EXPLICAQÄO DOS PA8SAROS DOMINGO A Ria coMEQOu a entrar lentamente no seu sono do mesmo modo que duas vozes se misturam: ao principio era apenas a lagoa desalmada e imóvel da água, a lingua sabur-rosa da areia, os pinheiros estilhacados na névoa, os barcos raros e a cidade ao longe, imprecisa como os olhos dos cegos, mas depois os pássaros, as gaivotas e os patos e as aves sem nome do Vouga invadiram-Ihe as pernas e os bragos, devoraram-lhe as ameixas podres dos testículos, i arranharam-lhe com as patas o interior da barriga, pousa-ram-lhe nos ombros, nos rins e nas costas, debicaram-lhe % o sonho confuso em que se debatia (a mäe chocava um ovo f enorme, com ele e as irmas lá dentro, enquanto jogava as cartas com as amigas), e quando a primeira revoada | lhe penetrou, gritando, na eabega, acordou com sensagôes de náufragos na espuma dos ossos, e um gosto de limos na boca aberta por um grito sem som. Os lencóis da cama flutuavam devagar na direcgäo da varanda, algas dispersas dangavam na almofada, um peixe transparente escapou-se- S -lhe, a pestanejar as barbatanas, de entre as coxas, esu-miu-se na gaveta da cómoda, no meio das camisas e das cuecas. A Marília ressonava baixinho e a sua respiragäo de g Immstar comoveu-o, comoveram-no os dedos que sobravam m do eobertor e se aproximavam e afastavam de tempos a tempos em mornos espasmos vegetais: tantos anos a ver-te dormir, quando o comprimido deixava de fazer efeito e eu despertava, angustiado, no escuro, acendia a luz e o sossego da tua forma estendida ao meu lado me irritava como urn azar injusto, tantos anos a odiar-te lentamente do fundo pedregoso da insonia, a pensar com jübilo na fragilidade do teu pescogo estreito, na tesoura da caixa de costura para te cortar os pulsos, em apertar-te a cara com a fronba tenaz do travesseiro. — Näo, nunca suspeitei que ela näo gostasse dele — disse o pai, incredulo, ä procura dos charutos no bolso do colete. — Tambem, oiga la, o que e que uma saloia daque-las poderia querer mais? Eu acordava, acendia a luz aos apalpoes (os candeeiros da Azedo Gneco, em baixo, sublinhavam de leve as persia-nas de uma dogura sem cor) e pensava Devem ser trgs, quatro da manhä porque e sempre a esta hora que regresso ä tona de mim mesmo, ä tona dos lengöis, com o choro dos meus filhos a eeoar-me nas orelhas, e a Tucha, feia, des-penteada, ameagadora, enorme, de gigantesco indicador erguido a apontar-me a rua Pöe-te tä fora näo te quero mais. A agua gelada do frigorifico, cujo conteüdo se asse-melhava, ao longe, ao de uma carteira de senhora, sabia a ferro, os pes descalcos enearacolavam-se, arrepiados, nos aznilejos da cozinha, um frio de suor descia-lhe nas costas, entre a pele e o pijama, o relogio electrico, por cima da porta, marcava duas e meia, e acabava por sentar-se no sofä da sala, sem fumar, sem ler, sem pensar em nada, a fitar, de olhos muito abertos, a sombra geometrica da estante. Decorridos tempos o medico arranjou-lhe uraas pastilhas cuja aegao se prolongava ate äs cinco ou seis horas e lhe estrangulavam os sonhos numa pasta confusa, de que näo guardava na ideia senäo uma lembranga de episodios fragmentärios e sem nexo, e passou a näo se levantar da cama, sentindo o dia crescer nos ruidos de vis-ceras do predio, em eujas tripas rebolavam pratos, auto-clismos, talheres, o assobio rombo do elevador, as vozes agudas, que pareciam discutir constantemente, dos viai-nhos. Como agora em Aveiro, pensou, no quarto da esta- 195 ANTONIO LOBO ANTVNBS lagern saturado de humidade que a ria e as gaivotas sub-mergiam, a escutar os passos dos ingleses idosos, moven-do-se como escafandristas no corredor, enquanto o teu peito que subia e descia, afastando e aproximando as varetas de leque das costelas, parecia eomandar a oseilacäo dos móveis, o suco do meu sangue e o movimento das paredes, numa ondulacäo de maré. — Se näo se acendem com fósforos de madeira garan-to-lhe que o sabor näo é o mesmo — explicou o pai a exibir o charuto com um sorriso de anúncio de revista: um cava-lheiro ainda elegante, de témporas grisaíhas, bem vestido, instalado na sua poltrona de couro num ángulo confortável da biblioteca. Esticou as bochechas numa baforada, exa-minou a einza numa careta grave: — Que fique bem