Machado de Assis, da Literatura ao Cinema: por um dialogismo intertextual Renata Corréa Coutinho* Indice 1 Machado de Assis 1 2 Da Literatura ao Cinema 3 3 A Cartomante 3 4 A Cartomante no Cinema 4 5 Uma nova adaptacäo 5 6 Adaptacäo da obra literária 6 7 Obra literária versus obra fílmica 6 8 Referéncias bibliográficas 8 Resumo Este artigo origina-se de urna reflexäo sobre as frequentes adaptacôes de obras literárias para o meio cinematográfico, na medida em que isso possibilita urna releitura da obra e näo a busca de urna correspondéncia imediata e pontual entre a história originál expressa no suporte literário e a sua adaptacäo ao suporte fílmico. Tal fato é pas sivel de observacäo se consideradas algumas das *Publicitária, Mestra em Comunicacäo, Profes-sora dos Cursos de Publicidade e Propaganda do Centra Universitário Católico Salesiano Auxilium de Ara-catuba/SP e da Faculdade do Norte Pioneiro/PR e dos Cursos de Turismo e Hotelaria da Faculdade da Alta Paulista - Tupä/SP E-mail: renatacorreacoutinho@gmail.com transposicöes da obra Machadiana para a grande tela, como ocorre no caso analisado, 0 Conto intitulado "A Cartomante". Palavras-chave: adaptacäo cinematogrä-fica; intertextualidade; Machado de Assis. 1 Machado de Assis Nasceu no Rio de Janeiro, no Morro do Li-vramento, em 21 de junho de 1839, Joaquim Maria Machado de Assis, filho de mulatos e neto de escravos alforriados; personagem que poderia ter sido apenas mais urn brasi-leiro fadado ä limitada condicäo financeira imposta por sua origem, näo fosse o talento, mas acima de tudo a oportunidade de prote-cäo concedida por sua rica madrinha, dona da propriedade onde morava, e a acertada e continua presenca em uma livraria - em que trabalhava como caixeiro - freqüentada por ja reconhecidos escritores da epoca. Machado de Assis se tornaria conhecido nos meios literärios da Corte apös ter exer-cido diversas atividades, dentre as quais as de tipögrafo, revisor, jornalista e cronista, tendo no entanto trabalhado como funcionä-rio publico, a carreira burocrätica de onde re-almente tirava seu sustento, ja que depender 2 Renata Corréa Coutinho da escrita náo era atividade capaz de oferecer remuneracáo suficiente. Suas primeiras manifestacoes estilísticas puderam se fazer percebidas através dos jor-nais onde escrevia sobre as atividades habi-tuais do meio a que pertencia, dentre elas a peculiaridade com que refletia sobre elas. "Machado de Assis escrevia sobre a vida fluminense, as operas, corridas, patina-cáo, pleito eleitoral e muitas outras coi-sas, surpreendendo por um estilo su-tilmente irónico, que logo ia tornar-se marca registrada de sua obra. Suas cró-nicas ainda hoje tem atualidade, pois ele conseguiu extrair reflexoes profundas de fatos corriqueiros, tocando a esséncia da-quilo que observava com um meio riso de contemplacáo. E quase sempře esse riso trazia, implícita ou explicitamente, uma adverténcia. Em Machado de Assis, o fato em si tinha menor importáncia, o que interessava era a reflexáo que esse fato provocava" (CULTURA BRASILEIRA, s/d). Parte da obra machadiana é considerada como pertencente ao Romantismo1 (la fase), dentre as quais: A Máo e a Luva, Helena e Iaiá Garcia. A fase Realista2 (2a fase), 'l. Romantismo: [De romántico +-ismo, seg. o padrao erudito; fr. romantisme.]; importante movi-mento de escritores que, no princípio do séc. XIX, abandonaram as regras de composicao e estilo dos autores clássicos, pelo individualismo, pelo lirismo e pelo predomínio da sensibilidade e da imaginacao sobre a razao. 