. E sua mandibula se revolve numa mastigacao obstinada, como se a boca estivesse cheia de pedras. Entro na cozinha tomando cuidado para nao acordar ninguem. A unica luz da casa vem da despensa. Ali pas-sando, vejo o velho e a menina da cabeleira sentados frente a frente, ela no tamborete e ele num monte de estopas. 0 velho esta com o pau duro na mao. A neta sorri para o pau duro na mao do avo. £ um pau integro, rosado, luzidio, que me parece incompativel com aquela mao toda venosa. Nao parece o pau do velho, e mais o pau do blusao de nylon cheio de logotipos que o velho veste. A menina vira o rosto, voltando para mim o 70 Chico Buarque l-.storvo 71 iiiesmo sorriso que valia para o pau. Depois fica séria e se levanta. Passa por mim e vai ter com o moleque seu irmäo, que lhe acena com uma fita cassete. Ela coloca a lita no walkman, o fone nos ouvidos, e fica andando em círculos na cozinha, a camiseta até os joelhos estampada com a cara de um deputado. Passo o resto da noite rolando na cama, com a impressäo de ouvir tocar um telefone ao longe. É impos-sível dormir com um telefone que náo pára de tocar ao longe. Clareia, e acho que o telefone segue tocando. Será quase meio-dia quando imagino que minha máe tenha afinal atendido. Atenderá ä sua maneira, muda. espe-rando que quem liga diga aló. 0 ruivo dirá «alö! aló! aló!», e desconhecendo aquela voz que náo é de hörnern rtem de mulher, minha máe desligará o aparelho. Entáo o ruivo discará o numero da minha irmá, e o copeiro res-ponderá que a patroa náo pode ser incomodada. 0 ruivo insistirá que o assunto é do interesse da patroa, o assunto é delicado, o assunto é o irmäo da patroa. 0 copeiro vai bater ä porta da minha irmá, que estará andando em círculos no quarto, com um peignair de seda. 0 marido estará deitado na cama, de roupa esporte e sapato ita-liano, fingindo ler uma carta precatória, mas obser-vando o movimento da minha irmá. Ela parecerá cha-teada com alguma coisa, e vai se abaixar para amassar no cinzeiro o cigarro que acabou de acender. 0 copeiro baterá com mais ťorca, e os dois gritaráo «o que é» ao mesmo tempo. 0 copeiro mal comecará a falar, e os dois vňo entender errado; váo entender que sou eu ao telefone. Minha irmá dirá que é para eu ligar mais tarde, e o marido dirá que bašta de me dar dinheiro. Ela acen-(Iiiii otltro cigarro, chateada com alguma coisa. I;i estou dormindo quando ouqo o telefone nova-miiiii' i« desta vez imagino que o ruivo diga ao copeiro que é uma questáo de vida ou morte. Ou dirá que é a nibeca do irmäo da patroa que está em jogo. 0 copeiro voltará a bater no quarto, mas meu cunhado já terá saído e minha irmä näo vai escutar. Minha irmä estará debaixo do chuveiro, num banheiro que eu näo conhe-cia, e que séria urna pirämide forrada de espelhos. N urna só mirada séria possível ver minha irmä de todos os ängulos. E a visäo séria täo instantänea que todas as imagens dela se fundiriam na retina de quem visse. E ver tanto dela ao mesmo tempo, de frente e de dorso e de lado e do alto e de baixo numa imagem só, talvez fosse como nada ver, mas séria té-la visto absoluta. Mais um telefonema, e o ruivo vai passar a palavra a um dos gémeos, que irá directo ao ponto; dirá que se näo pintar a grana, o irmäo da dondoca leva chumbo no meio dos cornos. 