capítulo primeiro O meu pai nunca me deixou entrar aqui. Devia sentar-se na cadeira de baloico e olhar do postigo o jardim lá em baixo, ■o portáo, a rua, eu pequena a brincar ás fadas com a minha irmá no rebordo do lago. Aos domingos abria a gaveta da cómoda, jcmexia papéis até escutarmos o tilintar da argola, subia as esca-das do sótáo a procurar a chave no meio das outras chaves (tal como hoje, agora que ninguém me proíbe, abri a gaveta, remexi papéis até escutar o tilintar da argola e subi as escadas a procurar a chave no meio das outras chaves) e flcava horas seguidas na cadeira de baloico (entendo neste momento que era a cadeira de baloico pelo ruído das molas) a olhar do postigo o jardim lá em baixo, o portáo, a rua, eu a brincar ás fadas com a minha irma no rebordo do lago náo, náo acredito que se interessasse pela rua ou por nos, pela rua náo se interessava nunca e quanto a nos o mais que nos oferecía era um aborrecimento mudo, a minha máe mostrava-lhe os boletins do colégio e ele recusava-os com as costas da mao, fazíamos-fhe perguntas e continuava a mastigar, mudavam-nos o penteado e náo reparava sequer, uma tarde, durante a licao de piano a professora voítava a página da música 15 Para a Zé que há-de encontrar maneira de ler este livro. No princlpio Deus črtou o céu e a terra. A terra achava-se väzia, as trevas cobriam o abismo e o vento de Deus girava sobre as águas. Entäo Deus disse "Exista a luz" eassim se cumpriu. Deus viu que a luz era boa, apartou-a das trevas, chamou ä luz "dia" e äs trevas "noite". Houve urna tarde e urna manha:prímeiro dia. capítulo primeiro O meu pai nunca me deixou entrar aqui. Devia sentar-se na cadeira de baioico e olhar do postigo o jatdim lá em baixo, ■ o portao, a rua, eu pequena a brincar ás fadas com a minha irmá no rebordo do lago. Aos domingos abria a gaveta da cómoda, : remexia papéis acé escutarmos o tilintar da argola, subia as esca-das do sótáo a procurar a chave no meio das outras chaves (tal como hoje, agora que ninguém me proíbe, abri a gaveta, remexi papéis até escutar o tilintar da argola e subi as escadas a procurar a chave no meio das outras chaves) e ficava horas seguidas na cadeira de baioico (entendo neste momento que era a cadeira de baioico pelo ruído das molas) a olhar do postigo o jardim lá em baixo, o portao, a rua, eu a brincar ás fadas com a minha irmá no rebordo do lago nao, nao acredito que se interessasse pela rua ou por nos, pela rua nao se ínteressava nunca e quanto a nós o mais que nos oferecia era um aborrecimento mudo, a minha máe mostrava-Ihe os boletins do colégio e ele recusava-os com as costas da mao, fazíamos-lhe perguntas e continuava a mastigar, mudavam-nos o penteado e náo reparava sequer, uma tarde, durante a licao de piano a professora voltava a página da música 15 senti qualquer coisa atrás de mim, virei-me no banco com um dicionário em cima para chegar ás notas e ao dar com ele na ombreira a cara ficou logo séria e desapareceu com tanta pressa no corredor que tombou a jarra do tremó lembro-me dos dedos aflitos a endireitarem a jarra, do napperon fora do sitio, do trote zangado consigo mesmo na direccao do escritório, de ralhar com o advogado que o esperava, a ensaboar as palmas em vénias respeitosas - Para a quantidade de dinheiro que lhe pago náo tern nada que fazer pois näo? durante dias pareceu-me que se envergonhava de mim como se envergonhava das visitas no hospital, deitado com aque-les aparelhos e aqueles tubos todos sem poder mandar em nin-guém, a minha mae pedia desculpa as visitas junto ao elevador aceitando os ramos de cravos, as caixas de chocolates, os livros de pintura que ele recusava com as costas