O DESESPERO HUMANISTA DE MIGUELTORGA E O D AS NOVAS GERACÔES (*) O desespero. A triste madrugada dos poetas. M. Torga PENAS DO PURGATÓRIO O que há de mais sentido e fundo na poesia portuguesa de hoje é o silencio. Do seio desse silencio e em luta com ele nasce o canto desesperado de um reduzido numero de poetas. É a voz ardente de uma poesia angustiada pelo espectáculo de agonias que ä superfície daquele silencio agonizam sem morrer. Canto desesperado por ver claramente vista uma essencial desordem dourando a sua aparencia de ordem ä luz de uma poesia nasci-da na liberdade, a que o tempo näo pode tirar o peso de revolta e angústia onde se alimentou. Canto desesperado, enfim e ma-ximamente, pela necessidade de ser inutilmente desesperado, pois a própria poesia se tornou suspeita aos olhos dos poetas, servindo como serve de manto glorioso a tanto falso deus. * Ver nota 1 3 76 Eduardo Lourengo Tempo e Poesia 77 Desesperos vários se däo expressäo e violéncia na mais re-cente poesia. Nas mais jovens geracóes encontramo-los desde Jorge de Sena a Cesariny, passando por um Carlos de Oliveira ou um Alexandre O'Neill. Na mais velha de todas, Afonso D u arte tempera-o com irónia e envolve-o em visóes apocalípti-cas. Na geracäo da «Presenca», Casais Monteiro fez-se eco de uma angústia histórica no seu poema «Europa», embora desde entäo näo tenha publicado nada täo desesperado. No sentido em que o tomamos aqui näo podemos falar de desespero em Jose Regio. A sua pessoalíssima angústia ultima-mente a dissolveu em satira., Mas o mesřno näo sucede com a poesia de Miguel Torga, que nos interessará em especial. Aqui o desespero é o centro, o intervalo e a periféria da sua mais re-cente poesia. A continuidade desse desespero, o seu vigor, a sua actualidade mesma, que o torna contemporäneo da mais jovem geracäo, proporciona uma ocasiäo única para meditar na raiz comum e nas diferencas dessa comunidade de espírito desesperado, cujo contexto é täo maniťestamente superior aos poetas como simples indivíduos que é fácil encontrar a sua presenca em poetas cuja natureza lúdica normalmente os conservaria afastados dessa atmosféra. Tais säo entre outros os casos de Antonio de Sousa, de Nemésio ou, nas jovens geracóes, de um Eugénio de Andrade. Näo é difícil passar de um desespero a outro desespero, de Jorge de Sena a Cesariny por exemplo, ou ascender de ambos a Miguel Torga. Menos fácil é ver como eles distinguem, embora näo o sej a quando se tomam de preferencia duas geracóes afastadas uma da outra como a de Torga e a de Cesariny, por exemplo. Assim, Cesariny é o mais coincidente com a revolta bruta, filha do desespero desesperado, da raiva absoluta do Ultimatum de Älvaro de Campos. Diferentemente do imortal en-genheiro, Cesariny näo se dá mesmo ao trabalho de justificar a sua desesperacäo. Destrói invocando, enumerando os objectos (ou os abjectos), as faces do mundo desesperante e a destruir. O seu admirável «gato branco» mijando de cima para esse mundo é a expressäo de um desespero escrito o mais possivel proximo do real que o enoja, revolta e desespera. Mas o desespero é ' o f im e talvez mesmo o exterior do seu mundo. A bem dizer j á ; nem há nele lugar para tal comocäo humana. Mais um grau e encontrar-nos-emos nos limites do literário näo-literário, volun- j tariamente fora dos limites de todo o humanismo e para lá da í expressäo. j Da mesma geracäo, um Carlos de Oliveira e um Alexandre O'Neill procuram limitar a angústia a um horizonte histórico I preciso, embora ela íhes venha de mais ancestrais e intemporais raízes. Mas a linguagem de um e outro säo bem diferentes e ne-la se acusa uma diversa insercäo temporal. Carlos de Oliveira é, literalmente falando, de urna geracäo anterior, que se quis ao Ímesmo tempo humanista e de raiz popular. Nessa geracäo é a poesia de Carlos de Oliveira a mais preocupada pela expressäo. juntamente com a de Cochofel, a mais intelectualizada e com-I plexa. A mais desesperada também, mesmo se o näo quer ser. j Desesperada da sua propria perfeicäo e desesperada no senti- mento das coisas e do mundo. A sua linguagem é calma na aparéncia. Na realidade ele procura dar a cada palavra-chave dos seus poemas näo sei que reflexo luminoso e sombrio, que distingue a sua poesia da dos seus camaradas de geracäo. E nis-so é ela ainda desesperada. Em O'Neill a forca destrutiva súpera a propria nota desesperada. A sua vigília de armas por entre as cintilacöes do mundo feroz e nítido do surrealismo é bem visivel. A sua irónia objectiva e sombria, o seu desespero, lirico de f undo e brutal na forma, näo deixa de lembrar Antonio Pedro, e coloca-o mais proximo de Cesariny ou Fernando Lemos que do neo-realismo. Deste tem, näo a esperanca, mas a obri-gacäo da esperanca, como Carlos de Oliveira. Ela é todavia su-ficiente para que duas expressöes que por natureza nascem de reais angústias tendam apesar delas a um tipo de aceitacäo in-compatível com o desespero. 78 Eduardo Lourengo Tempo e Poesia 79 Singular é o caso de Jorge de Sena, hörnern sem uma auten-tica geracäo e por isso apto a ser mentalmente contemporäneo das geracöes que estäo ä sua volta. Uma geracäo surge contra alguma coisa, é sempře o milagre de uma adolescencia que ima-gina inventář a vida, mesmo se essa adolescéncia se cháma An-tero ou Pessoa, o qual alias näo pertenceu a nada que se possa chamar uma geracäo, senáo por um equívoco dele mesmo e dos outros, a näo ser que geracäo sejam duas ou tres pessoas. Ora a geracäo de Sena, Cinatti, José Blanc de Portugal, também näo é uma geracäo porque todos acordaram para a literatura já näo-adolescentes. Näo eram contra, em princípio. A vida lhes oferecerá ocasiäo de sé-lo, mas dessa grande liberdade com que surgiram näo perderäo jamais o gosto de uma ultima e final conciliacäo, neste ou noutro mundo ou no outro mundo que se faz neste. Mesmo quando säo obrigados como Jorge de Sena a ter em conta a degradacäo moral da condicäo humana e a de-sesperar-se com ela com a veemencia com que o faz em As Evi-déncias, a presenca sensível e transfigurante do amor os salva de um derradeiro e definitivo desespero. Mas como aqui säo as expressöes do desespero que nos interessam, notemos que o de Jorge de Sena se alimenta ao mesmo tempo em experiéncias de hörnern comum e de intelectual, na vivencia de uma realidade imediatamente desesperante como a de Cesariny ou mediata e historicamente repudiada como a de O'Neill. Distingue-o deles, alem de outras coisas, a consciencia simultänea e continuada da dialéctica possível entre aquelas realidades, e, na forma, uma tortura e um refinamento intelectuais provenientes de uma memoria e uma consciencia literárias, certamente únicas na sua geracäo. Do caso de Miguel Torga falaremos com mais detalhe, pois é o nosso principal propósito. O seu desespero existe na sua obra desde comeco. De livro para livro se depura e concentra na expressäo e se torna mais reflexivo no conteúdo. Mas o seu fun do permanece o mesmo. Ele é suscitado como todo o deses- pero humano por objectos próximos e longínquos, por condicóes que tem a sua raiz nele mesmo ou no mundo com que se de-front a, mas acima de tudo, pela experiencia de um obstáculo, cuja natureza é obscura, mas cujo ser se confunde com o senti-do da propria existéncia no que ela tem de inominado e pro-priamente eterno. Ao desespero da poesia de Miguel Torga designámos no título destas consideracóes como «humanista». Porque náo simplesmente «humano»? Porque este desespero se dá a si mesmo um tempo de reflexdo e desesperando de tudo respeita os muros da cidade invisível cujo nome é Literatura. Esse respeito náo está somente inscrito no conteúdo, na confissáo permanente da grandeza da poesia como situacáo humana e do destino exceptional do poeta enquanto servo e senhor dessa poesia. Ele está já ou ao mesmo tempo na propria forma que a poesia de Torga necessariamente se dá, forma náo arbitrária, mas ritma-da pelos movimentos mais secretos da sua respiracáo de horném, da sua inspjracáo e expiracáo do universo, se assim se pode dizer. Essa forma é uma maneira de se situar no universo poético entendido como literatura e reflectindo precisamente da literatura aquela ideia de respeito a que aludimos. Děste modo o desespero de Torga, da mesma natureza humana que todo o desespero, como é fatal, mesmo se náo provém das mesmas fon-tes, adquire uma significacáo diferente através da diversa forma que se inventa para se comunicar. Uma relacáo com a cultura está aí inscrita, uma relacáo com a literatura, sobretudo, aí se manifesta, que náo é a mesma da das formas dos outros deses-peros. Essa relacáo é todavia tal em Torga e nos outros poetas que é permitido ler nela o sinal de várias geracóes literárias. Exemplifiquemos. Cesariny é a geracáo que já náo ve na literatura uma entidade respeitável, um universo ao abrigo das catástrofes do mundo, a «coisa em si» que é objecto da história da literatura. Ele ve-a como uma coisa, a coisa mais radical-mente apta para exprimir a ausencia de significacáo do mundo 80 Eduardo Lourengo Tempo e Poesia 81 e ser o instrumenta explosivo da sua destruicäo interna. É a li-nha do Rimbaud de Saison en En/er, de Orpheu, de André Breton. Para o O'Neill do Tempo de Fantasmas a literatura é, mas para outra coisa diferente dela e a seu service É funcional (na intencäo apenas, pois na realizaeäo näo o é) e ficaria talvez feliz se pudesse ser funcionária, a tomarmos ä letra aquilo que näo é certamente senäo revolta contra um «tempo de fantasmas». Esta tentaeäo nem na prática nem em intencäo é a da poesia de Carlos de Oliveira. Mas o seu culto sério pelo literário como tal lu-ta nele contra uma espécie de má-consciencia dessa beleza que ele admira e da qual nem sempře ve a passagem ä accäo neces-sária pedida por outras exigencias da sua situaeäo total de horném. Em Jorge de Sena existe também um conflito mas por outros motivos, alem do de Carlos de Oliveira. Jorge de Sena ve ainda na literatura a antiga e prestigiosa literatura (a sua memoria está por demais povoada de vozes inesquecíveis) mas hoje essa literatura mostra-se-lhe a bracos com a sua impoténcia, näo por falta mas afogada na sua propria riqueza e tornáda inaudível e quase inexistente ä forca de ser tanta e «täo gloriosa ao mesmo tempo». Finalmente, para Miguel Torga a Literatura é uma realidade na qual ere inteiramente, embora näo como o técnico acredita no oficio, mas inquieto, pois ele acredita menos nesta, naquela ou na sua literatura do que na Literatura. Esta crenca näo está em contradicäo com os motivos expressos em «Manifeste», ä data da sua saida de -«Presenca». Miguel Torga defende ai a ideia de uma literatura mais «interessada» (quase se é tentado a eserever, em sentido mais recente, «comprometi-da») na situa?äo humajaa^Jotal do que o era a seus olhos a dos mais representatives presencistas. Esta ultima parece-lhe a ca-minho da esterilidade ou do hermetismo e pdř~iššo invoca e propöe coneretamente uma outra literatura, que näo é senäo a autentica Literatura, a do passado e do futuro. Essa é a sua ma-neira de crer na Literatura. Ele sabe que se este ou aquele poema, ou livro, entram nesse reino da Literatura, o seu autor, de uma forma misteriosa mas certa, estarä salvo. Entenda-se a ex-pressäo no seu sentido religiöse Nisto reside a marca da sua geraeäo e o seu caräeter generi-co. A «Presenca» foi a geraeäo mais literariamente consciente de todas as geracöes literärias portuguesas. A mais literäria tam-bem, aquela para quem a literatura e forma de vida e näo uma de entre as possiveis, mas a forma superior da vida. Näo censu-ramos, nem elogiamos. Verificamos apenas. Como todas as coi-sas deste mundo, esta atitude tem muito de bom e alguma coisa de mau; o que tem de mau e a valoraeäo excessiva e exclusiva do que tem de bom: a literatura como mitologia da situaeäo hu-mana. Essa mitologia chega mesmo a degenerar em mitomania. Jose Regio näo estä longe dela. A sua carta a Gabriel Marcel inscreve-se nesse clima. Quando toma estas proporcöes, o culto pela literatura pode degenerar em fetichismo e idolatria. Mais gravemente ainda, em auto-idolatria. Quando se mantem em li-mites razoaveis cria, pelo contrario, um clima de atencäo e amor pelas obras que, näo sendo cego, e uma face do exercicio natural e valioso da compreensäo humana. Ä coexistencia destas duas atitudes permitiu a esta geraeäo, num grau que näo se encontra em nenhuma outra anterior, ser ao mesmo tempo autora e critica. o mesmo Jose Regio ä frente. Todos, autores e criticos, Casais Monteiro, Gaspar Simöes, Branquinho da Fonseca, o mesmo Torga. Este caräeter duplo e alem de outros um daqueles que melhor marcam a diferenca entre o «Orpheu» e a «Presenca» que hä tendencia a aproximar quando a verdade e que estes movimentos tem talvez mais di-vergencias do que semelhancas entre si. A «Presenca» nasce programätica e poetica ao mesmo tempo. A sua primeira pägina e um artigo de critica. O «Orpheu» nasce poesia. A geraeäo da «Presenca» criou e conservou o san-gue frio diante da criaeäo, fez poemas e reflectiu sobre eles, fez literatura e tomou dela uma continua consciencia, defendendo-a como literatura. Parecerä talvez a alguns que a geraeäo de 1870 82 Eduardo Lourengo Tempo e Poesia 83 fez a mesma coisa. Näo fez. A geracäo de Eca näo defendeu a literatura realista como literatura, defendeu-a como retrato mais válido do que outros de uma sociedade dada. A literatura ou a arte em geral näo era a grande, a única forma da existencia humana superior ou mesmo intelectual, era uma entre el as, ao lado da filológia, da história, da filosofia, da crítica politica, tal e qual como as coisas se passaram nas Conferéncias do Casino. Näo dizemos que tivessem razäo, dizemos que foi assim e assim näo foi com a «Presenca». E