22. Realismo: movimento literário que, em mea-dos do séc. XIX, surgiu como uma reacao ao romantismo, isto é, aos excessos do lirismo e da imaginacao, tendo sofrido também influéncia do desenvolvimento das ciéncias biológicas, do positivismo e do determi-nismo. corresponde as obras: Memórias Póstumas de Brás Cubas - obra de transicäo -, Quin-cas Borba e Dom Casmurro; fase esta em que os críticos apontam para as chamadas "obras de maturidade", aquelas compostas por uma prosa caracteristicamente realista e por complexos retratos psicológicos dos per-sonagens. Machado foi poeta, contista, autor teatral e crítico literário. Considerado um dos mai-ores autores brasileiros, responsável por uma producäo auténtica e altamente representa-tiva da realidade - a brasileira - do século XIX entrelacada a confutes humanos univer-sais presentes na alma psicológica de seus personagens. "Machado de Assis centrou seu interesse na sondagem psicológica, isto é, bus-cou compreender os mecanismos que co-mandam as acöes humanas, sejam elas de natureza espiritual ou decorrentes da acäo que o meio social exerce sobre cada indivíduo. Tudo temperado com profunda reflexäo. O escritor busca inspira-cäo nas acöes rotineiras do hörnern. Pe-netrando na consciéncia das personagens para sondar-lhes o funcionamento, Machado mostra, de maneira impiedosa e aguda, a vaidade, a futilidade, a hipocri-sia, a ambicäo, a inveja, a inclinacäo ao adultério. (...) Escolhendo suas personagens entre a burguesia que vive de acordo com o convencionalismo da época, Machado desmascara o jogo das relacöes so-ciais, enfatizando o contraste entre esséncia (o que as personagens säo) e aparén-cia (o que as personagens demonstram ser)" (Ibidem, s/d). www.bocc. ubi.pt Machado de Assis, da Literatura ao Cinema 3 2 Da Literatura ao Cinema "(...) o cinema e uma linguagem com suas regras e suas convencoes. E uma linguagem que tern parentesco com a literatura, possuindo em comum o uso da palavra das personagens e a finalidade de contar historias (...)"(COSTA, 1989, p.27). Observa-se na atualidade a enfase con-cedida pelo cinema hollywoodiano a temas descritos no passado. Entre exemplos mais recentes na cinematografia pode-se destacar Traia (2004) - baseada na Iliada de Homero -, um demonstrativo plausivel da essentia imanente da obra: mensagens que nao se aprisionam no passado, mas que sempre se apresentam atuais por se tratarem de temas universais. Homonimas ou nao, diversas obras da Literatura Brasileira foram adaptadas ao cinema, dentre as quais - de autoria de Ma-chado -, oportunamente destacam-se Memo-rias Postumas3 (1998), Dom4 (2003) e A Cartomante (2004). Em se tratando das obras de Machado, e possivel dizer que estas possuem vigor e atualidade que se transportadas para o presente, por meio da adaptacao cinematografica, sao capazes de revelar aspectos intrinsecamente ligados a natureza humana e nao apenas a fa-tos efemeros ambientados em epocas longin-quas que facilmente sao desmantelados pelo 33. Reproducao de Memorias Postumas de Bras Cubas que traz a inovadora narracao de um defunto-autor ambientada em 1869 - livro tido como divisor de aguas da obra machadiana. 44. Adaptacao baseada em Dom Casmurro e no drama vivido pelos personagens Bentinho, Capitu e Escobar. proprio tempo. Suscitam interesse, pois car-regam consigo temas universais como a trai-cäo, a dependéncia psicológica, o ciúme, as relacöes dúbias vividas cotidianamente e a questäo do ser e parecer. Para fins de análise, o presente trabalho concentra-se no conto A Cartomante5 e em algumas das leituras cinematográficas reali-zadas sobre ele. Se faz necessário ressaltar porém, que näo se pretende tracar aqui analogias mais pro-fundas entre os temas abordados por ambos autores anteriormente citados; busca-se na verdade, uma correlacäo entre a universali-dade dos temas contidos no suporte literário e sua possivel transcricäo/adaptacäo para o suporte audiovisual. 