da mäo näo eram boletins do coíégio pai - Anda täo impaciente dos tratamentos coitado náo reparem a minha mae que continuava a desculpar-se para o elevador fechado onde os andares diminuíam quatro trés dois um ao mesmo tempo que o botäo de chamada se acendia e apagava em siléncio - Tenho a certeza que ele vai ŕicar contentissimo com os chocolates é täo guloso os ramos e os livros escorregavam-lhe dos bracos, erguia o joelho a impedir que uma embalagem de bombons caisse ao chäo - O que faco com isto? de súbito täo velha, quarenta e dois ou quarenta e trés anos acho eu, multiplicando-se a segurar embrulhos com vida propria que náo paravam de descer - Meu Deus Maria Clara Ana Maria e se nos escapavam também, idiotas e moles, a empre-gada da enfermaria entornava-os num saco de plástico — Tome lä o doente de roupäo e canadianas que fumava äs escon-tjidas na copa e safa a tossir, sufocado, escarlate, a guardar o eachimbo num nevoeiro azul, suspendia-se a observar-nos, se eü fosse fada dava um toque de varinha e pronto, o meu pai näo pcupava aquele quarto, arredava a cortina que tapava as escadas dp sötao e instalava-se na cadeira de baloico no.meio do po, dos arrnarios e das areas, äs vezes uma hora, as vezes duas, äs vezes a tarcle inteira, uniformes, retratos de militares a cavalo, chapeus da minha avö em cilindros com rötulos franceses senhoras elegantes de perfd em fundo malva a minha avö que saia todos os dias äs ocultas, a seguir ao almoco, de boininha ridfcula no cocuruto, a bolsa de retrös :e as suas joias falsas, para jogar na roleta do Casino, vendeu os brincos e os colares autenticos ao hörnern dos penhores uma especie de congro atras de um balcäo gradeado, os dedos torcidos de reumatico esperavam uma eternidade enquan-to a boca falava, a minha avö — Täo poueo? e a seguir avancavam de repente e colhiam as perolas havia imensos relögios na loja garantindo horas mais felizes, alian^as baratas e prateleiras com objectos a que faltava tinta, doirados ou de cob re como as criadas gostam, atraves dos quais uma gata clandestina passeava com desdem a meticulosi-dade das patas a boininha ridicula chegava ao Casino antes da abertu-ra e encostava-se ä palmeira a extrair da bolsa de retros um par de notas amassadas, as gaivotas, nao muitas, as mesmas desde o prinefpio do mundo, iam e vinham entre o Tamariz e os barcos, o porteiro chamava-a com o dedo em gancho, a troca-la — Faca favor condessa a minha avö aninhava-se numa esquina de mesa com meia duzia de fichas avarentas sob os lustres imensos, apontava os numeros na palma, tentava uma aposta, desistia, resolvia-se, desistia outra vez 16 17 pode ser que o meu pai lograsse alcancá-ia do postigo do sótáo, näo essa, a do lado, a criatura que mal acabava o dinheiro tentava impingk as jóias falsas no guichet lutando com as falanges - Ametistas rubis porqué um vestido gasto se näo éramos pobres, porqué o broche na gola de raposa já sem raposa alguma, depenado de brilhantes, ao receberem visitas mandavam-na jantar na cozinha da casa que herdara do pai dela e onde dormia agora no quarto da costura, a seguir ä despensa, com uma máquina avariada e cestos rotos que cheiravam a lixivia, um sábado, no més em que lhe deu a embólia, ganhou no Casino, substituiu a boininha por uma capeline escarlate desmaiada pelos anos que devia conser-var sob a cama na esperanca de um triunfo assim, ao chegarmos ä sala de jantar encontrámo-la ä cabeceira no lugar do meu pai no lugar do pai dela sem jóias de pacotilha, sem broche, sem raposa, a des-tinar os assentos do vértice da sua autoridade restaurada - Tu af tu a. minha esquerda tu depois do meu genro tu em frente da Maria Clara a