com o «Orpheu»? Confundindo como nunca tal acontecera entre nós a literatura com a vida, näo por ter feito da vida uma imagem literária mas por ter querido encarnar na vida as exi-gěncias da imaginacäo, sucedeu-lhes as vezes ter que defender a literatura que criavam, näo por causa dela mas da aventura vital que nela ia. A sua defesa era, alias, publicar mais e mais poemas iguais aos agredidos e menos, ou nunca, a exegese dos realizados. Era uma geracäo sensível ao escárnio humano e ä incompreensäo, naturalmente, mas contava com ela, e a literatura era somente para eles a maneira mesma de respirar. E como quem respira, eles näo se importavam com a sua respira-cäo. Foi urna geracäo que näo teve ideia de obras completas. Eles näo se sentiam completos de maneira nenhuma. Morreram praticamente inéditos. Ě preciso meté-los dentro mas eles nasce-ram fora da História da Literatura. A «Presenca» e, maxima-mente, José Régio nasceram dentro. José Régio tornou-se famo-so com o primeiro livro, num tempo em que Älvaro de Campos näo estava em parte alguma que näo era homem para isso e Fernando Pessoa estava anonimamente em Lisboa. Talvez daí a sua susceptibilidade ä crítica. Uma tal susceptibilidade näo significa obrigadamente urna incondicional admiracäo pelo eu pessoal. Nós vemos aí o reflexo dessa mitologia literária a que aludimos, inexistentes na geracäo de Fernando Pessoa. Ä primeira vista tem-se a impressäo que éram eles quem devia ser mais susceptível, pois literatura e vida iam de par. Mas talvez ninguém sej a verdadeiramente sensível ä sua vida. Os homens de «Orpheu», pelo menos, tive-ram o pudor altivo de o näo ser. Ao contrario, compreende-se perfeitamente que a geracäo da «Presenca» fosse sensível a alguma coisa que é válida independentemente de nós, embora ela se-ja nossa. Essa alguma coisa é para ela a Literatura. Todavia, sobre esta conviccäo comum, diferencas de temperamente pessoal e literário separam os homens da «Presenca». Asšim,~por exémpTó, ä maneira de crer na literatura parece-nos diferente em Miguel Torga e José Régio, o presencista «tel qu'en lui-méme...». Pelo menos, na medida em que urna tal crenca se exprime objectivamente no contex'to das obras. Torga cré mais na Literatura do que na sua literatura, ou na sua na medida em que a sente próxima da esséncia daquela; Régio cré mais na sua literatura do que na Literatura, ou melhor, só pa-rece crer nesta porque cré naquela, expressäo original da sua originalidade, como ele repete com constäncia exemplár. Daí a auséncia de angústia ou desespero visível na sua obra, deixado pela relacäo entre ela e o seu autor. Como homem e poeta, Régio é (ou foi) um ser angustiado e dramático; como autor, é um autor feliz. Há realmente drama na sua obra, e um drama que impôe respeito pela seriedade insofismável e funda de onde pro-cede, e ao qual um näo sei qué de humilde e orgulhoso, de revolta e arrependimento, de rico e pobre na forma e no conteúdo däo um «tom Regio», na verdade singulár. Nesse drama mono-logal de Régio-deus-sem-Deus com Deus-sem-Régio que é urna espécie de supra-Régio, há ao lado da angústia um autentico desespero que a irónia um pouco «gauche» da sua dialéctica Urica näo pode esconder, mas näo há desespero algum provocado pela sua situacäo humana de autor de uma čerta obra. Tu do se passa dentro dela, mas ela é-lhe invisível, mais invisível ainda do que um homem é para si mesmo. Näo assim em Torga. O Diário está cheio de notas de desa-lento e impotencia literária, que nada autoriza a supor sej am 84 Eduardo Lourengo Tempo e Poesia 85 simples reflexos de uma modestia puramente formal. Essas no-tas näo provam que a Literatura lhe Interesse menos que a Regio (provam ate o contrario), mas testemunham sobre uma consciencia inquieta e muitas vezes desesperada pela presenca inegävel e todavia ambigua da sua obra em face do seu autor. A sua mais recente poesia recolhe e depura a experiencia dessas notas. E so atentar na veemencia do poema significativa-mente intitulado Maceragäo na 2.a edicäo de Penas do Purgato-rio: Pisa os mens versos, Musa insatisfeita! Nenhum deles te merece. Säo frutos acres que näo apetece Comer. Falta-lhes genio, o sol que amadurece O que sabe nascer. Cospe de tedio e nojo Em cada imagem que te desfigura. Nega esta rima impura Que responde de ouvido. Denuncia estas silabas contadas, Vestigios digitals do evadido Que deixa atrds de si as impressöes marcadas. E corta-me de vez as asas que me deste. Mandaste-me voar; E eu tlnha urn 'corpo inteiro a recusar Esse impeto celeste. Claro estä que urn poema como este e «presencista» de muitas maneiras. Por um lado o poeta move-se no circulo da «sub-jectividade», näo porque transmita a sua experiencia na primei-ra pessoa, mas por ser o objecto dela eminentemente pessoal; por outro, mesmo queixando-se dos versos ressalva a Musa, a sua condicäo «Celeste» de Poeta. Ora isto está b em na linha original da «Presenca» e pode até dizer-se que é exemplar dessa magnificacäo da condicäo poética e literária em geral que nela vimos e cujo terna constante e quase único é o da situacäo de cada um em face de si mesmo. De cada um com a sua circuns-täncia, diria um Ortega; a sua auséncia de Deus, a sua ausen-cia de amor, ou génio, ou liberdade, etc. Todavia, nos Ultimos poemas de Torga, a mitologia da Musa näo impede que irrompa a presenca de uma inquietacäo desesperada, pouco presencista, que näo diz somente respeito ä cöntigencia de uma maior ou menor validade poética de cada verso, mas se refere ä propria condicäo «Celeste» do Poeta. Ai se pressente com desespero que um obstáculo sem nome, talvez coincidente com a propria essencia da condicäo humana, se opöe ä apropriacäo e transfiguracäo do ser, ä transparéncia do mundo que a poesia parecia dever dar e näo dá. Aqui um certo optimismo literário que foi sempre típíco da «Presenca» — ex-ceptuado Casais Monteiro — tinge-se daquelas cores cuja «ideia näo se pode encarar de frente» e säo a Noite implacável da poesia mais desesperada que j á se escreveu e é a de Älvaro de Campos. Há alguma coisa de irredutível que impede e certa-mente impedirá sempre um hörnern como Miguel Torga de se abandonar äquele gosto quase perverso do Nada que passa em cada verso de Pessoa, mas no seu ultimo Ii vr o, para os que o lerem com atencäo, näo é difícil ver o apelo de uma tentacäo identica. A sua descrenca a certas horas da excelencia total da condicäo poética näo é nesse sentido a mais significativa. Já ve-remos outras. Essa descrenca altern a nele sempre com invoca-cóes onde a situacäo privilegiada (mesmo se votada ao desespero) da condicäo de Poeta se confessa: Ve se br Uhas no céu, ó minha estrela De poeta! Sem ti, como há-de ser? 86 Eduardo Lourengo Uma dúvida se apercebe aí ou uma queixa, mas náo em: , í Versos. Este jejum j Que me per mite a santa comunhao ! Quotidiana; \ Esta magia humana \ Da verdade. j Com asas de poeta voa-se no céu... j De tudo me redimes, Í Peniténcia ! De ser artista! í f A poesia náo é um íratado de logica, naturalmente. O poeta j náo visa a exprimir de uma vez a Verdade inteira que lhe é visí- i vel, mas as momentáneas verdades da Verdade lenta que a sua i experiencia total desejaria. Aqueles versos exprimem confianca, dir-se-ia mesmo que afirmam uma certeza mas náo é proibido ) ver neles, quando se tem em face o contexto total de uma poe- í sia, a expressáo de uma certeza mais filha do desejo que do en-tendimento. Com uma dialéctica apenas um pouco mais forca- da, o vigor daquela certeza permitiria até ver nela o eco inverso ) de um desespero. Mas se ele náo está aí, colhé-lo-emos noutro í lado: ' Tenko o oiro, e nao posso \ Arrancá-lo do cerne da montanha! O filao de lirismo é um verso esquivo \ Que atravessa a dureza do granito. t Ou muito melhor aqui: j A propria abelha ás vezeš se alimenta í Do mel que fabricou... í Tempo e Poesia 87 E eu leio o que escrevi Como um notário um testamento alheio. Esvazio o coragäo, cuido que me exprimi, E vou a olhar o poco, e ele continua cheio. A forma desta poesia, a situacáo que o poeta nela ocupa em relacáo ao conteúdo-manifestacáo típica de uma vivéncia enrai-zada numa condicáo singulár (a do poeta em luta consigo mesmo) inscrevem-na no círculo da subjectividade presencista. Mas a significacáo humana, poética e histórica daquele conteúdo aproximam a poesia de que ele é um exemplo entre outros de uma poesia mais recente, a jovem poesia na qual náo só a condicáo poética, mas a situacáo humana do hörnern e do poeta no momento presente säo objecto de um idéntico processo. Pelo processo que Torga instaura ao mundo da sua experiencia, ele está com grande parte das novas geracöes; pela ma-neira como o instaura, com a sua geracáo, sobretudo com José Regio, pois Casais Monteiro, mesmo pelo espírito da sua forma, está hoje quase identificado com essa mesma jovem geracáo. Torga exprime, como Regio, antes de tudo. o seu mundo. Ele fala-nos da sua esperanca, do seu desespero ou da sua revolta, embora o seu mundo acuse uma presenca mais evidente de cer-tas experiéncias com o mundo, ou no mundo, a que Régio, se náo é alheio, náo atribui a mesma importancia. Como mater i a poética central a poesia de Régio tem uma experiencia pessoal de natureza religiosa, psicológica, literária e, em menor grau, sociológica e quase nada ou pouco de actualidade histórica ou política. pois em princípio se deseja o mais longe possível do contingente. Precisamente esta experiencia do contigente, que o náo é pois tudo o é, ocupa na poesia de Torga um maior lugar. Seria errado dizer o primeiro, pois esse é como no caso de Régio, segundo cremos, a experiencia do religioso como dúvida, esséncia da personalidade de ambos os poetas e o motivo fundamental pelo qual a «Presenca» é o que é e tem na História da 88 Eduardo Lourengo Tempo e Poesia 89 Literatura Portuguesa o papel de relevo que merece. Presencistas se disseram para afirmar juvenil e egocentrica-mente a sua presenca no mundo e na vida das letřas, mas mais verdadeiramente o pode dizer hoje a história literária que o eram porque tinham descoberto ou redescoberto uma Presenca presente ä sua humana presenca. Esta redescoberta marca ao mesmo tempo tudo quanto aproxima e distingue as intencöes ultimas inscritas na poesia mais significativa da «Presenca» e do «Orpheu». A um lirismo alheado de todo o sentimento da Transcendencia ou prisioneiro de formas simples ou degradadas dela, equivalente no fundo a um mesmo esquecimento (J. Dan-tas, Lopes Vieira, Guerra Junqueiro, etc.) responde o «Orpheu», no conteúdo e na forma (e isto o separa de Pascoaes, o grande poeta em quern esse sentimento da Transcendencia entrevisto como intemporal näo sentiu necessidade de se dar formas novas), com uma poesia onde essa Transcendencia se inscreve em negativo, sob a forma de Ausencia, a mais profunda de que a Literatura Portuguesa dá conta. Sá-Carneiro a descobre em si na impossível busca de uma unidade mítica consigo mesmo (descoberta da Transcendencia no piano psicológico); Pessoa a descobre ao mesmo tempo em si e no mundo, e por isso a presenca da Transcendencia na sua poesia se verifica sob o aspecto de uma Ausencia, cujo carácter metafísico é irrecusável. Que, segundo o nosso modo de ver. Transcendencia näo sig-nifica necessariamente Presenca em sentido objectivo (Substancia, História, Humanidade ou, como é mais comum, Deus) já se deixa ver ao designarmos como Transcendencia essa inegável Ausencia que dá ä poesia de Sá-Carneiro e, sobretudo, de Pessoa o seu carácter único. Transcendencia é toda a forma de existencia que ao espírito se revel a como heterogénea e, o que é mais importante, que esse mesmo espírito reconhece como soli-dária com a sua mesma natureza. Esse reconhecimento é a fonte permanente da experiencia a que Pessoa se referia ao falar na «misteriosa importäncia de existir». Ora foi uma tal expe- riencia, inexistente na poesia oficial do seu tempo (e talvez nas poesias oficiais de todos os tempos), que os poetas de «Orpheu» e em seguida os de «Presenca» refizeram cada qual ä sua manei-ra. A maneira é que foi diferente. Mais radical e complexa a de «Orpheu», de tal modo compenetrada da «misteriosa importäncia de existir» que todos os conteúdos e todas as formas desde a da vida pessoal ä da Divindade lhes parecéram para sempře au-sentes de si mesmas, o Universo e os seus deuses surgindo aos olhos do extraordinário. Pessoa dos sonetos rosacrucianos como uma deiscencia contínua e vä de um Abismo superior a Deus. O seu Deus «Hörnern de outro Deus maior» a quem a «Verdade morreu» (intuicäo autentica de místico, identica á de várias filo-sofias recentes), redescoberto por entre a literatura suspeita do ocultismo e sem quase nada de comum com a ideia tradicional de Deus na nossa poesia, aproxima-se por cima dos séculos do velho Abismo dos Caldeus que tanta fortuna teria nas congemi-nacôes de um Proclo, de um Damaso e outros neo-platónicos. Näo é ousado ver neste desesperado apelo a formas cada mais depuradas da Ausencia a confissäo da necessidade de urna ultima e definitiva. Transcendencia, entendida agora como Presenca Real. Pelo menos, o profundo acento místico dos sonetos rosacrucianos, se mais näo houvesse, séria já mais que suficiente para näo autorizar alguém a falar no «ateismo» de Pessoa como qualquer coisa indiscutível. Em confronto com o de Pessoa, o diálogo da poesia de «Presenca», as formas da Transcendencia nela, säo ao mesmo tempo mais simples e mais tradicionais. Confessada, negada, discutida ou aludida, a Transcendencia apresenta-se aí sob os tracos clás-sicos da Divindade que uma leitura da Biblia pode sugerir. Um estudo comparativo das imagens usadas por Pessoa, de um lado, e um Jose Regio, Torga, Casais ou Antonio de Sousa, poeta com temática similar