32 j Antonio Lobo Antunes de um arroto. Os dedos da enfermeira vieram tocar-lhe de leve o cotovelo: - Se calhar, disse ela, sempře é capaz de haver boomerangs que näo regressam. E conseguem manter-se ä tona mesmo assim. E pareceu ao psiquiatra que acabava de receber urna espécie de extrema-uncáo definitíva. Ao descer as escadas para o Banco dístinguiu ao longe, perto da penumbra de sacristia a cheirar a verniz de unhas do gabinete das assis-tentes sociais, criaturas feias e tristes a necessitarem elas próprias de assisténcia urgente, um grupo de delegados de propaganda médica estrategicamente ocultos nas ombreiras das portas vizinhas, prontos a assaltarem dcéhxurradas palavrosas e por vezeš letais os esculápios des-prevenidos ao alcance, vítimas inocentes da sua simpatia impositiva. O psiquiatra aparentava-os aos vendedores de automóveis na loquaci-dade demasiado delicada e bem vestida, irmaos bastardos que se haviam desviado, na sequéncia de um obscuro acidente cromossómico de per-curso, da linhagem dos faróis de iodo para as pomadas contra o reu-mático, sem contudo perderem a incansável vivacidade solícita original. Espantava-o que aqueles seres debitantes, sempre-em-pés da boa educacäo, donos de pastas obesas que continham dentro de si o segredo capaz de transformar corcundas raquřticas em campeöes de triplo salto, lhe dedicassem em chusma atencöes de Reis Magos portadores de pre-ciosas ofertas de calendários de plástico a favor dos preservatives anti-sífilis Donald, o inimigo publico numero um dos aumentos demo- 34 j Antonio Lobo Antunes MEMORIA DE ELEFANTE | 35 gráficos, suave ao tacto e com uma coroa de pelinhos afrodisíacos na base, de jogos de xadrez em cartolina gabando discretamente em todas as casas os méritos do xarope para a memória Einstein (trés sabores: morango, ananas e bife de lombo), e de pastilhas efervescentes que rolhavam as díarreias mas soltavam as rédeas da azia, obrigando os doentes dos intestinos a preocuparem-se com as fervuras do estómago, manobra de diversáo com que lucravam os quartos de água das Pedras bebidos a pequeninos goles terapéuticos nos balcoes das pastelarias. Os doutores saíam-lhes das pincas ferozes a cambalearem sob o peso de folhetos e de amostras, tontos de discursos ericados de formulas quí-micas, de posologias e de efeitos secundários, e vários tombavam exaus-tos trinta ou quarenta metros percorridos, espaíhando em redor os peř-digotos de pílulas do ultimo suspiro. Um empregado indiferente varria-lhes os restos clínicos para a vala comum de um baldě de lixo amolgado, resmungando baladas fúnebres de coveiro. Aproveitando a proteccáo de dois polícias que escoltavam um velhote digno com cara de ajudante de notário embrulhado nas íonas confusas de uma camisola de forcas, o médico atravessou a salvo o bando ameacador dos propagandistas a aliciá-lo com o canto de sereia dos sorrisos uníssonos, desdobrados como acordeóes nas bochechas obsequiosas: uma manhá destas, pensou, afogam-me num frasco de suspensáo antibiótica amigdal do mesmo modo que o meu pai pos-suía, nunca entendi porqué, guardado no armário da estante, o troféu de caca do cadáver de uma escolopendra num tubo de álcool, e ven-det-me-áo á Faculdade, encarquilhado como um aborto, para figurar no mostruário de horrores do Instituto de Anatomia, talho científico atravessado de Castelo Fantasma, com esqueletos pendurados de fer-ros verticals á maneíra de craveiros murchos a ampararem o seu desá-nimo a pedacos de cana, olhando-se uns aos outros com órbitas vazias de militares na reserva. A coberto das damas de honor do ajudante de notário, cujos bigo-des tremiam de timidez autoritária, o psiquiatra ultrapassou ileso um internado alcoólico das suas relacöes que todas as manhäs teimava em narrar-lhe por miúdo intermináveis disputas conjugais em que os argu-mentos eram substituidos por animadissimas batalhas campais de caca-rolas (Chica pá dei-lhe uma azevia no alto da giölhosa1, doutorzeco de uma cana, que