perdida no descampado. Espectros de um ou outro hörnern ou mulher olhavam-me no carro parádo, olhavam o silén-cio em redor. Regressámos enfim pelo mesmo caminho. Quando, porém, chegámos ao monte do semeador, saltou--nos ä frente um grupo de pessoas numa sarilhada de gri-tos, de imprecacöes, bracos no ar, bracos apontados para urna loja. Moura saiu do carro e o magote de gente se-guiu-o. Fiquei só. Mas o medico regressava dai a pouco, pálido, transtornado. — Que aconteceu? Ele náo respondeu logo, conduzindo o carro aos tro-pecöes. E só quando o monte se náo via já me declarou: —'O hörnern enforcou-se. VI Senti-me embrutecido, atordoado em todo o corpo. Era espanto e fúria e terror. Era essa indizível e total suspensao em que a absurda evidencia nos esmaga pela absoluta cer-teza e absoluta impossibilidade. Sei e recuse Uma viólén-cia iluminada incha-me no cérebro, estala-me o cranio como uma massa solar. Pensar, reflectir, como?, como? Apenas vejo, apenas vejo, fascinado, imóvel. Apanha-me todo e queima-me e endurece-me nas máos enclavinhadas uma sur-da intoxicacáo. Moura, a meu lado, nada diz. A luz obscura da tarde parece-me que envelheceu. A gordura que lhe en-chia a face feliz descai-lhe agora para o pescocp em pregas flácidas. Os campos estendem-se a perder de vista, o ar acende-se de um ultimo claräo. Que fazemos nós na vida? Que inerível pertinácia nos resolve numa ilusao toda a imensidade do milagre de estar vivo? Náo vale entáo nada, meu velho desconhecido, esse prodígio de seres, em face de uma mäo que náo é já a de um sěmeador? Tinha uma missáo a executar, uma extraordinária notí-cia a transmitir. Precisava urgentemente de fazer a confe-réncia, de revolucionár o mundo. Porque o mundo apare- 56 57 cia-me sob a forma de uma absurda estupidez. Era neces-sário que todos os homens vivessem em estado de lucidez, se libertassem das pedras, chegassem ao milagre de ver. Era absolutamente necessário que a vida se iluminasse na evidéncia da mořte. Viriam a chamar-me «morbido», «doen-tio». Porque? Mais real do que o nascer era o morrer. Por-que quem nasce é ainda nada. Mas quem morre é o uni-vcrso, é a pura necessidade de ser. Um homem só é per-feito, só se realiza até aos seus limites, depois de a mořte o näo poder surpreender. Näo porque a tivesse decorado como um gato-pingado, näo porque a tivesse esquecidoi mas por té-la incorporado na plenitude da vida. Sabia bem quanto era difícil já.oáo digo esta aceitacao esclarecida mas até o ver o problema, sofrer o impacto da sua fulgurante apari?ao. Eu proprio quantas vezeš o esqueco! Quantas vezeš me remordo em desespero, porque nadá vejo, ijada vejo! A parte animal do homem, a parte gorda, a que tem sono e quer dormir é brutalmente pesada. Mas agora eu sei, eu vejo. Procuro por isso o Chico na sua repartigäo. Näo está: saiu para uma avaliacäo de prédios ou o exame de.alguma construcäo. Procuro-o no café depois das cinco: näo está também. Vou enfim a sua casa. Mora ao pé de S. Francisco, numa casa que dá para o Jardim. Bato ä porta: iam ver se o senhor engenheiro estava. E ele aparece enfim, de roupäo e um cigarro entre os dentes. O quarto é grande e no rés-do-chao. Quando pas-sam carrocas na calcada, o soalho estremece. Passam conš-tantemente carrocas, mesmo a horas tardias. Ouco-as ainda agora, martelando toda a cidade, percorrendo em fila as estradas da planície. Levam fardos de palha moída, lenha para os fornos, azeite, louca de barro. Ena minha imagem distante, filtrada pělo tempo, unem-se á figuracäo de um pcnco, ue uin ventre e race goraa, ae notas ae conco esro-lhadas nas mesas do café a térca-feira, essas carrocas rijas com machos e almocreves, martelando a cidade de uma me-mória de terra e de estrume. Chico pergunta-me: — Entáo que há, professor? Tratava-me por «professor», que era