em muitos pontos, do outro, seria elucida-tivo e mostraria com toda a clareza a diversa concepcäo que um 90 Eduardo Lourengo Tempo e Poesia 91 e outros se fazem da Transcendencia pela maneira como a ela recorrem e a exprimem. Quando Pessoa nomeia Deus é para o esvaziar de tudo quanto é uso imaginär por sua conta; Régio e Torga invocam-no pessoalmente, se assim se pode dizer, para dialogar com Ele, mesmo se näo é senäo a forma de dialogar consigo mesmos mitificada, como em Régio, ou de se lhe opor, como em Torga. Esta Personalidade da Transcendencia näo se encontra no «Orpheu». Ao mesmo tempo Personalidade interio-rizada (sobretudo em J. Régio) e Personalizacäo exteriorizada (preferentemente em Torga), essa ideia da Transcendencia é ca-racterística dos presencistas, mesmo se em alguns tem apenas contornos muito vagos ou funciona quase como elemento estéti-co como em Casais Monteiro. A sua configuracäo também näo é a mesma para estes Ultimos. A Presenca absoluta com a qual o jovem Régio se defrontava era j á a mesma nomeável Presenca de «Mas Deus é grande». Ela foi sempre mais nomeável, conso-lante e consoladora do que a de Torga e mais nitida que a abs-tracta forma do absoluto em Casais Monteiro, consciéncia mais sensível ä passagem do que ä permanencia. Por isso haverá nes-tes dois poetas uma angústia de um tipo que Régio näo oferece e a que já nos referiremos em especial ao falar de uma das for-mas do desespero em Torga. Esta relacäo diferente com o Absoluto nestes tres poetas relaciona-se e projecta-se na totalidade da sua experiéncia, mas séria longo examinar agora a questäo. Somente é visível que a maior presenca da História e do Mundo exterior em Torga e Casais Monteiro näo pode deixar de estar ligada ä menor certeza e «visibilidade» dessa Presenca o u até ä sua total incerteza. Sej a como f or, a dimensäo histórica, temporal, näo tem na poesia de Régio o mesmo relevo do que na de Miguel Torga. Régio é um psicólogo tímido, humanamente falando, um místi-co, ä sua maneira, sem dimensäo social vincada e näo-política, no sentido em que aqui se entende a palavra. Torga é um hörnern político. quer dizer, um hörnern realmente interessado na situacäo histórica do seu pais, que ele comenta no «Diario» e näo apenas, como Régio, na situacäo anímica que desse pais se reflecte sobretudo na história da Literatura. Régio torna atitu-des políticas e as mais corajosas, mas num piano privado e que ele distingue ou näo confunde jamais com o literário. Esta di-versidade de temperamente deve, segundo presumo, estar já na base da famosa cisäo da «Presenca». Havia outras razöes, é evidente, pois se näo. séria pouco explicável como o outro temperamente político da «Presenca», Casais Monteiro, se conservou ao lado de Régio, mas aquela era uma delas. A situacäo histórica e pessoal de Torga explica o seu papel singular entre o «presencismo» literariamente apolítico e as novas correntes, diferentes na expressäo e finalidade, mas todas interessadas no seu momente histórico, todas atentas ä situacäo social e política da sua patria, desde o neo-realismo ä «Ärvore» passando pelo surrealismo. (Exceptuamos a «Tavola Redonda», que"p~arečě ťérquerido ressuscitar um «presencismo» muito mais decantado da História e encantado do resto). Na encruzilhada de sugestöes e exemplos, äs vezeš mesmo de influencias direc-tas, que as geracöes se däo umas äs outras, a situacäo e o papel de Torga foi entre nós, em condicôes históricas e num outro contexto literário, vagamente semelhante ä de Malraux-Aragon em Franca. Neste esquema arbitrário. Régio teria o papel de Gide-Mauriac. Referimo-nos somente ä relacäo de ambos com a ideia de Literatura e näo ao valor ou contexto das obras, que näo säo matéria de comparacäo aqui. Trata-se, lá como cá, da passagem do psicologicamente dramático ao histórica e social-mente dramático, ou mesmo trágico. Passagem poética em Torga, Casais Monteiro e José Gomes Ferreira (mais tardiamente revelada), passagem romanesca em Ferreira de Castro, no mesmo Torga e em seguida com outra intencäo, no neo-realismo. Essa passagem é o eco forcoso de grandes agonias humanas que recomecavam na década de 30 e cuja voz nunca mais dei-xou de se ouvir. Nada mais natural que ela se continuasse nos 92 Eduardo Lour engo Tempo e Poesia 93 poetas que tiveram o triste privilégio de nascerem com ela para a vida adulta e que mesmo näo se tivesse tornádo mais sombria e desesperada com a experiencia infindável da sua permanén-cia. Num mundo suspenso de podereš täo inacessíveis e tendo ao alcance uma capacidade de destruicäo impensável, näo é um hörnern ou grupos de homens, é a humanidade mesma que está em agonia. Que milagre que alguns se sintam agonizando e no--lo digam? Penas do Purgatório, o recente livro de poemas de Miguel Torga, só se explica perfeitamente ä sombra de um tal mundo. Nele se exprime como era natural esperar da sua formacäo e do seu passado literário. É a sua agonia que aí se confessa, mas provinda de raízes onde a agonia de muitos se alimenta. É o seu desespero que nele f ala, mas é ao mesmo tempo o desespero contemporäneo de geracöes mais novas confrontadas como Torga com um mundo idéntico. Designámo-lo de humanista por ser um desespero que voluntária ou involuntariamente reconhe-ce os seus limites, dando-se como forma urna estrutura linguís-tica e vocabular com um lugar definido no nosso mundo literário e, como conteúdo, urna vontade de esperar apesar de tudo. Há talvez urna contradicäo nisso mas, se há, é dessas que säo conaturais ä espécie de existencias onde as podemos verificar. É difícil dizer se na poesia de Torga a Esperanca é mais irredutí-vel que o Desespero. Depende dos poemas. Certamente o poeta também o näo sabe. Por o näo saber escreve ora poemas de esperanca ora de desespero, mas a maior parte das vezes é a inde-cisäo entre uma e outra a própria matéria do poema. De certo modo uma decisäo cabe também ao leitor. Muitos destacaräo o desespero talvez por desejarem acordar o seu proprio desespero com o do poeta. Outros faräo o mesmo jogo com a esperanca. Nós näo pomos em relevo o desespero por um mero arbítrio, nem por uma escolha deste género. Parece-nos evidente que ele está mais presente que a esperanca em Penas do Purgatório. A esperanca é aí um voto ou apelo (näo é assim toda a esperanca? Náo é ela já o inverso do desespero? Ou o seu comeco que se ignora), mas o desespero é aí uma realidade palpável. Torga designate a si mesmo como «ave da esperanca* no belo poema do mesmo nome, mas veja-se de que «silencio e negrura» ela é o avesso imaginário: Passo a noite a sonhar o amanhecer. Sou a ave da esperanca. Pássaro triste que na luz do sol Aquece as alegrias do futuro, O tempo que há-de vir sem este muro De silencio e negrura A cercá-lo de medo e de espessura Maciga e tumular; O tempo que há-de vir — esse desejo Com as as. prim aver a e liberdade; Tempo que ninguém há-de Corromper Com palavras de amor, que sáo a mořte Antes de se morrer. Significativamente, o poema intitulado Esperanga é a confis-säo sem véus da sua impossibilidade: Tantas formas revestes, e nenhuma Me satisfaz! Vens as vezes no amor. e quase te acredito. Mas todo o amor é um grito Desesperado Que ouve apenas o eco... Peco Por absurdo humano: Quero näo sei que cálice profano Cheio de um vihho herético e sagrado. 94 Eduardo Lourenco Tempo e Poesia 95 Näo há aqui nenhuma encarnacäo da esperanca mas som en -te a melancolia nascida da sua ausencia. Mas o desespero, esse gritava na revolta nua, brutal, do famoso Dies Irae de Cdntico do Homem: Apetece cantar, mas ninguém canta. Apetece chorar, mas ninguém chora. Um fantasma Levanta A mäo do medo sobre a nossa hora. Apetece matar, mas ninguém mata. Apetece fugir, mas ninguém foge. Um fantasma limita Todo o futuro a este dia de hoje. Apetece morrer, mas ninguém morre. Apetece matar, mas ninguém mata. Um fantasma percorre Os motins onde a alma se arrebata. Oh! Maldiqäo do tempo em que vivemos, Sepultura de grades cinzeladas Que deixam ver á vida que näo temos E as angústias paradas! O tom épico natural ä poesia de Torga encontrou aqui a mais violenta e directa expressäo de protesto da nossa poesia de hoje. Nela perpassa o eco das maldicôes bíblicas. Näo menos desesperado, no f undo, mas já acompanhado do comentário expresso do poeta, o que lhe retira aquela violencia que näo dis-cute nem se quer discutida, responde-lhe em Penas do Purgató-rio um poema como Situacäo: Nao ha refugio, e o terror aumenta. E tal e qua! o drama aqui na sala: A luz da tarde em agonia lenta E a macica negrura a devora-la. Dor deste tempo atroz, sem refrigerio. Eis os degraus do inferno que nos res tarn: Morrer e apodrecer no cemiterio Onde fantasmas como eu protestam. Alguns amariam talvez uma forma de protesto menos visi-vel, uma presenca do autor menos insistente, mas cada coisa tem a sua razao e o seu preco. E talvez o tempo desse visivel e pessoal protesto e a coragem dele e ja um valor poetico e de co-municacao. Torna-se esse protesto e esse desespero mais subjec-tivo e menos comunicavel que o de Dies Irae? Sim e nao. Um sujeito subjaz sempre a todo o poema, e uma voz que apela mesmo se se nao nomeia. Toda a poesia contem em si a possibi-lidade de nao ser recebida e toda se dirige a um leitor possivel. A comunicacao estabelece-se merce de uma reinvencao ou in-terpretacao desse leitor ideal, mas sobre uma pre-harmonia de situacoes. E esta pre-harmonia de situacoes que permite ouvir atraves dos poemas de Torga o nosso pessoal desespero. Desespero intimo, politico, pessoal. religioso, ele nasce de situacoes cuja transparencia nos e acessivel, apesar do conteudo inegavel-mente confessional do ultimo livro de Miguel Torga. , - Passemos brevemente sobre o desespero intimo de Penas do Purgatorio exemplificado por exemplo no poema Fado Nao dou paz, nem a tenho. Os outros vao, e eu venho Das Husoes... No meu adeus mais puro transparece 0 logro e o tedio do caminho andado... 96 Eduardo Lourengo Tempo e Poesia 97 E o sol dos coragöes Arrefece A cada encontro Desencontrado. A estrutura é quase abstracta de täo verbal e todavia como é fácil dar a nossa experiencia pessoal a este poema depurado e como ele depurado tem o poder de recriar em nós a experiencia a que alude mais do que constrói. Mais transparente ainda e íntima a experiencia do poema Lamento: Nem tu, amor, me deste aquele sossego Que te pedif No grande cais da vida onde aportei Eram t ant o s os bragos e os acenos Que me cansei A responder a todos, e a nenhum... Certamente todos os homens podem reencontrar em si em algumas horas, ou sempře, o eco de um tal lamento. Subjecti-vo? Se se quiser, mas de uma subjectividade de todos. Já nos referimos ao desespero politico e pessoal em sentido preciso. Ele é täo visível e constante que o leitor mais despreve-nido se encontra com ele sem auxílio de comentários, embora a complexa situacäo nacionál e geral donde procede mereca urna consideracäo séria. Com particular atencäo consideraremos, para terminar, o desespero de raiz religiosa, menos manifesto na aparéncia do que os outros mas mais importantes pela sua na-tureza absoluta e finalmente mais presente que todos os outros para quem conhece a obra e a evolucäo de Miguel Torga. Esta forma de desespero — a única de resto que merece com propriedade esse nome — é o fundamento consciente ou inconsciente dos outros todos ou pelo menos é um desassossego ultimo que dá aos outros o seu significado mais profundo. Encontra ele em muitos um eco semelhante? Paradoxalmente näo o encontrará nos espíritos tidos em geral como religiosos, pois esse desespero é a experiencia de um hörnern para quem «o religioso» é. pelo menos, problemático, mas encontrá-lo-á em outros. Mas a questäo näo tem grande importancia. É a sua presenca objectiva na poesia de Torga que interessa verificar e apreciar. A sua qualidade é por demais importante para nos contentarmos com uma alusäo. É ele que define Miguel Torga perante si mesmo, é a sua cruz pessoal e ao mesmo tempo o seu sinal distintivo de entre a sua geracáo e as geracöes mais novas de quem o aproximámos. Deus näo é uma palavra morta na poesia de Miguel Torga. Digamo-lo sem rodeios, este hörnern de expressäo voluntariosa e forte vive crucificado numa contradicäo e dela germina «como um joio imortal» a sua angústia e desespero. Que contradicäo? A de um hörnern que escreve deuses e pensa Deus, que escreve Deus e näo sabe ao certo se näo pensa Nada. Mas esse nada o inquieta como se fosse Deus. É uma situacäo diversa da de Régio. Para Regio, Deus näo só näo é uma palavra morta como de algum modo é a única viva, a mais viva em todo o caso, embora Régio näo chegue a distinguir-se ele mesmo claramente dessa vida eminente que nele vive e com a qual dialoga. Mas a sua poesia, mesmo quando duvida, acre-dita. Torga näo acredita, mas desejaria poder acreditar. A ambiguidade da situacäo religiosa de Torga, tal como se reflecte nas suas obras, é ainda mais acentuada que a de José Régio, que parecendo jogar sempře em dois tabuleiros ao mesmo tempo na realidade jógou preferentemente no tabuleiro de Deus. Miguel Torga. ao contrario, joga no tabuleiro de Deus e do Hörnern, um hörnern que ele näo concebe a maioria das vezeš senäo como o opositor de Deus, mas o seu jogo é desconcer-tante porque näo joga nos dois tabuleiros ao mesmo tempo, mas sucessivamente. No combate de Régio com o seu Anjo é o Anjo que póe questóes a Régio e daí provém que no grande diá- 98 Eduardo Lourengo Tempo e Poesia 99 logo orgulhoso da sua poesia irrompa e venca o acento de uma humildade natural ao autor das Encruzilhadas de Deus que näo en contra lugar no autor de O outro Livro de Job. Como o seu modelo mitico, Torga parte da sua experiencia humana, do de-sastre dela, e aí se firma