regular as conversas, a desaprovar modos, a obrigar a passar melhor a carne e a temperar a salada, a comandar o pes-soal com o sobroího sem réplica, a minha máe viajava de cara em cara a tentar compreender e encontrava narizes obedientes sepultados nos pratos, o meu pai domesticado sem protestar com nada - Mama a fotografia do senhor general pendurava-se de novo na parede, a campainha de chamar as criadas, regressada uma camponesa de touca com o badalo na saia vibrava impaciéncias, a minha avó sem girar para a minha máe a capeline imperiosa - Esses ombros para trás e tem termos Amelia as condecoracóes do senhor general aumentavam na estante, a estante perdäo, a estampa com o presidente Krüger, com o J u q lie inglés, o meu pai sem importáncia fora da cabeceira, entre a Ana Maria e o cesto da fruta — Bern podias ter casado com um hörnern mais aprcsentávei Amelia e no fim do jantar nozes, vinho do Porto, um bolo ilíirhinado, o meu avô, vindo da Escola de Guerra, cruzava o pas-seió a namorá-la protegido pelo cotoveío no receio que o senhor general o distinguisse das sombras, o que lembro dele é um cego ä jogar xadrez com o primo tenente, se calhava anoitecer no escri-tório näo acendia a luz, ligávamos o interruptor e pulávamos de sústo um fantasma ao vé-lo, uma coisa quieta no meio de coisas quietas, o médico a auscultar o meu pai — Temos de operá-lo ao coracäo senhor doutor e o meu pai mudando sem mudar, o que se alterou foi em torno quer dizer os prédios mais solenes no EstoriL os ruídos mais graves, uma seriedade estranha nas árvores, a minha mle numa espécie de soluco de espanto e o meu pai sem que os lábios estremecessem sequer - Espera no corredor Amelia igualzinho ao meu avô no escritório sem acender a luz, o mesmo queixo empinado a indagar trevas que desconhecía-mos, as mesmas narinas procurando cheiros — Quem entrou? a mesma testa enrugada a escutar näo sei qué, o meu pai igual ao meu avô diante das suas pegas de xadrez invisíveis, para a Ana Maria, para mim - Voces também uma mancha de lama num salto, as hastes dos óculos a fugirem das orelhas, a minha avó cortava o bolo iluminado a abanar a cabeca com desgosto da mancha - Bern podias ter arranjado um hörnern mais apre-sentável Amelia 18 19 apresentável como o cadete da Escola de Guerra a cruzar o passeio antes de cegar em Espanha, tudo parádo e nisto um grito no primeiro andar - Xeque-mate Tomáš a torre que faitava substitufda por um botáo de pijama com um resto de fio nos buracos, assim que uma das torres saía do jogo guardava-se o botao na caixinha, um dedal no lugar do rei branco, o primo tenente a pensar na maneira de se enganar de propósito, o meu avô na direccáo de ninguém, de máos pareci-das com as patas da gata dos penhores, contornando os peôes e os bispos sem os derrubar - É para hoje Tomáš? julgo que foi o primo quem morreu primeiro, morava num andarzito em Birre, guiaram-nos, á Ana e a mim, a um com-partimento com pessoas caladas e ŕlores sobre uma bandeira a servir de colcha mas quando foi do meu avô näo me recordo, náo me recordo sequer de faltar o tabuleiro de xadrez que encontrei hoje no sótäo, esta manha os enfermeiros entregaram ao meu pai uma camisa cor-de-rosa e !evaram-no do quarto - Nao sou invalido nenhum para me estender nessa maca a minha mäe entregou-lhe o estojo da dentadura postíca, o meu pai indignado a perceber que reparámos, a anestesista piscou o olho ä minha mäe e o estojo sumiu-se na carteira - Estúpida antes de se transferir ä socapa para o bolso da doutora, quando tiver a idade dele será que sentir-me-ei repugnante também, diminuída, horrível? com nojo de mim e no entanto insistindo em disfarcar