a formula mais čerta para ele de uma camaradagem tolerante. Eu tratava-o por «Chico» e ás vezes por «engenheiro». — Pensei já na conferéncia — disse eu. — Optimo. Mas a coisa nao vai ser fácií. Falei já com os senhores da Harmonia, mas eles nao se entusiasmaram. De que vai voce falar? De cortica? De adubos? Nao vai'. Bom. nesse caso está tramado. — Vou falar de uma coisa nova, de uma descoberta extraordinária. — «Descoberta»? Entao nao é para a Harmonia: é para a Academia das Ciéncias. Eu fumava, nervoso. Um candeeiro estampava a luz na secretária, dissolvia o quarto em penumbra. Sentia-me pos-suido da minha evidéncia e mal reparei assim na ironia do engenheiro. Queria falar, tinha de falar. — A minha descoberta destina-se a toda a gente. Nem é uma descoberta. Quero dizer: é a descoberta de uma aprendizagem. O engenheiro recostou-se na cadeira como um advogado que se informa ao atender um cliente. Eu estava numa situacao de inferiorídade e o que desejava nao era uma tole-rancia mas uma comunhao. De súbito, porém, bateram a porta. O engenheiro mandou entrar e quern apareceu £oi um moco meu aluno. Mostrou-se embaracado com a minha presenca, prometeu sair logo. 58 59 — Poděs ficar — disse o engenheiro. — O senhor don-tor dá licenca. É meu primo — acrescentou para mim. Náo dera ainda tal licenca. Mas concordei. Era o Caroline), meu aluno de Literatura, moco bisonho, com a cara erivada de espinhas e a quem por isso os colegas chamavam o Bexiguinha. — Lá passei no Redondo. O teu pai näo estava — decla-rou o engenheiro ao rapaz. — Mas estava a tua mäe... Näo aereditou lá muito nessa história de mais livros. Mas mandou o dinheiro. E passou notas ao rapaz, que as guardou em siléncio, corando fortemente. O engenheiro acendeu novo cigarro, recostou-se outra vez: — Mas diga entäo, professor. Näo, amigo. Näo é para essa tua fleuma abundante que eu tenho voz. Procura! O rasto da tua radiacao divina, o lume secreto da tua aparicäo, onde está? Onde o perdeste, amigo? Em que recesso do teu ar monolítico? Trago o eco perdido do ermo de ti proprio. E tu, pobre Bexiguinha de olhos alagados de estupefacejío? Éš tu só entäo que me estás ouvindo? Mas de que falo eu, afinal? De que nada täo brutal de fúria e solidäo? Descobri as raizes da minha vida, ■< a flagräncia do que sou. E falo, falo. O entusiasmo incen-deia-me, as minhas palavras säo já quase só vibracao. Mas só talvez assim estejam certas, como um ferro em brasa que nos atinge näo pelo ferro que é. — A descoberta que proponho é bem dificil — insist! eu. — Näo Ihe contei ainda o caso do hörnern que se en-forcou? — Contou-me o Moura — disse Chico. — Que foi? Que foi? — perguntou o Bexiguinha na voz fina e cantada da sua terra e que assim o enfraquecia como a uma crianga. — Encontrámos um hörnern há dias, quaňdo o doutor Moura ia ver um doente. O hörnern queixava-se de que já näo tinha uma boa mäo para semear. A volta, quando pas-sámos outra vez pelo monte, o hörnern tinha-se enforeado. Bexiguinha abriu os olhos e a boca. — É preciso veneer esta surpresa que nestes casos nos esmaga. Ajustar a vida ä morte. Achar e ver a harmonia de ambas. Mas achá-la depois de sabermos bem o que é urna e outra, depois de nos encandearmos na sua iluminacäo. Sab:a acaso o hörnern o milagre que destruía? Mas eu sei. — Como se sabe, senhor doutor? — perguntou-me o Carolino na sua voz ridícula, que tanto me desmanchava. E de repente, em face do interesse do rapázinho, näo dito em palavras mas expresso na sua avidez, de novo me empolgou a fúria de revelar. Virei-me para o Bexiguinha, falei só para ele. E perguntei: — Porque é que, no siléncio da noite, nos assusta falar em voz alta? Nunca fizeste essa experiéncia? — Nunca fiz, senhor doutor — respondeu ele no seu tom de falsete. Era preciso fazé-Ia. Mergulhados no siléncio