para questionar Deus. Mas ao contrario do grande patriarca objector momentäneo do seu Deus, Torga questiona-o sem verdadeiramente crer que está questionando Deus. Esta é a raiz da sua ambiguidade, aqui nasce o equívoco emprego da palavra «Deus» näo só na sua poesia como em toda a sua obra, mas daqui se origina também parte do seu atracti-vo, do seu dramatismo e da sua ressonäncia. Concluiremos entäo que essa palavra essencial näo tem fi-nalmente na sua obra outra funcäo que näo sej a a de uma colossal figura de retórica, o manto vermelho dos antigos reis das tragédias clássicas? Nós dissemos que Deus näo era uma palavra morta na sua poesia e a sua poesia o testemunha de mil maneiras. Que mais näo fosse pelo seu uso constante em todos os seus livro s. Uma tal constäncia, que se diria mesmo obsessi-va, näo é um capricho nem um acaso, como näo o é na poesia de Régio. O caso humano destes dois homens é semelhante ao de muitos homens do Ocidente que um dia perderam a fé da sua infäncia. A maioria näo a substituiu por coisa alguma, vi-vendo como viveram talvez sempre as maiorias, ao acaso da fortuna e dos dias. Outros transitaram de f é e perder uma foi ganhar outra. Mas alguns, irremivelmente poetas, ao perder a fé da sua infäncia, jamais puderam, porque poetas, perder a infäncia dessa fé. Esse me parece ser, entre outros, o caso religio-so de um Regio e de um Torga, mais comum entre os Portugueses do que é habitual imaginär. A experiencia dessa infäncia o u dessa adolescencia foi urna täo definitiva assuncäo da sua mais profunda humanidade que, mesmo quando desertaram a fé ou a fé os desertou, eles transportaram ä nova morada os deuses veneráveis, ou cristämente apenas, o Deus venerável dessa idade mítica e em suas memórias para sempre inafundável. Uns näo poderáo aquietar-se sem regressar ao lar antigo (tal é o caso de Régio e igualmente o de um Antonio de Sousa e um Nemésio), outros conservaráo a nostalgia dele e, mesmo lutando contra o que a sua razáo adulta lhes mostra como ilusáo, encontram nes-sa luta a sua razáo de ser e muitas vezeš lhes acontecerá náo saber se os ídolos que guardaram dessa mítica infáncia náo sáo na verdade imagens transitórias do Deus autentico. Tal nos parece ser, entre outros, o caso de Torga. Toda a obra de Miguel Torga vive desse debate, mas náo é preciso para o esclarecer nas suas linhas essenciais recorrer a toda ela. Este seu ultimo livro seria suficiente se outros náo houvesse e ele náo fosse o eco depurado da sua constante problemática. Ou do seu Drama como claramente o enuncia no poema do mesmo nome: Todo de came e osso Como posso Transfig urar-m e ? A vara de condáo que me levanta Ergue o peso dum homem. Sou macico. animal. Mas no céu. onde vejo Formas como as da terra, O aceno divino náo sossega: — Vem alada semeňte doutra vida! E náo sei que metade ressentida Me renega. Náo se pode ser mais claro. A «única questáo» ou a grande questáo da imortalidade, á maneira de Unamuno e dentro de um «clima» muito proximo do do grande professor de Salamanca, aí está enunciada, e ao mesmo tempo a resposta e a curiosa razáo dela: ressentimento. De que? De quem? Questáo impor-tante mas que nos arrastaria para muito longe. Insofismável é o testemunho da sua permanéncia, o eco perdurável da religiáo 100 Eduardo Lourengo Tempo e Poesia 101 da sua infáncia, de sua Máe, que a outra metade, o homem adulto, a razáo ou parte dela, a experiencia, «renegam». Esta «renegacáo» ou denegacáo nem sempře torna esta forma dubita-tiva. Pelo contrário tem uma expressáo positiva, a outra face do homem religioso em Torga e que é o homem que se confessa ♦natural* apenas, face alias a mais visível da sua obra e certamente a que encontra um eco mais generalizado e maior adesáo nos seus leitores. E o lado «humanista» confessado sem dramas de consciencia (ou que o parece), um humanismo agressivo, po-lémico para ser totalmente de boa consciencia. É um humanismo assim o que se dá forma em poemas como Doutrina: Abro o livro da vida. o catecismo Onde qualquer analfabeta lé. Abrq, soletro e cismo: Um outro céu, porqué? Tudo aqui tao visível e concreto! Tudo florido em letras de verdade! Um rio passa, e passa a majestade De um Jupiter discreto Que liquefez a propria eternidade. Deixar o certo pelo duvidoso! Trocar a amada por um querubim! E este corpo terroso? E este viril a mor que existe em mim ? Perguntas e respostas que eu entenda! E nada de mistérios de encomenda Onde uma cobra soma se enroscou... Pedir a alguém que sofra e se arrependa Por causa da magá que um outro mastigouf... A bem-aventuranga natural. Um Paraíso onde se possa ir: Arvores do bem e do mal, E na porta este aviso paternal: — E proibido proibir! Estranha composicäo onde a näo velada presenca de espirito satirico denuncia da parte do poeta uma näo-total adesäo a esta doutrina, inversäo de urna outra que o poeta repudia mas onde näo é certo que os seus crentes se reconhecam. Toda urna tradi-cäo racionalista está contida nessas linhas, todo um caminho onde passaram homens täo diferentes como um Pascoaes e um Junqueiro e o mesmo Pessoa. E ela a doutrina de Torga? De um certo Torga certamente, e na nossa opiniäo o menos consis-tente, mas näo do Torga sobre cujo desespero estamos falando pois se todos os poemas fossem dessa veia näo haveria neles desespero algum. Mas séria pouco sério fechar os olhos a esse Torga unica-mente humanista feliz, ou, com mais propriedade, apostado na criacäo ou na obrigacäo rational de um humanismo naturalista, um pouco terra-a-terra. Certamente mesmo é esse o Torga mais visível, o apologista directo da Natureza e de uma Natureza contemplada em sua crua virgindade, visäo que dá ä sua obra urna inegável forca e grandeza e se transmuta, na parte poética dela, numa paganizacäo de temas, de intencäo e estilo. Mas este paganismo de Torga näo o é totalmente, näo o é ä maneira natural de um Teixeira Gomes, nem ä inatural maneira de Caeiro. É urna paganismo polémico, um paganismo que näo se es-queceu nem parece poder esquecer-se que o Cristianismo está também aí (Caeiro mesmo näo o esqueceu) e, o que é mais im-portante, está aí como urna imagem do Homem em que outrora o mesmo Torga participou e cuja profunda licäo da vida como passagem e sacrifício é impossível esquecer. Esse paganismo 102 Eduardo Lourengo Tempo e Poesia 103 näo é uma impostura, realmente, ele responde a uma exigencia primordial de Torga (e como näo, se ele é o grito permanente da natureza do homem?) mas näo o é da maneira calma ou mesmo relativamente calma que se colhe no paganismo, o único que nos é acessível, a nos, nascidos cristäos, entre as páginas de um Teócrito ou de um Lucrécio. Todos os regressos säo fictícios e na medida era que há no paganismo de Torga (na sua inten-cäo e no recurso continuo a divindades que já näo está no poder de ninguém ressuscitar, mesmo como arsenal decorativo) urna tentacäo de um tal regresso, alguma coisa de fictício o tem de acompanhar por necessidade. Quando o näo é, entäo o poeta abandona-se, deixando na sombra a vontade expressa de ser pa-gäo, para näo conservar mais do que essa espécie de paganismo póstumo da tristeza, heranca dos evadidos da certeza e da espe-ranca cristas. Assim o vemos na sentida Écloga, onde silenciosa repousa a sombra daquela resignacäo interminavelmente triste e calma que um historiador moderno atribui äs estátuas funerá-rias gregas: Demos as mäos. Aquece e aproxima. Temos täo pouco tempo! Dent r o de nós germina O desencanto, Mas os í oj o s säo tenros ao nascer... E enquanto O rebanho rumina, Podemo-nos amor sem padecer. Sim, é fugaz esta ternura aflita. Mas näo há outra com mais duragäo.. A eternidade E o sono que, macico, no caixäo Aguarda o desenlace deste dia Todo acordado, todo claridade, Breve aceno do sol que o alumia. Näo estamos ainda em pleno desespero, parece mesmo o contrario dele, mas já näo estamos longe. Longe estamos porém do dionisismo do autor das O des, embora nestas mesmas Penas do Purgatório, mau grado o seu carácter desesperado, näo deixe também de aparecer, como neste final de Inocéncia: Tudo amo. admiro e compreendo. Sou como um sol fecundo Que adoca e doira. tendo Calor apenas. Pur o, Divino E humano como os outros meus irmäos, Caminho nesta ingénua confianga De crianga Que faz m Hagres a bater as mäos. Mas esta nota ditirämbica é excepcional em Penas do Purgatório. A consciencia feliz do paganismo que ela manifesta é no resto do livro ou urna consciencia resignada como em Écloga ou francamente desesperada e todo esse desespero dá para a larga práca da ausěncia de Deus. Mesmo a oposicäo habitual e a dišputa com Deus perde em Penas do Purgatório muito do tom heróico, jovem, convicto ou blasfesmatório de outros poe-mas de Torga, como no conhecido Livro de Horas. A bem dizer a palavra Deus (ou os seus equivalentes) quase desapareceu. o que näo significa que a questáo foi eliminada, mas talvez o contrario, apesar da declaracäo de princípio com que o poeta abre o seu livro, intitulado sintomaticamente Princípio: Näo ten ho deuses. Vivo Desamparado. Sonhei deuses outrora Mas acordei. Agora 104 Eduardo Lourenco Tempo e Poesia 105 Os acúleos säo ver sos E tacteiam apenas A ilusäo de um suporte. Mas a inércia da morte, O descanso da vida na ramada A cantar primaveras uma a uma. Também m e näo diz nada. A paz possível é näo ter nenhuma. Deus näo está aqui senäo recusado mas näo é ousado insi-nuar que é a presenca dessa ausencia que arrasta um poeta humanista em muitas das suas horas, o hörnern que neste mesrao livro se nomeia como «ave da esperanca», ä conclusäo sem saí-da, ao desespero irrefutável de «a paz possível é näo ter nenhuma». É de todo este acordar «sem deuses», forma equívoca mas que o resto do poema esclarece, despertar colocado na primeira página como epígrafe, que decorre em ultima análise todo o desespero confessado neste livro, mesmo o que se dissimula sob a confissäo de urna tristeza ou de um desänimo na aparencia oca-sionais. S e arde «nesta fogueira de tristeza/que näo sei quem acende a cada hora», se certas «palavras de amor (lhe) parecem a morte antes de se morrer» o u se vive na vida «uma espécie de saudade de viver...», o privilégio dessas experiencias näo é so-mente o dom natural de uma consciencia poética sen sivel ä dia-léctica contínua dos sentimentos mais opostos. A persistencia e a unidade dessas experiencias é o testemunho do tédio incurável deixado na alma humana pela perda de uma esperanca absoluta, e é a heranca fatal de todo o hörnern que ten do perdido um deus e näo tendo encontrado outro näo perdeu ao mesmo tempo o uso normal da sua consciéncia lúcida. E um poeta näo a pode perder sem se perder. Parecerá talvez excessiva esta insistencia em referir um certo clima psicológico de um poeta (neste caso o clima de desespero) ä sua coordenada absoluta, ä relacäo que o poeta diz sustentar ou sustenta efectivamente nos poemas com uma forma qualquer do Absoluto. Mas esse é o parti-pris metodológico do autor des-tas consideracóes, cuja näo-arbitrariedade terá ocasiäo de expor em outra ocasiäo. A crítica pode falhar a determinacäo desse Absoluto ou enganar-se na sua caracterizacäo, mas contentar-se com meras elocubracôes acidentais e empíricas, mesmo inteli-gentes que sej am no pormenor, sem as referir ä intencäo centrál que comanda uma autentica criacäo é perder, e para sempře, o único ponto de vista através do qual uma obra pode, näo só ser julgada, como compreendida. Esse absoluto näo é forcosamente de uma só peca nem sequer é necessário que apareca numa obra sobre uma forma visível, pois o criador pode manifestar nela a sua relacäo com um objecto absoluto cuja forma sej a por exemplo a da Natureza concebida ä maneira de Caeiro como lu-gar de encontro de objectos mil sem relacäo uns com os outros. Näo importa: mesmo neste ultra-empirismo há um centro que é a ideia mesma de uma Natureza desse género, perdida a qual toda essa poesia é ininteligível e essa Natureza é por sua vez o molde vazio de uma ideia única de Natureza una contra a qual o poeta Caeiro polemiza. Näo significa isto que näo nos tenha-mos enganado ao descrever o tipo de relacóes que sob um dado ponto existe entre a poesia de Torga e a ideia de absoluto que nela encontra expressäo, mas significa que julgamos ser nessa direccäo que outros mais perspicazes a devem procurar. Esse tipo de relacóes descrevemo-lo como ambíguo e procu-rámos esclarecer a forma concreta que toma nos poemas essa ambiguidade. Uma comparacäo com a situacäo de Régio séria instrutiva mas só indicaremos o seu sentido possível. A ambiguidade das relacóes de Régio com o absoluto (ou antes, da sua poesia), ä medida que se encaminha para uma solucäo em que a certeza sobre ele predomina, conduz a sua poesia ou a dar-se como finda ou a perder o seu dramatismo. A ambiguidade em Torga, na medida em que parece resolver-se praticamente pela negacäo ou por uma incerteza que se lhe assemelha, perde 106 Eduardo Lourenco Tempo e Poesia 107 igualmente esse dramatismo pois como a de Regio fica sem opositor, mas ganha a tonalidade desesperada de uma voz que se näo resigna a gritar no vazio. E pode assim recriar uma nova forma do antigo dramatismo. A ambiguidade de Regio e Torga tem contudo uma coisa de comum e que os distingue das novas geracöes. Na medida em que dialogam com o Absoluto, Regio e Torga movem-se na orbita do Deus biblico. Em Torga ele é sempře Jeová, o interlocutor de Job; em Regio, a voz que se revelou a Moisés na sarca ardente foi tomando cada vez mais o rosto do Deus evangélico. Se exceptuarmos talvez o caso de um Sebastiäo da Gama, muito «regiano» nesse capitulo, a situacäo das novas geracöes, cuja análise näo cabe aqui, é de uma outra natureza. Ou volta-ram a uma poesia de ortodoxia mais pura, embora