Conversas com Antoniu Lobo Antunes I Introducao conhecimento das chaves e motivacôes que estáo subjacentes na prosa deste escritor hermético e impenetrável. Oxalá a curiosidade pek vida e pelo ser humano que aqui se revelam movam o leitor para o conhecimento da sua obra. Uma prosa -por vezeš, os tópicos aproximam-nos da verdade - de uma beleza estremecedora e de uma profundidade insondável. Maria Luisa Blanco Setembro 2001 1 «PORQUE SE ESCREVE? PERGUNTA A UMA MACIEIRA PORQUE DÁ MAgÄS.» A infáncia. O bairro de Beníica. A opcáo da escrita. Obras completas de Antonio Lobo Antunes. A desco-berta da linguagem. Os avós, os pais, os irmäos. O avô Antonio. Se o primeiro olhar sobre as coisas configura a visáo do mundo, a inŕancia é sem dúvida o território onde se gera essa cosmovi-sáo. Em toda a obra de Lobo Antunes, nos seu livros, nas suas crónicas, encontram-se, como fogachos, essas primeiras impressôes vitais que marcam a singulár estética do escrkor. As suas obsessôes, os seus desvelos, a sua obstinacäo em se dedi-car ao ofício de escrever nasceram nessa casa do bairro lisboeta de Benfica. Um bairro em que a sua família viveu toda a vida e cuja casa, onde ainda continuam a viver os seus pais, actual-mente nem parece täo grande como a sua memoria evoca, nem já restam vestígios daquelas moradias que nos anos cinquenta serviam de lugar de veraneio äs abastadas famílias lisboetas. O bairro é hoje um bairro operário, no qua! a casa dos pais de Antonio, com um jardim praticamente abandonado, é como um vestígio melancólico do que deve ter sido noutros tempos. Também nasceram nessa casa, inculcados pelos seus pais Joao e Margarida, o amor do escritor pelos livros e a sua grande sen-sibilidade para a arte e para a música. A sua educa^áo foi, segu-ramente, excessivamente austera e a disciplina demasiado fér-rea. O escritor lamentou reiteradamente a falta de carícias e atencöes por parte dos pais: mas, embora Lobo Antunes cen- 24 Conversas com Antonio Lobo Antunes i Porque se escreve? Pergunta a uma madeira porque dá macäs sure hoje aos seus progenitores a auséncia de «calorias de ter-nura» que eles nao souberam dar-lhe, muitos concordariam em afirmar que, de qualquer modo, náo foi escasso o seu legado. - Que recordacôes tem da sua infancia? - Uma das minhas recordacôes mais nítidas é o dia em que decidi que ia ser escritor. ................. Foi no dia 24 de Dezembro, tinha sete anos, ia num taxi e, de repente, tive como que uma revelacäo: «Vou ser escritor», pen-sei. E quando chegueí a casa, mal cheguei, pus-me imediata-mente a escrever. E foi assim, exactamente como lhe conto. Esse foi o momento da tornáda de consciéncia, o momento em que pensei que o meu desejo podia converter-se num projecto de vida, mas antes disso eu já escrevia há algum tempo. Come-cei muito, muito cedo, com quatro ou cinco anos. A minha máe diz que, desde sempře, se rěcorda de mim a escrever, näo a brincar ou a fazer desporto, só a escrever, porque era ao que dedicava todo o meu tempo. Näo sei o que escrevia, mas lembro-me de que fazia jornais que vendia a seguir. Jornais que eu próprio ilustrava, porque gos-tava muito de desenhar. Fazia o numero um e toda a família pagava para o ler. Suponho que séria algo ingénuo e infantil. Também fazia banda desenhada. O meu pai conserva uns cadernos meus, nos quais, sob o título «Obras completas de Antonio Lobo Antunes, novelas, contos, narrativas, ensaíos...» eu enumerava obras até ao ano 2000, com títulos e tudo. Aos treze anos, tinha já umas obras completas muito consideráveis e mostrei-as ä minha mäe todo orgu-lhoso. Como boa máe, animou-me muito, disse-me: «Isto náo vale nada, estuda e faz-te médico, porque como escritor náo vais chegar a nada.» Antonio Lobo Antunes com um ano de ídade. 