me ficou oito dias a cuspir brilhantina), uma senliora magrinha da secretaria que vivia no pänico do esperma do marido e usava interrogá-lo ansiosamente acerca da eficácia comparativa de duzentos e viňte e sete anticoncepcionais diferentes, e um doente de barbas biblicas de neptuno de lago que nutria por ele uma admiracäo entusiástica feita de panegiricos vociferantes, todos mantidos a res-peitosa dištancia pelas aias da camisola de forcas, comunicando ao ouvido peludo um do outro os respectivos hálitos de alho. Passou o gabinete do dentista despovoador de gengivas a lutar aos ganidos contra um molar tenaz, e juigava-se já miraculosamente intacto na Urgencia, porta de vidro fosco que lhe acenava como a bandeira de pano da chegada de uma corrida de bicicletas, quando um dedo perverso lhe tocou imperioso no intervalo das omoplatas, ossos saliences e triangulares que atestavam pela forma o seu passado de anjo oculto sob a fazenda do casaco num modesto pudor de origens divinas, como os bem-nascidos arrotam no rim do almoco por benévola concessáo social a um mundo de silvas. - Meu caro, questionou uma voz nas costas dele, que me diz ä conspiracäo dos comunistas? Os polícias, ocupados a transportarem o ajudante de notário num cuidado de mocos de fretes carregando urn piano esquisito que tocava sem cessar a sonatina crivada de notas erradas do seu delitio de gran-deza, abandonaram vilmente o médico junto ao arquivo onde habi-tava uma dama míope, de óculos da espessura de pisa-papéis, que lhe aumentavam os olhos até äs proporcöes de hirsutos insectos gigan-tescos cercados de enormes patas de pestanas, ä mercé de um colega baixinho á deriva no lago de(čheviote do sobretudo, de chapéu tiro-lés cravado na cabeca á maneiralle uma rolha num gargalo no intuito 36 I Antonio Lobo Antunes MEMORIA DE ELEFANTE j 37 väo de impedír a tempestuosa fuga de bolhinhas gaseificadas das suas ideias. O colega trouxe ä superfície o gancho de mäo e em vez de ace- nar por socorro dependurou-se-lhe da gravata como um náufrago ; impaciente abracado por engano a uma cobra de água azul com pin- tas brancas que se lhe desfazia no punbo numa inércia mole de ata- cador. O psiquiatra pensou que toda a gente nesse dia o queria sepa- f rar de um dos Ultimos presentes que a mulher lhe dera no desejo inutil de melborar a sua aparéncia de noivo de provincia congelado numa postura hirta de fotografia de feira: desde a adolescéncia que trazia | consigo, colado ä assimetria das feicöes, o ar postico e triste dos mor- tos de família nos álbuns de retratos, de sorrisos diluidos pelo iodo ,| do tempo. Meu amor, falou dentro de si mesmo apalpando a gravata, | sei que isto näo alivia nem ajuda mas de nós dois fui eu o que näo soube lutar: e vieram-lhe a memoria longas noites na praia desfeita dos lencóis, a sua lingua desenhando devagar contornos de seios ilu- minados de uma rede de veias pela primeira luz da aurora, o poeta Robert Desnos a agonizar de tifo num campo de prisioneiros alemao murmurando E a minha manha mais matinal, a voz de John Cage a j repetir Every something is an echo of nothing, e a forma como o corpo | dela se abria em concha para o receber, vibrando tal as folhas dos f cumes dos pinheiros agitados por um vento invisível e tranquilo, O colega pequenino, com a pluma do chapéu tirolés a oscilar ä laia de agulha de um contador Geiger que encontrasse minério, obrigou-o J a encalhar numa esquina de parede, caranguejo doente filado pela tei- mosia de um camaroeiro tenaz. Os membros pulavam no sobretudo movimentos brownianos sem objectivo definido de moscas na man- cha de sol de uma cave, as mangas multiplicavam-se em gestos conster- nados de orador sacro: — Os gajos avancam, hä, os comunistas? Na semana anterior o médico vira-o procurar de cócoras micro-fones do KGB ocultos sob o tampo da secretária, prontos a transmiti- | rem para Moscovo as decisivas mensagens dos seus díagnósticos. - Avancam, garanto-lhe eu, balia o colega a rodopiar de