claro que me mantive sempre o mais afastado possível dessa ligacjío. — Andei a tomar coragem uma data de tempo para lhe falar abertamente, detesto situacôes equívocas — disse a mulher descuidada a sacudir a caspa do casaco com as costas da mäo. — Näo por falta de coragem, percebe, mas por causa da fragihdade dele. Ate que aproveitei a suges-täo de um fim-de-semana fora e decidi-me. Claro que o que aconteceu depois näo teve nada a ver com isso, já ninguém morre por uma relacao falhada. A prima da clinica entrou a grunhir dentro de uma jaula, de bochechas cobertas de cerdas compridas de Pai Natal: — A mulher de barbas, damas e cavalheiros, recém--chegada especialmente da Colombia — berrou o medico indiano para a família imóvel nas bancadas—, irá rasgar para todos vosseléncias trés listas telefónicas de uma só vez, gracas ä forca impressionante dos seus músculos. Solici-tamos ao respeitável publico o obséquio de näo se aproxi-mar demasiado, devido ä perigosidade natural do seu sel-váticp temperamentu. O teu relógio, na mesa-de-cabeceira de formica, mar-cava seis e meia, os bandos de gaivotas giravam sem des-canso na superfície da. lagoa. Uma sombra informe cresceu, veio vindo, e precisou-se-me de repente na cabeca: Sepa- 196 EXPLIOAQAO DOS PAS8AR08 rarmo-nos. A respiracäo da Marília abanava agora a mobilia numa espécie de raiva, o tecto parecia prestes a des-f&2ser-se nas nossas nucas em crostas poeirentas de estuque, vidros inlocalizáveis tilintavam, o ar da canalizagäo sus-pirou e o som prolongou-se por muito tempo no siléncio, numa vibragäo de violončelo: Separarmo-nos separarmo-nos separarmo-nos separarmo-nos, repetiam ironicamente os crocitos dos pássaros numa troga escarninha, um cäo ladrava de fúria debaixo da janela (Separarmo-nos), os pinheiros cumprimentavam-se uns aos outros acenando os íongos bragos escuros em que a noite, acocorada, se escon-dia (Separarmo-nos), um hálito gelado soprava no vértice dos eucaliptos o seu segredo sem sentido: Separarmo-nos. O senhor Esperanca, de sobrancelhas pintadas, e enormes suspensôrios vermelhos, ajustou o microfone enquanto o anäo, por trás dele, de pé numa cadeira, experimentava o clarinete cujo som feminino ondeava, em espiral, ao seu redor, idéntico a uma voluta muito ténue de fumo: — Nunca mais veio aos domingos para as damas, lemos mais tarde no jornal, por acaso, o que lhe aconteceu — disse ele numa voz de zinco de Juízo Final, distorcida pelos funis dos altifalantes. — Em sua memoria interpretarei para a distinta plateia o conhecido pasódoble Te Quiero Espaňa. — Que tolice — sorriu o pai num gesto de enfado que lhe fez eintilar o anel de curso do mínimo. — Que eu saiba ninguém da família alguma vez se mätou por uma parvoíce dessas. — Näo me pareceu muito abalado quando falámos no assunto — disse a mulher descuidada a descer os degraus da Faculdade a caminho da paragem do autocarro, arras-tando a pasta atrás de si como uma crianga rabugenta. — Ficou quieto, calado, a olhar-me com a expressäo väzia do costume. Aparentemente na mesma, sabe como é? — Era um neurótico da quinta casa — inf ormou o obs-tetra a guardar a bata no cacifo do hospital, e a retirar o colete, lá de dentro, de um cabide de arame. — E os neuro ticos, entende, aguentam nas calmas os tremores de terra afectivos. Se se mätou, e note que eu eoloco o suicídio ape-nas como hipótese, se se mätou, dizia eu, foi com certeza por outro motivo qualquer. 197 ANTONIO LOBO ANTÜNES Agora estou inteiramente acordado — pensou ele — estendido numa cama desta horrorosa pousada idiota que o Vouga deixa a pouco e pouco a descoberto, excepto um Ieve tremor de água ä tona dos espelhos e o perfil äe uma gaivota nos estores, suspensa sobre a ria á laia de um grande pássaro sem peso, de cartäo. Estou inteiramente acordado por dentro do ensurdecedor ruído do meu cranio, submerso no siléncio de gesso da manha, e assemelho-me ä caveira desenterrada de um bicho muito velho, com as órbitas cheias de nevoeiro, os dentes a badalarem, soltos, na ferradura das gengivas, e a tua antiquíssima presenga ao meu lado, a ressonar eomo um 'crocodilo disforme nos Iengóis. Seis e meia, seis e trinta e cinco, seis e quarenta e dois: urna claridade oblíqua, alaranjada, rompe a