26 Conversas com Antonio Lobo Antunes I Porque escreve? Pergunta a urai macieira porque dá ma^ás MARÍA LUISA BLANCO 2 Por outro lado, eu lia muito. Lia tudo. A casa onde vivíamos era urna casa muito grande e a minha vida era urna vida muito soli-tária. Lia, escrevia. Na biblioteca da família tinha livros permi-tidos e livros que era proibido ler e que éram fechados ä chave. Também frequentava a biblioteca do liceu. Recordo-me que ali, depois da escola primária, sempre que o professor faltava, a minha única diversäo era ir para a biblioteca. Foi no liceu que comecei a ler os escritores portugueses do século xrx. Mas nessa época, mais que romance, o que realmente queria era escrever poesia. Aos catorze ou quinze anos tinha uma colec-cao de poemas. O meu mundo éram os livros. Encontrava-os em casa dos meus avós, na casa dos meus pais, no liceu... Penso que ä pergunta de porque se escreve cada um pode dar quinze ou viňte respostas verdadeiras, embora, seguramente, nenhuma sincera, porque a realidade é que náo se sabe porque. E como se perguntássemos a uma madeira porque dá macäs. Desconhecemos a razäo profunda por que escrevemos; o que sabemos é que a escrita é uma necessidade. Se um dia näo escrevo, sinto-me como se me tivesse vestido sem ter tornado banho. Se náo escrevo, invade-me uma sensa-cäo de auséncía e de vazio profundo. Se näo escrevo, assalta-me um sentimento de enorme culpabilidade que nunca deixei de sentir. O meu ritmo é infernal, trabalho doze horas por dia. Quando viajo para apresentar um livro e tenho de fazer entrevistas e tudo o que implica a sua promocäo, recupero o tempo perdido durante a noite e escrevo até äs duas ou äs quatro da madrugada. É-me indiferente estar na Alemanha, na Austria ou em Espanha ou que me levante muito cedo ou estar cansado, eu tenho de escrever todos os dias, preciso disso para näo me sentir culpado. - Recorda alguma inŕluéncia determinante que o pusesse no caminho da literatúra? - Näo, näo houve nenhuma inŕluéncia concreta. Na minha família ninguém escrevia, ninguém. Havia pessoas que gosta- ; vam de livros e lhes dávam importäncia, mas näo escreviam. E} ] naturalmente, a literatúra näo era possível. Quando, com doze ! ou treze anos, disse aos meus pais que queria ser escritor, fíca- ram alarmados, porque isso nao era um modo de vida. Pensa-vam realmente que esse era o caminho para morrer de fome: j «Escrever um livro é muito diflcil - diziam-me -, há muita gente que escreve, mas säo muito poucos os livros bons, muito poucos os escritores que chegam a alguma coisa; será melhor que te dediques a outra coisa...». Por outro lado, nem sequer os professores levavam ao caminho da escrita. A sua forma de explicar e de ensinar näo tornavam a i literatúra propriamente interessante e os livros de leitura obri- j gatória éram muito aborrecidos porque náo os recomendavam de forma estimulante. - Para si, a escrita é mais a busca de uma linguagem, da perfei-cao da lingua e da palavra, que o relato de uma história. Quando compreendeu que isto era assim? í. - Muito cedo, aos quinze anos, comecou a interessar-me a lin-I guagem. Aos doze ou aos creze, comecei com as leituras de Saí-i " gari, de Julio Verne... leituras divertidas e apaixonantes, mas um pouco mais tarde vieram as surpresas: o meu imenso assom-', bro pelo que se podia fazer com as palavras. Procurava escrever relatos muito simples. Neles os prota-! gonistas eram pilotos de automóveis, lutadores de boxe, ou [■' coisas do estilo. Quando comecei a ler os poetas foi quando Converse com Antonio Lobo Aíitunes í Porque ťscrcve? ° Perguma a urna madeira porque dá macas I í realmente come90u a minha inquietacáo - inquietacáo f lirerária. Com a poesia compxeendia o auténtico valor da pakvra. Para j um rapaz era mais fácil descobrir esse valor nos poeraas que na prosa. Até esse momento gostava dos livros heróicos, os de ľ aventuras, as histórias sentimentais... encantavam-me