bem longe da sua expressäo tradicional entre nos, como é o caso de um Ci-natti ou Jose Blanc de Portugal, ou caminharam resolutamente para a negacäo ou a vivencia do sem-sentido dessa problemáti-ca. Sena, aqui como em muitos outros pontos, ocupa o centro dessa encruzilhada espiritual. Ele näo sabe se acredita nem se deseja acreditar e o que entreve como Absoluto näo sustenta com o mundo aquele tipo de relacöes que é de uso imaginär sob a ideia de Deus. Diversamente, um Carlos de Oliveira e o neo--realismo em geral sabem ou creem saber por que näo acredi-tam. O'Neill näo acredita. Cesariny pertence a um mundo onde o proprio sentido da questäo é mais obscuro e inexistente que qualquer resposta. No caso especial de Torga que aqui nos interessou em particular, diremos para terminar que a ambiguidade a que nos re-ferimos näo é dessas resolúveis ou mesmo pensáveis a luz de uma logica qualquer. Qualquer coisa nele näo cortou ainda as pontes sobre um regresso possível, mas o seu ultimo livro pare-ce insinuar uma dificuldade cada vez maior dum regresso. A sua auténtica e funda situacäo é a esse respeito um mistério de que ele näo possui a chave, nem conhece o fim. As aparencias näo säo tudo, mesmo se těm forca de se colar ao nosso rosto e já quase näo se distinguem dele. Torga sabe melhor que nin-guém que ele näo tem ...a nitidez que todos (Ihe) aíribuem Desde o comeco. Uma «baca inquietacáo» leveda o seu destino de homem e poeta, e talvez näo se aquiete senáo na hora em que tudo se acalma e nada se resolve. Como ele mesmo diz: Lenta e dorida purificacäo Que tem o céu possível no futuro... Důro . Catre da terra que nos de u a sorte; Peniténcia de ser e de sentir, Acordado e a dormir. Até que ven h a a morte. Esta «lenta e dorida purificacäo* tem sido atravessada pelo fio vermelho de um desespero insanável. Referimos algumas das suas formas e aludimos äs experiencias pessoais e universais don de procede. A sua expressäo meditada dentro de uma lin-guagem e uma arquitectura voluntariamente nítidas e acabadas, a espécie de indecisäo e luta que nela se tráva entre um conteú-do que devia fazer explodir a forma e todavia se consegue mol-dar nela. levou-nos a designar esse desespero como humanista. Mas ele é ainda humanista noutro sentido mais importante ainda. É humanista por ser filho da intencáo mil vezeš expressa na obra de Miguel Torga de confinar a realidade humana unica-mente no Homem e na sua aventura cósmica, embora a presen-ca mesma desse desespero testemunhe que essa intencäo näo encontra no espírito total do poeta uma estráda luminosa e larga. Como a todos os lugares reais ou ideais em que o homem busca a salvacáo, conduz a este humanismo de que analisámos só um aspecto, a porta estreita de uma agonia pessoal. «PRESENCA» OU A CONTRA-REVOLUCÄO DO MODERNISMO PORTUGUÉS? * Haverá países onde as grandes revolucôes sejam obrigatoria-mente pequenas? Dir-se-ia que sim, quando atentamos nas manhäs que as prolongam. Se o seu futuro a elas se reduzisse, o melhor séria chamar-lhes revoltas e näo revolucôes. O caso de «Orpheu» parece ilustrar com particular forca essa fatalidade inerente aos momentos decisivos da nossa vida espiritual. Ao contrario do que se afirma, näo teve amanhäs situados exacta-mente na mesma linha do acto poético total que simbolizou. Todavia, é bem difícil näo ver nele uma auténtica revolucäo poética, sem paralelo na história literária portuguesa. Como simples prova, nunca tornáda a sério, o maior dos seus poetas ousou, na teória e na prática, superar o mito nacionál por excelencia: Camôes. Este desígnio revela a fundura de uma ambicäo. Com a violencia do raio, os génios tutelares de «Orpheu» deram voz e luminoso corpo a tudo quanto durante centenas de anos jazeu no tenebroso imaginär da nossa alma falsamente contente com a litania suave de um extático lirismo. A noite e o inexpugnável caos haviam aflorado, por inesquecí- * Ver nota 2 144 Eduardo Lourenco Tempo e Poesia 145 veis instantes, enegrecendo tudo, a cancäo de Camöes, o soneto de Bocage, a dialéctica sentimental de Garrett. Em figura de gente apresentaram-se, enfim, e inteiros a Antero, para em se-guida, tornados fantasmas, percorrer os corredores alucinados de Gomes Leal, consumido na sua passagem os espelhos hiper-bólicos que os reflectiam. Mas esta absoluta consumpcäo foi di-gerida como um acidente, falha técnica ou miséria corporal. Mal passaram, as alas um instante perturbadas por esses intru-sos tornaram a unir-se para o grande baile da nossa boa cons-ciéncia poética. O Antero apolíneo de uns e o Antero converso de outros guardaram a meias a proibida entrada no negro jar-dim onde o verdadeiro agonizou. Até ao dia em que Pessanha e os jovens de «Orpheu» acordaram, numa noite sem nenhum jar-dim. O ausente Absolute de Antero conservava ainda a face que permite aos homens dialogar. Uma antiga forma podia aprisio-nar a ausencia que estava destinada a devorá-la. Em Pessanha o impossível diálogo é só quase siléncio e encolher de ombros. Estava reservado aos jovens de «Orpheu» inventář o caminho e a bússula. A «selva escura» eram eles e o mundo inteiro, sem Virgílio algum para os conduzir. As proliferantes ruínas desse mundo só lhes ofereciam espelhos quebrados e eles mesmos ja-ziam entre elas. Tinham a consciencia de habitar um universo fulminado misteriosamente. Os vestígios do subito apocalipse reenviavam-nos para um anterior ou futuro paraíso donde sempře se pensaram excluídos. Procurar uma saída através do caos da modernidade, imagem multicor e dura da Queda. foi o destino confiado ä equipagem de «Orpheu». A uma situacäo inedita correspondeu uma inedita promocáo poética. Eles acabaram e anteciparam por que o mundo á sua volta acabava e antecipava. Muitos viram o que acabava', mas só eles contemplaram as faces simétricas da angústia e do delí-rio, como cifra exacta do mundo seu contemporáneo. A revolu-cäo estava inscrita nas coisas antes de eles a inscreverem nos poem as por ela devorados. Como de costume, podiamos te-la recebido de outros céus ou encontrá-la atenuada nas praias ca-seiras. Podiamos, inclusive, te-la falhado, como a Espanha, em grande parte, a falhou. Nós admiramo-los porque isso näo aconteceu. O que receberam rendeu o evangélico centuplo. Admiramo-los, sobretudo, pela espécie de milagre poético que realizaram. Nunca, entre nós, o cristal vivo da imemorial dištancia entre o poéma e a realidade por ele aludida fora atraves-sado por tal transparencia. É nessa extrema eliminacäo do natural intervalo, nessa singular näo dištancia que a revolucäo consiste. E o poema mesmo que cria a realidade que nós toca-mos depois de o ter lido. Näo é descricäo, nem comentário, nem alusäo, nem símbolo, nem mesmo sugestäo. É imediata-mente a respiracäo e a expiracäo poética do mundo. Tudo o que eles tocam kvanta voo ä nossa f rente. A poesia näo vem depois do mundo, imagem tranquila, desesperada ou sublime desse mundo. O mundo que há é esse que o poema faz existir o u inexistir. A impossível viagem aos confins do nosso mar tene-broso e resplandecente é na «Ode Maritima» que a navegamos. A mais lúcida crítica foi tocada pela grandeza e novidade de «Orpheu». Em lugar de honra, embora de modos diferentes, os criticos-poetas de «Presenca». Ninguém tirará a Regio a glória de ter compreendido, primeiro do que outros, a singular a Ventura poética de «Orpheu», nem a Gašpar Simöes e mais tarde a Casais Monteiro o mérito de terem tentado as explicacöes histo-riográficas e exegéticas de todos conhecidas. Eles viram, numa primeira fase, o que a proximidade e o horizonte proprio do «presencismo» permitia ver. Näo é demérito deles nem mérito posterior se o tempo que precisou melhor, näo só esse horizonte como as oposicôes sérias que entäo encobria, nos revel a hoj e um certo numero de dificuldades intrínsecas a uma interpretacäo excitante. Nós estamos no futuro em que se clarificou um pouco mais a fatal obscuridade do antigo presente de Regio e Simöes. Se é possível hoje fornecer de «Orpheu» uma interpretacäo mais 146 Eduardo Lourengo Tempo e Poesia 147 apropriada ä sua realidade, deve-se isso, em grande parte, ä es-pécie de anónima inteligibilidade que o tempo acrescenta ao tempo que o precedeu. Nesse sentido o factor de maior clarida-de foi decerto o do desaparecimento do proprio «presencismo» como elemento intercessor entre nos e o universo poético de «Orpheus». Um outro. estreitamente conexo com este, reside na atitude crítíca genérica de «Presenca», que sumariamente pode-mos resumir designando-a como psicologismo. Nela participam. embora de muito diversa maneira, todos os «presencistas». Para sermos justos diremos que também o tempo, isto é a presenca dos outros e a remeditacäo de velhas posicöes, alterou para ca-da urn deles o psicologismo de base. Regio e, sobretudo, Casais Monteiro tomaram ao longo dos anos uma consciencia cada vez mais nitida das dificuldades insuperáveis dessa atitude mental. O psicologismo encontra a sua justificacäo dentro dos limi-tes de uma realidade reduzida a termos de consciencia e da diabetica que os articula. Näo é jamais o caso da consciencia imersa no mundo que a linguagem traduz. Muito menos o é de uma poesia cujo ser näo é feito de drama de consciencia, ou de drama de poeta, como a de «Orpheu», maximamente a de Pes-soa. O ser děste poetar é consciencia do drama da realidade mesma e, como tal, agonia da poesia como lugar do combate por essa realidade. A agonia do poeta é secundaria em relacäo a essa de que ela é filha. Näo se trata de uma banal ou sublime aventura psicológica. Trata-se, literalmente falando, de uma au-tentica aventura ontológica, como outra näo se conhece no mundo da lingua portuguesa. Traduzi-la em termos de psicolo-gia ou explicá-la para a condenar (ou exaltar) ä luz de sociolo-gias que säo mil vezes mais obscuras que a imediata claridade nela existente é permanecer exterior ä intencäo nuclear dessa aventura. A música descritiva da crítica literária sublinhou bem a novidade ética, psicológica e mesmo «metafisica» de «Orpheu», substäncia visivel da inexplicável novidade estética. Cer-tamente, mil vezes melhor do que o poderá fazer qualquer aná- lise estilística entregue ao delirio concertado de reencontrar na maquinaria dos fonemas e dos ritmos a explicaeäo de um mi-lagre que nasce de um acto, literalmente falando. inimaginável. Mas ambas passam ao lado desse original «desastre obscuro» de que o fragmento-poema nos dá notícia. Invocá-lo sob o nome de experiencia ontológica é ainda falhá-lo, pois o seu vazio centro é menos a presenca do Ser que a sua ausencia: ausencia de essentia humana em Sá-Carneiro, ausencia de Tudo em Pessoa. Tal-vez o nome de aventura ontológica negativa — no sentido em que dizemos teológia negativa — sej a o mais conveniente para traduzir o núcleo da revolucäo poética de «Orpheu», com a con-dicäo de näo perder de vista que essa ardente experiencia do Nada, uma das mais profundas e extremas da poesia universal, é o anverso de um apelo igualmente inominado de Divindade. Elas nasceram na Queda, o cair sem termo é a espiral dos seus dias e da sua imaginacäo. mas näo caem täo fundo senäo por ter com eles «sensacöes que já viram Deus». Para este drama sem actores, representado na «noite interna, o universo», toda a interpretaeäo psicologista. mesmo a mais subtil e reticente, como a de Casais Monteiro, nos parece ainda inadequada. Um mundo poético de visiveis actores, como é precisamente o de «Presenca», presta-se melhor a uma exegese psicologista. Sem se darem conta disso. foi uma espécie de natural transfert aquilo que os j oven s poetas-criticos de «Presenca» efectuaram ao reivin-dicar «Orpheu», pois esse «Orpheu» por eles invocado é, em substäncia, o que corresponde ä experiencia específica da propria criaeäo «presencista». O resultado disso foi o surgimento de uma topologia crítico-literária na qual «Orpheu» e «Presenca» aparecem lado a lado, ou uma seguindo naturalmente o outro como membros da mesma família espiritual e poética. Os moti-vos que justificam esta mitologia literária existem. m as perten-cem á pequena história. O seu carácter anedótico é insuficiente para fundar uma aproximacäo de valor categorial, adequado ä auténtica realidade das obrus desses dois movimentos. Nós ere- 14t 148 Eduardo Lourenco Tempo e Pogsia 149 api pec ten de cor «O atii mo em ser do; da Mc ma tes léci im« um drž soa me pot a e ave ten mu gia gia nel ave a i phc tan mos que é ainda tempo de separar sem dor esses falsos irmäos siameses que mutuamente se prejudicam. Segundo unänime aviso, «Orpheu» significa urna «revolucäo poética». A fundamentacäo deste lugar-comum näo é a mesma para toda a gente. A que tern mais voga atribui esse carácter revolucionário a um sem-número de razôes históricas e psicoló-gicas que deixam intactos aqueles essenciais motivos inscritos nas obras e pelos quais elas merecem ser tidas como exemplo da radical mudanca poética. Críticos ilustres queixam-se de nin-guém ter suficientemente esclarecido a especial «poesia» de um Sá-Carneiro e de um Pessoa. Possivelmente um esclarecimento deste género é inexequível, tanto para a «poesia» desses autores como para a de quaisquer outros. Nada se encontra nesses mes-mos críticos que nos esclareca isso que segundo eles, e com ra-zäo, é o essencial. Essa falha näo nos parece, porém, muito import ante. O que ela busca remediar acaso näo tenha nem precise de remédio. Mais estranho é o verificar que pouco se encontra de substancia! nesses mesmos críticos acerca daquilo que eles designaram como «revolucäo poética». As observances apre-sentadas em favor do carácter «revolucionário» do s poemas de Sá-Carneiro e Pessoa tém sempre algo de exterior. Em plena maré psicologista e historicista säo aduzidos os tracos