custo a bruma, e aproxima-se da margem num halo de miríades de partículas suspensas de bruma, no bojo da qual os pás-saros se aparentam a navios sem leme, desgovernados, reduzidos ao contorno estreito dos ossos, radiografados, contra a lámina opaca do eéu. Apoiou as costas no espaldar da cama, passou os dedos no cabelo ralo, quase transparente, da testa, e cerrou as pálpebras: achava-se já na rua e a Tucha, lá em cima, fechava a porta, fazia uma festa distraída aos filhos, marcava o numero de telefone (Final-mente vi-me livre dele, imagina) de urna amiga, e eonver-sava aos risinhos e aos segredos, de pernas cruzadas nas almofadas do chäo: Puta de merda, lixaste-me a vida. Tanto tempo a conseguir que me aceitasses namoro, tanto tempo a conseguir que te easasses comigo: Náo sei, dei-xa-me pensar, é cedíssimo. As tuas irmas mais novas tro-gavam de mim no corredor quando lá fui jantar pela pri-meira vez, o teu pai estendeu-me os dedos moles, distraí-dos, sem levantar o rabo da cadeira, a seguir o noticiário da televisäo com a metade de baixo dos óculos: — Está bom? A mäe da Tucha mandou que servissem a sopa com um sinal impereeptível das pestanas: na parede, uma pai-sagem inglesa do século XIX exibia, entre as cortinas das janelas, os seus verdes majestosos e pesados: — Um bocado molengäo para o meu gosto, sem nervo — disse ela com os tendöes do pescogo salientes sob as BXPLIOAQAO DOS PA88AR0S rugas da pele. — Nao tinha raga, náo tinha garra, está a entender, via-se logo que nao se aguentava no balango com a minha filha. Uma das irmas da Tucha, de sapatilhas, vestida com uma espécie de fato de banho cintilante, třepou para uma espécie de peanha amarela e branca e dobrou lentamente o icorpo até tocar com a cabega na cova dos joelhos: — Os gordos sáo nojentos — articulou entre dentes, com difieuldade, através de um sorriso forgado. — A bar-riga do tipo dava-me sempře ganas de vomitar. MaríHa, pensou ele, o que farei agora? Nunca logrei perceber exactamente a importáncia que tinhas para mim: achei-te sempře demasiado determinada, demasiado forte, demasiado capaz diante das minhas hesitagoes constantes, do meu receio, do meu pánico cómico de tudo, da perpétua dóvida sobre o E depois? de cada momento. Náo era só o Marx, e o cinema americano, e o teatro de vanguarda, e as unhas rentes, e o rnau gosto a vestir, e a camisola interior do pai á janela da oasa, com os pélos do peito a saírem dos mil furinhos do teeido: era a seguranga na desordem, a tranquilidade doméstica na poeira dos móveis, a certeza de que estavas ali pelos grumos de caspa na escova do cabelo, a sensagáo de que me protegias das cami-sas mal lavadas pela mulher-a-dias, da falta de leite no frigorífico, das visitas ao psiquiatra, da solidáo e da gripe, a esperamga de que me defendesses da saudade da Tucha e dos miúdos, e do azedume constante, inquisitivo, da famí-lia, das perguntas, dos soslaios disfargados, do espanto fin-gido, das care tas. Levantou-se para beber água porque o cuspo lhe amargava na boča, e distinguiu, do outro lado das cortinas, a paisagem, ancorada como um barco, do costume, os mesmos pinheiros, os mesmos eucaliptos, a mesma estráda quase sem tránsito, a mesma névoa pega-josa e fria. — Desde (que saiu cá de casa que nunea soube muito bem como era a vida dele — explicou a irmá da música que de vestido de noite, desajeitada e feia, fazia gestos de moli-nete com os bragos e as máos, sob o arame em que o professor de ginástica prooedia, num equilíbrio difícil', a exer- 198 199 ANTONIO LOBO ANTUNES eícios eomplicados. — Uma boémia oonformada, julgo eu, um quotidianozito apertado. — Falta de mass as, falta de massas — guinchou o obs-tetra da penumbra, a pincelar a cara do Carlos com um piagaba de retrete cheio de espuma, enquanto segurava com a outra mäo uma gigantesea navalha de madeira. — Há quem adore refastelar-se na pelintrice, näo é? — Os meus genros chamavam-me constantemente a atengäo para a sua incapacidade de se gerir a si proprio, e mostravam-me a eada passo o perigo de Ihe atribuir um lugar de relevo na firma — disse o pai a abanar a cabega numa resignagäo melancólioa, ao mesmo tempo que reti-rava um vaso de geränios de papel do bolso do easaco numa presteza de ilusionista.