autores como Blasco Ibáňez... Mas, o sentímento da importáncia do I texto, a preocupacäo com as palavras, compreender que o importantc era a maneira de escrever e näo a história que se [' contava, isso chcgou mäištarďe, a mim, concretamente, ehe- j' gou-me muito, muito tarde. i No entanto, näo parava de escrever, eserevia muito. Tinha vinte anos e já estava a escrever um romance a que dediquei mais de dez anos. O problema é que nunca ficava contente e acabava por deixá-lo de lado. A mulher de um dos meus irmäos dizia: j nunca vais publicar nada, porque abandonas sempře o que esereves, acabas por desprezar tudo...». E era verdade, nunca estava contente com os resultados, nunca me sentia satisfeito j com a minha eserita. Ouvia muitas vozes alheias. ' Aos quinze anos descobre-se que há uma diferenca entre boa e í má eserita, aí comeca o teu desassossego, mas entre os vinte e j os vinte cinco compreendes a diferenca entre a boa eserita e a obra de arte, aí a angústia é completa e nunca mais pára. É sempře o mesmo, nunca se está seguro do trabalho, nunca se sabe j se se é bom ou näo. Creio que Dumas tinha razäo quando dizia dos seusJivros j que a intriga era o prego onde se pendura o quadro. No entanto, penso que estamos perante um problema realmente j muito complexo: o eseritor trabalha com a linguagem e esta I é, naturalmente, o mais importante, mas há que estmturar essa linguagem, ela tem de estar ao servico do que se quer contar. MARÍA LUISA BLANCO 29 Ontem estava a ler o Ulisscs de Joyce e considero que a novela é fantástica do ponto de vista da sua riqueza verbal, mas, ao mesmo tempo, aborrecia-me um pouco porque näo percebia ao servico de qué está esse extraordinário alarde verbal. A pirueta pela pirueta, o mostruário fantástico de uma imensa capacidade de invencäo verbal, fica um pouco no vazio, porque näo ajuda a história no sentido da eficácia narrativa. Por um lado, é importante dominar a linguagem, as palavras, mas a mim inquietar-me-ia muito ficar só nisso porque, no final, percebe-se que näo é isso o importante. O importante é que o livro se faca sozinho, que tenha existencia propria e que valha por si mesmo, e näo que alguém o tenha feito. Com Joyce, estamos sempre a sentir a sua habilidade, a sua perícia como eseritor é-nos imposta e estamos todo o tempo a notar que é ele, o próprio Joyce, que está por detrás de tudo. Isso recorda-me quando falo com alguns franceses. Tenho sempre a tmpressäo de que me estao a dizer: «01ha como sou inteligente.* Näo és tu que tens de ser inteligente; é o livro que tem de o ser. - Quer dizer que o autor näo deve transparecer no livro, que este deve ter vida propria e ŕuncionar com independéncia em relacäo ao seu autor? - Sim, sim. Näo é o autor quem tem de mostrar a sua capaci- \ dade técnica, as suas habilidades ou os séus desafiós é dificul- \ dades. No livro que é bom, o autor näo está, näo se nota. Quando estamos a ler e como leitores sentimos que o autor nos está a dizer: «01ha, olha como eu faco, olha como é difícil resol-ver isto e como eu o resolvo bem...» Näo só o livro näo ŕun-cíona, como creio que se cai num problema de mau gosto. Esses livros näo podem ser bons. 1 30. Conversas com Antonio Lobo Antunes | Porque se escreve? y - Pergurua a uma madeira porque dá míic/i$ O autor näo deve ser protagonista do seu livro porque o leitor náo tem de notár que o escritor está ali, este tem de se tornar invisível. Nesse sentído, estou de acordo com Faulkner, que era um homem muito modesto e dizia: «Deveria ter publicado os meus livros anonimamente, porque o importante säo eles, os meus livros, näo eu...». Isso é que é realmente fantástico, que os livros tenham vida por si mesmos, independentemente de quem os tenha escrito. Há um trecho que diz algo deste género: que é necessário que o escritor sofra para que o leitor tenha prazer