nocturno, sentimo-nos näo existir. O que existe é como que o abso-luto do mundo, a presenca aguda das coisas. O universo aguarda a vinda do primeiro hörnern. E subitamente gri-tamosj «Eu estou vivo, EU SOU.» E falamos connosco, fa-zemo-nos perguntas. Sobe-nos entäo ä garganta urna surpresa de terror: «Quem sou eu? Quem está aqui comigo?» Dá vertigens. É como se nos aparecesse um fantasma e esti-vesse dentro de nós e fosse alguém a mais e visse pelos nossos olhos e faíasse pela nossa boca. Só os doidos falam 60 61 sozinhos, porque näo tém medo. O mundo para eies näo existe: só existe a sua loucura. Por isso nós, se falamos, nos sentimos doidos, separados subitamente do mundo. O que existe entäo näo é o quarto onde estamos, os livros, a noite; o que existe é este vulcäo brutal que saí de nós, o jacto do deus que nos hab'.ta, esta monstruosidade que nos ador-mecia dentro. Mas de subito o telefóne tocou. Chico ergueu-se pesa-damente, foi atender. — Como está? Sim... Näo, näo... Pois... Os alicer... Pois... Os alicer... Näo, eu já lhe tinha dito. Os alicerces é que ficaram mal. Pousou o telefóne, voltou-se para mľm: — Mas dhsia voce, professor... Näo, quadrado hörnern de ferro e de cimento. Näo me entendes, näo te entendo. Fa!o para ti, Bexiguinha. — Há urna outra experiéncia — disse eü. — Urna vez, quando era miúdo... Contei. Nós estávamos sentados na varanda da casa, voltada a oriente .Tomávamos o fresco, o dia fora abrasa-dor. Detrás da serra a lua ia em breve aparecer e nós espe-rávamo-la quase em siléncio. Só meu paľ me repetia a história dos astros, que eu guardava na memoria: Antares, Altair, Deneb, gigantes vermelhas. órbitas no grande vazio dos espacos. A lua veio enfim. Eu sentara-me no chäo, mas apetecera-me deitar-me ao comprido para ver melhor as estrelas. E minha mäe mandou-me ao quarto procurar a manta e a almofada dos nossos sonos no campo. A porta estava aberta, a lua entrava por uma das janeüas. Procurei a manta e a almofada numa cadeira, no canto onde mihha mäe a arrumava. Subitamente, porém, quando ia a erguer--me, eu vi que estava alguém mais no quarto. Dei um berro, 62 larguei tudo, estatelei-me no corredor. Aos meus gritos acudiu minha mäe, meü pai, meus irmäos, as criadas, a tia Dulce. E ali, ä face de todps, declarei: — Está um ladräo no meu quarto. A minha mäe arrebatou o candeeiro a uma criada e todos fomos atrás dela. Mas, iluminado o quarto, exami-nados os recantos, o ladräo näo apareceu. — Oh, a imaginacäo desta crianca! — exclamou minha mäe. Sermäo sobre a minha imaginacäo. Meu pai aproveitou a oportunidade para atacar o malefício das historietas que nos contava a velha tia Dulce. Alias, quem mais as escutava era precisamente eu, näo tanto entäo, durante a minha infáncia, como mais tarde, quando vinha a férias e desen-tulhava do sotäo, das lojas, dos cantos das arrumacöes, velhos vestigios de outrora — jornais, fotografias, algumas bem recentes, pois já eu figurava nelas, mas que para mim tinham já a distäncia ilimitada do.passado. Subitamente, meu pai teve uma ideia: — Onde é que viste o ladräo? . — Ali. — Pöe-te lá onde estavas. Olha agora em frente. Olhei. Quem estava diante de mim era eu proprio, reflectido no grande espelho do guarda-fato. Meu pai p6s--me a mäo na cabeca com a sua proteccäo. Minha mäe vol-tou a lamentar. a minha fantasia. E o meu irmäo Evaristo fez rir toda a gente, porque se pos diante do espelho a fingir medo: — Um ladräo! Olha um ladräo! Regressámos ä varanda, tia Dulce regressou ä grande sala batida do luar e a cujas janelas rezavá as suas contas. A lua vogava agora em pleno céu. No grande siléncio, os 63 ralos e os grilos frisavam a noite de gritos. No ar pairavam ainda as crepitacöes do calor, com uma memoria de cigar-ras estalando ä luz do sol... Eu, porem, relembrava o meu susto