Autopsicografia O poeta é um fingidor. Finge tăo completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Năo as duas que ele teve, Mas só a que eles năo tęm. E assim nas calhas de roda Gira a entreter a razăo, Esse comboio de corda que se chama o coraçăo. Fernando Pessoa Isto Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Năo. Eu simplesmente sinto Com a imaginaçăo. Năo uso o coraçăo. Tudo o que sonho ou passo, O que me falha ou finda, É como que um terraço Sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda. Por isso escrevo em meio Do que năo está de pé, Livre do meu enleio, Sério do que năo é. Sentir? Sinta quem lę! Fernando Pessoa D. SEBASTIĂO Rei de Portugal Louco, sim, louco, porque quis grandeza Qual a Sorte a năo dá. Năo coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve, năo o que há. Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia. Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria? Fernando Pessoa, in Mensagem O Infante Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Deus quis que a terra fosse toda uma, Que o mar unisse, já năo separasse. Sagrou-te, e foste desvendando a espuma, E a orla branca foi de ilha em continente, Clareou, correndo, até ao fim do mundo, E viu-se a terra inteira, de repente, Surgir, redonda, do azul profundo. Quem te sagrou criou-te portuguęs. Do mar e nós em ti nos deu sinal. Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. Senhor, falta cumprir-se Portugal! Fernando Pessoa, in Mensagem