conheci-dos de «escändalo literário», o insólito comportamento social desses poetas, a provocacäo espiritual (sobretudo «ética») inscri-ta nos poemas ou o contraste formal com a poesia sua contem-poránea; em suma, t u do observances exactas, mas definidoras de qualquer outro movimento iconoclasta, no sentido mais co-mum. Sem dúvida, sub-reptícia ou claramente se alude a u m clima moral novo, de tipo «revolucioná'rio», e mesmo a u m cli-ma «politico*, mas sem ulteriores explicacóes acerca de tal me-tamorfose «revolucionária». se acaso existe. Por ultimo nota-se, e com verdade, a alteracäo que «Orpheu» representa nas rela-cóes do poeta com a sua poesia e sobretudo com a Poesia, mas nem se nos explica cabalmente em que consiste tal mudanca, nem, o que mais importa, se nos mostra como ela reside no proprio poema. Toda a nossa atencäo se ach a concentrada, como é hábito, na dilucidacäo dos mil intrincados fios que a obra sustenta com o criador ou o criador com a obra e aí se buscam motivos para justificar a revolucäo poética que um certeiro gos-to desde logo captou em «Orpheu». O mais complexo desses críticos invoca um novo aprofundamento da humanidade que nos poemas tem lug ar e näo se pode deixar de lhe dar razáo. Mas a natureza, as formas desse aprofundamento dissolvem-se em seguida num género de explicacäo sócio-psicológica na qual perdemos de novo o revolucionário dessa confessa «revolucäo». Se «Orpheu» é, de facto, uma «revolucäo poetica» nas obras o devemos ver, e näo nos acidentes do seu nascimento, dos seus autores ou da sua vigéncia social e cultural. É tal vez certo que ä exterior novidade se ligou a imagem de «revolucäo poetica». Porém, esta imediata novidade teria sido uma simples «revolta», näo uma «revolucäo», sem o futuro que o seu conteúdo trans-portava. É neste, e neste só, que a «revolucäo» se inscreve. Um poema como a «Ode Maritima» aparece como um objecto novo pel a forma mas muito mais pelo conteúdo. O poema apresenta--se-nos objectivamente como objecto-resumo de uma compreen-säo insólita do Espaco e do Tempo cósmicos e humanos. A sua linguagem de cristal, ao mesmo tempo dura, nitida, rara e quo-tidiana seria um milagre verbal no contexto portugues, mas näo seria uma «revolucäo» sem transportar o leitor para uma dimen-säo poética näo somente desconhecida para ele mas transfigu-rante de toda uma apropriacäo imemorial do mundo que anteriores movimentos literários jamais haviam deslocado de sua contínua classicidade. O milagre real é que essa rotacäo com-pleta nos instala de novo no comum pais das maravilhas que toda a Poesia desdobra a nossos pés. De algum modo é esta moderna poesia que nos aparece como a mais antiga e, ä sua luz, toda a experiencia anterior, visäo tranquila e normal, se revel a como respiracäo de um certo mundo e de uma certa forma de o 150 Eduardo Lourenco Tempo e Poesia 151 compreender e habitar que está longe e é inadequada ä expe-riencia tumultuosa e transparente do mundo moderno, da alma moderna que na «Ode Maritima» pela primeira vez, de maneira sumptuosa, toma consistencia e figura. Neste poema passeamos do outro lado do espelho de Alice mas o grande prodígio é o de nos sentirmos lá no nosso verdadeiro mundo e o de poder consi-derar o que deixamos para cá do espelho como um f also e ininteressante mundo. Esta dimensäo näo existia no mundo da poesia portuguesa. É um outro mundo o que o poema desenha e näo o mesmo mundo de sempře, tornado outro pela magi a tra-dicional do poet ar ou por uma dialéctica do imaginário como a que suporta a poesia de Teixeira de Pascoaes, limite magnífico do nosso poetar tradicional, ao mesmo tempo singularmente proximo do poetar de Pessoa e sua perfeit a antítese. A poesia de Pascoaes exerce igualmente sobre as form as elementares do Espaco e do Tempo urna transfiguracäo prodigiosa, aplicacäo instintiva e genial de uma dialéctica de Tudo em Tudo, filha do evolucionismo e do panteísmo, mas essa alquimia trabalha um Espaco e um Tempo antigos. Diferentemente, a poesia de Sá-Carneiro e Pessoa dá conta de uma convivéncia ôntica de um tipo novo com o Espaco e o Tempo, os quais perdem o seu carác-ter de dados para ser o objecto mesmo de um poetar que tira da inaudita perspectiva com que os en cara a razäo de ser da perturbacäo e da fascinacäo únicas que exerceram e continuam a exercer. A relacäo da consciencia perante si mesma como da consciencia perante o mundo recebem dessa luz incidente ou, melhor seria dizer, antinatural, um choque específico, cujo tes-temunho é o poema mesmo, expressäo dessa convivéncia ôntica e porta aberta para esse mundo önde a vigencia habitual do Espaco e do Tempo näo encontra eco. Sem esta transfiguracäo ao nível do mais radical a poesia de «Orpheu», por mais sublime que fosse, näo mereceria o nome de «revolucionaria». Como lin-guagem, a «Ode maritima» podia considerar-se em face da tra-dicäo portuguesa como depuracäo dos universos de Cesário ou de Pessanha, e no contexto mundial como adaptacäo da poética de Walt Whitmann, confessadamente seguida. Mas seria con-fundir a simples aparencia com a realidade e nada é mais pro-bante para o manifestar que o exemplo mesmo da «Ode Maritima» na qual a aparencia inclina ä maxima confusäo com a realidade. O proprio Pessoa, seguido ä letra, nos autorizaria a essa fácil passagem do universo de Walt Whitmann ao seu. Poucas vezeš, porém, será possivel encontrar uma linguagem semelhan-te ao servico de uma vivencia täo irredutivelmente oposta. A costumada referenda a Whitmann, nos termos em que é feita, é mais uma daquelas aptas a esconder a poesia de Pessoa. É dificil construir um objecto-poema menos whitmanniano que esse, em que. ironicamente talvez, Pessoa imita o tom exterior do cantor de uma realidade histórica e humana que na «Ode Maritima» comparece em negativo. Mesmo sob a falsamente frenética ima-ginacäo de Älvaro de Campos, Pessoa é a antítese de Whitmann. Que dizer dos outros Pessoa em que a música exterior recobre como uma luva a anulacäo épica da realidade que o simples nome de Whitmann contraria? É nessa anulacäo para-doxalmente cristalina e musical que se resume a motivacäo poética essencial de «Orpheu». O segredo do seu sortilégio reside porventura na sua estranha classicidade, nós queremos dizer, no facto de que essa nova convivéncia com os objectos e os pen-samentos a uma luz negra que os destrói ao mesmo tempo que os invoca aparece literariamente como de ninguém, como a voz mesma de uma consciencia que näo se toca jamais como consciencia (Sá-Carneiro) ou de uma realidade que misteriosamente näo chega aos seus próprios bracos (Pessoa). A nossa experién-cia espacial e temporal é transfigurada de nascente a poente e todavia o poema no-la transmite como natural, o insólito por si mesmo se revel a como terra transparente. Näo se trata de Sá--Carneiro, näo se trata sobretudo. de Pessoa como consciencias separadas da vivéncia que o poema traduz, mas imediatamente de um verbo que mau grado a insólita aparencia nos introduz 152 Eduardo Lourenco Tempo e Poesia 153 em horizontes que desde sempře nos pertenciam sem que o sou-béssemos. Como todas as «re-volucöes», a que «Orpheu» cumpre é um auténtico «re-gresso», um restabelecimento numa ordem que a antiga ordem escondia. O sentimento total que ela comu-nica é da mesma espécie que o da passagem do universo de Galileu ao de Einstein, ou do de Aristoteles ao de Kant, embora näo sej a da mesma natureza. Equivale a tudo quanto comunica aos homens o sentimento de se encontrarem em «plena revolu-cäo». Temos nós a mesma sensacäo em face dos mais célebres poem as de «Presenca»? Para se ver a dištancia fabulosa entre um objecto poético revolucionário e outro que o näo é, bašta comparar a «Saudacäo a Walt Whitmann» ou a «Ode Maritima» ao poema-tipo da audácia «presencista»: o «Cäntico Negro» de Regio, täo celebrado, embora muito longe de outros poemas do autor de «Jacob e o Anjo». A diferenca de mundos. a diferenca de peso ontológico e formal salta aos olhos. Näo há verdadeira medida entre a imprecacäo Urica adequada a uma revolta de di-mensöes psicológicas e as epopeias líricas adequadas ä convul-säo e ao tumulto de um universo humano alargado ä dimensäo do cosmos. A poesia näo é o que diz, mas o que é, segundo uma formula célebre. «Cäntigo Negro» fala de loucura. invoca audácias extremas, sugere complexidades, anuncia desumanida-de. Mas a audácia poética real est á nas imagens fulgurantes de «Saudacäo», nas vagas luminosas da «Ode Maritima», espelho de uma complexidade e de uma desumanidade täo irrefutáveis que perto delas a meada psicológica de Regio parece um brin-quedo de crianca. A sua simples existencia mostra uma «loucura» vertiginosa, em estado puro, täo diferente da aludida por Regio como uma bomba explodindo, de um discurso de anar-quista. Tal é, alias, em termos metafóricos, o abismo que sepa-ra, em geral, «Orpheu» de «Presenca». A raiz ultima dessa diferenca abismal entre os poemas de «Orpheu» e de «Presenca» parece-nos o resultado de duas im- plantacčes antagónicas da consciéncia poética em face de si e do universo. Os poemas de «Orpheu» traduzem uma tal ausén-cia de nós a nós mesmos e de nós ao universo que o conflito de onde o poema nasce se transform a em conflito de todos e de ninguém. O verdadeiro real náo está em parte alguma: nem no homem como consciéncia, nem no universo como «em face» dessa consciéncia. O drama reside nisso, é disso que os poemas sáo feitos. O drama é que náo há sequer drama, nem no homem (Sá-Carneiro) nem no universo, pois para haver drama é preciso «ser dois», esse famoso «dois» que Sá-Carneiro perseguiu, para ser ao menos o «um» necessário aos conflitos reais com Deus. o Mundo ou os Outros. Assim. Sá-Carneiro e Pessoa. náo nos fa-lam deles, a titul o pessoal, mas só e sempře dessa óntica distán-cia que lhes devora a substáncia e os impede de se tocarem e tocarem o mundo. O verdadeiro real é a consciéncia da sua irrealidade essencial (Sá-Carneiro) e da essencial Irrealidade de Tudo (Pessoa). Eles viveram essa experiéncia como imagens ra-ras, mas ela pertence ao fundo da experiéncia humana em geral. O sucesso prodigioso dos seus poemas encontra aí a mais simples e clara explicacáo. O caso da poesia de Régio, de Torga e em čerta medida o de Casais Monteiro é muito diverso. Os seus mundos poéticos — por diferentes que sej am, e sáo-no muito — tem algo co-mum: a personalidade é neles um dado. O conflito imanente a essa poesia náo é subjectivo no sentido restritivo e polémico que em dada altura foi dado a esse conceito nos arraiais da crítica nacionál. Se assim fosse, seria inexplicável a comunicacáo que essa poesia naturalmente pressupoe e estabelecé pela sua simples existéncia. Mas é subjectivo, se com isso se quer assinalar o seu carácter de eminentemente pessoal. O pessoal náo se reteré somente ao facto de o drama ser antes de tudo drama de al-guém mas igualmente ao facto de o ser com alguém: Deus, os Outros, ou a Sociedade. O leitor do poema é imediatamente es-pectador, náo o espectáculo como em Pessoa. Os actores susci- 154 Eduardo Lourenco Tempo e Poesia 155 tam uma atencäo que na poesia de Pessoa se dirige logo ao objecto do poema. Como estranhá-Io de quem escreveu: «O que náo há somos nós e a verdade está aí»? Toda a poesia de Régio e Torga conclama a certeza in versa. Na paixäo extrem a com que o fazem, a mais extrema da nossa história literária, consis-te acaso aquilo que mais profundamente os separa e liga a «Orpheu». Uma tranquila certeza de si náo suscita tais trans-portes. Ambos säo posterioridade de «Orpheu», mormente de Sá--Carneiro. que eles leram á luz da sua reivindicacäo de absoluta personalidade, embora o poeta de «Indicios de Oiro» sej a angús-tia de näo poder ter, nem de longe, aquele denso minimo do qual partem Regio e Torga para reclamar a personalidade total. Que a grande diferenca está aqui: Régio e Torga tem interlocu-tores. O dramatismo da sua poesia é consolador, comparado ao da paisagem estéril de Älvaro de Campos. Precisamente trata-se de «dramatismo», categoria do mundo burgués, que é, na sua esséncia, um mundo onde os heróis säo superiores aos deuses. Tanto faz que o herói acabe věnci do como vencedor. Isto é es-pecialmente justo para a poesia de Torga, pois na de Régio a relacáo herói-deus oferece um recorte mais ambíguo tocando muitas vezeš o horizonte trágico. Habitualmente, porém, em ambos, o herói. sob a figura do poeta, ocupa a cena e esta «presenca» é a sua maior vitória. Sem embargo, os deuses espreitam o herói, dos bastidores. Sem deuses náo seria poeta. Desta ocul-ta espionagem só o actor conhece a forca e o preco. O publico cre-o abandonado a uma mitologia inventada de propósito para vir ao palco representar o drama fictício das suas alucinacóes. Por isso o auténtico drama do herói «dramatico» é convercer-se a si mesmo e aos outros que os deuses tutelares do seu combate säo tais como ele os imagina. Toda a poesia de Régio e Torga dá corpo a este paradoxal combate. É uma poesia na qual o Mediador está presente que mais näo sej a sob a forma de um duplo, täo real ou mais real que o actor principal. Se necessi-tassemos de indices para distinguir «Orpheu» de «Presenca» este näo seria dos menos probantes. A auséncia de Mediador é a ex-periéncia original de «Orpheu». A referencia aos «interlocutores» é essencial no mundo poéti-co de «Presenca». Só na poesia de Casais Monteiro essa referencia é pouco visível, mas por isso mesmo ela näo alcancou na perspectiva puramente «presencista» o estatuto mítico que assi-nala a poesia de Régio e de Torga. De todos os «presencistas», Casais Monteiro é o único que assimila no piano da criacáo poética e da teória o espírito «modernista» e com ele convive e luta. Também se perfila no seu horizonte poético um