LEMBROU-SE de quando tinha doze ou treze anos, roubava cigarros ao avô, os dividia com o filho do caseiro e se estendiam ambos na relva, a fumar, vendo o céu de Setembro no intervalo das acacias. Sorriu ao repuxo do lago e aos bancos de azulejo que separavam o jardim do roseiral, e o Juiz de Instrucäo inclinou-se de imediato para a frente, de mäos espalmadas numa confusäo de papéis: — O que? — Näo disse nada, säo coisas antigas que me vém á ideia, näo ligue. O avô em baixo, de casaco de vcräo, na cadeira de lona sob o guarda-sol desbotado, assente nos ladrilhos onde aos domingos, a seguir ao almoco, a família montava as mesas da canasta, e eles aqui, rente aos gladiolos, chupando beatas clandestinas com a caixa de fósforos da cozi-nha no bolso, assistindo ao leme do moinho que bailava para a direita e para a esquerda á procura do ven to. Eles aqui, séculos depois, um a perguntar e outro a responder neste cubículo de polícia atulhado de processos (urna gabardine de crianca pendu-rava-se de um prego), com um guarda na ombreira e um tubo de fiúor a enovelar os olhos: — Vamos comecar o depoimento do princípio: na tarde em que deram cabo do engenheiro quan-tos é que voces éram, conte lá. Bašta um měs nos calaboucos da Judiciária, sem postigo e com a verruga de urna ampolazinha no tecto, e os dias e as noites transformam-se num único crepúsculo magoado que só o abrir da cela para as refeicôes ou as visitas 19 'í do subinspecíor interrompiam. Visitas e refeicöes quase sempre quando o Hörnern acabava de adormecer, dormia ou julgava dormir, c urna tossé, pegada ä sua orelha, o desmoronava de sústo: 'o almocinho, socio, bom proveito, e j á os gonzos fecha-dos, um assobio longínquo, niriguém, o tabuleiro da sopa e do arroz no chäo. — Eu, por mim, aguento o que fór preciso, disse o Juiz de Instrucäo a deslacar o nó da gravata num cuidado de aranha. Até saber como fizeram o engenheiro em picado nem m e mexo. E näo se mexia de facto, peque-nino, calvo, escuro, peludo, ä espera, a fumar os cigarros do meu avô enquanto o caseiro, pai dele, rapavá arbustos abracado a uma estátua de porcelana em equilíbrio num parapeito de pedra. Os edifícios desiguais da Rua Gomes Freire amontoavam-se por detrás do Magistrado: placas de advogados e de cabeleireiras, dentistas, papelarias, um ruído desalentado de tráfego, de cozi-nhas de restaurantes, de vozes. O Hörnern pensou .Quantos éra-mos realmente, quatro, cinco, seis, mesmo se eu. quřsesse bufar--Iho a lämpada acesa, espetada nos ossos da cabeca, confundiu-me o raciocínio e a memoria. Recordava fragmentos, episódios desconexos, lembrancas vagas que se soltavam e reapa-reciam, a Rua Padre Manuel da Nóbrega a descer do Areeiro com os seus Stands de automóveis japoneses, urna silhueta que caminhava depressa com um embrulhinho de confeitaria na mäo. O Artista, que conduzia a furgoneta da Companhia do Gás, avi-sou É ele, as metralhadoras checoslovacas saíram aos arrepelos de debaixo do banco, o Sacerdote, de óculos redondos de mica, latiu Agora, odor de cartuchos, fumo, gente a fugir, urna vitrine em estilhacos, a silhueta do embrulho amolecendo no passeio, o Estudante para o Artista, que encravava as mudancas, Acelera--me essa merda, poca, e de imediato a Avenida de Roma, livra-rias, discotecas, louceiros, estabelecimentos de pronto-a-vestir, a paz de pardais da tarde, a viagem tranquila, em siléncio, respeita-dora dos semáforos, até ao celeiro de urna quinta de Odivelas, com mais armas e um sistema de rádio afogado na palha. Deve ter sido assim, era assim sempre, e por ultimo o aperto de mäo de despedida do religioso, Descansem que o contacto procura--vos, quero cada um o mais quietinho