—O facto é que era uma pessoa eatranha com interesses esquisitos, com manias absurdas: Olhe, pouco antes de morrer, por exemplo, veio pedir-me que lhe explicasse os pássaros, como se os pássaros, näo é, se pudessem explicar: nunca compreendi o que ele queria dizer com aquilo: os pássaros, oica lá, voce entende? Ergueu-se numa explosäo de aplausos (parte da família, de pé nos bancos de madeira, vitoriava-o entusiastica-mente, as mäos entreohocavam-se num frenesim unänime, as bocas abriam-se e fechavam-se süabando o seu nome), e dirigiu-se ao quarto de banho acompanhado pelo cone de luz de um projector, com o fato de palhago do pijama dangando comrcamente ä sua volta. As pálpebras maqui-lhadas de olheiras, o nariz avermelhado e a barba por fazer provocaram a hilaridade da assistencia: um tio gordo, ao fundo, de goela escancarada, batia com as palmas nos joelhos, sufocado de riso. Ao espalhar o creme Palmolive nas bochechas, o f oco mudou para lilás, a cara aparentou-se de súbito a uma hemorróida prestes a estalar, e uma gar-galhada enorme rebentou na plateia, logo sublinhada pela orquestra num berreiro de trombones. Alheio, ridículo, desastrado, viu-se no espelho a limpar a eara com a toalha e pensou Há quantos anos, dia após dia, repito este numero cretino? Porque é que me näo despeco do circo ou o circo me näo despede a mimľ, pensou, enquanto a voz do pai furava os azulejos anunciando, num tom amortecido, o BXPLWAQAO DOS PÁSSAROS artista seguinte, que o entusiasmo do publico afogou de aplausos e de gritos. — Assim — murmurava o velho brandindo o frasco das borboletas —, uma gota na cabega bašta. — E inclinava-se para verter, com uma pipeta, o seu pingo assassino nas narinas pálidas da mäe. — Repara — dizia ele — como demoram täo pouco tempo a morrer: um instantinho, um ou dois estremegoes, já está. — Rodou as torneiras da banheira, sentou-se no rebordo, e deixou a água correr até ao ralo de cima, experimentando de quando em quando a temperatura com a ponta do dedo. Os metais, as lougas e os vidros do compartimento minúsculo embaciavam-se lentamente, a lämpada do tecto afastava-se, vertical, para muito longe de si, ä deriva numa bruma de vapor, até se tornar numa Iua longínqua, opalina e baga. Desabotoou o casaco do pijama e lá estava o seu arredondado corpo sem arestas, tombando em largas pregas fofas pelos ossos abaixo, a rosa hirsuta do pubis, os joelhos convergentes, estrábicos, a recriminarem-se, irados, um ao outro: o anäo, de dragonas, dobrou-se solenemente numa venia e apon-tou-me com a luva enorme: — Senhoras e senhores, meninas e meninos, respeitá-vel assisténcia, eis-nos prestes a alcangar o momento cul-minante do nosso espectáculo de hoje^—urrou ele dando cambalhotas veementes ao redor da pista. — O Grande Circo Monumental Garibaldi oferece-vos ao vivo o numero único, näo televisionado, do suicídio do seu principal artista. A direcgäo recomenda aos cardíacos, ás gravidas, aos depri-midos e ás pessoas sensíveis em geral que abandonem a sala a f im de obviar a incidentes emocionais desagradáveis. Como podem verificar, o inolvidável Rui S. precede neste instante ao seu ultimo banho. Estendeu-se ao comprido, descansou a nuca no esmalte, fechou os olhos, e os membros, livres, flutuaram na água numa preguiga vagarosa de cabelos. Até a cabega, entor-pecida, pelo vapor e pela insónia, balougava de leve, enquanto o pai, no escritório, colocava a mäe numa placa de cartäo com qualquer coisa escrita (um nome em Iatim?) aos pés. Pensou Era que gaveta do armário a vai meter?, e principiou a ensaboar-se (o pescogo, os sovacos, a bar- 200 201 ANTONIO LOBO ANTUNE8 riga) com uma daquelas amostrazinhas, embrulhadas em papel prateado e verde, de hotel, para afastar o sono. O pai dobrou-se quase até ao chäo e introduziu a lamina no armá-rio destinado aos exemplares menos raros ou em pior estado, e de que surdia, por vezeš, um odorziňho viscoso. O seu rosto surgiu, embaracado, a desculpar-se: — Ainda näo tkiha apurado a minha técnica, estraguei uma porgäo de bichos com líquidos inadequados: näo ima-ginas como a azelhice nos sai cara. Barbeou-se no banho a apalpar ao acaso o queixo e as bochechas, e ao sair da água, embrulhado na toga do lencol, com a testa calva