inquie-tacäo. E esta'choldra), a tropa, o zé-povinho, a igreja, ninguém se mexe, borram-se de medo, colaboram, consentem. Por mim (e a minha esposa sabe) o que me entrar em casa leva urn tiro de cacadeira pelos cornos. Olarila. Voce já leu os cartazes que puseram no corredor com o retrato do Marx, o Catitinha da economia, a despejar as sui^as em cima da gente? E chegando-se mais, confidencial: - Eu topo que voce anda lá por perto se é que näo alinha com a cambada, mas pelo menos lava-se, é correcto, o seu pai é professor da Faculdade. Conte-me cá: vé-se a comer ä mesa com urn car-pinteiro? Na minha infáncia, pensou o psiquiatra, as pessoas escalavam-se em trés categorias nao misciveis rigorosamente demarcadas: a das cria-das, dos jardineiros e dos choferes, que almocavam na cozinha e se levantavam a sua passagem, a das costureiras e das senhoras de tomar conta, com direito a mesa ä parte e ä consideracäo de um guardanapo de papel, e a da Familia, que ocupava a sak de jantar e velava cristä-mente pelos seus mujiques («pessoal», chamava-lhes a avó) ofere-cendo-lhes roupa usada, fardas, e um interesse distraido pela sadde dos filhos. Havia ainda uma quarta espécie, a das «criaturas», que englo-bava cabeleireiras, manicuras, dactilógrafas e enteadas de sargentos, as quais tondavam os homens da tribo tecendo ä sua volta uma pecami-nosa teia de soslaios magnetizadores. As «criaturas» näo se «casavam»; «registavam-se», näo iam a missa, näo se afligiam com o ingente pro-blema da conversäo da Russia: consagravam as suas existéncias demo-niacas a prazeres que eu entendia mal em terceiros andares sem eleva-dor de onde os meus tios regressavam ä socapa risonhos de juventude recupeiada, enquanto as fémeas do clä, na igreja, se dirigiam para a comunhäo de olhos fechados e lingua de fora, camaleöes prontos a devorarem os mosquitos das hóstias numa gula mística. De vez em quando, a meio da refeicao, se o psiquiatra, entäo garoto, mastigava 38 ] Antonio Lobo Antunes MEMORIA DE ELEFANTE | 39 de boča aberta ou pousava os cotovelos na toalha, o avó apontava para ele o indicador definitivo e profetizava cavernosamente: - Hás-de acabar nas maos da cozinheira como o peru. E o tremendo siléncio que se seguia avalizava com o seu selo branco a iminéncia dessa catástrofe. - Responda, ordenou o colega. Vé-se a comer a. mesa com um car-pinteiro? O médico tornou a ele no esforco de quem ajusta a imagem de um microscópio desfocado: do alto de uma pirámide de preconceitos quarenta geracóes burguesas contemplavam-no. - Porque nao?, disse ele desafiando os cavalheiros de péra e as damas de abundante busto boleado ao torno que se tinham trabalho-samente cruzado entre si, num crochet complexo, atrapalhados pelos suspensórios e pelas barbas do corpete, para produzirem, ao cabo de um século de deveres conjugais, um descendente capaz de revoltas tao impensáveis como a de uma dentadura postica que pulasse do copo de água em que sorria á noite para morder o próprio dono. O colega recuou dois passos, siderado: 1 - Porque nao? Porque nao? Homem, vocé é um anarquista, um marginal, voce pactua com o Leste, vocé aprova a entrega do Ultramar aos pretos. Que sabe este tipo de Africa, interrogou-se o psiquiatra á medida que o outro, padeira de Aljubarrota do patriotismo á Legiáo, se afas-tava em gritinhos indignados prometendo reservar-lhe um candeeiro da avenida, que sabe este-'caramelo^e cinquenta anos da guerra de Africa onde nao morreu nem viu morrer, que sabe este cretino dos administradores de posto que enterravam cubos de gelo no anus dos negros que Ihes desagradavam, que sabe este parvo da angústia de ter de escolher entre o exílio despaisado e a absurda estupidez dos tiros sem razáo, que sabe este animal das bombas de napalm, das raparigas gravidas espancadas pela Pide, das minas a florirem sob as rodas das camionetas em cogumelos de fogo, da saudade, do medo, da raiva, da solidao, do desespero? Como sempre que se recordava de Angola um roldäo