e creio que está bem certo. Podemos passar horas ä volta de uma frase, que depois o leitor lerá num segundo, mas ele náo tem de saber toda a tortura que a precedeu, toda a cautela que se teve na colocagäo das palavras, o leitor näo pode notár isso. : Ao escritor custa muito trabalho encontrar o lugar de cada palavra, mas cada palavra tem o seu lugar e se näo a situamos no sítio adequado, a frase será uma frase falida. Mas o leitor tem de a ler ; como se esta frase tivesse sido construída da forma mais natural do mundo, näo tem de notár o trabalho do escritor. Cito isto fře-quentemente, era Pushkin que dizia que, quando utilizava a palavra carne, chegava a sentir o gosto da carne na boca. A pala- \ vra carne é sempře a mesma, mas depende de onde é colocada i para conseguir que saiba a carne, para conseguir a sua eficácia. - Definiria a eficácia de um texto literário em fiincäo da capa-cidade que tem para emocionar? - A eficácia radica sobretudo em náo ceder ä tentacäo de uma bela metafora. Uma bela i magern, umabrilhante pirueta verbal podem prejudicar o romance. Näo devemos esquecer que um romance é algo muito difícil de ler, säo muitas, muitas páginas, e temos de conseguir apanhar o ! \ MARÍA LUISA BLANCO 31 I jr leitor sem descanso, náo o deixar escapar. O romance tem de i ser implacável e temos de conseguir, como se consegue com a j múska, que o leitor nos siga, nos acompanhe página a página, puxar por ele como o toureiro puxa pelo touro. Utilizo esta metafora porque eserevi um romance, que ainda náo foi tradu-zido em Espanha, no qual há quase um capítulo inteiro dedi-i cado a Curro Romero. É um homem que me fascina e creio que j a sua arte é maravilhosa, mas também se sente, se vé o seu medo, e é terrível um toureiro com medo. ' - Voltemos ao seu tempo de rapaz. Como decorreuasuainfäncia? - Vivi em Benfica, um bairro da periféria, a oeste da cidade. Naqueíes tempos, quando as pessoas do bairro se deslocavam í para o centro da cidade, diziam: «Vou a Lisboa.» Era um bairro ! de gente pobre e humilde, embora também houvesse famílias [ com dinheiro. Havia gente que se desločava de Lisboa a Benfica 1 para passar ali o Veráo. Agora converteu-se num imenso bairro- I -dormitório. Nós tínhamos uma casa muito grande com um jardim muito grande... E, la forá,éstávam os pobres. Lembro-me de que as minhas avós passeavam no bairro como casteläs. ' - Qual era a sua vida entäo? [ i - O colégio náo teve em mim qualquer influéncia e as famílias do meu pai e da minha mäe eram famílias muito grandes e muito diferentes entre si. Havia quem se interessasse pela literatura, outros pela música ou pela pintura; mas ninguém esere- í via. Os meus irmáos também näo esereviam, nem entäo nem agora, e embora eu o fizesse, näo era com intencäo de publicar, nunca pensei em publicar. 32 Conversas com Antonio Lobo Antunes I Porque se escreve? Pergunta a uma madeira porque dá macas Escrevia umas coisinhas: poesia, ensaio, novela, narrativa, que depois incluia nas minhas «Obras completas», coisas que eram muito más e depois destruia-as; queimava-as no jardim. Os resultados eram táo pobrezinhos, tao esquálidos, que ficava muito triste. Pensava sempře: «Será que nunca irei fazer algo de bom!» Ainda hoje penso assim. Agora estou contente, há livros com os quais fiquei satisfeito, embora pense sempře que poderia té-lo feito melhor. Quanto mais avango, mais problemas tenho e mais diflcil e lento é o meu trabalho, porque cada vez corrijo mais e mais aumentam as minhas dúvidas. Por outro lado, náo creio que as minhas dúvidas sejam táo ati-picas. Quando leio os escritos náo literários dos autores de que gosto - as suas cartas, notas ou documentos -, encontro sempre nas suas reflexóes uma inseguranga muko grande. E pergunto-me? «Porqué essa inseguranga se o seu trabalho é táo bom? Porque duvidam tanto?» Creio que a inseguranga e a dúvida sáo muito frequentes entre os escritores, náo creio que eu seja uma excepgáo. O meu amigo Tom Colchie, que náo é só o meu agente literá-rio, mas também o meu crítíco mais duro e exigente, telefona--me todas as semanas e pergunta-me: «Como vai o romance?