0 copeiro ficará assustado e sem accäo, pois o paträo estará na ponte aérea, e a patroa terá acabado de sair sem tomar café, näo se sabe para onde. dirigindo ela mesma de cabelos molhados. Acordo sem saber se dormi pouco ou de mais. É um meio de tarde. mas näo sei de que dia. Pulo a janela e saio pela varanda, do lado oposto ä cozinha. Näo quero cruzar com o velho nem com ninguém. Näo há ninguém na colheita. Vou margeando o bananal por urna trilha que eu conhego, e que pega o riacho lá no alto. É urna trilha onde meu pai andava sempře, mas que todo mundo evita porque dá muita cobra. Naquele ponto do riacho há uma pedra grande repartindo as águas, pedra que chamam de itaipava, e quando näo está na cheia fica fácil atravessar por ali. Depois é subir a encosta pelas sombras e chegar ä cancela sem recorrer ä estra-dinha. Disposto a pular a cancela, acelero e tonm impulso; quando a alcanco, está aberta. 0 horizonte está livre e posso muito bem sair do sitio, mas a vontade que 72 Chico Buarque ťstorvo 73 me vein agora é de voltar para a cama. Recuo devagar pela estradinha, paro na casa de hóspedes, e tudo está deserto. Na oficina, os mesmos carros, motos, motores, chassis, mais o furgäo zero-quilómetros pintado de azul-piscina. Atrás do galpäo, a caravana de trailers e a vaca malhada. Dentro do trailer maior um telefone toca, toca, toca e ninguém atende. Um carro velho vem entrando no si'tio com a des-carga solta. Levantando poeira, urna camioneta caqué-tica penetra a cancela. Urna camioneta preta e branca sacolejando na estradinha de terra batida. e é a polícia. Eu. por um lado, quero me atirar no seu caminho, ace-nar com os dois bracos e gritar «sou eu!». Por outro, quero mergulhar de cabeca no bambuzal, e é isso que faco. Vejo o camburäo seguir para o riacho, ultrapassar o camping e manobrar adiante, estacionando de ré contra o celeiro. Despenco pelo barranco, agarrando-me nos bambus, a tempo de ver o ex-pugilista descer do volante, o ruivo pelo outro lado. 0 ex-pugilista abre a porta de trás, e quem salta da gaiola é o moleque da cabeca raspada, seguido dos gémeos que calcam os pneus traseiros com dois tijolos. Todos afastam-se äs pressas do camburäo, como se ele fosse explodir. Todos excepto o moleque, que entra assobiando no celeiro e reaparece daí a pouco, acompanhado dos peôes da colheita. Esses saem com uns sacos gordos de lona verde, que descarregam na traseira do camburäo. l.otam o compartimento, fechando a porta com dificul-dade, e assentam os sacos excedentes sobre o capot, obstruindo o pára-brisas. Em seguida capengam até o camping, mas hoje näo há música; em vez de entrar nas h.u r,was. pöem-se a desmontá-las. O ex-pugilista volta ao volante e dá a partida, diri-glndo com a cabeca para fora, o ruivo de co-piloto. Cada gon.....sc pendura num estribo, amparando os sacos no capot, e o moleque vai correndo atrás. Os gémeos saltam na oficina com os sacos do capot, e a camioneta deixa o sitio batendo pino. Desco para a casa principal e sento-me na beira da varanda, de costas para a janela do meu quarto. Posso sentir na pele a chegada da noite. Ainda está claro no resto do sitio, mas o ar que respiro é nocturno. Nas árvores que vejo ä luz do dia, o movimento das folhas já se revezou, e é um movimento nocturno; como säo noc-turnos certos cheiros e ruídos; como há bichos nocturnos e flores que näo se abrem de dia, como há pensamentos täo claros que só ä noite se percebem. A menina da cabeleira crespa é nocturna, e quando me dou conta ela está trancando os meus cabelos. Depois senta-se a meu lado, e pôe-se a pedalar no väo da varanda. Reparo que seus olhos säo muito redondos, como numa surpresa permanente. Apoia a pequena mäo na minha coxa, e seus dedos sáo curtos como os de uma pata. Traz o fone nos ouvidos e canta «hmmmmmmmm», uma