para náo fazer barulho. E foi escutar á porta. Tinham-no ouvido. Lucínia estava a dizer: «Deita-se já e adormece... Foi ele que entornou o petróleo...—Petrólco?... — Coitado.... Mas isto náo pode ser tudo petróleo...» — «Chch...» Foi ťechar á chave a porta que dava para a escada. A gasolina tinha passado por baixo da porta do quarto da filha. Entáo despejou no sohrado o reslo da lata e lancou-lhc o logo. Foi um claráo eomo sc a casa explodisse. Dentro do quarto ouviu-se um grande grito e um estrondo contra a porta. Línguas pretas dum (umo oleoso que cegava lambiam o tecto. Eles, dentro do quarto, gritavam aílitivamentc e ati-ravam-se contra a porta para a arrombar. Mas a porta náo cedia para nenhum lado. O arame era grosso e resistia. O fumo preto e peganhento encheu a casa toda e asfixiava. Vasqucs, como um louco, tentava arrombar a porta do quarto... Mas foi um momento. Depois já náo sc ouvia nada... Si6 a madeira que estalava... Por debaixo da porta saíam rolos dc fumo como tinta. E o Resto, que tinha ficado ali a . er se eles conseguiam sair, caiu asfixiado e com a roupa a ai der. Durante toda a noitc, aquele quarteiráo de casas vellias e podres ardeu e iluminou o ecu... Os bombeřros sailavam como bonccos de lata enquanto a água das agulhetas subia ao ar em repuxos vistosos. E o povo da cidadc, em volta, olhava como nas fogueiras do S. Joáo... A GEMEA BRANQUINHO DA FONSECA 344 Comegou a amanhecer... Carma continuava imóvcl, es-tendida na cama, com os olhos esgazeados... Uma luz baga esfumava o quarto, fazia surgir os móvcis, a mesa, ao fundo, com os retratos dos pais e da irmä, a jarra com aquele ramo dc florcs, a cadeira em que ele se sentava... Nos vidros cin-zentos da janela batia uma chuva leve que náo se ouvia e depois ficava a escorrer por eles abaixo, devagar... O céu escuro parecia encostado ä vidraca... E Carma já näo via nada, já näo pensava, sentia-sc longe, adormecer, desaparecer... A chuva na vidraca dava um ruído distante e dormente... Voltou a cabeca no travesseiro e olhou o relógio, a janela, ficou a olhar com aquclcs olhos parados de quem näo vé... Em todo o mundo näo havia sol, náo havia ninguérn, e o amolecer, aquele moer da chuva era dentin dela, dentro duma vida vazia, a rcpassá-la, a desřazer-se desde a alma até äs casas duma cidade escura, mole, onde estava a lembrar-se de ontem e de quando era pequena, de caracóis e de bibe, a brincar, a can-tar c a dangar de mäos dadas com a irmá gémea, sempře vesüdas de igual e täo parecidas que ninguem as distinguia... Ägora olhava em volta e tudo que ali a rodeava lhc parecia longe... diluído na névoa do comeco dum mundo ou do fim... Durante toda a noite näo tinha dormido, tinha febre e senlia uma distäncia da vida como se nunca tivesse vivido... E agora também já näo podia ser... Queria desaparecer... desaparecer naturahnente, sem sentir, como fumo que se desfaz no .céu... Mas parecia-lhe que estava presa a qualquer coisa que nao podia saber o que era... Uma sensagäo indefiiüda de que vivia vagamente ligada a tudo e de que, assim, mesmo quando morresse, nunca deixaria de existir... «Ali...!...» como um suspiro fraco e uma dor fina no peito vazio, em toda ela, desde 347 Zonas "T sempře, para sempře... Fechava os olhos... A chůva conti-nuava a bater-lhe de ]eve na vidraga com um ruído surdo dentro da cabcga que se desfazia com tudo em que queria pensar, tudo a envolver-se, a confundir-se, a esvair-se de já náo poder pensar mais... «Náo...» «Náo!...» E ainda há pou-co tempo era tudo táo diferente... Foi só depois da mořte da irmá, depois daquele dia em que soubc que cla estava a mor-rer e em que quis ir lá para o pé, vé-la. Desde que a irmá fugira de casa, poucas vezeš tinham tornádo a ver-sc. Quando os pais morreram, Carma ficou só, abandonou a casa onde tinha vivido, alugou um quarto e teve de comecar a ganhar a vida. Nos primeiros tempos, a irmá vinba, por vezes, visitá-la e trazia-lhc presentes, coisas de que ela precisava, vestidos, sapatos... Depois, já náo. Pass;i ain -se anos em que náo se viram. Eram