*. E eu respondo-lhe sempre: «Muito mal; uma merda.» E ele: «Ah, bom; entáo fico tranquílo...». - Falávamos dos seus anos de adolescente. Cresceu num ambiente aristocrático e privilegiado. Como eram os seus pais, como eram as suas relacóes com os seus irmáos? - Creio que os meus pais sáo pessoas excepcionais e os seus seis filhos também sáo. Eu sou o mais velho, o meu irmáo Joáo é neurocirurgiáo e aos trinta anos já era presidente da Associacao MARlA LUISA BLANCO 33 Mundial de Neurocirurgia. Pedro é arquitecto, Miguel dirige o Centra Cultural de Bělém. Nuno é médico e vive era Nova Ior-que e Manuel é do corpo diplomático. Todos devemos muito aos nossos pais, porque nos educaram numa grande austeridade. O meu pai nunca nos dizia que alguma coisa estava mal, mas apenas: «Isso é estupido.» Dava--nos uma grande independéncia e sentido da responsabilidade. Aos catorze anos dava-nos a chave de casa, náo nos fazia per-guntas e só nos recomendava: «Náo fagas nada de que venhas a arrepender-te.» O meu pai é médico, neuropatologista. Trabalhou muito tempo na Alemanha e na Bélgica, é um grande admirador de Ramón y Cajal e tem um grande amor pelos livros. Aos doze anos dava-nos a ler Oscar Wilde, Flaubert... Durante as férias tínhamos de ler um capitulo de Madame Bovary, e depois obrigava-nos a fazer um resumo ou a ouvir uma sinfonia e discuti-la com ele e compará-la. Ao principio era terrivel-mente aborrecido, era uma obrigagäo pesadíssima, mas depois essa disciplina é muito útil, no momento em que desperta a sensibilidade. Eu escrevia entäo uns poemas muito maus e ele levava-os para o hospital e lia-os aos pobres medicos... No entanto, a mim nunca me dizia se eram bons ou maus. Nem agora falo com o meu pai dos meus livros. Nunca falei com ele dos meus romances nem sobre o meu trabalho como escritor. Ele nunca me ; disse se gosta deles ou náo. Só sóbie A Ordern Natural das Coisas, ) onde conto a morte da sua irmá, que eu adorava, me fez um único comentárió:«Näo compreendi este livro.» Fomos educados numa grande austeridade, se queriamos dinheiro tínhamos de trabalhar. Joäo fazia programas infantis para a televisäo e eu dava umas explicacöes. O meu pai pensava que era essa a forma dě conhecer o valor do dinheiro e que era 34 Conversas com Antonio Lobo Antunes I Porque sc escreve? Pergunta a uma madeira porque da macäs importante que o aprendéssemos. De facto, eu tenho uma rela-c,áo muito estranha com o dinheiro, creio que influenciada por essa educacáo. Na ultima vez que visitei o meu pai, o homem que trabalha no jardim da casa quis beijar-me a mao, como se estivéssemos num regime feudal. Crescemos rodeados de livros e de quadros. O meu pai tern duas paixóes pictóricas: Velazquez e Vermeer, no entanto, é muito critico com Goya. Aos catorze anos deu-me a ler a pri-meira edicáo de Celine e, durante o Veráo, obrigava-nos a copiar quadros de Gauguin. Ao principio era horrivel, mas pouco a pouco iamos gostando. Penso que o meu pai nos obrigava a rudo isso por reaccáo contra o meu avó, que era um inonárquico conservador que nlo gostava nada de livros. - O seu avó Antonio é, na realidade, a sua grande referéncia. - Sim, naturalmente. O meu avó foi muito mais importante para mim que o meu pai. Com ele nunca tive um sentimento competitivo. Foi ele que me levou por toda a Europa!... aos sete anos!, e essa é uma experiéncia irrepetível para uma crianca. Estava sempře com ele. Sempře, sempře. Nao encontrei a sua ternura e a sua generosidade noutros homens. Era um homem raro, que possuía a extraordinária qualidade de fazer-me