elemento antagonista — sob a forma de uma Sociedade política e huma-namente hostil — mas a sua interferencia permanece discreta ou assume uma generalidade que näo permite ver nela um elemento mítico, catalizador, ä maneira de Deus para José Régio ou da Terra para Miguel Torga. Quanto a nós, a mais impor-tante das suas obras poéticas, «Voo sem pássaro dentro», expri-me, desde o título até á profunda meditacäo do acto poético que nela tern lugar, um mundo igualmente sem mediacäo dra-mática ä maneira «presencista». O facto de ter saído ä luz mui-to depois de terminada a época da vigéncia poética especifica-mente «presencista» (década de 30 a 40) assinala j á por si a in-sercäo como que colateral desta poesia na mitologia propria do «presencismo». Em contraposicäo, em outros poetas somente «afins» ou contemporäneos do movimento «presencista» a mes-ma referencia que dramatiza ou situa o poeta num mundo de calma provinciana ou citadina está fortemente desenhada. Tais säo os casos da poesia do Alberto de Šerpa, Saúl Dias, Carlos Queirós, Vitorino Nemésio e Antonio de Sousa. Em nenhum deles, porém, essa referencia assume o carácter obsessivo e agóni-co que ela representa nos poemas de Régio e Torga. Um aban-dono, urna voluntária despretensäo, urna gratuidade e mesmo um espírito de jogo. aliás uma das constantes da nossa tradi-cäo, aproxima-os mesmo muito mais da «maneira» de «Orpheu» que da de «Presenca». Mas nem a ambicäo ontológica, nem a 156 Edu ar do Lourenco Tempo e Poesia 157 comparencia da auto-ironia těm o mesmo alcance que em «Orpheu». A maneira propria de um Vitorino Nemésio e de um Antonio de Sousa exercerem essa auto-ironia está a meio caminho entre a anónima e eficaz ironia desrealizante de Pes so a e o sarcasmo de Régio. N um universo pessoal esse gesto marca a passagem para o impessoal, mas sem chegar a estabelecer-nos nele. Todavia, mesmo este elemento de ironia, traditional por um lado e de recente reelaboracäo através de Nobre, Sá--Carneiro e Pessoa. desaparece de to do na poesia de Régio e mais ainda na de Torga. Sob um ťundo de constante tensäo dramática a ironia, mesmo atenuada, f aria um contraste quase chocante. É sem surpresa que nós vemos ao lado do diálogo dramático surgir o sarcasmo, a invectiva e a satira. Neles a vin-culacäo pessoal é ainda mais visível que na confissäo dramática. A ironia de Pessoa traca o movimento mais libertador e anóni-mo da sua poesia. O sarcasmo, a semi-ironia, a satira de Régio, tais como a apostrofe e a invectiva de Torga sáo a ferida deles antes de ser a nossa. Reflectem uma seriedade sem autentica se-gunda dimensáo. Régio luta por alcancá-la sem verdadeiramen-te o conseguir. Torga evita este desaire mantendo-se fiel a uma seriedade sem fendas. A ironia é-lhe estranha num grau muito mais raro que a Régio, obrigado nos momentos cruciais do seu diálogo a reconhecer de algum modo o seu nada fulgurante. Aqui se situa a linha divisória dos mundos poéticos de Régio e Torga. Näo é pequena a dištancia entre esses dois mundos e con-vém acentuá-lo num estudo que insinua, pel a perspectiva em que se situa, as afinidades essenciais em detrimento de diferen-tes igualmente essenciais. Sem isso contribuiríamos para perpe-tuar mais um dos pares de nomes mitológicos que a historiografia langa no mercado a cada nova geracáo, como se ninguém pudesse ir sozinho. De um modo geral o universo poético de Régio é mais complexo no conteúdo e mais variado na forma que o de Miguel Torga. Poesias de diálogo. de confissäo, uma e outra, mas näo do mesmo diálogo nem da mesma confissäo. Acontece que o interlocutor näo é o mesmo, embora sob esta diferenca bem visível do exterior jaza urna estranha identidade, a qual é, paradoxalmente. que nem Régio nem Torga tem um verdadeiro interlocutor. O verdadeiro interlocutor de Régio é o seu duplo mas este sósia é prodigiosamente real, täo real que o poeta mesmo näo sabe qual dos dois é ele-mesmo ou se säo am-bos ficcäo daquele único interlocutor que terminaria o diálogo se encarnasse, tal como lhe dá origem pela sua misteriosa au-séncia-presente. Invoca-se äs vezes o mundo de Claudel a pro-pósito de Régio. Há entre eles pontos de contacto, mas o abis-mo que separa uma Transcendencia perfeitamente aceita e teo-logicamente concebida de um Deus ambíguo em sua essentia e sua existencia mesma separa igualmente esses dois mundos. É uma consciencia protestante a de Régio, näo urna consciéncia católica. Claudel referia a maxima sabedoria, provocadoramen-te, ao catecismo; Régio invoca mística e individualisticamente um «evangelho em branco». O seu obsessivo, barroco e grave diálogo com Deus e o Diabo é, no fundo, um monólogo transparente entre Régio e Régio. A sua particular grandeza reside na paixäo posta em desatar esse nó górdio de urna individuali-dade exasperada, a cada instante partilhada entre a exaltacäo frenética da sua particularidade e o desejo de se fundir numa Transcendencia que paradoxalmente se devia apagar para sal-var essa particularidade, incapaz, ela, de se perder para se sal-var. Essa paixäo e os dons imagéticos e retóricos que a vestem fazem de Régio e dos múltiplos sósias que entre si monologam um substituto eficaz do interlocutor real que näo existe. A dua-lidade psicológica, a ambígua situacäo da consciencia em face de Deus constituem urna experiencia humana arquétipo e como tais oferecem um terreno sólido ä litania poético-dramática de Régio. Um abandono de outra ordem aproximá-lo-ia mais de nós. mas talvez sej a este voto um daqueles que destruiria o bem existente, pois, ao f im e ao cabo, a raiz obscura e criadora des- 158 Eduardo Lourenco Tempo e Poesia 159 te mundo poético é justamente a impossibilidade de um tal abandono. Aparentemente, a poesia de Torga é mais dialogante que a de José Régio. Na realidade, é o contrario. A contradicäo resol-ve-se reparando que nesta poesia nenhum interlocutor existe, nem mesmo sob a forma de um duplo. Torga assume enquanto poeta todos os podereš e institui com eles um dos monólogos mais radicais de toda a poesia portuguesa. O poeta näo é parti-lhado, mesmo ficticiamente, entre Deus e o Diabo, nem se situa em face de Cristo ou Job na atitude que os poemas de Regio con-figuram. Ele é Cristo, é Job, ele discute ou invectiva Deus, näo se deixa pôr em causa por Deus. Melhor ainda, Cristo, Job, co-mo mais tarde em cada um dos heróis dos Poemas Ibéricos, o u mais trivialmente uma madeira ou um cisne, säo Torga, näo apenas pela alquimia fatal que liga a criatura ao criador, mas pela vontade bem determinada de exprimir antes de tudo a sua opiniäo e o seu juízo diante do espectáculo do mundo. Levada pela associacäo mecänica das aparencias que entre nós cumpre e instaura a mitologia literária popular, a crítica, com unänime reflexo, näo pôde fugir ä tentacäo de comparar os Poemas Ibéricos a Mensagem. É mais urna das aproximacôes pavlovianas «Orpheu»-«Presenca». Ora nada mais diferente que esses poemas e a concepcäo do mundo que eles manifestam. A passivida-de, o apagamento de Pessoa diante dos heróis é total, em Mensagem, mas a heroicidade é aí expressa como um valor absoluto e místico, subordinador de toda a fraqueza e contingéncia ter-restre, ao mesmo tempo que o herói é invocado pela essencia da sua gesta, e assim totalmente desindividualizado. Nos Poemas Ibéricos. ao contrario, o místico é reduzido ao seu condiciona-mento terrestre e biológico (Santa Teresa), tomando Torga qua-se sistematicamente o contrapolo da lendá heroicizante. É urna visäo naturalista a que triunfa nos Poemas Ibéricos. como aliás em toda a poesia de Torga, sem nada de comum com a visäo mística e ocultista de Pessoa. Para toda a mitificacäo dos Poe- mas Ibéricos é vál i da a célebre apostrofe do poema «Moises»: «Moises, de Miguel Ängelo e meu». Raras vezes um poeta expri-miu com mais grandeza e brutalidade a sua visceral vontade de aproximacäo e integracäo pessoal do mundo. Como é possível, com tal motivacäo, esperar qualquer dramatismo da poesia de Torga? Se nesta poesia o antagonista näo aparece, nem sequer sob a forma de um duplo, a vontade do poeta o criará como criou o resto. A tensäo mesma dessa vontade exacerbada de apropriacäo do mundo é a fonte mais imediata do conflito com um mundo que Ihe näo corresponde cabalmente. Ä falta de um conflito espiritual preciso, como em Régio, Torga encontrará n as múltiplas ocasiôes de embate ou combate com a realidade histórica, humana ou natural, o motor constante da sua dinä-mica poética. Mas para que a realidade se revele antagónica é necessária oferecer-lhe um espelho de urna mítica transparen-cia. O Deus de Régio faz ressaltar, por contraste. a oscilacäo e a treva interior. A Natureza, previamente exaltada como valor supremo, embora com reticéncias de significado identico äs que Régio reserva ä invocacäo de Deus, serve a Torga como elemente e horizonte de dramatizacäo. Esta mística da Natureza, par-ticularmente da Terra, assim como a mística de Régio no piano do espírito, näo estäo isentas de uma acentuada má ťé, mas ela é täo consubstancial ao poetar de ambos que mesmo os inúme-ros sintomas que nos poemas transluzem de tal atitude säo in-tegrados no movimento geral dessas poesias e acabam por se tornar indiscerníveis delas. É do exterior que nós os vemos e acaso isso marque mais o limite de nossa aceitacäo que o valor e o alcance intrínsecos dos poemas. Num caso e noutro, a exi-géncia subjectiva de conflito e oposicäo parece ultrapassar lar-gamente as possibilidades de dramatizacäo suscitadas pelas re-feréncias basilares dos próprios poetas. A dialéctica dessa má consciencia parece ainda mais essencial e, em todo o caso, ilus-tra melhor dois comportamentos poéticos que os objectos que a suscitam. Ela, mais do que tudo, permite aproximar os poemas 160 Eduardo Lourenco Tempo e Poesia 161 de Régio e Torga e distingui-los, em conjunto, radicalmente, dos de «Orpheu». Aparecem-nos ambos crucificados por um combate onde näo é fácil distinguir o que é comum ao combate da imaginacäo humana e o que é estritamente privado. Sá--Carneiro e Pessoa, igualmente, nos póem em contacto com a sua cruz pessoal, mas ela é urna mera projeccäo da cruz mais funda da realidade que um e outro levantam miraculosamente do chäo suspendendo-a por urna irónia do imaginário que é a suprema vitória da alma. Esta vitória abre a porta por onde nós próprios entramos. Com requintado pudor Sá-Carneiro e Pessoa avancam para nós pintados, mascarados. O arlequim foi o em-blema desta geracäo funambulesca e audaciosa. Ele danca so-bre a sua propria cruz e essa danca reabsorve o horror ao mes-mo tempo que o exalta por contraste. É essa danca anímica que nos torna íntimos Sá-Carneiro e Pessoa e dá aos seus poemas um optimismo trágico. Os «totem* de «Presenca* foram outro s: o bobo-anjo. Job, Cristo. mais humanos por um lado. mas oca-siäo perpetua de tragicomédia quando o poeta nos faz ouvir a voz de Job em vez da sua, ou, mais penosamente, a sua, em vez da de Job. A mesma geracäo concebeu o poeta, através de Julio, como Pierrot lírico e essa apaziguante presenca define bem um certo tom menor, mas bem significativo, da poesia «presen-cista». Talvez fosse essa a vocacäo média de uma época que su-cedia a urna convulsäo espiritual täo definitiva como a de «Or-pheu». Mas sob a pressäo deste abalo ou somente por natural defesa e intuicäo genial, Régio impôs ao melancólico Pierrot a violencia que conquista os céus. Torga seguiu a mesma esteira, mas num e n outro säo bem visíveis os vestígios dessa espécie de golpe de estado poético. Para cantar ä sua propria altura num tempo ainda cheio de vozes ciclópicas, a sua voz foi obrigada a subir aos tons extremos. O seu protesto ou choro ouve-se na práca publica. Muitas vezes, a forca do espectáculo trespassa--nos: säo os grandes momentos de Régio e Torga. Mas sentimos algo da violencia que exercem sobre nós a chaga do proximo, as lágrimas altas da mäe atravessando a práca e conclamando céu e terra para assistirem ä sua dor. Ao lado da depurada tragédia irónica, paradoxal e insólita de «Orpheu», este grande espectáculo dramático revel a a sua estrutura clássica. É, de novo, um diálogo no interior de um mundo cuja estrutura anímico--temporal se conserva identica ä da poesia portuguesa anterior a «Orpheu». O drama é originál, dentro de um mundo que o näo é. Como pode caracterizar-se o modo de ser de um periodo que se segue a uma revolucäo quando a sua estrutura tern mais afi-nidades com o tempo que a precedeu do que com os tempos re-volucionários? De restauracáo? Mesmo se nos cingimos apenas ä poesia como aqui o fazemos (o caso da «prosa» e da «critica» säo muito outros), «Presenca» näo justificaria, nem pela inten-cäo nem pelos resultados, um titulo que insinua regresso artifi-cioso e auséncia de originalidade. Nada faz ao caso a longa e permanente história da «incompreensäo», por parte de um Regio, de tudo quanto em «Orpheu» é propriamente «modernista» ou da sua näo velada reticéncia em relacäo a um Pessoa, para já näo falar do go sto conservador e classicizante cada vez mais acentuado do mesmo poeta. Quanto a Gaspar Simóes, a sua atitude oscilou do ditirambo ä pur a denegacäo de seriedade li terária ä poesia de Pessoa. Somente Casais Monteiro, como poeta e como crítico, guardou uma relacäo näo ressentida com o cli-ma e os valores típicos do Modernismo. Mas uma andorinha näo faz a primavera. Quando muito o seu caso provará que a obra de cada «presencista» se inscreve em horizontes dificilmen-te redutíveis a qualquer elemento comum. A história interna do «presencismo», as irredutibilidades, os conflitos entre os seus protagonistas inclinam a pensar que a categoria histórico--literária «Presenca» näo tem verdadeira essencia. Que o mais prolifíco dos seus críticos e