inchacos, defeitos, gorduras, pintar-me mais, tornar-me ruiva, usar laca e soutiens de arame, tentar decifrar o preco das coisas, sem óculos, mantendo as etiquetas á dištancia do braco - ímprimiram maí os números experimenta tu Maria Clara isto é um oko ou um nove? o meu pai descalco a acompanhar a maca, a porta do eíevador cerrou-se num suspiro, a minha avó distribuiu uma fatia de bolo a cada um de nos, ergueu o cálice de vinho do Porto num cumprimento circular, a empregada que a tratava por menina e vivia connosco desde antes de eu nascer aprovava no umbral, uma manhá chamou-me de parte e mostrou o tesoiro de uma rňoidura quebrada com elas duas novíssimas, ou o que a empregada jurava sérem as duas, dissolvidas numa mancha castanha - Olhe eu aqui a segurar o guarda-chuva da menina vultos na mancha castanha, algo como uma biusa ou um carrapito ou uma nuvem, a empregada embrulhou a moldura numa página de jornal a fltar-me no receio que pudesse roubá-4a, inclinou-se a ralhar com a propria coluna para a esconder nos Icncóis, emprestava dinheiro á minha avó, seguia-a até á palmeira ;do Casino, preocupadíssima, agachava-se atrás dos automóveis, a fazer-se desencontrada, para a acompanhar a casa — Ia a passar e vi-a tentava resgatar-lhe as pérolas no balcao gradeado em troca do fio de ouro que tinha - Tome o fio de sinal que eu escrevo para a terra e os meus sobrinhos mandam-me o resto é o colar da menina Margarida se a conhecesse há vinte anos entendia a gata con tornou uma santa de talha, empinou-se a olhá--la na sua paz aborrecida, espetou a cauda e acabou por desapa-reccr no meio dos relógios parados, um deles com o cuco de bico aberto na exrremidade da mola, o congro devolveu-lhe o fio empurrando-o no balcao — Isto náo vale nada é lata tinha quase a certeza que pedia esmola nos dias de saída para comprar as pérolas e os restantes colares e os brincos e a pulseira de ágatas até a Ana me contar a rir-se que ela na esplanada do Tamariz a estender a máo aos turlstas e a discursar acerca do senhor generál e da menina, o senhor general que construiu cami-nhos-de-ferro em Africa e a menina tao boa, cheia de escravos, educada como uma marquesa, no momento em que se prepa-rava para explicar a moldura quebrada 20 21 - Eu a segurar-lhe o guarda-chuva vejam J o empregado ameacou-a com a bandeja de trazer os I cafes f - Va pedir para a estacao tiazinha " era ela quem vedava com pedacos de pano as frinchas \ do quarto, colocava o quadrado de damasco na cama de ferro, i lhe segurava a roupa com alfinetes, escovava a boininha, sere- • nava as vaidades - Ainda sou elegante näo sou? aproximava o polegar e o indicador quase ate junta-los ■ - Näo mudou nem isto menina lhe introduzia na bolsa cinco ou seis moedas, a minfia mae no topo dos degraus | - Adelaide com vasos de begonias de cada lado do alpendre, da cadeira de baloico do sötao näo se distinguem os degraus nem o alpendre, apenas o jardim na face oposta ao mar, para que sentar-se ali a remexer papeis no meio dos armärios e das areas, no hospital o parque de estacionamento e o viaduto da auto--estrada que sacudia os estores quando uma camioneta, a Ana e eu junto ä cama vazia ä espera que o medico regressasse, a Ana, com uma blusa que me roubou da cömoda, seguia um filme na televisao junto ao tecto, a minha mae procurou o terco na c;ir-teira e beijou a cruzinha ; - Näo tens vergonha de a ajudar no vicio Adelaide? os guardas que tomavam conta do men pai fumavam encostados ao carro, o primo tenente dispunha as pecas para o jogo seguinte, a Ana aumentou o som da televisäo enquanlo a minha mae tornava a beijar a cruzinha do terco - Essa blusa näo e da tua irma Ana Maria? um guarda-fato