sentir único. Quando me olhava, sentia que era a única pessoa que existia. Dizia-me: «De mim, tens apenas o nome», porque ele era mořeno, era grande, era muito forte e extrovertido. A sua casa estava sempře cheia de gente. Aos sábados todos os filhos iam comer com ele. Dava muitas festas, muitos jantares em casa. Eu, obviamente, náo sou assim, ele tinha razáo, sou Com o av6 Antonio. lilt í. 36 Conversas com Antonio Lobo Antunes 1 Porque se escreve? Pergunta a uma madeira porque dá macäs mar [a luesa blanco 37 precisamente o contrario dele, mas eu adorava-o. Era o seu neto mais velho, o herdeiro do seu nome e tudo isso... quando eu tinha treze anos, um dia chamou-me e perguntou-me muito inquieto se eu era maricas... So porque escrevia. - Quantos filhos tinha? - Dois filhos: o meu pai e o irmao, que morreu muito jovem, com um ou dois anos, nao sei, e quatro filhas. Uma, que era a minha segunda mae e que eu adorava, tambem morreu. Falo dela era A Ordem Natural das Coisas. Era uma mulher que passava muito tempo a ler, o meu irmao dizia que era a mulher que mais gostava de ler no mundo. Era professora de musica. Fisicamente parecia-se muito com o meu avo, e eu, sempre que tinha um problema, era com ela que falava; ate a sua morte. Era uma pessoa muito disponivel, chamava por ela e tinha sempre tempo para mim. Tinha a sua propria filha, mas nao fazia distincoes entre nos, pelo menos eu sentia-o assim. Era uma pessoa maravilhosa. Mas na minha infancia tambem houve outras pessoas maravi-lhosas, como por exemplo a mae da minha mae, que era filha.de um general e nos contava a vida e as aicnturas do pai, um Tiomenrque vinha de um meio muito pobre e que foi feito «Sir» pela rainha Vitoria. Era filho de um pai mais ou menos analfa-beto que trabalhava no Sul. E o patrao do pai notou no rapaz algo de especial. Comecou assim a sua vida. Acabou como um grande senhor, embora a sua origem fosse muito humilde... Mas, sem diivida, apesar destas pessoas maravilhosas que presi-dem a minha infancia, a figura cardeal da minha vida foi o pai do meu pai, o meu avo Antonio. - E do seu pai, que recordacôes afectivas conserva dele? - É muito difícil para mim falar dessas recordacôes, sáo muito difíceis de descrever. O meu pai é um homem de um profundo egoísmo. Näo me lembro de ter recebido a sua ternura, nunca. Nem a da minha máe. Com eles a relacáo sempre foi muito complicada. Sáo sem dúvida pessoas muito valiosas. A minha máe é das poúčaš mulheres que conheco que leu Proust, é uma mulher culta, possui critério e, além disso, é muito crítica. Tem muitas quali-dades, mas näo me lembro de alguma vez me ter beijado. Também nunca vi o meu pai a beijar a minha máe. Nunca o vi tocá-la, mas o meu pai regressava da Alemanha e ao fim de pouco tempo a minha mäe já estava grávida. Teve seis filhos e para mim foi sempre um grande mistério. Nunca houve na minha casa, nem sequer actualmente, conversas sobre temas pessoais. Falava-se de literatura, pintura ou poesia, nunca de política - porque existem todas as tendéncias, embora predomine a esquerda - nem de religiäo, porque esse terna era considerado íntimo e pessoal. Mas, sobretudo, nunca se falava de sentimentos nem de nada que nos afectasse nesse sentido... E isso faz falta, há idades em que é fundamental esse diálogo. Fazem falta uma mäe e um pai que nos toquem, que expressem os seus sentimentos para connosco e essaš <^äTórias de ternura» de que eu precisava recebia-as dos meus avós. Punha ä cabeca nos joelhos da minha avó e dizia-lhe: «Venho aqui para que me acaricies.» Foi assim a minha infancia. Tinha de ser o melhor, o mais forte. Se chegava a casa e viam que outro rapaz me tinha batido, o meu pai ficava furioso por näo lhe ter respondido. «Era mais velho que eu», protestava. «Morde-lhe os testículos», respondia o meu pai. Nao sinto que tenha uma grande dívida para com o meu pai ou a minha mae. Sinto isso. ■HHj JĚUĚ íhí liiiiiliiii lililllllll WĚĚm 1 KiSíStwIiis! ÍÍÍ#f ^^^^^^^^^^^ íhIIH illliiiiiiiiil ■i ■hHhí ■HHHHi BSSSIiSiliR llillfll WmSĚÉĚ WĚĚi WBttSĚSĚĚĚ ■■■■1 iRSBHi lil lililllllll lili ■:^:o^lliyi||l||l ^^^^^^^^^^^^^^ illiililiii 1 HHHi ■Hb ^^^^^^^^^ :' lllllll ■ ,■;;>.