coroada de cabelos molhados, idéntico aos senadores romanos do cinema, verifiicou que a compa-nhia inteira, em fato de gala, exuberante de plumas e de eapas de veludo, o observava, apinhada em siléncio junto ä cortina dos artistas. A irmä da música, semioculta pela silhueta quadrada, reluzente de músculosy do professor de ginástiea, limpava as lágrímas com um Iengo discrete: um risco de rimel descia-lhe na direccäo da boča, os caracóis do penteado desfrisavam-se a pouco e pouco na sua habitual franja sem graga. O médico indiano, com uma agulha enorme a atravessar-lhe o peito magro de faquir, preen-chia a certidäo de obito apoiando o papel num dos joelhos esqueléticos. A orquestra (trěs ou quatro primos de mele-nas fúnebres, instalados num estrádo ao pé da pista) lan-gou-se, desafinadíssima, num tango cadaverjco, e ele prin-cipiou a enxugar-se ao ritmo da bateria ä medida que o seu tronco difuso reaparecia, de baixo para cima, no espelho, oxidado e pálido como um noivo de sereia: Com esbe ar moribundo só me falta o anzol na boča, pensou ele, só me falta ter sido pescado agora mesmo. Pensou Quando che-garmos a Lisboa agarras na mala e vais-te embora, ou ficas ainda uns dias pela Azedo Gneco, já distante, já alheada, já estrangeira, fitando as batataa coradas do jantar numa coneentragäo apátíca? Atirarei as tuas foto-grafias para o lixo, guardá-las-ei na area, andarei furioso, triste, resignado, ancorarei, como as miniaturas de bar-quitos dos marinheiros, no interior da garrafa de bagago, espalharei um hálito mortal nos anfiteatros da Faculdade? Procurar-te-ia, Marília, tempos depois, para te pedir de 202 EXPZiICAQAO DOS PASSAROS lágrimas nos olhos, suplicante como um cachorro despre-gado, que voltasses? Desembarcaria do autocarro, desfeito de ansiedade, no bairro dos teus velhos, esperaria por ti encostado ao marco do correio, a atapetar o passeio de sôfregas pontas de cigarro? Ou derivaria para uma relagäo tempestuosa com uma aluna qualquer, caprichosa, sardó-nica, adolescente, arrastando-me todas as noites, pela třela das suas exigéncias sem réplica, para cervejarias fuma-rentas repletas de raparigas de cabelo sujo, chinelos e saias compridas äs flores, acompanhadas de tipos de sacola, de génio indiscutível, que concorriam anualmente a prémios de poesia com cadernos de versoš ferozmente estilhagados ? A irmä mais nova, de saiote e luvas braneas até ao cotoveío, pintadíssima, em equilíbrio numa bicícleta de uma roda só, desenhou no ar, de bragos afastados, dois arabescos graciosos com os pulsos: — Estamos cá todos, estamos cá todos — ronronou ela na sua vozinha amuada de boneca. — Näo podíamos perder a morte dele, näo é? — Estraguei.uma porgäo de bichos, näo há que negá-lo — desculpou-se o pai, pregueado de rugas aborreeidas—, mas agora, em contrapartida, näo falho um que seja. Queres ver? Comegou a abrir afanosamente as gavetas do armário, e eu distingui, cravadas com alfinetes nas pranchetas de cartäo, as aves de infäncia, as que ao fim da tarde levan-tavam voo da figueira do pogo na direcgäo da mata, de asas crucif icadas e pupilas aquosas desmesuradamente aber-tas de terror. — Vamos furar-lhes a barriga? — propos o pai num riso cúmpHce, a estender a manga para a faca de prata dos livros. — Se Ihes rasgarmos a panga e virmos o que tém dentro, talvez consigas encontrar, percebes, essa céle-bre explicagäo dos pássaros. Vestiu cuecas, lavadas (o publico aplaudiu a delicadeza da sua atengäo), as meias e a eamisa da véspera (que pro-vocaram urn ou outro assobio disperso, de desagrado, na pla-teia), as calgas de bombazina (Quase nunca as ponho, pen-sou, porque raio é que me lembrei de as enfiar na mala?) e o blusäo do uniforme comunista, e permaneceu alguns ANTONIO LOBO ANTUNES momentos imovel, no meio do quarto, a ver-te dormir e a pensar Porqu§? Qualquer coisa de irremediavel se tinha quebrado desde a vespera como um velho motor estafado que parou, e sentiu-se de repente muito abandonado e muito so na manhä de Aveiro, que ondulava ainda nos espelhos a sua sombra sem cor. Uma luz coada aclarava os moveis de vies, o teu poncho pendurado na cadeira como a pele solta de uma cobra, um calcanhar de fora dos lengois, suspenso do vazio como o pe de um enforcado. Pensa