com dois ou tres cabides no varäo, um sofa estampado que se desdobrava em divä, a empregada num derradeiro golpe de escova (os olhos orgulhosos a contemplarem a boina, se lhe consentissem abria um guarda-chuva sobre a minha avo a pro- teg£'ta do outono, devolvia-lhe o quarto do primeiro andar com o dosscl e o psiche' de engastes de bronze que os meus pais ocupa-vani, rcssuscitava o senhor general e ninguem a apoucava) - Va-se embora menina va-se embora a minha av6 trotava ao longo da praceta com a bolsa para a direita e para a esquerda, a Ana mudou de canal e um leao descosia uma zebra, mudou de canal e um bailado russo, a minha mae a acariciar a cruzinha do terco - O teu pai a ser operado e tu de televisao aos berros Ana Maria frascos de soro, botijas de oxigenio a entrechocarem-se, alguem que prevenia - A campainha do vinte e sete Helena uma touca abriu a porta, espreitou, fechou a porta — Desculpem a Ana desligou a televisao, aproximou-se da janela, um dos guardas encostados ao automovel acenou o cigarro e o peito da minha irma cresceu na minha blusa, a boina sumiu-se a dar c dar na praceta, nao tens vergonha de a ajudar no vido Adelaide, de a obrigares a empenhar o colar, a blusa ficava melhor na minha irma que em mim, mais loira, mais cheia, o meu avo a deslocar o botao de pijama no tabuleiro - E esta Tomas? se procuravamos ajuda-lo a caminhar sacudia-nos o braco, deslocava-se no tapete em precaucoes de escaravelho a apreender a vibracao dos moveis, se o beijavamos de manha — Ola avo recuava num pulito incomodado, defendia a bochecha com as antenas — Vamos ia vamos la agitava-se na poltrona num resto de susto e contudo se adoeciamos de anginas e ferviam seringas numa cacarola escuta-yamos-lhe o chumbo dos sapatos no nevoeiro da febre, o joelho contra um bau fora do sitio, o suspiro inquieto — As pequenas? 22 23 demorando-se a farejar, especado, inútil, amparado jo umbra!, a boca trémula de palavras mudas, as pálpebras defun- | tas a piscarem angústias, náo existia um retrato dele fardado, \ uma medalha na virrine, comia depois de nós, sozinho na sala j de jantar, de guardanapo ao pescoco, para que náo o víssemos I sujar-se, entornar arroz e pedacos de carne, no caso de pressentii que o espiávamos esquecia a colher, girava a cabeca no sentido | errado - Vamos !á vamos lá - I uma tarde trancou-se no cubfculo que prolongava o * escritório e quis matar-se com a pistola descarregada, prémiu o gatilho vezeš sem conta e nada, o primo tenente encontrou-o | a examinar o carregador com os dedos difíceis numa espécie de \ sopro ; - Náo trabaíha . 1 a minha avó a gastar jóias falsas no Casino, a minha ! máe e o meu pai imóveis, a sombra dos peixes em vénias no ter- . raco, frutos de tordos entre as folhas, os olhos do primo tenente , rosados, esquisitos, pedindo aos meus pais que se fossem embora, . o entusiasmo sem alegria alguma \ - Esqueceste que temos uma partida de xadrez para j acabar Hernáni | o revolver pesado de ferrugem na escrivaninha dos papéis do talho, das lámpadas fundidas e das macanetas de loica, a minha : máe, que saltava as contas do terco, notou os guardas no parque de estacionamento, fechou a cortina e o peito da minha irma diminuiu, temos de operá-lo ao coracao minha senhora - Espera só que o teu pai melhore Ana Maria e em lugar de ralhar-te se instale aos domingos no meio do pó, dos armários e das areas enquanto escutamos no tecto os gemidos das molas, a mancha de lama no sapato tornava-o mais frágil, mais parecido na miséria com a minha avó, talvez o sofri- : mento nao passe de uma boininha cómica na direccao da roleta, de um tacáo sujo ou de uma cama de hospital sem ninguém, daqui