ä subita presenca de alguem que agora sabia ser eu. A hora de deitar meu pai ordenou-me: — Tu vais-te deitar sozinho. Tu es um hörnern. Desde sempre, dormiamos cada irmao em seu quarto. Cumpri o dever de ser hörnern e deitei-me sozinho, tendo o cuidado de näo olhar para o guarda-fato. Mas no outro dia, assim que me levantei, colöquei-me no sitio donde me vira ao espelho e olhei. Diante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse algue'm que me habi- tava, que me era e eu jamais imaginara. Pela primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser vivo que ate entäo vivera comigo na absoluta indiferenca de apenas ser e em que agora descobria qualquer coisa mais, que me excedia e me metia medo. Quantas vezes mais tarde eu repetiria a experiencia no desejo de fixar essa aparicäo fulminante de mim a mim proprio, essa en-tidade misteriosa que eu era e agora absolutamente se me anunciava. Calei-me enfim. Uma carroca retardataria atroou toda a calcada. Pelos vidros das janelas via a massa nocturna do Jardim, imaginava o busto de Florbela, colocado ali hä pouco tempo, numa manhä clandestina, agora meditando sobre o seu pesadelo. Chico fumava ao eco das minhas palavras. Carolino tinha ainda a boca aberta, todo petri-ficado. Por fim o engenheiro falou: — Tudo isso, professor, e muito grave. — Grave como? — Grave. O que voce propoe 6 pura e simplesmente o 64 regresso ä pedra lascada... — Lascada? — ... porque o hörnern sabe que existe já desde entäo. — É f also. E que o soubesse? A verdade é que o näo sabe hoje. Tenho a certeza. Chico endireitou-se, fez peito. Era tremendo a fazer peito. Porque tudo se me desIoCava para uma questäo de músculos. — Vivemos numa época formidável — disse ele. — A única verdade a conquistar é a de que todos os homens tém direito a comer. — Quando é que afirmei que o hörnern deve passar fome? Mas, se em todas as épocas se tivesse só pensado na melhoria económica, hoje näo seriamos homens: seriamos apenas máquinas. O meu humanismo näo quer apenas um bocado de päo; quer uma consciéncia e uma plenitude. Béxiguinha olhava-nos, ora a um ora a outro, como num jogo de pingue-pongue. Chico interpelou-o: — Tu que pensas? O moco estremeceu, abriu mais os olhos, num raio de loucura: — Eu acho bem, eu... Eu já tinha pensado. Äs vezes, lá em casa, ponho-me a pensar: o que é que sentirá uma galinha? — Uma galinha? — perguntou o engenheiro. — Sim. Uma galinha. Penso assim: «Se eu fosse galinha?» E o que o senhor doutor contou, isso do espelho, também já tenho pensado. A gente ás vezes brincava a fazer caretas ao espelho. Äs vezes fazia uma coisa que näo devia fazer. E depois chegava ao espelho, fazia caretas e era mesmo como se me estivesse a ralhar a mim proprio. Depois ficava melhor. Mas falar alto para mim nunca falei. Ficámos todos embaracados. Bexiguinha olhou-nos, estu-pefacto do nosso embara^o e talvez do seu. Até que o engenheiro abriu todo em gargalhada para restabelecer a normalidade: — Com que entäo, Carolino, urna galinha... — Eu näo sei porque é que te ris. A gente pensa: «Se eu fosse um cäo? Se-eu fosse urna galinha? Urna galinha tem um Ojho para cada lado, por exemplo, e tem aquela coisa dura que é o bico. E depois a galinha dorme empo-leirada num pau e näo cai.» — Bem,bem. Temos galinha que chegue. Trata mas é de nao gastares o dinheiro dos livros em paródia. E esquece a galinha. Pensa, por exemplo, na vaca, para variar. — Mas a vaca também é um bicho esquisito. Eu estava atónito. Porque sentia em Caroliino, através do que havia nele de estranho, uma inquitante separacäo de si, nao sei se para um encontro lúcido consigo, se para uma uniäo de loucura. Precisava de conversar com o pobre Bexiguinha. E.'e näo era decerío um louco. O modo de falar era trôpego, ridícuk> no seu esganicado de falsete, e isso é que sobretudo perturbava. Mas o telefóne retiniu de novo. Chico foi atender. —r-... Näo, näo me esqueci. Atrasei-me só um pouco. Tive visitas. Ainda cá estäo... O professor e o Carolino. Sim... Até já. E para nós: — Com a história da galinha, esqueci-me de que tenho galinha em casa dos Cerqueiras. -— Entäo väo sendo horas — lembrei eu, levantando-me. — Väo sendo horas—concordou Chico, erguendo-se também. 