3 A Cartomante Ambientado no Rio de Janeiro em 1869, A Cartomante narra o envolvimento de trés personagens: Vůela, Camilo e Rita6, trés nomes, uma aventura. O conto apresenta em flashback, fatos que daräo condicöes ao leitor de apreender a his-tória e assim expöe o início do envolvimento entre Rita e Camilo. A formacäo desse triängulo amoroso dará margem para modificacöes no comporta-mento das personagens tais como: o rece-bimento de cartas anönimas por Camilo e seu progres sivo afastamento de Vilela a fim de näo levantar suspeitas sobre a traicäo em tränsito; a inseguranca de Rita quanto ao futura do romance proibido e a subseqüente procura por uma cartomante; a mudanca 55. In: Várias Histórias, 1896. 66. Vilela e Camilo eram amigos de infäncia. Rita mulher de Vilela e amante de Camilo. www.bocc.ubi.pt 4 Renata Corréa Coutinho comportamental de Vilela em relacáo a Ca-milo e, a incredulidade de Camilo convertida em credulidade no momento mais conveni-ente - a retomada dos valores místicos sobre a mentalidade estritamente racional. O título "A Cartomante" e a presenca iniciál da frase proferida por Hamlet á Horácio "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia" sáo indicativos per-tinentes do desenrolar da trama e atribuem o tom místico e misterioso necessário ao des-fecho final. Sabendo-se que a cartomancia - a adivi-nhacáo por meio de cartas de jogar - é quem vai direcionar o centra narrativo da trama, atribui-se a personagem cartomante o status daquela que pode restituir a confianca, áquela que interfere diretamente sobre a tra-jetória das demais personagens, uma vez que a alteracáo de suas previsóes teria resultados diferentes. A descricáo de Rita - "uma damaformosa e tonta" - como uma figura ingénua e por isso, suscetível a acreditar nas previsóes fei-tas por uma cartomante, fornece indícios do papel desempenhado pelas mulheres daquele tempo: a incumbéncia das preocupacóes tolas e desprovidas da logica real desse mundo. Portanto, o conto revela também a vi-sáo predominante do periodo; defendendo a idéia de que o "destino", se conferido as previsóes inatas e/ou espirituais de uma pessoa falível - como é em síntese todo o ser hu-mano -, em detrimento das constatacóes ci-entíficas e/ou racionais, estará sujeito a fa-lhas e enganos. 4 A Cartomante no Cinema Algumas adaptacóes baseadas em A Cartomante de Machado de Assis foram produzi- das, podendo-se encontrar formatos que váo do curta ao longa metragens. Um dos longas, realizado em meados da década de 707 , apresenta a história - divi-dida em dois episódios - contada sob duas perspectivas distintas: na primeira leitura, a trama se desenrola em 1871 e apesar do re-sultado final ser consideravelmente tosco -possivelmente devido ao pequeno orcamento disponível para a elaboracáo de um filme de época -, mantém com alguma fidelidade o conteúdo descrito no conto original. Já a segunda leitura - embora também deixe muito a desejar quanto á qualidade de producáo e principalmente interpretativa dos atores envolvidos -, revela uma visáo mais arrojada e criativa na medida em que pro-póe uma versáo satírica e inovadora sobre o conto, transparecendo sobremaneira os ide-ais liberais difundidos em 1970 - periodo este em que a história descrita está situada. A presenca da cartomante é agora subs-tituída pela figura do psicanalista, enquanto a leitura de cartas e horóscopos é relegada a outra personagem. A desconfianca de Vilela em relacáo a traicáo de Rita é tratada de forma inusitada quando este apresenta a Camilo sua nova namorada e dessa nova relacáo emerge a proposta deliberada da troca de pares afetivos. Assim, o filme confronta duas