cangäo sem letra. Para alcangar as notas mais agudas, crispa a mäo e chega a me machucar. E quando comeco a enten-der a melódia, ela retira a mäo da minha coxa e aperta o stop. Desaparece täo de repente que quase me sinto roubado. É uma noite estrelada, e vejo antes de ouvir o jipe cor de abóbora na ponte de tábuas. Deste lado da ponte há uma extensáo da estradinha, muito sinuosa, para quem desce de carro até a casa principal. Mas o jipe prefere cortar caminho ribanceira abaixo, e desaba no pátio, e vai invadir a varanda, e freia encostando nos meus meniscos. Um gémeo salta e puxa a mala cinzenta que estava no banco de tras. Cheguei a pensar que fosse a minha mala antiga, que ficou na guarita da minha irmä. mas é outra. um pouco maior. de capa mole e eslufada. 74 Chico Buarque E quando é aberta na varanda, exala um bafo de banana que näo me convence, por exagerado. De facto, mal o gémeo comeca a remover as folhas de bananeira do alto da mala, sinto que a esséncia é outra. A mala está repleta de uma espécie de espigas marron-bronzeadas, secas mas macias, prensadas e emaranhadas umas nas outras. constituindo uma massa rústica. É uma mala repleta de maconha. 0 gémeo diz «grandes camarôes», e volta a proteger a erva com as folhas de bananeira, como quem cobre uma crianga. Fecha a mala e me faz sinal para subir no jipe. Antes de me largar com a mala no posto, o gémeo diz que o chefe foi mesmo com a minha cara. E diz que seu irmäo gémeo, que conhece melhor o mercado, preveniu o chefe de que esta mala continha duas vezeš o valor das jóias. Mas diz que ele, que conhece melhor o chefe, garante que se eu arrumar outras pecas daquela cate-goria, o chefe é capaz de me pagar com duas malas. Mas diz também que ele e o gémeo dele säo de opiniäo que, se eu näo quiser tomar muita porrada. é melhor dar um tempo noutra freguesia. O Posto Brialuz está fechado, e sinto um pouco de frio. Há alguns caminhôes parados, e deve ter gente dormindo nas boleias. Alguém está fumando perto de um pneu com o amíncio «borrac.heiro noite e dia» em letras brancas. Um homem de macacäo sai do banheiro e fica olhando o céu. Atravesso a estráda e me escoro no poste de luz, que é o ponto do ónibus que desce a serra. Mais tarde me sento na mala, que vai cedendo, e um dos ľcchos se abre deixando escapar o cheiro de banana. A luz é de seis da manliä, e comigo no ponto só há um sujeito magro, de camisa quadriculada, quando o ónibus assoma na lombada. Mas täo logo ele estaciona, brotam de todos os cantos as criancas com os embornais de limäo. Třepám no pára-choque, metem os pés nas janelas e se acomodam no tecto do ónibus, num baga-geiro que parece delas. Eu subo com dificuldade pela porta dianteira, porque os degraus säo altos, e a mala que empurro com as coxas acaba engatada no cämbio do motorista. 0 da camisa quadriculada aproveita para passar ä minha frente, pagar a passagem e sentar-se com um sujeito mais magro que ele. Toco a mala pelo corredor, achando que ela pode arrebentar a qualquer momento. 