-■■-vl lllllll'. Com a mae, o avó e a bisavo maternos. - No entanto, com a sua mže tinha bastantes coisas em comura. - É uma mulher inteligente, mas naquele tempo as mulheres eram completamente anuladas pelos maridos. Náo iam á uni-versidade. Dependiam completamente dos pais ou dos maridos. Nao se divorciavam, porque as divorciadas eram pouco menos que prostitutas. Tinham vidas muito submetidas e muito tristes. Eram auténticas escravas, e a minha máe tam-bém foi. - E náo tinha com a sua máe uma relacáo de confianca? - Náo, o que tinha era uma grande distincia. Por exemplo, náo se falava de sexo. Com os meus pais náo falava de nenhuma das coisas que me interessavam ou me preocupavam. Isso eram coisas íntimas que náo abordava com eles. Havia uma distáncia enorme, uma falta de confianca que eles cultivavam e potencia-vam. Com os meus pais eu falava muito pouco. Agora pode~se falar de algumas coisas, mas quando necessitava de falar com eles nao os tinha. A aprendizagem da sexualidade, por exemplo, tudo o que precisava de saber como adolescente descobria com os amigos da escola. Lembro-me de uma vez, nao sei que idade teria, cinco ou seis anos, em que vi dois cáes agarrados. Perguntei á minha máe se as pessoas faziam assím, como os cáes... E ela náo me respon-deu. Ficou muito perturbada com a pergunta. 1 Conversas com Antonio Lobo Antunes ] Porque se escreve? Pergunta a uma madeira porque dá macas MARlA luisa BLANCO - E a relacäo com os seus irmäos? - Também nunca tive uma discussäo com os meus irmaos. Quando éramos pequenos, sim; depois, como adultos, nunca. Näo existe com eles uma relacäo competitiva. Uma vez deram--me um prémio no extremo Norte de Portugal e fiquei muito surpreendido, porque foram todos. E eram horas e horas de carro. Näo me dizem nada, mas fazem. Estou muito orgulhoso deles, porque todos fizeram carreiras interessantes e säo muito bons no que fazem. E agradável estar com eles. Säo inteligentes. Pode-se falar do que se quer com eles, embora continuemos a falar pouco. Näo somos pessoas muito comunicativas. Nos dois Ultimos veröes temos estado juntos na casa da praia, um lugar onde a minha avó e a minha máe iam quando eram jovens porque diziam que era bom para os pulmóes e que agora se converteu num sítio de moda. E tem sido muito agradável estar com eles. Este veräo, só da família, juntámos vinte pessoas. - Frequentou um colégio religioso? - Sim. Sou o que em portugués chamamos um menino de coro. O meu avô Antonio era muito religioso. Levou-me a Itália com sete anos para fazer a primeira comunhäo. Era um oficial de cavalaria que fez a revolucáo monárquica. Esteve na prisáo, foi desterrado e teve de comecar do zero, do nada. A sua família era uma família incrivelmente rica do Brasil, da Amazónia. Uma família que possuia uma fortuna imensa e ele teve de voltar a comecar do zero, mas fé~lo sem se queixar. Quando morreu tinha dinheiro, claro. Eu gostava de ir comer a sua casa, porque havia sopa, dois pratos... Em casa dos meus pais jantava-se uma sopa; a mesma sopa do almoco. Era o meu avô que pagava muitas coisas em casa, A minha mäe sentia-se mal, näo creio que fosse muito cómodo para ela viver do dinheiro alheio, mas o meu pai nunca ganhou muito dinheiro e éramos muitos irmáos. Ele näo queria dedicar-se ä clínica privada, trabalhava apenas no hospital e isso näo faz ninguém rico. O meu avô Antonio era um hörnern muito bonito, casado com uma alemá de olhos azuis. Era um hörnern que näo gostava de livros porque isso eram «coisas de