http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v039.txtO Sentimento dum Ocidental Baudelaire: http://poesie.webnet.fr/poemes/France/baudelai/32.html I Avé­Maria Nas nossas ruas, ao anoitecer, Há tal soturnidade, há tal melancolia, Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia Despertam­me um desejo absurdo de sofrer. O céu parece baixo e de neblina, O gás extravasado enjoa­me, perturba; E os edifícios, com as chaminés, e a turba Toldam­se duma cor monótona e londrina. Batem carros de aluguer, ao fundo, Levando ŕ via­férrea os que se văo. Felizes! Ocorrem­me em revista, exposiçőes, países: Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo! Semelham­se a gaiolas, com viveiros, As edificaçőes somente emadeiradas: Como morcegos, ao cair das badaladas, Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros. Voltam os calafates, aos magotes, De jaquetăo ao ombro, enfarruscados, secos; Embrenho­me, a cismar, por boqueirőes, por becos, Ou erro pelos cais a que se atracam botes. E evoco, entăo, as crónicas navais: Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado! Luta Camőes no Sul, salvando um livro a nado! Singram soberbas naus que eu năo verei jamais! E o fim da tarde inspira­me; e incomoda! De um couraçado inglęs vogam os escaleres; E em terra num tinir de louças e talheres Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda. Num trem de praça arengam dois dentistas; Um trôpego arlequim braceja numas andas; Os querubins do lar flutuam nas varandas; Ŕs portas, em cabelo, enfadam­se os lojistas! Vazam­se os arsenais e as oficinas; Reluz, viscoso, o rio, apressam­se as obreiras; E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras, Correndo com firmeza, assomam as varinas. Vęm sacudindo as ancas opulentas! Seus troncos varonis recordam­me pilastras; E algumas, ŕ cabeça, embalam nas canastras Os filhos que depois naufragam nas tormentas. Descalças! Nas descargas de carvăo, Desde manhă ŕ noite, a bordo das fragatas; E apinham­se num bairro aonde miam gatas, E o peixe podre gera os focos de infecçăo! II Noite Fechada Toca­se ŕs grades, nas cadeias. Som Que mortifica e deixa umas loucuras mansas! O Aljube, em que hoje estăo velhinhas e crianças, Bem raramente encerra uma mulher de <>! E eu desconfio, até, de um aneurisma Tăo mórbido me sinto, ao acender das luzes; Ŕ vista das prisőes, da velha Sé, das Cruzes, Chora­me o coraçăo que se enche e que se abisma. A espaços, iluminam­se os andares, E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos Alastram em lençol os seus reflexos brancos; E a Lua lembra o circo e os jogos malabares. Duas igrejas, num saudoso largo, Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero: Nelas esfumo um ermo inquisidor severo, Assim que pela História eu me aventuro e alargo. Na parte que abateu no terremoto, Muram­me as construçőes rectas, iguais, crescidas; Afrontam­me, no resto, as íngremes subidas, E os sinos dum tanger monástico e devoto. Mas, num recinto público e vulgar, Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras, Brônzeo, monumental, de proporçőes guerreiras, Um épico doutrora ascende, num pilar! E eu sonho o Cólera, imagino a Febre, Nesta acumulaçăo de corpos enfezados; Sombrios e espectrais recolhem os soldados; Inflama­se um palácio em face de um casebre. Partem patrulhas de cavalaria Dos arcos dos quartéis que foram já conventos: Idade Média! A pé, outras, a passos lentos, Derramam­se por toda a capital, que esfria. Triste cidade! Eu temo que me avives Uma paixăo defunta! Aos lampiőes distantes, Enlutam­me, alvejando, as tuas elegantes, Curvadas a sorrir ŕs montras dos ourives. E mais: as costureiras, as floristas Descem dos magasins, causam­me sobressaltos; Custa­lhes a elevar os seus pescoços altos E muitas delas săo comparsas ou coristas. E eu, de luneta de uma lente só, Eu acho sempre assunto a quadros