gémeas e chamavam-se ambas Leonor: uma Lconor Maria, outra Leonor Carma. E nenhuma delas gostava da táo extraordinária semelhanga que tinham uma com a outra. Desde pequena, Leonor tinha muito orgulho da sua beleza, desprezava a irmá e achava ridículo quando as confundiam. Mas era verdadc. Carma era tímida e triste. Um dia, Leonor fugiu de casa com um namo-rado que era empregado num banco e fez um desfalquc. E durante alguns anos ninguém soubc dclcs. Sabia-se qlic tinham fugido para o estrangeiro, mas náo se sabia para que país. Até que, por fim, cle foi preso em Espanha e ela, algum tempo depois, reapareceu em Lisboa com o velho condé de Sobrali. Era muito nova e bela. Uma mulher gloriosa... Foi entáo que Júlio Sena a conheceu e se apaixonou por ela. E Leonor amou-o. Júlio era rico, novo e elegante. Uma pes-soa aparentemente serena mas, no fundo, um espírito som-brio e estranho. Náo tinha amigos. Vivia isolado. Quando, casualmente, conheceu Leonor, comegou para ele um in.n-do novo. Primeiro a alegria dela chocou-o muito, mas depois, quando comecou a amá-la mais e a domina-la, parecia--Ihe que ela era qualqucr coisa de si próprio que até esse momento lhc tinha faltado. Leonor amava-o com síiilli klade c com medo. Júlio Sena adorava-a com a superstigáó de que era ela a mulher predestinada a dar-lhe o filho que ele desejava, que era só do sangue dela que ele podia vir. Despia-a todos os dias e ficava a olhar-lhc o corpo perfeito, sem sen-sualidade carnal, com a sensualidade do escultor a olhar a pedra de que vai fazer uma estátua. Dos olhos dela, da voz, daquele corpo, daquele sangue que via correr nas veias azuis que atravessavam o corpo branco de Leonor, ele sentia vir a imagem, a vida do filho que sempře tinha sonhado e espera-do como uma necessidade f atol... E foi quando estavam para casar que ela adoeceu e morreu. Júlio acompanhou-lhe a doenca até ä morte, apa-rentando sempře uma estranha serenidade. Parecia resigna-do como se aquilo náo fosse irrcmediável. Náo se revoltava, «Deus sabe...» Mas parecia-lhe que também lhe faltava for-ca; de dia para dia sentia um profundo abatimento de que náo podia defender-se. E naqucle dia, quando Carma entrou no quarto da irmá que estava a morrer, Júlio nem deu por isso, hirto na cadeira em que estava sentado a olhar a mo-tibunda. Mas no momento cm que Carma se deitou sobre o leito e falou abracada ä irmá, Júlio num estremecáo violento pôs-se em pé com os olhos esgazeados. A mulher que ele tinha sempře amado náo era a que estava ali a morrer com a pele seca sobre os ossos da cara, sem olhos, sem fala, era aquela que chegava agora com os olhos cheios de lágrimas, á voz serena e angustiosa. Era Leonor!... Quando Carma se levantou de cima da irmá, viu Júlio em frente, em pc, a olhá-la como se tivesse enlouquecido. Comecou a dar a volta ä cama, a aproximar-se dela, com os olhos parados a fitá-la, e entáo Carma teve medo. A mori-bunda comprcendeu tudo e disse para ele: — Sou eu?... Júlio caiu sobre a cama, com a cara aos pés dela, a so-lucar. Carma lembrava-se bem desse momento que nunca lhe podia esquecer. E naqucla noite ficou lá em casa. Queria estar no quarto da irmá, ao pé dela, a querer que ela vivesse, a vě-la de perto, a dar-lhe vida e náo pôde. Foi para uma sala eontígua, onde ficou sentada numa cadeira. E náo podia sair dali: parecia-lhe que enquanto acolá estivesse sem se mexer, ela náo podia morrer, que lhe segurava a vida, que náo dei- BRANQUINHO DA FONSECA 348 349 Zonas xava estremecer, quebrar... Ali esteve petrificada, com as máos agarradas aos bragos da cadeira, suspensa, a olhar a porta do quarto. As Iágrimas escorriam-lhe pěla cara abaixo. Tinha com.cc.ado a anoitcccr... E nesse momcnto viu Júlio, transfigurado e sereno, abrir devagar a porta e ficar parádo a olhar para ela. Náo teve forcas para nada, para se levantar, para gritar... As Iágrimas secaram-se-lhe nos olhos, Ficou imobilizada como se também já náo tivesse vida. Ele deixou a porta aberta e atravessou a sala, passou ao pé dela, como um sonámbulo. Depois vieram