de lembrancas em desordem subiu-lhe das tripas ä cabeca na veem£ncia das lagrimas contidas: o nascimento da filha mais velha sila-bado pelo radio para o destacamento onde se achava, primeira macä-zinha de oiro do seu esperma, longas vigilias na enfermaria improvi-sada debrucado para a agonia dos feridos, sair exausto a porta deixando o furriel acabar de coser os tecidos e encontrar ca fora uma repentina amplidäo de estrelas desconhecidas, com a sua voz a repetir-lhe den-tro - Este nao e o meu pais, este näo e o meu pais, este näo e o meu pais, a chegada äs quartas-feiras do aviao do correio e da comida fresca, a subtil e infinkamente sabia paciöncia dos luchazes, o suor do palu-dismo a vestir os rins de cintas de humidade pegajosa, a mulher vinda de Lisboa com o bebe de surpreendentes iris verdes para viajar com ele para o mato, sua boca quase mulata a sorrir comestivel na almofada. Nomes magicos: Cuko-Cuanavale, Zemza do Itombe, Narriquinha, a Baixa do Cassanje coberta pelas altas pestanas dos girassois em manhas limpas como ossos de luz, bailundos empurrados a pontape para as fazendas do norte, Säo Paulo de Luanda imitando o Areeiro encostado ä valva da bafa. Que sabe este palerma de Africa, interrogou-se o psiquiatra, para alem dos cinicos e imbeds argumentos obstinados da Accäo Nacional Popular e dos discursos de seminario das botas men-tais do Salazar, virgem sem utero mascarada de homem, filho de dois cönegos explicou-me uma ocasiäo uma doente, que sei eu que durante vinte e sete meses morei na angdstia do arame farpado por conta das multinacionais, vi a minha mulber a quase morrer do falciparum, assisti ao vagaroso fluir do Dondo, fiz uma filha na Malanje dos diamantes, contornei os morros nus de Dala-Samba povoados no topo pelos tufos de palmeiras dos tumulos dos reis Jingas, parti e regressei com a casca de um uniforme imposta no corpo, que sei eu de Africa? A imagem da mulher a espera dele enrre as mangueiras de Marimba pejadas de mor-cegos aguardando o crepiisculo apareceu-lhe numa guinada de sau-dadc violentamente flsica como uma viscera que explode. Amo-te tanto 40 j Antonio Lobo Antunes que te näo sei amar, amo tanto o teu corpo e o que em ti näo é o teu corpo que näo compreendo porque nos perdemos se a cada passo te encontro, se sempře ao beijar-te beijei mais do que a carne de que és feita, se o nosso casamento definhou de mocidade como outros de velhice, se depois de ti a minha solidäo incha do teu cheiro, do entu-siasmo dos teus projectos e do redondo das tuas nádegas, se sufoco da ternura de que näo consigo falar, aqui neste momento, amor, me des-peco e te chamo sabendo que näo virás e desejando que venhas do mesmo modo que, como diz Moiero, um cego espera os olhos que encomendou pelo correio. Na urgencia os internados de pijama dir-se-ia ŕlutuarem na clari-dade das janelas como viajantes submarinos entre duas águas, de ges-tos lentificados pelo peso de toneladas dos remédios. Urna velha em camisa, parecida com os auto-retratos finais de Rembrandt, vogava dez centímetros acima do seu banco idéntica a um pássaro trôpego que fosse perdendo a espuma de vento dos ossos. Bébedos ensonados que o bagaco transformara em serafms rotos tropecavam no ar: todas as noi-tes a polícia, os bombeiros ou a indignacao da família vinham ali aban-donar, como num vazadouVo derradeiro, os que tentavam em väo emperrär as engrenagens do mundo escaqueirando o quinane do quarto, descobrindo estranhos bichos invisíveis alapados nas paredes, ameacando os vizinhos com a faca do pao ou escutando o impercep-tível assobio dos fnarcian^s que a pouco e pouco se vestem de colegas de escritório para revelarem äs restantes galáxias a chegada iminente do Anti-Cristo. Havia também os que se apresentavam sozinhos, bacos de fome, a oferecerem a nádega ä seringa a troco de urna cama onde dormir, clientes habituais que o porteiro reenviava, de imperioso braco estendido ä estátua de Marechal Saldanha, para as árvores do Campo