0 lugar que sobrou é um meio lugar, ao lado de uma preta gorda com cara de boa cozinheira, cuja nádega esquerda ocupa metade do meu banco. Vem a sequéncia de curvas, e as criancas jogam-se de um lado para o outro no bagageiro, fazendo «ôôôôôôôô». Os demais passageiros parecern habituados, e eu mesmo acho natural ver ä minha direita, do lado de fora da janela, urn moleque de cinco anos de cabeca para baixo. A careta invertida olha para mim, sanguínea, e seus bra-cos gesticulam como quem quer dizer alguma coisa urgente. O moleque passa a esbofetear a carrocaria até a cozinheira abrir a janela, e daí ele diz «fuminho c.hei-roso, hein!». Esvai-se como se tivesse escorregado para 76 Chico Buarque o alto, e no tecto do ónibus comeca um sapateado. E väo surgindo novas caretas vermelhas nas vinte janelas, e dedos cutucando os vidros, apontando para mim e para a mala. Prossigo a viagem olhando para baixo, como quem procura uma religiäo. Concentrado em minhas mäos cruzadas, abro os dedos um a um, fecho os cinco de uma vez, abro-os em ordern contraria, e só serei interrom-pido pelo susto da cozinheira a meu lado, que bate a janela e faz o sinal-da-cruz, os olhos esbugalhados. Á beira da estráda, reconheco pelo capengar os peöes do sítio. Passamos por eles bem devagar, porque a curva é perigosa e estamos atras de um carro-pipa. Eles escon-dem os rostos com aparelhos de rádio, toca-discos, amplificadores, caixas de som, e as barracas em rolos que os homens sustentam nos ombros e as mulheres equilibram na cabe^a. Novo sapateado no tecto do ónibus, e as criancas em coro gritam «olha os ET!, olha os ET!». Ao dispararmos numa recta já perto dos subúrbios, os moleques inventam de apostar corrida no bagageiro. Mas uma subita freada projecta pelo menos dois deles no espaco. Vejo dois corpos girando como helices diante do ónibus, depois como bonecos tronchos, dando bra^a-das e sapateando no vacuo. Ató que estacam no ar como insecto que bate na vidraca, e a queda seguinte é ins-tantánea, náo dá para ver. Ouco um baque bem debaixo dos meus pes, e ainda tenho a impressäo de ver alguma i-oisa rolando no acostamento. O ónibus recobra velocidade, e o resto da viagem trnnscorre mais sereno. Os moleques saltam na rodoviá-rln COID o ónibus em movimento, e saem zanzando com sous ombornais. Deixo passar a cozinheira gorda, espero esvazinr o ónibus, mas quando desco com a mala os moleques věm correndo, recebendo-me feito um comité listnrvo 77 na plataforma. E seguem-me cstacáo afora. e pertur-bam, e cheiram a minha mala. e a rodoviária está sempře assim de polícia. Apanho o primeiro taxi e mando tocar para a zona sul. O chauffeur dirige só com a mäo esquerda e de cos-las para o tránsito, falando comigo que estou no banco de trás. Eala mastigando trés palitos de fósforos já moles, e usa uma camisa de numero menor que o dele, a manga curta arregacada como quern fosse tomar vacina. Conta o caso da passageira casada que ele dei-xou na rodoviária, e que náo tinha dinheiro para a corrida. Mostra o telefone do trabalho da passageira casada, anotado num maco de cigarros. Eu olho o taxí-rnetro que náo pára quielo, olho a tabela da tarifa plas-tiiicada no buraco do porta-luvas, e náo sei quanto me resta da gorjeta da festa da minha irmá. No fim do tunel digo «é aqui», e largo o que tenho na mäo do chauffeur. Saio ligeiro, mas ele grita «ó excelencia!» e abre o porta-malas do taxi, indicando a minha mala com cara de quem cheirou e náo gostou. Da boča do tunel, o lugar mais proximo que conheco é a casa da minha mäe. Acho que ela náo se incomodaria se eu deixasse a mala por uns tempos num daqueles guarda-roupas. No quarto do meio, onde mamáe nunca póe os pes, há um armário de parede inteira com as coisas do meu pai, as fardas brancas, os ternos príncipe-de-gales, capotes de lä, um smoking, um summer-jacket e uns sapatos de cromo alemäo que eu até tentei herdar. mas ficaram grandes. Se eu enfiar a mala naquele armário, mamáe nem vai saber. É claro que qualquer dia ela pode acordar nervosa, e decida promover uma faxina geral. e desande a