possível na sua toca, para a semana que vem há novidades de certeza, e nisto a mulher do caseiro chamou o filho do roseiral, Zé, chega aqui um instan- 20 tinhOj Zé, e o Juiz de Instrugäo, surdo, a bater a ponta da esfe-rográfica no polegar, levantou um dos telefones da mesinha ao seu lado, Previna-me a legítima que näo sei a que horas volto hoje. Devia ter sido assim, pensou o Hörnern com a espiral de arame da lämpada fincada na testa, no nösso grupo de assalto nunca trabalhámos de outro modo: davam-nos a identificacäo da criatura e um prazo para terminar a empreitada, e nós, por turnos, confirmávamos horários, emen-dávamos diagramas, alterávamos percursos, discutíamos, numa cave de bairro-dormitório em Almada ou num armazém deserto de Marvila, em torno de um cinzeiro a transbordar. O Artista queria á viva forca resolver o assunto na madrugada seguinte arrasando ä bomba um quarteiräo inteiro, o Sacerdote retinha-o a puxar-lhe a manga, Calma, calma, se ainda hoje näo nos apa-nharam é porque preparamos as coisas com cuidado, e corrídos dias lá surgiam as espingardas e um Honda roubado, Aprontem--se, meus filhos, é agora. Por uma ou duas vezes o Hörnern teve a certeza de que antes de principiarem a disparar, já de canos apoiados na janela do carro e as pinhas das granadas na algi-beira, o alvo os fitava com um pupila de láparo acossado, urna orbita de vidro de perdiz, e em tais noites näo lograva dormir apesar dos calmantes, estendido de barriga para cima, atormen-tado de suores, a rever o vulto que caía á sua frente, o Sacerdote, de metralhadora no ombro, insultando o moribundo, Sacana sacana sacana, d Estudante a esmurrar a nuca do Artista, Pisa o pedál, caralho, pracas e pracas, o radar do aeroporto, descampa-dos com ovelhas, um restaurante quase a rocar o alcaträo, e a Dona da Casa de Repouso Pára, onde é que queres ir agora, que maluquice, pára. O Juiz mostrou da secretária um caderno de almaco: — Duzentas páginas de confidén-cias da Organizacäo, segredos, pulhices, vergonhas, desgracas, testemunhos. Só me falta a historiazinha completa pela sua boca. Nem sequer se parece com a mäe, pensou o Hörnern a lembrar-se da mulher do caseiro que pedia ajuda ao avô para os estudos do filho, intimidada pelo peso dos reposteiros e a lucilacäo das casquinhas. A mäe, de carrapito a desfazer-se, que chamava aos gritos pelo Juiz de Instrucäo e lhe atirava com as socas de pau, beijando o anel do velho a chorar e a rir ao mesmo tempo, agradecida, e eles a fumarem escon- 21 didos na relva, de nuca nos dedos, enquanto as criadas, de bata de cotim, espanejavam as saletas do primeiro andar. O moinho imobilizou-se numa suspeita de brisa e as pás deram em girar numa lentidäo ferrugenta. — De acordo com os depoimen-tos a base do seu grupo eram cinco incluindo um aluno do primeiro ano de Química, recitou o Juiz de Instrucäo a seguir uma lista de nomes com aparo: o universitário, um génio falhado, um padre que imagina que a revolucäo continua, a dona de uma casa de repouso, e voce que näo imagina nada mas caiu na asneira de se apaixonar pela madame. Suponho que näo lhe interessam as fotografias desse envelope af e é pena: os rapazes da Judiciária favoreceram-vos bastante, de face e de perfil, cada qual com o numerozinho da ordem por baixo. E quem diz fotografias diz nomes, idades, profissôes, estado civil, sei lá que mais. Assim por alto posso contar-lhe, está aqui, o melhor que o Artista con-seguiu foi viver oito meses ä custa de urna senhora aleijada, pro-fessora no liceu de Oeiras. Contudo há uns pormenores que me intrigám, e em paga de explicacôes sem importäncia pode bem acontecer que o tribunal se comova: os Delegados do Ministério