duas eriadas vestidas de branco, levaram-na, atravčs daqueles corredores enormes, para um quarto onde estava uma cama e disseram-Ihe que se dcitasse, que descansasse... Sentia-se arrastada eternameň-te, sem forcas, c parecia-lhe que a irmá náo tinha morrido, que tinha sido outra coisa, uma coisa qualquer, que chegava quase a compreender, mas náo... E era dentro de toda cla, que Ihe faltava, que sentia só agora, mas que já vinha de há muito tempo, de sempře!... Ficou naquele quarto sentada sobre a cama a olhar no escuro tudo que lhe lembrava da sua vida. Durante toda a noite aquela casa enorme envolveu-a ; num siléncio pesado que enterrava. E as luzes de todas as salaš estavam acesas: náo parecia dc noite e era sobreuatu-ral. Quando amanheceu passou uma banda na rua, a tocař..'.-.rM Entáo ergueu-se da cama c foi, pelo palácio sem fim, pro-curar o quarto da irmá. E encontrou-a vestida de noiva, dei- : tada entre duas filas de enormes vclas acesas, toda rodeada de montes de flores brancas, estendida sobre a cama. Estava muito pálida, com as máos postas sobre o peito, e náo parecia morta. As velas acesas, as flores em volta, eram a ónica coisa que o dizia. Carma caminhou até ao pé da cama e ajoelhou-se. Depois vieram outra vez as duas eriadas vesti- ; das dc branco e levaram-na para o mesmo quarto onde tinha estado durante a noite. Deixava-se levar, náo dizia nada: «Deixem-me, dcixem-me ficar aqui...» mas estas palavras só as pensava, náo chegava a dizé-las... Tinha sido sempře as-sim a sua vida, sem reacgáo... Voltou para o quarto e deitou -se sobre a cama. E nunca mais tornou a ver Leonor... No dia seguintc, uma das eriadas foi acompanhá-la a casa... BKANUUINHO DA FONSECA 350 Depois comegaram a passar uns dias durante os quais algumas amigas vinham fazer-lhe companhia. E entao, a pouco e pouco, tudo recomecou outra vez a decorrer natu-ralmente, como se nao tiyesse acontecido nada... Faltou durante quatro dias nos escritorios onde trabalhava como dactilografa, ate que lhe mandaram dizer que, se ela nao podia retomar o scrvigo, se viam obrigados a substituf-la. Foi. As companheiras olharam muito para ela, com tristeza. E tudo caiu na calma asfixia dos dias de toda a gente... As pessoas na rua... as companheiras tristes, tristeza em tudo, em todos os olhos... o ruido das ruas que adormenta... o silencio de noite que estala os nervos... Levantava-se as oito horas, ia para o escritorio e durante todo o dia, enquanto o sol batia nos vidros da janela e enchia a rua, e o alto-falante da casa de discos, em frente, tocava sempre aquela cangao Tenho a Minha Namorada, tanto em voga, que ate o vizinho, la do quarto, tambcm ja assobiava, a noite... durante todo o dia Carma copiava a maquina «Ex.mo Sr. ...» «Ex.mo Sr. ...». Ate que as seis horas saiam. E as companheiras, quase todas, tinham um namorado a espera, la em baixo, na rua... Ela ia para casa, a pressa, perseguida pelas gragas que lhe diziam os homens que reparavam nela e a desejavam. Al-guns seguiam-na e por vezes vinham falar-lhe... Mas por fim desanimavam. E era assim todos os dias assim... Carma ja conscguia viver indiferenle e alheia a tudo isto que a rodea-va... E os dias foram passando. Ate que uma tarde, ao entrar no quarto, encontrou debaixo da porta um cartao de Julio Sena. E no dia seguinte, quando saiu dos escritorios, viu-o pk rua, a espera dela. Veio falar-lhe e acompanhou-a ate casa. Mas no outro dia tornou a encontra-lo... Agora, Carma, dei-tada na cama, com os olhos abcrtos, parados, estava a vcr tudo como se tivesse sido neste instante. Naquele dia, Julio tinha-a olhado muito, de longe, e depois seguiu por outra rua. Mas estes encontros comegaram a acontecer habitual-mente. Todos os dias o encontrava de manha e depois ao anoitecer, quando voltava para casa. Ele ficava alegre quando a via, vinha falar-lhe e caminhava devagar, ao lado dela, pcla rua. Carma sentia um confrangimento mas ao mcsmo 351 tempo parecia-lhe que gostava de o ouvir, de conversar com ele. Aquela sensacáo de isolamento no mundo já náo a