realidades em que os preceitos morais e éticos divergem entre si, exibindo uma alteracáo profunda ao tratamento concedido ao amor, a traicáo e a decéncia; uma nova realidade, onde os re-lacionamentos sujeitam-se a outras manifes-tacóes tais como: a normalidade da traicáo, 77. A Cartomante (Elite video produces). Filme de Marcos Farias. Estrelado por Maurício do Valle, Itala Nandi e Iva Cándido com a participacao especial de Paulo Cesar Peréio. www.bocc. ubi.pt Machado de Assis, da Literatura ao Cinema 5 o envolvimento com fontes de renda ilicitas, enquanto a versäo original presa pela tradi-cionalidade do casamento - que se revelado infiel permite ao hörnern a vinganca - e do trabalho, que mesmo enfadonho e burocrä-tico, rende uma remuneracäo honesta. 5 Uma nova adapta^äo "(...) Entre 1997 e 2002, o publico total de cinema no Brasil pas sou de 52 mi-lhöes para cerca de 90 milhöes, o que re-presenta um crescimento de 70%. Nesse mesmo periodo, o publico do cinema bra-sileiro, especificamente, saiu da casa de 2,5 milhöes de espectadores para 7 milhöes, conquistando em torno de 10% do mercado" (ALMEIDA, 2003, p. 12). Mais recentemente, após a retomada do cinema brasileiro, uma nova adaptacäo do conto de Machado - dirigida pelo jornalista Wagner de Assis e pelo ator Pablo Uranga -surgiu nas telas do cinema. A Cartomante (2004)8, devido a questöes orcamentárias, teve seu roteiro totalmente re-escrito e acabou se transformando num moderno romance carioca com gastos estimados de R$ 650 mil, numa espécie de cooperativa entre produtores e grande parte do elenco -a producäo de época, incluindo figurinos e demais caracteristicas do século XIX, foi or-cada em aproximadamente R$ 3 milhöes e posteriormente abortada diante da verba in-suficiente dos produtores (VITA, 2004). 88. A Cartomante (Cinética Filmes). Filme de Wagner de Assis e Pablo Uranga. Estrelado por Deborah Secco (Rita), Luigi Baricelli (Camilo), Ilya Säo Paulo (Dr. Augusto Vilela) e Sivia Pfeifer (Dra. Antonia Maria dos Anjos - psicanalista/cartomante). Conquanto carregue o nome do conto ma-chadiano, o filme apresenta uma trama onde as semelhancas estäo presentes no titulo, no nome das personagens, na constituicäo de um triängulo amoroso e na existéncia de uma quarta personagem - neste caso, a psiquiatra - em meio ao conflito instaurado. O fator surpresa manifesta-se na media-cäo constante da psiquiatra em relacäo äs trés personagens (Rita, Camilo e Vilela) e na manipulacäo proposital exercida por ela através das análises ou das previsöes feitas quando ocultamente está travestida de cartomante para "jogar" com as emocöes da personagem Rita. Observa-se nas duas situacöes vividas pela personagem interpretada pela atriz Silvia Pfeifer - ora como psiquiatra, ora como cartomante -, uma intervene äo premeditada a lim de concentrar em torno de si as respos-tas e interpretacöes necessárias ao direciona-mento da vida das figuras dramáticas; fato que, relegando-se a ficcäo a segundo piano, obtém-se uma crítica a onipoténcia em relacäo a vida de outrem. A versäo apresentada é indubitavelmente um desdobramento possivel da temätica ma-chadiana nos dias de hoje, ou seja, da pos-sibilidade atual de se buscar solucöes para as angústias da vida por meio do divino -no entrecho, a representaeäo da cartomante - e/ou através de um recurso do mundo moderno como a psicanálise, por exemplo. A manipulacäo exercida durante todo o enredo revela-se ao final; a morte fisica näo acontece como no conto original, mas sim a "morte" das personagens através da mu-danca de perspectiva - o renaseimento no piano sentimental e o conseqüente afasta-mento entre elas. Ao final tem-se um questionamento sobre www.bocc.ubi.pt 6 Renáta