Publico säo do mais sentimental que há. Mentha, pensou o Homem, quer enfiar-me o barrete do costume dos retratos f or j ados e da bon-dade dos acusadores, näo sabe de nada, anda a chuchar comigo: a essa hora, que ignorava qual fosse por lhe proibirem os reló-gios, o Artista montava decerto urna das suas colagens horroro-sas no segundo andar da Calgada dos Mestres, cercado pelo fedor das brochas, dos diluentes, das bisnagas, o Estudante, no apartamentozinho de varandas amarelas da Estrada das Laran-jeiras, conversava ao telefone com uma amiga médica a olhar as girafas do Jardim Zoológico, de pescocos erguidos muito acima dos plátanos, a Dona da Casa de Repouso somava despesas no escritório, o Sacerdote, de lingua ao canto da boca, preparava uma mensagem em código ou atravessava a ponte a encontrar-se com um colega de seminário numa vivenda da Cova da Piedade obscurecida pelos vapores das fábricas, que desaguam no rio num siléncio de päntano. — Curioso? perguntou amavel-mente o Juiz a estender-lhe o envelope. Os prédios da Rua Gomes Freire resumiam-se a quadrados de janelas acesas onde inquilinos de pijama contemplavam as ambuläncias da noite. Náo lhe vou pegar, decidiu o Homem, preveniram-me centenas e centenas de vezeš ácerca dcste esťilo de ofertas e promessas, da simpatia postica dos polí-cias, dos pontapés amáveis, dos cassetetes ternos, dos bofetSes aťirados com alma num sorrizinho de estima. Ao primeiro sinal de fraqueza, ensinara-lhe o Bancário, há anos, numa praia deserta da Costa de Caparica, com as ondas a quebrarem para alem das dunas e cachorros amarelos vadiando na areia, caem-te em cima, filam-te o pescoco e estás feito, e o que ocorria ao Homem, ao escutá-lo, era que se um barqueiro de acaso ou um bando de adolescentes os visse, assim colados um ao outro, de dorso apoiado numa espinha de raízes, numa area em que os homossexuais se esfregavam de cremes e se beijavam no Veráo, cuidaria tropecar num casalinho de maricas a arrulhar namoros. — Uma espreitadela, ao menos? insistiu o Juiz de Instrucáo a agitar o envelope. Garanto-lhe que fica pasmado com o que vai aí. Em Novembro o vento do mar assopra paralelo as ondas, disse-se o Homem, esquecido do Juiz, a recordar o Bancário que desenhava espirais com um pedaco de cana didáctica, indiferente aos albatrozes, as gaivotas e ao que pudesse supor o único operário, empoleirado em sacos de cimento, de um bar em construgao. Entrara para o Movimento desde o início, numa confianca absurda impermeável a dúvidas e críticas. Era manso, sério, pausado, e calcava sapatos amassados, comidos pelos vermes, que pareciam de defunto com vários meses de caixao. Nas pausas de descontar cheques ocupava-se da formacáo teórica dos grupos de assalto, a que dedicava um escrúpulo minucioso de mestra de novicas, com o missal das epístolas de Staline na máo. — Desde o início do interrogató-rio, suspirou o Homem sem conviccáo nenhuma, que repito que sou chefe de seccáo numa companhia de seguros. Trabalho oito horas por dia, moro em casa da família, faco a escrita de uma firma porque ganho mal, náo me sobeja tempo para me meter em políticas. E quando descobrirem isto e me soltarem quem tem um processo ás costas sáo vocés. Pois, mas quem mora na cave lá em baixo sou eu, pensou: uma cela chapeada, as bossas do col-cháo, o lavatório de bonecas, o baldě das necessidades e a lám-pada que me azeda nas pálpebras uma gotinha de luz. Se me 22 23 aproxirao da porta näo ouco nem um passo, uma respiracäo, uma tosse, uma conversa, e no entanto é um corredor de j aulas que presumo mais ou menos como a minha, cada qual com o seu revolucionário preso, tentado a desistir do internacionalismo