A pri-meira vez que te vi nua foi no apartamento de uma amiga, em Alges, convi&aste-me a ir lä para conversar melhor, «m sossego, de Orson Welles, Nunca se realizou um filme como o Citizen Kane, repara por exemplo na sequencia da velhice, eu preferia Fellini, Visconti, os italianos, o que tu classificavas, autoritaria, de arte decadente. O apartamento era num quarto andar sem elevador com vista para a rua dos electricos e as suas casas velhas e sem graga, ärvores magras, barracöes em mau estado, ruidos metä-licos de oficinas. Pensa Discutimos horas sentados em sofas forrados de uma especie de plästico perola, com pessimas reproducoes de pintura nas paredes, cortininhas e tecto acastanhados de fumo, uma absoluta impessoalidade nos cinzeiros de metal e nos moveis esquemäticos, oada qual com um copo de capile na mäo, obstinadamente seriös, de pes pousados na manta de riscas a servir de tapete, que se dobrava e redobrava-sob as solas. Havia livros de con-tabilidade numa prateleira baixa, revistas antigas, um por-quinho-me&lheiro de louga Recordagäo da Malveira, e de tempos a tempos as canalizagöes protestavam ruidos a-mente nas costas deles a sua turbulSncia de gases. No quarto de banho, a tina sujissima, cercada por um repos-teiro rasgado, e a retrete entupida, fedorenta, em que se amontoavam pensos de menstruacjäo, pedagos de papel higie-nico e espuma de urina, enojaram-no, e preferiu lavar as mäos no bide, fugindo ao lavatörio cheio de cabelos aloi-rados e de lascas ressequidas de sabäo. O proprio espe-Iho se turvava de excrementos de moseas e de insectos esmagados ä palmada, e os dois ou tres frascos de perfume pousados num arcnariozito branco afiguraram-se-lhe bafio-sos e cobertos de po. Fizeram um amor desconfortavel e EXPLIOAQAO DOB PA8SABOS rápido no divá de um compartimento exíguo, cujas molas se lhes escapavam constantemente por debaixo do corpo, e a seguir, quando fumayam um cigarro deitados de barriga para cima, Iangando a cinza no invóluero de plástico do maco, e respigando jornais brasileiros da pilha de papéis amarelados sob a cama, ouviram o ruído da ehave na f echa-dura, taparam-se rapidamente com a colcha de chita, e quase logo a seguir, em vendaval, agarrada a uma pasta enorme, a amiga entrou rodopiando folhos, jogou a pasta para um canto, sentou-se no cháo encostada a um móvel de portas de vidro no qual se amontoavam ao aoaso dossiers e revistas, e principiou imediatamente a queixar-se, ner-vosissima, dos seus alunos do liceu (Perteneia á classe de criaturas, pensou ele, que partem palitos aos bocadinhos nos restaur antes), a limpar os lentes dos óculos á ponta da camisa, e a retirar crostas de ovo da colcha, com a unha, num súbito, inesperado entusiasmo de limpeza. — Eatava aflitíssima, coitada, náo sabia o que havia de fazer — recriminou-o depois a Marilia, acusadora, no autocarro —, e tu, ainda por cima, com cara de mono, calado como uma tumba, náo ajudaste nada. Aos poucos, entre goles de capilé (Náo consigo beber outra coisa, o que é que voces querem?), por fragmentos de conversa, restos de diálogo, frases ocasionais, percebeu que a amiga ensinava Matemática na Amadora, vivera uns anos com um estudante brasileiro de Medicína, militava numa organizagáo revolucionária, e náo devia gostar muito de lavar-se: um suor de bode misturava-se com o deles numa tranga de grossos odores desagradáveis e veementes, á medida que uma placa de sol trepava como uma lesma ao longo da parede, dividida em duas pela esquina do móvel. Quando a rapariga se levantou, com os cabelos claros e sem brilho pulando á volta do pescoQo, apanhou a toda a pressa as cuecas do cháo e vestiu-as, e, de gatas, eomecou a procurar as meias sob a cama. — Devias ter-lhe agradecido ela emprestar-inos a casa — continuou a Marilia, numa voz contida, depois de um siléncio furioso — em lugar de quase me arrastares nua para fora. — (A sua cara reflectia-se no vidro na tarde 205 ANTONIO UOBO ANTUNES EXPLICAQAO DOS PA88AR0S moribunda: Duas Marilias danadas, pensou ele.) —Depois desta cena palavra que nunca niais lá volto. Mas eu sentia-me desconfortável, húmido, humilhado, demasiado despido diante daquela mulher excessivamente loquaz, excessivamente ä vontade, debitando sem interrup-gäo