Corréa Coutinho a imprevisibilidade dos acontecimentos da vida - o chamado destino9 - e sobre o poder decisório desempenhado por cada um diante deles. Dentre os indícios que conduzem a essa leitura está a frase "Cartomante: o destino em suas mäos" - utilizada para a iden-tificacäo da casa da cartomante no filme -, por meio da qual é possível sintetizar o černe da mensagem transmitida: a de que o poder do ser humano reside na decisäo que este to-mará diante de cada evento em particular de sua vida e näo apenas ao poder de alcance da informacäo como imediatamente se pode interpretar. 6 Adaptacäo da obra literária Muito se discute sobre as adaptacôes de obras literárias aos meios audiovisuais, seja ele o cinematográfico ou o televisual - que visa a reprodutibilidade, de telenovelas e mi-nisséries por exemplo, em ambientes restri-tos. Questiona-se se há a transposicäo pontual da história ou a recriacäo de elementos que alterem a trajetória narrativa original, como se os critérios capazes de julgar urna obra como boa ou ruim residissem nessas dimen-sôes - de fidelidade ou näo ao trabalho literário. Ora, se na maioria das vezes, a valoriza-cäo de um trabalho incide sobre a liberdade de interpretacäo de cada leitor/espectador -interpretacäo esta que se dá de acordo com um repertório pessoal de informacôes -, por-que deveria o cineasta/roteirista, abdicar da 99. "Sucessäo de fatos que podem ou näo ocor-rer, e que constituem a vida do homem, considerados como resultantes de causas independentes de sua von-tade; sorte, fado, fortuna". (FERREIRA, s/d). possibilidade de buscar novos ängulos para recontar urna dada história? A visäo de que urna adaptacäo deve seguir uma formula correta - que faca uso do "ver-dadeiro sentido do texto" objetivando täo só a transferencia para uma nova linguagem e um novo veículo -, nega a propria natureza do texto literário, que é a de suscitar interpre-tacóes diversas e ganhar novos sentidos com o passar do tempo e a mudanca das circuns-täncias (GUIMARÄES, 2003, p.95). 7 Obra literária versus obra fílmica Existe uma predisposicäo espontänea a julgar a obra literária como superior em detri-mento da adaptacäo, um problema que se-gundo Randal Johnson (2003, p.40) provém do que ele denomina "o estabelecimento de uma hierarquia normativa entre literatúra e cinema" em que emerge a relacäo entre obra original e versäo derivada, a autenticidade e o simulacra, a cultura de elite e a cultura de massa. Diante disto, o produto audiovisual resultante da literatúra, já nasce fadado a re-ceber criticas que o coloquem em prejuizo diante do material preexistente. Como bem assinala Xavier (2003, p.63), é natural que exista um dištancia entre ambos os meios e suas respectivas producóes, já que tais suportes possuem suas especificidades: o literário, carrega as propriedades sensiveis do texto, ao passo que o cinema, serve-se da fotografia, do ritmo da montagem, da trilha sonora, da composicäo das figuras visiveis das personagens, entre outros expedientes. "(...) A fidelidade ao original deixa de ser o critério maior de juízo crítico, valendo mais a apreciacäo do filme como nova www.bocc. ubi.pt Machado de Assis, da Literatura ao Cinema 1 experiéncia que deve ter sua forma, e os sentidos nela implicados, julgados em seu proprio direito. Afinal, o livro e filme estäo distanciados no tempo; escritor e cineasta näo tem exatamente a mesma sensibilidade e perspectiva, sendo, por-tanto, de esperar que a adaptacäo dialogue näo só com o texto de origem, mas com o seu proprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro, mesmo quando o objetivo é a identificacäo com os valores nele expressos" (XAVIER, 2003, p. 62). Assim como a leitura cinematográfica