arejar todos os cómodos, e abra sem querer o armário que ela já havia esquecido, cheio de umas roupas que para ela náo existiam mais. Talvez oln ache rídículas aquelas fardas, aquele uniforme de gula, 78 Chico Buarque ridículos todos aqueles tornos do mesmo padräo, talvez ola ache papai ridículo. Talvez fique com raiva e cháme o porteiro, e mandě jogar tudo no incinerador. a mala seguindo junto. Talvez fique com pena e resolva doar tudo para um bazar de caridade, as freiras estranhando aquela mala horrorosa no meio do espólio do meu pai. Penso na mala aberta no claustro, penso nas carmelitas em semicírculo. contemplando a macaroca. E entäo nie vejo chegando ao endereco da minha mäe, passando entre os pilotis de mármore verde do edifício que já foi sumptuoso, ä beira-mar. 0 porteiro quer porque quer carregar a mala, quer correr para me abrir o elevador, quer me chamar de paträozinho e diz que o bom filho ä casa torna. Negro quase azul, embora perdendo o lustre ultimamente, já tinha a cabeca branca trinta anos atrás. Usa sempře o mesmo colete listradinho, com que fica parecendo escravo de cinema. Anda num passo miúdo, sofre de artrose, e vive contente da vida. Čerta vez comprou um rádio e deu para escutar programas de variedades, des-ses em que as pessoas falam de todos os assuntos com eco na voz. O aparelhinho era potente, irradiava do hall para o poco do elevador, e daí para o prédio inteiro. Uma noite meu pai foi me buscar na rua, e já desceu impa-ciente, porque quando chegava em casa queria ver todo mundo lá dentro: «Qualquer dia eu entro e passo o fer-rolho na portal» Arrastando-me de volta pelo pescoco, cruzando o hall pela terceira vez seguida, com o locutor lendo o horóscopo, meu pai mandou o porteiro desligar aquela porcaria. E disse que nunca se viu empregado ligar para astrologia. ainda por cima crioulo, que nem signo tem. 0 porteiro achou aquilo a coisa mais engra-cada. Venrieu o rádio e passou meses rindo muito e repetindo «crioulo näo tem signo, crioulo náo tem Hignu». lístorvo 71 Antes de tocar a campainha, tento espreitar os movi-mentos da minha mäe. Se ela estiver no quarto, nem adianta tocar que näo escuta. Mas a esta hora ela ja se levantou, ja lavou o rosto, ja esquentou o leite, misturou aveia, e o mais provävel e que esteja sentada na bergere da sala, lendo uma revista de modas. Mas mesmo que ela passe rente ä porta, arrastando os pes, tossindo e reclamando, acho que näo da para perceber do lado de Ibra. A porta do apartamento e um bloco de jacarandä pesado e escuro, com losangos em relevo e um floräo entalhado no centro. No velörio do papai, quando trou-xeram a tampa do caixäo, cheguei a imaginär que fosse a porta. ß capaz de mamäe ter dormido com a revista no colo, desinteressada das novas coleccöes. Pode estar so-nhando de novo com o homem de luvas no teatro suspenso, que e o papai porque tem um metro e noventa e anda inclinado para träs, mas näo e o papai porque fala com sotaque e tem cara de carneiro. Depois de certa idade, acho que o acervo de sonhos se esgota, e eles comecam a reprisar. Mas como nada e totalmente pes-simo, a memoria de um velho tambem enfraquece, e ele ja näo tem certeza se sonhou aquele sonho ou näo. Vai reconhecendo as passagens mais marcantes e diz «e mesmo», mas näo sabe direito o que vem pela frente. E se pela frente vier um precipi'cio, um incendio. um desastre de aviäo, a morte de todos os parentes, uma perseguicäo no labirinto, um cataclismo que a gente acorda sobressaltado e com falta de ar, e solta um grito. senta-se na cama