nomes de pessoas que eu desconhecia, rindo-se contigo de episódios passados sem significado para mim, recordando um paleolitico comum que me excluía. E irritava-me a tua auséncia de pudor diante dela, os ombros ao léu, o peito fora da colcha, o umbigo ä vela, o início emaranhado dos pélos. Puxei as calgas para cima enquanto conversavam, abotoei a camisa, dei um nó ä sortě nos atacadores dos sapatos, encostei-me ostensivamente ä porta ä tua espera, e tu, sem me veres, prosseguias interessadíssima o tumul-tuoso diálogo com a amiga, de seios a tremerem de entu-siasmo e copo vazio de capilé na mäo, esquecida já de mim, a combinar encontros, visitas a exposigöes, uma noite em easa de um antigo namorado pintor, saguäo onde todas as cadeiras me sujaram os fundilhos de tinta e no qual uma velhota solitária, de guedelha pintada de roxo, ievi-tando, inteiramente alheada, num ángulo da sala, cheirava coca através de uma nota de cem escudos: — A minha mäe — apresentou o pintor, de cabelos pelos ombros e voz aflautada, girando, em passinhos leves de bäilarino, a distribuir vinho branco por grupos de bar-budos convictos e raparigas de fealdade irreversivel, embru-lhadas no lento fumo adocicado do haxixe. — Näo percebeste que ela ficou täo atrapalhada como nós e precisava de um bocado de conversa para descontrair? — perguntou a Marília, sempře reflectida no vidro, no mesmo tom pontiagudo e aeusador: as fachadas desliza-vam, líquidas, por detrás dela, prédios, Iojas, esquinas, pessoas amontoadas numa venda de jornais. — Mas claro que como tu näo chupas os meus amigos näo entendeste raspasi do que se passava. Inclinou-se para a frente do banco do autocarro e viu-se também, enovoado, na janela, com os olhos substituidos por dois buraeos escuros, e sombras móveis nas bochechas e no queixo. Encolheu e esticou disfargadamente os dedos, e a imagem, prontamente, imitou-o: Näo há que ter dúvidas, pensou, sou eu. Sou eu e decerto com a mesma expressäo apalermada de sonámbulo com que vague ava no atelier do pintor, tropegando em telas absurdas (urn trago negro, dois tragos negros, trés tragos negros, sempre os, niesmos, em fundo branco, ou amarelo, ou verde), em pes tortos, de unhas crescidas, calgados de sandálias bíblicas, em sapatos de tenis, em botas de sola de pneu de reforma agraria intelectual, e, por fim, no corpo estendido da velha roxa, embaragada de colares., que beijava arrebatadamente um garoto imberbe, de pulseira de pélo de elefante no torno-zelo, a rebolarem ambos numa esteira marroquina. Se sao estes os namorados que tiveste antes de mim devem ser estes os namorados que teras depois de mim, pensou ele, com a mäo no puxador da porta, a observar o teu sono na manhä de Aveiro, cujo oéu se desdobrava cada vez mais de nuvens como as varetas de um leque, aberto a partir da superficie horizontal da ria, na qual se espelhava a silhueta achatada da cidade, desenhada, ao de leve, no pano. Poetas de gengivas de eseorbuto, vagos cineastas de ^ opinions defínitivas, criticos de jazz ladrando-se com meliflua ferocidade äs canelas uns dos outros, tipos imprecisos, de lengo indiano ao pescogo, procurando a botija de oxigénio de um cigarro Salvador pelos bolsos vazios. E a noite de Lisboa lá em baixo, pensa, a cambulhada de latas dos homens da limpeza, as estrelas polares dos candeeiros a iluminarem, fixas, ovais azulados de parede, o neon de uma loja de televisores a perfurar as trevas junto a uma esquadra de polícia. — Estamos cá todös, estamos cá todos — repetiu a irmä mais nova subindo, a pedalar sempre, uma rampa em espiral. — Menos a mäe, claro — acrescentou ela no seu murmúrio de boneca. O pai continuava á exibir-lhe gavetas e gavetas de pássaros crucificados, as pequenas aves da infáneia que boiavam, de barriga para o ar, no seu céu de cartolina etiquetada, encolhendo as patinhas contra os magros ventres transidos, e enquanto fechava devagar a porta para que a Marília o näo ouvisse e descia para o rés-do-chao da estalagem, perseguido pelo cone do projector e pela inúsioa fůnebre da orquestra, .relanceou os olhos pela mul- 206 207 ANTONIO LOBO ANTVNE8 tidao de caras familiares dos artistas que o observavam, amontoados perto da corťina, disfargados pela maquilha-gem, pelos