proletário. Quem sabe se o Bancário näo habita uma delas, a ensinar á Judiciária os seus truques de guerrilha, quem sabe se um tubaräo do Comité Coordenador, farto de perguntas de polí-cias, näo deu o meu nome, o nome do Artista, mais nomes, a fim de poder dormir sem um empurräo nos rins a acordá-lo, Mexe-te que como o Juiz näo tem nada que fazer quer tagarelar contigo um niquinho, dormir sem ampola, no escuro, pesados sonhos de cisterna desprovidos de memória e de futuro. Uma tarde o Homem e o filho do caseiro, entao pequenos, desceram pelos degraus de ferro até ás lagartixas e aos limos secos do fundo do poco, e tudo o que avistaram foi uma cobra riscada agitando-se nos tijolos em busca de uma fenda onde escapar-se, e no alto, ä medida que a claridade crescia, um círculo perfeito de azul incandescente que nenhuma nuvem cruzava. \ Bateram á porta, o Juiz de Instru-cäo disse Entre, e era o jantar do Meritíssimo que um guarda, enredado em pedidos de licenca, pousou num änguio da secretá-ria com precaucôes respeitosas: frango e batatas coradas, päo, uma maca, uma garrafinha de vinho, E tudo isto por sua causa, repare, lamentou-se o Juiz a dissecar sem apetite a pele do frango e a tentar esmagar a cobra com a sola, um rasgo de compreensäo e já voce estava soltíssimo, amigo, a fumar os cigarros do seu avô debaixo de uma estátua de louca. E o Homem lembrou-se que um dos primeiros servicos que lhes couberam, após quinze dias de treinos sumários em Almocageme, comandados por um líbio de turbante, fora um camarada saído da cadeia na semana anterior, um ruivo palavroso e inquieto sempre com nervosismos, sempre com hesitacôes, sempre com dúvidas, e que o Sacerdote afirmava que a Brigáda Anti-Terrorista protegia a troco de umas dicas sobre proveniéncia de dólares. Prepararam o trabalho de Feve-reiro a Maio, a vigiar as idas e vindas do sujeito, encafuado numa moradiazita do interior de Carcavelos, longe do mar, com um cäo minúsculo a guinchar ao portäo e moitas de flores des-grenhadas de ambos os lados de urna passadeira de cascalho. Agachados numa camioneta de mudancas observaram, de esfero-gráfica em riste, o leiteiro, o padeiro, os hábitos dos vizinhos, os escravos em farrapos que compunham as fissuras do alcaträo dirigidos por um capataz de boné, o instante em que a luz da säla se apagava, os murmúrios desconhecidos das trevas. Pilha-räm-no finalmente äs oito e meia da manhä, seguido do animal-zinho horroroso, a trinta metros do quiosque dos jornais, varre-ram-no ä bala atingindo no peito duas ciganas criancas e rebolaram a buzinar, por travessas de sentidos proibidos, até distinguirem a coroa exasperada das gaivotas e a muralha da Marginal que o rio pulava em leque nas änsias de Janeiro. O Homem vomitou a tarde inteira, a agonizar de febre numa quinta de Loures, com a imagem do corpo abatido do ruivo na cabeca, enrugado e inerte como o dos bichos pequenos que as auto-estradas esmagam, e as ciganitas tentando debandar em Jágrimas para longe da pólvora. As miudas acabaram por escor-regar ao comprido das fachadas junto a uma loja de ourives em pedacos, e o Artista animava-o com brandis e precedentes histó-ricos, Aqui näo se brinca, rapaz, quando se trata de libertär o nosso povo há sempre um ou outro inocente que a maré arrasta. Tornou a Benfica a pensar em desistir, a pensar Näo aguento, näo tenho estofo, näo consigo. Era domingo, todos os primos e todas as criadas tinham saido, os espelhos dos armários da roupa reflectiam, no silěncio, a sua palidez alarmada. Apete-cia-lhe telefonar mas näo sabia a quem, abriu as portadas da sala e no jardim o graveto estavala sob os pes, deitou-se na relva e fumou sozinho porque