66 Caro'dno, vexado a sangue, Com as espinhas mais visi-veis, saudou o primo brevemente e saiu comigo. Estava uma noite nitida, com estrelas de vidro. No largo, deserto, ä luz dos candeeiros, a igreja de S. Francisco erguia a sua massa negra entre as fachadas brancas dos predios. E as janeks üuminadas na pequena colina sugeriam um presepio } ä minha memoria de Inverno. — Onde moras tu, Carolino? — Na Rua da Mouraria. — Vou contigo. Damos uma voha aqui por baixo. Gostava de percorrer as ruas silenciosas, emaranhadas como uma alucina?äo. Numa ou noutra janela armava-se ainda o pau com o fio da roupa branca. Das tabernas, com meias-portas fechadas, vinha um eco sujo de luz fosca e de sarro. — O senhor doutor acha que o que eu disse era assim para rir? — perguntou-me subitamente o Bexiguinha. — Bern, Carolino; nös temos muito que conversar. O que disseste näo e nada uma tolice. Quando era m'.udo senti uma coisa parecida com um cäo. E com um gato. E com outros bichos. Descobri neles o come^o de uma pes-soa. O cäo chamava-se Mondego. O Antonio matou-o. — Quem era o Antonio? — Um criado. Percorriamos o labirinto de ruas em todos os sentidos. ^ Mercearias escuras como grutas com uma luzinha ao fundo, antros de carvoeiros, interiores de casa? üuminadas para la das cortinas, namoros oblfquos de esqjina — toda aquela zona da cidade se cruzava de segredo e de suspeita. — Tambem fiz outra exper.iencia, senhor doutor. — Que experiencia? 67 i I — Bern... Nao sei como explicar. E assim: mastigar as palavras. — Mastigar as palavras? — Bern... £ assim: a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, estrelas ou qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E depois, pedra jd nao quer dizer nada. Como, Carolino? Sabes entao ja a fragilidade das palavras, acaso o milagre de um encontro atraves delas connosco e com os outros? E saberas o que ha em ti, o que te vive, e as palavras ignoram? — Quantos anos tens tu? — Dezassete. — Gostas de- fazer versos, de escrever? — Nunca fiz versos, nunca escrevi. Gosto e de pensar. — Tu percebeste o que eu queria dizer? — Percebi tudo, tudo, tudo. Vou pensar muito nisso. Fazer assim: por-me bem no centro de mim e ver-me, sen-tir-me bem de dentro para fora, descobrir a pessoa que est a em mim. Afinal dexei o Bexiguitiha na Praca do Giraldo. Eu tinha aincfa de ir ao Nazare antes que a iivraria fechasse. 68 VII Loge no dia seguinte eu soube que a nossa conversa em casa do engenheiro tinha sido largamente comentada em casa dos Cerqueiras. Eu subia a Rua da Selaria para o Liceu, parara um pouco diante de urn cao que todos os dias ali estava na rua, ladrando para uma janela até lhe ati-rarem de lá um osso. Era decerto um cao vadio, com o seu pélo surrado e olhos lacrimejantes. Eu proprio lhe trouxera esse dia um bocado de pao, que o desgracado apanhou com infinito fastio: tinha o seu regime de ossos, näo apreciava decerto o pao. Foi quando ä minha beira trávou uma fur-goneta e descobri ao volante o Alfredo Cerqueira. — Entäo, doutor, a alimentär os animaizinhos... O doutor já tern um cáo, temos de arranjar uma galinha para o Carolino... Tinha o seu sorriso repuxado, de orelha a orelha, como uma figura de Bosch. E logo abrindo-me uma porta: — Entre, doutor, que eu levo-o ao Liceu. Entrei, instalei-me. — Já sabe entäo da história — disse eu. — O doutor sabe lá o que isso foi. Já há muito tempo 3č ' * ^'^ÔM