a nada a anestesista e o cirurgiao enquanto o peito da 0)üi ha irmä tornava a dilatar-se, os quadros do quarto de repente graves, galgar as escadas para o sótäo antes que as visitas chegas-seni e näo falar a ninguém, quando foi da embólia da minha avó chamaram-nos do Casino — Temos aqui uma velha que mora nessa casa em pequena deixavam-me dormir com eia na cama do dössei, a Adelaide trazia-nos chá quente com um pingo de anis, mal o bebia uma exaltaeäo de calor dentro de mim, fmpetos de tosse, surbcacöes, gargalhadinhas que nao me pertenciam, o corpo impreciso num rodopio de lencóis, a Adelaide impedia-me de cair e ajudava a minha avó a domesricar o cabelo com o pente de cabo de piata substituído por um pedaco de pau, se nos colo-: eassem lado a lado diante do espellio éramos do mesmo tamanho mas o espelho dancava também, um pedaco de jardim surgiu e foi-se embora, o tanque de lavar roupa que näo cessava de pin-gar formava um charcozito junto ao muro onde se reflectiam fiascos de perfume vazios, embaiagens de rouge vazias, batons vazios, tudo ao meu alcance e sem lograr tocar-lhe, a Adelaide formava um carrapito com as madeixas da minha avó — Näo mudou nem isto menina Fios de estopa que se pegavam aos dedos, pelos posticos de boneca, uma atmosféra de ŕundo de despensa feita dos chei-ros ácidos e doces das coisas remotas, o apartamento do primo tenente, sobre o café de Birte, era assim, nenhuma gaivota, só cegonhas e laranjas em marco, a minha máe olhava a poitrona escorada pela lista telefónica sem se atrever a sentar-se — Estamos atrasadíssimas desculpe as sobrancelhas do primo tenente, desiludidas, escorre-gavam na cara, via-nos sair de bandeja de refrescos nos bracos, o gerente do Casino — Pifou-nos aqui uma velha que mora nessa casa vergada na mesa de jogo de boina na cabeca, as jóias falsas mais exageradas que nunca, a minha máe proeurou os óculos e dobro u-se para a minha avó como se lhe custasse reconhecé-la 24 25 — Assim de repente dá-me ideia de uma mulherzinha \ que temos lá por esmola J calando a Adelaide em soslaios ferozes, a Ana compu-1 nha a franja e a saia dela subiu, havia agora uma padiola e bom- f beiros ajeitando a minha avó na padiola, a boininha rolou na alcatifa, o primo tenente em Birre, com os seus refrescos intactos, colocava urna metade de íimäo em cada copo e a pasta de acúcar acumulava-se na base, a empregada avancou um passo ataun-tado e a minha mae tornou-a em pedra num murmúrio — Adelaide se um dos tornozelos näo sobrasse da manta nao era a : minha avó, era um pedaco de tecido ruco com qualquer coisa por baixo, transportaram-na pela saida dos fomecedores atravancada de caixotes de bebidas, quando o condutor dos bombeiros se apro- -ximou a ajudar e dois cachorros se pegaram no pátio a roupa da minha irmä diminuřu um palmo, o gerente afigurou-se-me mais idoso na rua os vi neos do pescoco, os vi neos da nuca sem o véu indulgente dos brilhos, a banda do smoking necessitava de goma, a minha mäe a apontar a boininha — Nunca calculei que deixassem pessoas como esta frequentar casinos o funeral ä socapa numa aldeia espremida cóntra as fal-das de Sintra, o padre, a minha mäe e nós, meia dúzia de jazi- í gos, meia dúzia de camponesas a deriva entre as lápides, um rapaz a plantar couves num ängulo de muro, a carreta sacudia-se nos calhaus da vereda, rebanhos, cardos, moinhos, o mar muito íonge nas dunas do Guincho, pela primeira vez o meu pai no postigo do sótao a olhar-nos, ao chamar a minha mäe o postigo deserto, brandimos a campainha do almoco e nao desceu as esca-das, somente passos ao comprido do tecto, třve medo que a minha avó aparecesse em cada esquina da casa a tirar