se chamasse o filho do caseiro näo haveria resposta: há séculos que se falavam pouco e mal, um aperto de mäo, uma palmada nas costas, andas mais magro e adeusinho, se calhava encontrá-lo, na quinta, de visita aos pais. O amigo casara, usava gravatas pomposas e habitava um aparta-mento em Miratejo, mas o gosto do tabaco solitário era dife-rentě e amargo e foi a derradeira vez que o Juiz, de calcöes e unhas sujas, lne fez falta. Ainda vagueou pelos canteiros, se debrucou para o lago dos peixes a escutar os nemifares, desfo-lhou a buganvília do caramanchäo, e lá estava o poco com o moinho por cima e a grande pá de alumínio enferrujado que desaprendera o vento. — No més passado desci ao poco sem ti, disse ele, em tom de censura, ao Juiz de Instrucäo que descascava a macä e introduzia os pedacos na boča com a ponta da faca. Encontrei a cobra podře, ás manchinhas, numa greta da terra. 24 25 O Magistrado acabou a macä, cuspiu uma pevide, empurrou o prato, e o Hörnern notou-lhe a iíha mais clara, de cabelo ralo, no topo do cranio, que alastrava para a testa mima nódoa escamosa de pele: qualquer dia faria a risca na orelha, com imensa brilhantina, a disfarcar. — Asseguramos-lhe uma ajuda eficaz e o senhor fornece-nos uma dúzia de esclarecimentos de cacaracá, negociou o Juiz, alheio ao poco, a agitar um paliteiro transparente. E quando falo em ajuda falo em atiradores espe-cias, uma nova identidade, uma cirurgia plastica, um subsídio mensal, uma viagenzinha discreta ao estrangeiro. Existem cida-des no Brasil, por exemplo, que nem aparecem no mapa. E re-pare que näo Ihe peco que denuncie seja quern for, näo sou des-ses: apenas umas confirmacöes de datas, de locais de reuniäo, de papelada clandestina, cartas, diários, circulares, apenas declarar que sim ou näo reconhece esta ou aquela letra. Tudo impessoal, tudo anodino tudo descomprometido, como vé. E acaba-se o pesadelo do calabouco, e acabam-se os guardas, e acaba-se a polícia, e acaba-se para alívio seu e meu esta investi-gacäo chatíssima. E no entanto quando o filho, j á de unhas limpas, ingressou no Centro de Estudos Judiciários a aprender a condenar, o caseiro continuou a ocupar-se das flores e dos legumes da horta, e a mulher, escarranchada num banco, a depenar as galinhas dos patröes no pátio da cozinha, submersa em penas que esvoacavam, subiam e desciam, peludas e brancas, como se desventrasse um edredäo. O caseiro continuava a sachar e a montar na quinta armadilhas de mola para os pássaros que lhe roíam os figos e estragavam as cerejas e as péras, aves miú-das, tirando os melros, estranguladas no arame e espalhadas na base dos troncos, destinadas ao apetite das formigas. O filho juiz e a mäe, inteiricada de acanhamento, a levantar-se ä passa-gem do Hörnern que reprovava ano atrás de ano as disciplinas do liceu, e entrara de paquete na companhia de seguros da família. A mulher a baixar a voz, a cumprimentar Olá menino, a cheirar aos eucaliptos e ao granito das aldeias sem destino da Beira de onde vinha, a morar numa casita entre a estufa e a jaula dos cäes, engastada no muro com fragmentos de vidro colorido no gume, um par de divisôes de móveis podres, penumbra, o oval subito de um espelho, um fogäo numa laje, camas moribundas porque havia mais filhos, duas raparigas descalcas e um rapaz ajudante de mecänico, encerrado numa zanga perpetua entre as sobrancelhas enormes. Aos feriados o caseiro dormia numa cesta de vcrga, na fresca da latada, com um rafeira amarelenta aos pés, um animal melancólico e sem graca, de orelhas tristes, a sacudir as moscas de outubro com a cauda. O guarda veio buscar o tabu-leiro e levou-o como se transportasse urna relíquia, chocalhando