revoltados: Entro na brasserie; ŕs mesas de emigrados, Ao riso e ŕ crua luz joga­se o dominó. III Ao gás E saio. A noite pesa, esmaga. Nos Passeios de lajedo arrastam­se as impuras. Ó moles hospitais! Sai das embocaduras Um sopro que arripia os ombros quase nus. Cercam­me as lojas, tépidas. Eu penso Ver círios laterais, ver filas de capelas, Com santos e fiéis, andores, ramos, velas, Em uma catedral de um comprimento imenso. As burguesinhas do Catolicismo Resvalam pelo chăo minado pelos canos; E lembram­me, ao chorar doente dos pianos, As freiras que os jejuns matavam de histerismo. Num cutileiro, de avental, ao torno, Um forjador maneja um malho, rubramente; E de uma padaria exala­se, inda quente, Um cheiro salutar e honesto a păo no forno. E eu que medito um livro que exacerbe, Quisera que o real e a análise mo dessem; Casas de confecçőes e modas resplandecem; Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe. Longas descidas! Năo poder pintar Com versos magistrais, salubres e sinceros, A esguia difusăo dos vossos reverberos, E a vossa palidez romântica e lunar! Que grande cobra, a lúbrica pessoa, Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo! Sua excelęncia atrai, magnética, entre luxo, Que ao longo dos balcőes de mogno se amontoa. E aquela velha, de bandós! Por vezes, A sua trai^ne imita um leque antigo, aberto, Nas barras verticais, a duas tintas. Perto, Escarvam, ŕ vitória, os seus mecklemburgueses. Desdobram­se tecidos estrangeiros; Plantas ornamentais secam nos mostradores; Flocos de pós­de­arroz pairam sufocadores, E em nuvens de cetins requebram­se os caixeiros. Mas tudo cansa! Apagam­se nas frentes Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco; Da solidăo regouga um cauteleiro rouco; Tornam­se mausoléus as armaçőes fulgentes. <> E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso, Pede­me esmola um homenzinho idoso, Meu velho professor nas aulas de Latim! III Horas mortas O tecto fundo de oxigénio, de ar, Estende­se ao comprido, ao meio das trapeiras; Vęm lágrimas de luz dos astros com olheiras, Enleva­me a quimera azul de transmigrar. Por baixo, que portőes! Que arruamentos! Um parafuso cai nas lajes, ŕs escuras: Colocam­se taipais, rangem as fechaduras, E os olhos dum caleche espantam­me, sangrentos. E eu sigo, como as linhas de uma pauta A dupla correnteza augusta das fachadas; Pois sobem, no silęncio, infaustas e trinadas, As notas pastoris de uma longínqua flauta. Se eu năo morresse, nunca! E eternamente Buscasse e conseguisse a perfeiçăo das cousas! Esqueço­me a prever castíssimas esposas, Que aninhem em mansőes de vidro transparente! Ó nossos filhoes! Que de sonhos ágeis, Pousando, vos trarăo a nitidez ŕs vidas! Eu quero as vossas măes e irmăs estremecidas, Numas habitaçőes translúcidas e frágeis. Ah! Como a raça ruiva do porvir, E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes, Nós vamos explorar todos os continentes E pelas vastidőes aquáticas seguir! Mas se vivemos, os emparedados, Sem árvores, no vale escuro das muralhas!... Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas E os gritos de socorro ouvir, estrangulados. E nestes nebulosos corredores Nauseiam­me, surgindo, os ventres das tabernas; Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas, Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores. Eu năo receio, todavia, os roubos; Afastam­se, a distância, os dúbios caminhantes; E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes, Amareladamente, os căes parecem lobos. E os guardas, que revistam as escadas, Caminham de lanterna e servem de chaveiros; Por cima, as imorais, nos seus roupőes ligeiros, Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas. E, enorme, nesta massa irregular De prédios sepulcrais, com dimensőes de montes, A Dor humana busca os amplos horizontes, E tem marés, de fel, como um sinistro mar! Cesário Verde