sen-tia tanto. Comecava a achá-lo simpático e parecia-lhe leal e sincere Mas, sempře que os assuntos tomavam um tom de mais intimidadc, ela sentia um choque de frieza, uma repugnán-cia inexplicável que Ihe era dolorosa. Um dia Júlio disse-lhe: «Náo tenho amigos. Vocě é a única pessoa de quem sou amigo e que queria que fosse também minha amiga.» Carma náo respondeu, mas sentia também por ele uma amizade sincc-ra. Júlio tornara-se para ela a única companhia, a única pessoa de quem alguma coisa a aproxiinava. E por fim, quando alguma vez náo encontrava Júlio nos sítios onde ele coslumava esperá-la, já ficava inquicta, parava, comecava a caminhar mais devagar, á espera que ele chegasse. Mas logo que o via, tinha vontade de fugir-lhe, de ir esconder-se em casa, de náo o ouvir, dc náo lhe falar... Até que um dia, uma das companheiras disse-lhe: «Daqui a pouco és uma princesa!... tens palácios... automóveis... vestidos de Paris... eria-dos fardados...!!...» Entáo, de repente, Carma compreendeu. Ficou perplexa. E como todas as companheiras sorriam, ela teve também um sorriso que parecia imbecil. Quando h..iu, foi para casa, por outra rua. Chegou ao quarto, fechou a porta por dentro á chavc e ficou em pé, encostada aos vi-dros da janela, a pensar, a relacionar tudo como se tivesse vertigens... Era verdade. Lá em baixo, na rua, acenderam-se as luzes; nas casas em frente, numa janela, uma rapariga ao pé dum candeeiro costurava... o vizinho, através da porta, comegou a assobiar a tal cangáo em voga... Carma sentia-sc desfalecer, já náo podia pensar com clareza, ver bem, com inteligéncia. Por instantes serenava e entáo parccia-lhe que já tinha sido hi muito tempo e que náo tinha sido com ela... Mas ouviu umas pancadas, levemente, a baterem na porta do quarto... Julgou que náo era. Mas ouviu outra vez. Foi abrir. E viu Júlio todo vestido de preto, como sempře, com o chapču na máo, parádo a olhar para ela, sem di/.ei nadá. Sentiu um calafrio e maquinalmente estendeu as máos para receber um rámo de fibres brancas que Júlio lhe oferecia. Ele entrou c sentou-se numa cadeira, encostado á parede. Carma olhava as flores que tinha na máo, que eram iguais as que tinha visto em volta da irmá. Júlio pedia-lhe desculpa de ter vindo visitá-la, mas que precisava de lhe falar. E falou da sua vida, do que tencionava fazer, do que pensava de si, e Leonor ouvia, inconsciente, sem ter nada que lhe respon-der... Júlio dizia-lhc que a considerava como a sua única pessoa de família. E olhava-a fixamente. Leonor estremecia e estava pálida. Ele continuava a falar, a dizer que a considerava como irmá, como a única pessoa que tinha no mundo. E dizia que nem ele podia continuar no isolamento em que vivia, nem ela, que a sua casa agora lhe pertencia também, que fosse para Iá, se ele lhe merecia essa prova de amizade. De repente calou-se e depois numa voz decisiva e serena disse-lhe: «Carma. Devo dizer-lhe antes a verdade...» E disse que a amava, que a amava como nunca tinha ama-do. Os olhos brilhavam-lhe, cheios de lágrimas. E Carma queria falar, sem poder. Ele levantou-se da cadeira e cami-nhou para ela. Olhava-a com imploragáo, com um olhar angustioso, como se das palavras que ela ia dizer dependes-sc a sua vida. E Carma sentia a verdade daquele olhar do-loroso. Era ela, Leonor!... Os mesmos olhos, o mesmo tom de voz, o mesmo corpo, tudo, toda cla... E Júlio parou dian-te de Carma e ficou calado. — Quer?... E agarrou-lhe as máos com ternura. Carma recuou num súbito estremecáo e alirou-se sobre a carna a solucar. Júlio caminhou para a cabeccira do leito e poisou-lhe a máo sobre os cabelos: — Carma... Pcrdoc-me E saiu. Mas no dia seguinte voltou á mesma hora... Sentou-se na mesma cadeira c falou naturalmente duns amigos que tínham ido visitá-lo. Tirou do bolso uma caixa com uma pulseira de pedras azuis e pós-lha no braco. Era igual a uma <■!"." .-i irmá tinha, talvcz a mesma. Perguntou-lhe se tinha saído de casa. Carma respondeu que náo, e entáo ele acon-selhou-lhe: que, estar assim sempře fechada em casa, fazia BKAN