maricas» e incomodava-o que eu escrevesse. Era católico, conservador, salazarista, reac-cionário... E era a pessoa mais maravilhosa que conheci na minha vida. Do outro lado do papel Por vezeš, quando estou a escrever, invade-me uma sensacao muito curiosa: tenho a impressáo de que estou de um lado da parede e que o papel está do outro lado. É uma sensacao muito estranha porque é muito real e só me acontece nas primeiras versóes dos meus romances. Depois, paulatinamente, vou-me confundindo, fundo-me com o papel e com a escrita e acabamos por ficar os dois do mesmo lado. Mas essa passagem do desdobramento para a řusao é táo subterránea, táo desconhecida para mim mesmo, que tenho a impressáo de que talvez náo esteja a escrever no papel. Porque ao mesmo tempo a imaginacáo só trabalha quando se está a escrever. Sei que isto que estou a contar é estranho e difícil de entender, mas tento comunicar uma sensacao muito real. As ideias vém quando se está a escrever. SSo as palavras que 'inventam o texto. Isto é tao claro para mim que náo tenho qual- 44 Conversas com Antonio Lobo Annines I Porque se escreve? Pergunta a uma madeira porque dá macäs quer dúvida. É um processo que me ocorreu sobretudo com os Ultimos romances. É o texto que se constrói independente-mente de mim. Tive um professor na Faculdade de Medicína que dizia: «Os doentes melhoram apesar do medico.» E isso acontece muitas vezeš com o livro. Porque náo se tem pianos concretos; comeca-se numa direccáo e o livro é que nos vai levando para onde ele decide. Falávamos há pouco do facto de escrever como de um estado de graca... e cada vez o sinto mais assim. Sinto uma grande humil-dade porque se sabe muito pouco de literatura. Na realidade náo se sabe nada, o mundo literário é um mundo terrivelmente complicado. Penso em Tchekov, nessas obras de teatro nas quais apaxente-mente náo se passava nada... E nelas passa-se tudo.. Ele conse-gue expressar tudo com a maxima simplicidade e uma extraor-dinária economia. É o mesmo que quando se ouve Schubert, Mozart ou Chopin. Há quem componha ou interprete na perfeicáo melodias difí-cílimas de executar, no entanto, nao nos tocam emocional-mente. Podemos reconhecer o seu talento, mas náo nos como-vem. Em contrapartida, há outros, como os que referi, que, sem sérem táo perfeitos, nos emocionam sempře. Com os livros, os que aparentemente sáo mais simples sáo, afi-nal, os mais difíceis, o Quixote, por exemplo. Cervantes é um dos escritores que me deixa sempře atónito. Sterne, com o seu Tristam Shandy, esse romance incrível, é outro deles. Quando escrevi Tratado das Paixöes da Alma estava muito contents porque pensava que tinha feito uma descoberta magni-fica e definitiva: fazer avancar a accäo através do diálogo. Mas depois dei-me conta de que Jane Austen fez isso um século antes de mim. Ao mesmo tempo, isso provoca-me uma sensa-cäo de respeito e de humildade. ; MARlA LUISA BLANCO 45 Í, Por outro lado, sou consciente de que há momentos em que náo sou justo comigo mesmo. Eu creio que náo tenho nenhum talerrtoj:j^ej;caisjegm^ esforco, com "muito trabalho. Alem disso, sou muito lento. Penso' que"ra.tr— _ nasci com talento natural para escrever, como tinha Scott Fitzgerald, por exemplo. A mim, nenhum livro me foi dado, escrevi--os todos com um grande esforco, sempře a corrigir'muitoTNo entantó, também recordó' um manuscrito de Cortazar em que, numa página, náo havia uma única linha que náo tivesse cor-reccoes. »- Creio de verdade que náo tenho talento literário. O que outros conseguem com facilidade eu consigo-o com muito trabalho e o esforco é muito variável. Há dias em que escrevo cinco linhas e outros em que chego a uma página... Há capítulos que me : custaram catorze ou quinze dias e capítulos que apenas demo-; raram quatro ou cinco. Escrevo todos os dias mas o resultado nunca é o mesmo. ijff II 1