narizes posticos, pelas perucas, pelas plumas, e, de facto, náo conseguiu distinguir a máe por entre aquele emaranhado eonfuso de primos, de conhecidos, de corapa-nheiros de oolégio, de amigos de outrora encontrados, oca-sionalmente, na rua, mais gordos, mais barrigudos, mais calvos, preocupados e sérios. Pensou Se calhar telefonaram vezeš sem conta da clínica a minha procura, se ealhar o velho interrompeu a meio uma viagem de negócios para regressar á pressa, eontrariado, a Lisboa, chegar as Amo-reiras a acamar o eabelo das témporas, parlamentar com o méďico, aos cochichos, no corredor, abrir e fechar as hastes dos óculos, acabar por se sentar, sozinho, numa das hirtas cadeiras de pregos da sala de espera, embaraca-díssimo, fitando com órbitas neutras de notário um magazíne antiquíssimo. — A Tucha vá que náo vá — disse a voz da máe, gigan-tesca, ao microfone, řazendo vibrar as vigas que susten-tavam a lona. — Agora essa Marília, pelo amor de Deus, nem quero ouvir falar nela. O caseiro moveu um tudo-nada as grossas máos sen-síveis como antenas, pousadas de leve na fazendo dos. joe-Ihos. As narinas rugosas farejavam delicadamente o ar: — Vamos ter um bom ano, menino. Vamos ter um bom ano, menino, pensa ele instalado á mesa do pequeno-almoco, a examinar com repugnáneia o habitual cestinho de verga do páo, os rolos de manteiga, os bules metálicos, os frutos de plástico numa taca de por-celana. Um fio anémieo de água escorria de uma cascata incrustada na parede, tropegando de concha em concha até desaparecer, sem gloria, numa espécie de ralo de bidé. 0 empregado, de colete, dormitava amparado a uma cómoda repleta de copos e de pilhas de pratos, com um guardanapo no braco. Pelas janelas o mesmo dia de sempře dilatava-se do seu pus de chůva, e as gaivotas do costume bailavam, ao longe, numa mancha mais escura, cor de tinta de 'escre-ver, da lagoa. Um cuco rebolou desastradamente, a nadar na névoa, entre os pinheiros. 208 EXPLICAQJIO DOS PASSAROS — A derradeira refeicáo do malogrado historiador_ anuneiou o anáo com uma cambalhota sarcástica, perante os risos divertidos da plateia. O senhor Espcranga, de nariz no tabuleiro, colocava as pedras para uma nova par-tida, e assim que reťiravam alguma dela do jogo apressa-vam-se a substituir o botáo de pijama: — Qual de nós dois é que oomeca agora? — pergun-tou, indeciso, a cogar a cabega. Num cartaz um hcxmem jovem, com o qual possuía semelhangas remotas, sorria, de casaca, inclinando um dos ombros, com simpatia exa-gerada. Uma faixa oblíqua, num ángulo, anunciava a ver-melho AM1LCAR ESPERANCA, A VOZ ROMÁNTICA DE MARVILA. Pensa Porque é que náo vejo a máe a tomar o pequeno--almogo numa das mesas da sala vazia, com um livro aberto ao lado da chávena e uma torrada esquecida na máo, a een-tímetros da boča, aguardando um telefonema do estran-geiro que náo chegaria nunca, esperando que o pai, subi-tamente jovial e terno, lhe propusesse Volto mais cedo de Itália, Fernanda, que tal um fim-de-semana á beira-mar? Bebeu um gole de café a olhar a água, as árvores e os arbustos cada vez mais ressequidos da margem, a humi-dade que colava á varanda o seu bafo ansioso de animal. O café fez-lhe arder a lingua e deixou, por um momento, de sentir uma afta dolorosa da bochecha, que náo oonse-guia deixar de chupar constantemente. O publico, incli-nado nas cadeiras, assdstia da sombra numa atengáo des-mesurada, ele pensou, sem medo, sem alarme, Como será esta tarde ao chegar a Lisboa? Ajudo-te nas malas? Con-sinto que vás? Chamo um taxi pelo telefone e permanece-mos na sala, calados e tensos, á espera do ruído do motor lá em baixo, da buzina reticente do automóvel? Despedi-mo-nos no vestíbulo com um beijo recriminativo e amargo, a ferver de ódio? Torno para dentro, fecho a porta, e noto com melancolia que todo o pó da Azedo Gneco me pertence, todas as revistas, todos os livros inúteis, todo o lixo ? Como se poe a funcionar a máquina de lavar roupa comprada' em segunda máo no penhorista vesgo, coxeando na lojeca escura em que se acumulavam naufrágios de desgragas ? Se a cam-painha tocar atendo, pergunto quem é, dobrado, como um 209 ANTONIO LOBO ANTUNBB eaniveťe, do patamar? A assisténeia aplaudiu as suas dúvi-das domésticas enquanto