e perde o sono, o velho diz «eu sabia», ou «eu näo avisei?». E emenda noutro sonho sem grande expectativa, mas sem maior enfado, preferindo resso-nhar todos os sonhos a atender ä campainha da porta. Na verdade näo sei se cheguei a tocar a campainha, mas jä estou desistindo de molestar minha mäe. Cedo ou ho Chico Buarque Uurde ela há-de abrir a porta, na esperanca de uma carta do exterior ou dessas revistas que assina. Encon-ti undo a mala, vai interfonar e interpelar o porteiro, que dirá que a mala é minha, e aprumando o colete subirá para guardá-la onde mamäe bem entender. Da calcada da praia no outro lado da avenida, olhando por cima de um flamboyant, posso ver o oitavo andar da minha mäe. Mas ela nunca estaria na janela. As pessoas que morám de frente para o mar näo apare-cem nas janelas. As vidracas vivem i'echadas por causa da maresia, que oxida os metais, e para conservar o ar condicionado. Essas pessoas ainda colocam cortinas com forro por träs das vidragas, e as fachadas ao longo da praia licam vestidas de cortinas pelo avesso. Nos prédios mais modernos, os arquitectos criaram terragos imi-tando decks, que säo decorados com móveis de vime ou fiberglass, e vasos com arecas ou samambaias. Mas as pessoas dos prédios modernos também těm pudor de aparecer nos terracos. Vamos que mamäe näo abra a porta hoje. Vamos que amanhä chegue uma carta da Espanha, e o porteiro suba para equilibrá-la ao comprido entre o capacho e a porta, como mamäe recomenda. Ao dar com a mala vai dear confuso, e acabará tocando a campainha, contra-riando as instrueöes. Descerá sem ser atendido, mas dormirä com aquilo na cabeca. Na manhä seguinte bem cedinho tomará a subir e, revendo a mala arriada e a carta em pé, tocará a campainha muitas vezeš e tentará forcar a porta que, alem do ferrolho, leva agora uma trava de seguranca semelhante ä de uma caixa-forte. En fun ligará para o distrito, que mandará uma patru-I h in hu com dois policiais, que alästaräo mala, carta e i apache para cheirar debaixo da porta, pedindo atencáa com os fósťoros. Sobrevbrá o corpo de bombeiros para o l-storvo HI arrombamento, mas o major vai preferir pedir licenca ao nono andar para descer pela janela. Com um pano no nariz abrirá a porta por dentro, e o porteiro terá de assistir ao atropelo de bombeiros e policiais desvir-tuando a sala de visitas, empurrando a bergěre, avan-cando pelo corredor, invadindo o quarto da minha mäe, escancarando as janelas e esbarrando na porta do banheiro. Um sargento obeso se lancará contra a porta, caindo com ela sobre a pia, e o major saltará por cima do sargento, empunhando uma machadinha. Depois dos vidros partidos, bombeiros e policiais quedaräo um tempo no väo da porta, todos olhando na mesma direc-cäo, sendo impossivel para o porteiro ver o que eles véem na banheira. Abriräo alas para um sujeito de terno amarrotado que näo vai-se deter muito tempo ali dentro. Ordenará ao porteiro que o acompanhe ä sala, onde perguntará por algum parente da vítima a quern possa comunicar a ocorréncia. 0 porteiro dirá que a viúva era de família muito boa e bem relacionada, o que näo interessará ao inspector. Entäo dirá que na gaveta da mesa da portaria ele tem o telefone da filha mais velha, o que para o inspector será suficiente. Ansioso, o porteiro acrescentará que existe um outro filho, e vai olhar a mala atrás da porta, disfargadamente. Mas sendo homem de uma pureza viciosa, näo saberá olhar a mala disfarcada-mente; num primeiro tempo olhará a mala, e no segundo olhará o inspector disfarcadamente. 