loucas. O Juiz de Instrucäo seguia da janela o crepúsculo que aumentava a cidade: — Näo acha urna ajuda gene-rosa? perguntou ele de costas para o Hörnern, oferecendo-lhe, sob o fato, as omoplatas magras de anjo inacabado. Neste momento do processo näo há praticamente nada que eu näo saiba, e ao terminar a confissäo dos seus compinchas prepare-se para uns dez aninhos, no mínimo, a encardernar livros na oficina dä cadeia. Taivez nem seja mau, olhe, pelo menos ganha um ofí-cio que é coisa que nunca lhe sucedeu na vida. A latada, reverberando folhas, prolongava-se pela quinta na direccäo do chiqueiro dos porcos e da cabana dos ancinhos, com tesouras, foices e pás arrumadas nos seus ganchos e um cone de batatas a grelar no chäo. De um laclo do muro um saguim preso a uma corrente admirava os pró-prios dedos com as pupilas atribuladas dos doentes do fígado, e do outro escutavam-se a qualquer hora, de uma varanda a que ninguém assomava, os acordes errados de uma licäo de violino a tactear na pauta. A sogra do caseiro, de preto viúvo, costurava carnisas num degrau. — Umas datas, uns locais, umas explicacöezinhas que näo valem nada, disse o Juiz, e na semana seguinte instalamo-lo no Brasil com uma mulata em cada braco. Acendeu um candeeiro e a luz acentuou-lhe as rugas, cavou os ossos do queixo, aumentou a fealdade da gravata, revelou um lanho da barba e um tique que contraía os musculos da boca, repuxados pelo espasmo de um tcndäo. O brilho dos óculos impedia o Homem de decifrar a sin-ceridade das promessas, da mesma forma que as ordens e os palavrôes do Sacerdote, moído de bicho carpinteiro se partiám para um alvo, escondiam a ansiedade e o medo, os cinco acotove-lando-se, zangando-se, sobressaltando-se no automóvel furtado enquanto o traidor da classe operária näo chegava, E se por acaso, supôe, aconteceu alguma coisa e o cabräo näo se mostra? 26 27 Acendeu o candeeiro e náo resta-vam na sua cara vestígios do passado nem semelhancas com o que o Homem recordava do pai ou da mae dele, a cor do cabelo e dos olhos, os gestos de furao, o formato dos malares. Nenhuma parecenca com aqueles eseravos brutos e submissos, talhados na província em volframio, cactos, fome e plátanos de inverno, com quem o avo conversava ás vezeš, numa bonomia de marques, para se inteirar da febre das acácias. Apenas as lentes sérias á espera e uma caneta a baloucar nos dedinhos agudos: — Entáo? Pode ser que o Artista esteja preso, pensou o Homem, o Sacerdote vigiado, a Dona da Casa de Repouso a esvaziar a carteira na esquadra do Beato, o Estu-dante, na Estrada das Laranjeiras, com dois secretas a vasculha-rem-lhe as gavetas ou a pasmarem perante a inocéncia dos len-cóis com o Snoopy estampado, porque até a vanguarda do proletariado tem direito á infancia e a ver as girafas e os mandris entre a roupa a secar da varanda e as árvores em bico de aparo que acenam do céu. Pode ser que do Comité Executivo houves-sem segredado É aquele e aquele e aquele, e sobrassem por mila-gre trés ou quatro operacionais a fugir á boleia, Alentejo fora, a caminho de Espanha, ou a cruzarem, escorregando nas balsas, as estevas da fronteira, apavorados pelo restolhar de um coelho, á cata da navalha luarenta do rio. Mas mesmo que assim fosse os orangotangos da Interpol haveriam de farejar, beco por beco, os bairros de lata de Paris, e com a ladroeira da CEE nem na chuva da Bélgica se escapa á extradicáo, enxotado para o aeroporto num torvelinho de agentes, tudo afinal táo fácil como a morte das ciganas meninas que trotavam, desesperadas de pánico, na manha de Carcavelos, por travessas e travessas sem gaivotas, afastadas do mar. — Conheco um sitio em Carcavelos onde nao