panegiristas se de conta, näo sem coragem, passados vinte ano s sobre as suas apologias, que a poesia dos seus camaradas de geracäo «ignorou» fenómenos täo 162 Eduardo Lourenco Tempo e Poesia 163 consideráveis para a definicäo e perfil da poesia «moderna» co-mo Rimbaud e Mallarmé, näo ajuda muito, nem a admitir uma coerěncia interna do movimento resumida pelo mesmo crítico no slogan «Nós, a Presenca», nem, sobretudo, a endossar como evidente o seu carácter de «modernista». Näo exageremos, porém, nem tomemos como norma opi-nióes que tiveram sempře em conta de preferencia o simples perfil sociológico de um grupo literário e as necessidades da es-tratégia cultural que lhe foram próprias, do que a natureza das criacöes que lhe deram corpo. A referencia ao Modernismo é para «Presenca» mais do que vinculacäo anedótica e passageira. Mas convém assinalá-la de maneira tal que se possam entrever relacöes de conteúdo entre Modernismo e «Presenca» e näo nieras afinMades, aproximacöes ou identidades, como as que a as-sociacäo critica «Orpheu»-«Presenca» institui. O recurso ä desig-nacäo de Segundo Modernismo introduz a ideia de uma dife-renca numa continuidade e por isso mesmo näo é mais satisfa-tório. O acento é colocado na cronologia, näo na natureza dos dois fenómenos culturais. Quanto a nos, sugeriríamos como mais adequada ä realidade profunda de «Presenca» e ä topografia do nosso panorama cultural a designacäo de Contra--Revolucäo do Modernismo. Com este epíteto se referenci aria uma espécie de bonapartismo poético que, parecendo conduzir ainda a «revolucäo» e dalgum modo a conduzindo, se serve dela para fins privados e mesmo opostos ao impulso revolucionário iniciál. As intencöes subjectivas pouco contam ao lado das obras e est as representam, por cima do chamado Modernismo, urna religacäo ao fluir tradicional da poesia portuguesa. Na me-dida em que a referencia ao Modernismo se impöe (e talvez nadá impeca de pensar que o universo de Regio se pode explicar sem ela), «Presenca» aparece-nos como reflexäo sobre o Modernismo e, simultaneamente, refraccäo do Modernismo. Bastava isto para cavar uma diferenca que o culto da personalidade e da originalidade, conscientemente professado, só podia acentuar até converter o falso filho num auténtico rival. As premissas teóricas de «Presenca» já pré-anunciavam o assassinato ritual do Pai, coisa que esta geracäo freudiana compreende bem. Mas nem foi preciso ou näo pôde consumar-se um täo natural e sa-lutar ritual, pela simples razäo de que esse Pai foi sempře um Outro, tremendamente diferente do filho que dele se reclamou. Se o único dever da Poesia é salvar o seu tempo com as armas desse tempo, «Presenca* realizou as suas promessas. Mas o seu «tempo» näo é o tempo de «Orpheu*, misteriosamente mais an-tigo e mais jovem. Notando-o, separamos o que separado está, embora o hábito ou uma filiacäo dos lábios nos mostrem em «Orpheu* e «Presenca* ramos de urna mesma árvore. Acaso estas clarificacôes no domínio da sociológia literária e cultural näo tenham a importäncia que geralmente se lhes atri-bui. Mais valera, talvez, encarar os autores um por um e para cada qual considerar os poemas e sua arquitectura única em funcäo daquela realidade que eles criam pela sua existencia, a qual näo é jamais, nem deducäo poética ideal, nem projeccäo, nem exemplificacäo daquela estrutura arquétipa que fatalmente toda a nomenclatura genérica nos inculca. Em todo o caso. a seriedade perfeita impôr-nos-ia o caminho inverso, o d a criacäo, se tal se afigura necessário e há em nós o vício da inteligencia que só o geral satisfaz (e que a poesia justamente des-faz), de categorias paradoxalmente genéricas e individualizantes, e m correspondencia com o universal concreto que cada poeta, cada poema e cada imagem promovem pelo seu surgimento. Em vez disso, o costume é descer (assim se pode dizer com dupla pro-priedade) de significados culturais genéricos, muitas vezes simples transferencia de outro s, vál i do s para domínios diver so s (da arquitectura ou da pintura para a literatura ou a música) para as realidades bem ímpares do poema e da obra que el as näo esclarecem mas inundam de uma generosa luminosidade global que é pior que a noite. O uso de tais categorias, alem da nuli-dade efectiva de pensamento a que dá lugar pela repeticäo me- 164 Eduardo Lourenco Tempo e Poesia 165 cänica e fácil que permite (quem pensa hoje algo de «vivido» e «sério» sob as categorias de «romantismo» ou «realismo» se as näo refere a tal imagem precisa, a tal obra, etc.?), assemelha-se ao conhecimento que de pessoa de família nos dáo os estranhos. Mas aqui se situa a «verdade» desse hábit o e a razáo de ser des-se uso que näo é somente filho da natural inércia do espírito. Também uma «intimidade» perfeita com a obra, poema ou imagem esconde uma ilusäo. É de algum modo numa essencial ex-terioridade que nós acedemos ao poema, ou o poema encontra eco em nós. Melhor ainda, é numa essencial exterioridade que ele proprio se gera näo só pela história, pela linguagem, pelo inconsciente activo que o promove, como pela arquétipa imagi-nacäo nossa que o recria. Acontece apenas que essa exterioridade näo recobre no domínio do imaginário o terreno da inteligi-bilidade e é aqui que nasce o equívoco e a impropriedade das melhores categorias literárias. Mesmo essas, ao que apontam é sobretudo ä universalidade do inteligível, näo a universalidade da imaginacäo, a qual sendo finita é ao mesmo tempo indeter-minada. A poesia é justamente a sua determinacäo indetermi-nada. Se a dificuldade é grande quando se trata de categorias, nas quais se reflecte, ao menos, o inteligível do imaginário (idealisme realismo, etc.), quer dizer do emprego daquelas que säo meramente anedóticas, contingentes, polémicas ou históricas? «Modernismo» é certamente uma delas, e só a alusäo precisa a tais e tais form as pode evitar o «vago» e múltiplo conteúdo que o vocábulo pode suportar. Os espanhóis chamam «modernismo» a algo que nada tem que ver com o nosso «modernismo», como é sabido. Porventura, referir «Orpheu» e «Presenca» a uma cate-goria historiográťica täo equívoca sej a ainda perpetuar um hábi-to banal e banalizado. Fazendo-o, limitamo-nos a aceitar como ponto de partida um estado de coisas existente, para näo con-trariar demasiado o gosto täo nacionál (e ibérico) das classifica-cöes de escola, movimentos, grupos, paradoxalmente filho da vontade de ter uma figura ä parte e muito sua. Talvez nenhuma geraeäo de críticos tenha cultivado tanto esse pendor como a de «Presenca», precisamente, sobretudo Joäo Gašpar Simöes, que se fez dessa proliferaeäo generosa de «escolas» e «qualificativos genericos», mais ou menos válidos, uma verdadeira especialida-de. A referencia erítica explícita ao Modernismo é igualmente obra de «Presenca», como o binómio «Orpheu»-«Presenca*. Näo conviria retomar mais fundo toda esta mitologia literária e reve--la a uma luz que näo sej a ainda a que nos advém da mesma «Presenca»? Quando se considera a sério a questäo, como näo estranhar que se ch am e inocentemente modernista um mundo poético no qual aparece em todo o esplendor justamente a pavo-rosa má consciencia da Modernidade? Como reclamar para Sá--Carneiro e Pessoa um título que convém, quando muito, aos Marinetti, aos Cendrars, a Appolinaire ou aos jovens Almada e Antonio Ferro? No jogo polémico dos epítetos de escola houve um nítido triunfo da forma sobre o conteúdo. Essa «forma» é igualmente significativa e como mais chocante, em superfície, emprestou ä ideia de «modernista* a parte de realidade literário-social que contém. «Modernismo» assinala a irrupcäo frenética de ritmos, formas, objectos insólitos do mundo burgues em plena expansäo ou explosäo histórica. Num ou noutro grande poema, Pessoa, geralmente por interposto autor (e isto significa), parece entre-gar-se de alma e coracäo ä vertigem externa, ao extase grandio-so e puro dessa «moderna» existencia. Mas o frenesi mesmo marca a teatralidade essencial desse extase, face histérica de um tédio visceral e inafundável. Ora é esse tédio em forma de gen-te, no qual näo é proibido ver a interiorizacäo fabulosa de urna civilizacäo intrinsecamente caótica, que é Pessoa. A Existencia inteira, real ou sonhada, antiga ou moderna, é consumida, fragmentada ou arrumada com meticulosidade infinita na mala, ela mesma irreal, desse prodigioso Tédio. A erítica de inspira-cäo marxista vi u bem o que há de antimoderno, niilista no uni- 166 Eduardo Lourenco Tempo e Poena 167 verso de Pessoa. Só näo viu täo bem até que ponto essa alien a-gäo é a imagem mítica de um mundo alienado e alienante. Ä transcricäo inigualável da alienacäo humana corresponde um apelo em surdina, heróico em Mensagem ou pleno de lágrimas reais e irreais em Älvaro de Campos, a uma nova Criacäo ou impensável regresso äquela oculta Unidade cuja negativa pre-senca é o amargo e invicto coracäo do poetar de Pessoa. Isto concorda mal com o delirio exterior e a apropriacäo fácil da contemporaneidade que define o moderno e a modernidade. To-davia, num ponto, o essencial, o mundo de «Orpheu» merece como nenhum outro o nome de moderno: näo só há um acordo íntimo entre a convulsäo espácio-temporal operada por «Or-pheu» e a perturbacäo operada pela técnica moderna e o viver moderno, como a imagíštica sobre a qual opera a fantasia de Sá-Carneiro, Pessoa, Álmada, é de urna quotidianidade, de urna banalidade, de urna actualidade que a poesia anterior, mesmo a de Cesário, o Mestre, näo conhecera. Com imagens triviais e mesmo grosseiras realizam a mais in-sólita das alquimias e instituem uma profundidade metafísica que näo se concebia senäo ligada a elementos «nobres» ou a um «tom» igualmente «nobre» como é o caso de Antero ou Teixeira de Pascoaes. Como será de novo o de Régio e o de Torga, cuja imagística sem ser «nobre» no sentido de Antero ou Gomes Leal é «excepcional», «simbolizante» antes mesmo que o movimento do poema a converta em símbolo. Há um sem-número de afini-dades entre o clima de Régio e o de Gomes Leal, por exemplo, tanto no fundo como na forma. E urna vez mais, revert en do ao nosso leitmotiv único, somos confirmados na visceral diferenca entre «Orpheu» e «Presenca». A referencia ao Modernismo, quer no sentido banal, quer num outro mais respeitoso do conteúdo, näo clarifica esta diferenca senäo em termos de urna dialéctica em que o negativo é mais importante e deci sivo do que o posi-tivo. Apesar de tudo, a premissa destas reflexóes, premissa for- mal, foi a de aceitar o «Modernismo» como prateleira conve-niente para nela depor «Örpheu». Seja assim. A conclusäo será, entäo, de repetir uma vez mais que nesse caso convém näo meter «Presen ca» na mesma barca. Se «Orpheu» é Modernismo, «Presenca» näo é uma «segunda» manifestacäo do fenómeno formal e espiritual que leva esse nome. É outra coisa, que su stent a com essas relacöes complexas e de que apontamos alguns carac-teres, na medida em que «Presenca» o permite. A maneira como surgiram, depois de «Orpheu», cronologicamente falando (e já esta coordenada näo recobre com exactidäo «o tempo cultural* de cada fenómeno) näo determina o seu verdadeiro lugar no contexto dos nossos valores literários. Também nasceram ao la-do de «Orpheu» e até antes, näo só na medida em que nasceram de outros, mas naquela mais profunda em que se nasce de si mesmo. Foi, decerto, esta maneira de nascer de si quern tudo comandou ou, pelo menos, tudo inflectiu. Os «presencistas» as-somaram ä vida literária num horizonte tornado extralúcido pěla irrupcäo da poesia «modernista», para viver em seguida as di-ficuldades dessa lucidez e mesmo as mútuas incompatibilidades. É neles que a noite de Sá-Carneiro e Pessoa, ou parte dela, se faz dia e essa natural conversäo apaga as diferencas sem as anular. Daquela lucidez e seus meandros «Orpheu» era um es-pelho. Mas, para eles, «Presencistas», näo para os homens dessa barca desarvorada. «Orpheu» nasce da noite, caminha no la-birinto, busca os deuses ou único Deus que deve libertär da tre-va original. Sá-Carneiro e Pessoa buscam porque näo säo. Os «presencistas» säo e buscam. A veemencia, a angústia, a auten-ticidade destas duas buscas aparecem como identidade ou signo de identificacäo. Psicologicamente é exacto. Traduzem ambas form as da inquietacäo romäntica. Mas o diverso nascer para si mesmas os separa. É ontológico e literário ao mesmo tempo. É a diferenca que separa a busca de Alguém por alguém da Procura, ao mesmo tempo, da sua propria realidade e da Realida-de. O universo de «Orpheu» é o de um abalo radical que num 168 Eduardo Lourengo segundo de terror e extase confunde na terra desolada os deuses e os demonios. O drama de «Presenca» e o de homens que entre as ruinas de uma terra novamente quieta procuram com fervor a imagem de urn deus mais intacto para adorar. Enquanto o nao acham, o prazer e a angustia da busca lhes servem de ver-dadeiro deus. VITORINO NEMÉSIO OU DA LIVRE NAVEGACÄQ (NO MAR POÉTICO DE DEUS) Minka respiracäo, noiva do vento. 1 Naquilo que outros véem um vago talento e sorte. Outros: tbelas qualidades, maspurgativo, aquele magnésio...t Levo coisas täo simples como o meu sonko e a minha morte. 2 Onde o eterno levanta, com pequenos Sinais de tempo astral que a carne capta. Uma águia de fogo que me rapta. J Embora pareca estranho, tratando-se de povo täo «catolico» como o nosso, näo é rica de seara mística relevante a já bem longa navegacäo da nossa espiritualidade. Isso se deve, sem dú-vida, ä candura um pouco rústica do nosso catolicismo, ao rei-nado em distraído aproblematismo com que é pensado e vivído. Bašta percorrer a Antológia da Poesia Religiosa, de Jose Regio, 1 «Äspera Vida — I», in Nem Toda a Noite a Vida. 2 «Desabafo», ibid. 3 «Äguia de Fogo», in O Verba e a Morte.