0 que valerá por uma delacáo. A mala que restaria inocente, inodora, fora do caminho e de cogitacäo, será exposta na sala por um policial, e o seu conteúdo revolvido na presenca do inspector e dos bombeiros. O odor desabafado apagará os vestígios de gás no apartamento. 8 Eu estava na praia olhando o mar, o mar, o mar vomitando o mar, e agora já näo é fácil atravessar de volta a avenida. Sei que passa um pouco de meio-dia porque o movimento dos carros é intenso por igual nos dois sentidos. Levo dez ou vinte minutos retido no can-teiro central, junto de um poste com anúncio de cigarro e relógio digital enguigado. os números inacabados parecendo estranho alfabeto. Alcanco e balanco o portäo de ferro forjado do prédio da minha mäe, que o porteiro vem abrir andando depressa e chegando devagar, como um boneco de corda. Subo ao oitavo andar e a mala con-tinua ali, estatelada. Volto ao elevador arrastando-a com os pés. Sem saber porqué, deixo a mala atravancando a porta pantográfica, aperto com violéncia a campainha da minha mäe e entro correndo no elevador. Ao me ver baixar com a mala, o porteiro abre a boca com a inten-cäo de dizer «o paträozinho mal chegou de viagem e já vai outra vez?», mas o interfone toca na sua mesa. Ele atende e quase posso ouvir a voz da minha mäe recla-mando da campainha disparada. O porteiro näo fala nad a, apenas faz sim com a cabe^a, mas o faz com uma solicitude que deve chegar lá em cima. Desliga e diz «o doutor Lastriglianza do terceiro andar viu o camun-dongo». Repuxa a barra do colete listradinho e sobe pelo elevador de servico. Eu permane^o vinte ou qiia-renta minutos sozinho na portaria, olhando o intern....., «4 Chico Buarque .n hundo que vai tocar de novo. Saio pelas ruas de comércio, passando a mala de urna mäo para outra a rada quadra. Quando estäo ambas em carne viva, expe-rimento carregar a mala nos bracos, como enfermeiro carregando velho. Alivia bastante, mas näo consigo ver por onde ando. Paro na esquina de duas avenidas sem árvores e resolvo entrar numa loja envidracada, que eu julgava ser uma confeitaria mas é uma agéncia bancá-ria. Assim que ponho os pés lá dentro, apesar do ar fresco, sinto que posso ter dado um mau passo. Logo na entrada há um seguranca dentro de uma cápsula de ago, seus olhos como um casal de peixes gravitando no visor. Também säo do banco os dois vigias armados na esquina, que eu julgara guardas de transitu. Mais teme-rário que ter entrado num banco com essa mala, seria dar meia-volta e sair directo; os homens que entrant e saem com desenvoltura carregam pastas de couro fino ou maletas 007. Sd me resta sentar num canto de sofa, no mezanino acarpetado onde há várias pessoas com envelopes no colo, parecendo aguardar alguma coisa. Sento-me de frente para uma moca que creio conhe-cer e näo me lembro de onde. Ela também me olha. mas näo me cumprimenta, näo me sorri, alias me dá a impressäo de estar com os olhos marejados. Quando vejo as muletas apoiadas no braco do seu sofá, atino que é a irmä de um antigo conhecido meu, um que dava fes-tas numa casa com amendoeiras. Ela continua me olhando sem cumprimentar, e näo entendo por que deci-diu chorar numa agenda bancária. Está certo que é paralitica, mas isso ela já era naquele tempo, acho que pegou poliomielite aos quinze anos. Na época das festas, nun uns viňte, já devia estar conformada, mas a verdade ľ que nunca parei para pensar nos sentimentos dela. No saliio, r dani que da näo aparecia. Eu nan podia adivi-nlitir se moram ali desde recem-casados; ela Kstorvo 87 garante que