notas amassadas da bolsa de retrós — O que quiseres Clarinha näo facas cerimónia suponho que a Adelaide a visitava no cemitério por \ fechar o portáo devagarinho depois de andar pelo jardim a arrancar goivos, víamo-la na paragem do autocarro com o guar-da-chuva. da menina aberto, náo a proteger-se do outono mas a cobrir urna pessoa que näo havia, passados meses entregou ä minlia mäe o colar de pérolas ..... Comprei-o minha senhora tome näo menina, minha senhora, o colar num envelope de papcl de seda - Tome näo por amizade nem por consideracäo, por vinganca (disse a minha mäe) para manter a menina viva (acho eu) a filha do senhor general tao importante em Africa, a lembranca do duque ínglés nos quinze anos da menina, a esposa do senhor general a ajoelhar diante da alteza, comovida - Senhor duque a Adelaide deve ter levado séculos a juntar o dinheiro - Tome a eserever ä família, a pedinchar na esplanada, a enxo-tarem-na para a estacäo - Tiazinha a varrerem-na da estacäo - Náo incomode os turistas tiazinha o colar de duas vol tas com um fecho de coral, a minha mäe sem lhe tocar - O que é isto? nao menina, minha senhora, nunca vi tan to terror nos olhos dela - O que é isto? o terror a desvanecer-se ä medida que examinava o envelope, o pesava, o riscava com a unha - Eng anaram-te Adelaide é urna imitacäo de pataco o meu pai espreitou do sofá por cima do livro, cuidei que fosse falar e näo falou, que odiasse a minha mäe e no entan-to näo pude dar-me conta da sua expressäo dado que nesse 26 27 instante o medico entrou no quarto, a bata verde que eu espe-rava, a gravidade que eu esperava, a Ana desta feita a diminuir de tamanho, o terror dela também, a Adelaide näo nos tratava por menina nem por senhora, näo nos tratava por nada, sc con-seguisse näo reparar em nós, se conseguisse que nao existissemos, ■ a minha mSe a beijar a cruzinha do terco, nao pude dar-me conta da expressäo do meu pai porque o médico garantia ä minha mac que o seu marido está Optimo, mukös parabéns, dentro de uma semana no maximo já o tem em casa novinho em folha, a boča ergueu-se da cruzinha do terco, a cama já näo era um cahcao, eram almofadas e lencóis ä espera, a minha mae devolveu as péroSas ä Adelaide e o papel de seda crepitou no bolso do aven-tal, näo sei porqué julguei que ia chorar e nao chorei, a cadeira tornou a baloicar na pin tura do tecto, a minha irma e eu brincá-vamos as fadas no rebordo do lago e era engracado como (mesmo sem palavras mágicas) ao primeiro gesto da varinha de condáo (um pedaco de cana com uma estrela na ponta) deixaram de existir doencas, agonias, hospitals, mortes e ficou tudo bem, tudo bem, tudo bem gramas a Deus, ficou tudo bem para sempre. capitulo segLindo Imagino assim: o elevador a abrir-se um andar abaixo, onde ŕicam as salas de operacoes como vi escrito no átrio Piso 1: Consukas Externas Piso 2: Cuidados Inten ivos Piso 3: Cirurgia o meu pai descalco, de camisa cor-de-rosa pelos joelhos, a caminhar diante da maca indiferente aos enfermeiros, a ultra-passar guarda-ventos com o letreiro Proibida a Entrada, e depois preŕiro näo imaginär o que quer que seja nem sequer a aneste-sista a tirar-lhe a dentadura e o meu pai por um cantinho dos lábios, deitado na marquesa (- E um bocado mais difícil substituir-lhe a válvula com o senhor doutor de pé) o meu pai que cerrava a boca com forca - Largue-me envergonhado da auséncia de queixo e da nudez das gengivas (pareco-me com a minha morte sem isto) tal como durante anos batalhou com a calvície, locoes, cremes, esperancas, ampolas e desänimos, a risca a baixar més a més na direcfäo da orelha, a anestesista só olhos entre a touca e a mascara a protestar 28 29