do romance Vidas Secas de Graciliano Ramos - realizada por Nelson Pereira dos Santos10 - näo pretendia, originalmente, ser apenas uma adaptacäo de uma obra prima da literatura nacionál, mas sobretudo uma oportu-nidade de intervencäo na conjuntura politica vivida (Johnson, 2003, p.45), bem pode ser, que a intencionalidade de Marcos Farias e posteriormente, de Wagner de Assis e Pablo Uranga - depois de esbarrarem no exíguo or-camento disponível para a realizacäo de uma producäo de época, teoricamente mais pró-xima do conto machadiano - ao adaptarem o conto A Cartomante, tenha sido a de pro-por uma discussäo sobre as crencas e de-masiadas atribuicöes dadas ao elemento di-vino e ä psiquiatria/psicologia como deciso-res/auxiliadores da melhor "sorte" aos acon-tecimentos da vida11 . 1010. O filme Vidas Secas é considerado uma obra-prima da primeira fase do Cinema Novo. 1111. É importante ressaltar que as producöes ci-nematográficas citadas possuem propostas distintas e tratam de assuntos infinitamente distantes - Vidas Secas (literatura e cinematografia) revela uma visäo engajada quanto a questäo da reforma agraria, en- "A insisténcia na 'fidelidade' - que de-riva das expectativas que o espectador traz ao filme, baseadas na sua propria leitura do original - é um falso problema porque ignora diferencas essenciais entre os dois meios, e porque geralmente ignora a dinämica dos campos de producäo cultural nos quais os dois meios estäo in-seridos. (...) Se o cinema tern dificuldade em fazer determinadas coisas que a literatúra faz, a literatúra também näo con-segue fazer o que um filme faz" (JOHNSON, 2003, p.42). Destarte, é possível dizer que, os respec-tivos cineastas, cada qual com sua perspectiva, tenha buscado urna via alternatíva a fim de amoldar as temáticas propostas na literatúra ao contexto atual, discutindo possíveis aspectos latentes ou implícitos e conseqüen-temente, suscitando um debate mais amplo sobre os assuntos abordados com o objetivo de transmitir urna dada mensagem. "A mensagem tem sempre urna intencäo. E inútil tentar fugir ä responsabilidade de a emitir. [Em um roteiro] Tudo é escrito para produzir urna influéncia. E o ethos, a ética, a moral, o significado ultimo da história, as suas implicacöes sociais, po-líticas, existenciais e anímicas" (COM-PARATO, 1995, p.21). Distante deve estar a tentativa de buscar urna correspondéncia imediata e pontual en- quanto A Cartomante atém-se a um romance possi-velmente efémero, abordando a questäo da busca de solucöes/respostas para as tensöes e conŕlitos interio-res enfrentados pelo ser humano da modernidade. No entanto, busca-se uma analógia, no fato de os cineastas envolvidos terem buscado extrapolar os limites impostos pelo livro, oferecendo ä narrativa uma am-bientacäo mais propicia. www.bocc.ubi.pt 8 Renata Corréa Coutinho tre a história original expres sa no suporte literário e a sua adaptacäo ao suporte fíl-mico, mas fundamentalmente, deve-se pen-sar na proposta de diálogo estabelecido entre os diferentes códigos; o que para Stam (apud JOHNSON, 2003, p.44) se revela como urna relacäo mais produtiva se considerada como urna forma de dialogismo intertextual. 8 Referéncias bibliográficas ADORO CINEMA BRASILEIRO. Co-mentários sobre o filme A Carto-mante. Disponível em: . Acesso em: 22 nov. 2004. ALMEIDA, Paulo Sérgio. Cinema, desen-volvimento e mercado. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2003. ASSIS, Machado de. A Cartomante. Disponível em: . Acesso em: 22 nov. 2004. COMPARATO, Doc. Da criacäo ao roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. COSTA, Antonio. Compreender o cinema. Säo Paulo: Globo, 1989. 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