na época o edificio se chamava Confiden-cial, e ele se lembra muito bem de Edificio Conde Arnaldo. Passados cinco anos, a porta ainda é de abrir por dentro, enliando a máo pelo buraco de um vidro que-hrado. Em seu quarto nos fundos do térreo, o zelador náo perde o programa do pastor Azéa, muito menos agora que é pela televisáo. Náo há elevador, e a luz das escadas apaga-se sozinha um minuto depois de acesa. Um minuto bastava-me para chegar ao terceiro andar, mas hoje, com a mala, sustentando a alca com os nos dos dedos, o blackout surpreende-me antes de eu com-pletar o primeiro lance. No meio da escada náo existe interruptor, e sinto que a mala pesa o dobro no escuro. Chegando ao primeiro andar, penso em pedir uma ajuda ao meu amigo. Acendo a luz. Meu amigo andou me procurando depois que casei, mas eu nunca soube o que ele queria. Descobriu meu telefone, e lembro agora que ligava numas horas que minha ex-mulher julgava inconvenientes. Ela atendia e dizia que eu estava no trabalho. dando plantáo. mas ele náo acreditava muito. Tomava a ligar dez minutos depois, e minha ex-mulher sempre alcangava o aparelho antes de mim. E se algo a deixava possessa, era dizer «aló» e ninguém se manifestar do outro lado. Eu achava que as vezes podia ser minha máe, mas ela jurava que náo, era sempre ele, a respiracáo era dele. Minha ex-mulher, que já náo simpatizava com o meu amigo. passou a detestar o telefone. A qualquer hora que tocasse, ela dizia «deixa tocar, que é aquele homem». Na cama, perguntava o que tanto aquele homem queria comigo, mas eu náo podia saber, nunca atendi ao telefone. E quando ela resolveu tirar o aparelho do gancho de uma vez por todas, considerei uma boa medida. Acendo a luz. KH Chico Buarque Preciso levar essa mala sozinho até ao fim. Assim que ele abrir a porta, pretendo empurrá-la para dentro e descer sem falar nadá. Ele ficará um tempo olhando a mala, duas horas olhando aquela mala amorfa, e poderá concluir que eu tenha vindo devolver uns livros. Sim. os poetas, ou os romances, ou a filosofia, a história universal, o atlas, a enciclopédia, sabe lá quantos volumes devolvidos com cinco anos de atraso, dai eu ter fugido envergonhado. Já näo se lembrando dos livros que me emprestou, meu amigo abrirá a mala com curiosa nostalgia, como se abrisse uma heranca dele mesmo. Sur-giräo as folhas de bananeira, já dilaceradas, e por baixo delas a maconha. A primeira reacgäo será de repug-näncia, menos pela maconha que pelo inesperado. Como repugna a consisténcia do que se pôe na boca por engano. Meu amigo fechará a mala imediatamente. mas a ideia da maconha sobrará do lado de fora. E quando ele abrir a mala pela segunda vez, o fará com o lado avesso da curiosidade-, abrirá passando a mäo por dentro, com o deleite de descobrir devagar o que já é coisa escancarada. Acendo a luz e invisto no proximo lance. A certeza de que a mala estará em boas mäos é estimulante. Ima-gino-a aberta no chäo da sala, o meu amigo ouvindo os clássicos, as visitas sorvindo-se, e näo dou um més para ele sair na pista do meu novo endereco. Ľ capaz de per-guntar por mim na boutique da minha ex-mulher. Talvez ligue até para a casa da minha mäe em horário incon-veniente, mas já sei que minca mais me encontrará. A minuteria apaga-se quando estou a dois degraus do segundo andar; aqui a escuridäo é parcial, pois uma ligeira réstia chega do corredor. De alguma porta encos-lada escapa também um cheiro de alho. e a V02 de uma mulher cantando «vivo pensando no mal, no que pode acontecer...». Ha interrompe a Cfing&o,